Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27323/18.0T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: INTEGRAÇÃO DO NEGÓCIO
DEPÓSITO DE RENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Um contrato pode ser integrado (art. 239 do CC) desde que se determine previamente a existência de uma lacuna suprível.
II – Uma lacuna é uma “incompletude do conteúdo perceptivo do contrato como falha do plano regulador previsto ou querido pelas partes” uma “ausência de estipulação das partes […] que se reporte a uma condição sine qua non da execução do plano obrigacional gizado pelas partes, ou […] que contrarie a própria lógica ou unidade de sentido do negócio” […].
III – No caso, existe uma lacuna e a regra criada pelo tribunal resulta da aplicação analógica de uma norma do regime jurídico do arrendamento urbano (arts. 239, 10 e 1045, todos do CC).
IV – Sendo o contrato integrado imputável ainda à vontade das partes, o tribunal, ao integrar o contrato, não viola as regras constitucionais das quais resulta a protecção da liberdade contratual ou da autonomia da vontade.
V - Nas sentenças proferidas em processos onde foram efectuados depósitos à ordem do tribunal, também deve ser decidido o destino dos valores depositados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

A 07/12/2018, B-Lda, propôs uma acção contra L-Lda, pedindo que seja:
“a) declarada a inexigibilidade da obrigação de pagamento da renda (independentemente da data do início da produção dos efeitos do contrato), atenta a inexistência da licença de utilização, da responsabilidade da ré, e, consequentemente, a ré condenada a reembolsar a pagar [sic] à autora todas as quantias pagas a título de renda (16.100€), bem como as quantias que a autora vier a depositar em consignação em depósito, até que seja emitida a licença de utilização;
b) declarada a actual vigência do contrato de arrendamento;
c) declarada a data de início de produção dos efeitos do contrato reportada a 29/11/2018 ou, se assim não se entender, reportada a 24/08/2018; e, consequentemente, seja,
d) declarado o direito de ocupar o imóvel e declarada a invalidade da comunicação da resolução do contrato de arrendamento elaborada ao abrigo do art. 1084/2 do Código Civil;
e) condenada a ré no pagamento da quantia total de 38.395,83€, acrescida de juros vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento.”
Para tal alegou, em síntese, que entre as partes foi celebrado um contrato de arrendamento comercial, em Abril de 2017, com o objectivo de a autora, no exercício da sua actividade, instalar e explorar no locado um estabelecimento de restauração; quanto ao início da produção de efeitos do contrato – designadamente, quanto à obrigação de pagamento da renda – as partes acordaram numa condição suspensiva, relativa à data em que o locado seria efectivamente entregue à autora, na condição de acabado mas em tosco, de modo a permitir a esta a realização dos trabalhos de adaptação à actividade a ser desenvolvida ali; sucede que, ao contrário do esperado pela autora, o locado não tinha ainda licença de construção, nem de utilização como estabelecimento de restauração e bar, cuja obtenção era da responsabilidade da ré, enquanto senhoria, conforme consta do contrato, pelo que, enquanto estas não estivessem regularizadas, não estaria vencida a obrigação de pagamento da renda; após diversas vicissitudes, também relacionadas com a realização das obras no locado, e com o estabelecimento aberto desde 22/10/2018, a autora realizou o pagamento das rendas de Outubro a Dezembro de 2018, embora ele não fosse devido nos termos do contrato de arrendamento, porque pretendia honrar o compromisso verbal que tinha assumido, aquando da assinatura do contrato de arrendamento, de iniciar o pagamento da renda quando o restaurante abrisse portas ao público, mesmo que sem a licença de utilização ainda emitida; e reclamou o pagamento de quantias relativas à execução de trabalhos, ao licenciamento das especialidades, às entidades licenciadoras e à circunstância de ter procedido ao averbamento em seu nome do processo de licenciamento; a ré, por carta datada de 16/11/2018, comunicou à autora a resolução do contrato de arrendamento por incumprimento da obrigação de pagamento das rendas vencidas entre Nov2017 e Out2018, resolução destituída de fundamentos válidos; perante esta actuação de manifesta má-fé da ré, a autora pretende apenas cumprir com o que está estritamente estipulado no contrato, pelo que, a autora não concederá qualquer liberalidade à ré; pelo que, a partir de Dez2018, reportado à renda de Jan2019, vai passar a fazer o depósito das rendas à cautela enquanto a acção não decidir a questão da inexigibilidade das rendas.
Por requerimento de 10/12/2018, a autora juntou comprovativo do 1.º depósito de 7000€ à ordem do tribunal, a 07/12/2018 (renda de Janeiro de 2019 - fls. 117 e segs); depósito que se diz ter sido constituído ao abrigo do artigo 18 do NRAU; o motivo invocado foi: o constante do requerimento em anexo (muito extenso; em síntese: a renda é inexigível porque a licença ainda não foi emitida; o senhorio não passou o recibo das que a autora pagou e entretanto comunicou a resolução do contrato; resolução injustificada que a autora está a discutir em tribunal; faz o pagamento/depósito da renda à cautela, apesar de entender que ela não é exigível). Este documento não foi impugnado.
Na sua contestação, de 25/01/2018, a ré aceitou parte da factualidade descrita na petição inicial (entre o mais, quanto às afirmações da autora relativas ao compromisso verbal de pagamento da renda a partir da abertura do restaurante, feitas nos artigos 149 a 158 do petição inicial, limitou-se a dizer no artigo 180 da contestação que eram irrelevantes; e nos artigos 156 e 157 disse: assume todas as despesas a que se comprometeu nos termos do contrato e assume também e reconhece serem da sua esfera as obras de reparação dos defeitos de construção registados, de resto, abrangidos no período legal de garantia do construtor), impugnou a restante e alegou, em síntese, que toda a área arrendada foi aprovada com utilização para o sector terciário, tendo a ré estado sempre convencida que nesta se incluía a actividade de restauração e bar, tendo sido surpreendida com o facto de a Câmara Municipal de Lisboa entender que a licença de utilização para serviços não inclui a possibilidade de afectação do imóvel a restauração; assim, optou por efectuar um pedido de alteração do uso, que não envolvia a alteração das telas finais, pois esta seria a forma mais rápida de superar o problema, o que desde o início foi do conhecimento da autora e sempre em seu benefício; sucede que a obra sofreu atrasos e vicissitudes que determinaram o retardamento sucessivo da conclusão dos trabalhos no locado e do correspondente licenciamento, tendo-se a autora aproveitado da boa-fé e espírito de colaboração da ré para se furtar ao pagamento das rendas, num comportamento que culminou com a recusa em assinar um aditamento ao contrato, que previa alterações quanto à exigibilidade das rendas; neste circunstancialismo, a autora agiu em abuso de direito; a ré termina concluindo no sentido da sua absolvição do pedido, designadamente, não se declarando a vigência do contrato de arrendamento validamente resolvido pela ré.
Por requerimento de 25/09/2019, a autora junta 2 quadros sem documentos comprovativos, mas que têm o nome de comprovativo e ambos respeitantes ao período de 01/01/2018 a 28/08/2019: - no 1.º quadro, com 5 movimentos - 17/12/2018, 7000€; 20/12/2018, 17.850€; 20/12/2018, 17.850€; 07/01/2019, 7000€; e 07/02/2019, 7000€ - diz-se que o saldo contabilístico é de: 21.000€ (pelo que os dois movimentos de 17.850€ se terão anulado mutuamente);       - no 2.º quadro, com 6 movimentos - 20/12/2018, 17.850€; 06/03/2019, 8000€; 05/04/2019, 8000€; 07/05/2019, 8000€; 11/06/2019, 8000€; e 08/07/2019, 8000€ - diz-se que o saldo contabilístico é de 57.850€; o total dá, por isso, 78.850€ que corresponde a: (7000€ x 3) + (8000€ x 5) + 17.850€ = 21.000€ + 40.000€ + 17.850€ = 78.850€. Nenhum destes documentos foi impugnado pela ré.
[a justificação dos 17.850€ só é dada pela autora nas alegações de recurso; aí a autora explica que procedeu, à cautela, ao depósito das rendas referentes aos meses de Setembro e Outubro de 2018 (esta parcialmente – uma vez que o remanescente já se encontrava pago), bem como ao depósito da indemnização correspondente a 50% daquelas rendas com vista a ineficácia da “resolução” nos termos e para os efeitos dos arts. 1042 nº 1, 1084º nº 3 e 1085º nº 1 e 2 do CC [ou seja, 7000€ + 4900€ = 11.900€ + 50%, ou seja, 5950€ = 17.850€].
A 21/10/2019, a autora “inform[ou] os autos – nos termos e para os efeitos do artigo 611/1, parte principal do CPC (“deve a sentença tomar em consideração os factos (…) que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão”) – que:
1. A licença de utilização foi emitida a 01/07/2019 – cfr. alvará que se junta como doc.1.
2. O levantamento do correspondente alvará foi comunicado pela autora à ré por e-mail datado de 12/07/2019 – cfr. doc.2, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Nesta sequência, a partir de agosto (com referência ao mês de setembro em diante) de 2019, a autora passou a fazer os pagamentos da renda directamente à ré - cfr. docs.3-5.”.
Na audiência final, a ré disse que “durante a sessão de hoje à tarde, se pronunciar[i[a] sobre a[…] […] pretens[ão da autora” e o tribunal proferiu o seguinte despacho: “Considerando que a factualidade alegada no requerimento supra referido é de natureza instrumental, podendo ser acolhida à luz do art. 611/1 do CPC, admito os mesmos factos [..].” E nada mais se passou sobre o assunto nos termos que constam da acta (e que não são exactamente os que resultam da gravação da audiência…, do que resulta, de qualquer modo, que a ré não levantou objecções a que os “factos supervenientes” fossem dados como provados).
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, e, em consequência:
a) declarando a actual vigência do contrato de arrendamento e, por consequência, reconhecendo o direito da autora a ocupar o imóvel como arrendatária;
b) declarando a invalidade da comunicação da resolução do contrato de arrendamento efectuada pela ré à autora em 16/11/2018.
e absolvendo a ré do demais peticionado.
A autora veio recorrer desta sentença e no recurso arguiu a nulidade dela (art. 615/1-d do CPC), por não se ter pronunciado sobre os pedidos A, C e E, ou, pelo menos, por ininteligibilidade (art. 615/1-c do CPC), por não se perceber qual o sentido da decisão, ou melhor, o “iter lógico seguido na resolução do litígio”; arguiu também a falta de fundamentação do decidido no ponto 39 dos factos provados; e ainda a omissão de pronúncia quanto a uma alegação de facto; impugnou a decisão dos pontos 19, 38, 39 e 40 dos factos provados; por fim, impugnou a decisão de não condenação da ré a reembolsar a autora das rendas pagas, para além de entender que, em substituição da parte anulada da sentença, os outros pedidos formulados também se deviam julgar procedentes.
A ré contra-alegou, defendendo a improcedência da arguição das nulidades e do recurso (não diz nada de concreto quanto às impugnações da decisão da matéria de facto e daí que, mais à frente, não haja nada a considerar quanto à posição da ré).
Por despacho de 06/03/2020, o tribunal considerou parcialmente procedente a arguição da nulidade e, “ao abrigo do disposto nos artigos 616/2 e 617/2 do CPC, ordenou a reforma da sentença, aditando factos aos pontos 20 e 22 dos factos provados e aditando à decisão uma alínea, com o seguinte teor:
c) condeno a ré a pagar à autora a quantia total de 38.395,83€, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal para créditos comerciais, desde a citação até integral pagamento.
Não houve qualquer reacção a este despacho.
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Questões a decidir: (i) se se verifica a falta de nulidade de omissão de pronúncia quanto aos pedidos A, C e E ou a nulidade por ininteligibilidade da decisão; (ii) se deve ser alterada a decisão da matéria de facto; (iii) se os pedidos A, C e E também deviam ter sido julgados procedentes.
Quanto ao que se refere ao pedido E, a indicação de que é uma questão a decidir tem de ser justificada:
O art. 670/4 do CPC, na redacção anterior à reforma de 2013 do CPC, dava ao recorrido a possibilidade de interpor recurso da sentença alterada. A reforma de 2013 não prevê esta possibilidade no correspondente art. 617, subsistindo apenas a regra de que o recurso interposto pelo recorrente passa a ter como objecto a nova decisão. Portanto, com base no recurso interposto antes, o tribunal de recurso passa a ter que decidir se a decisão anterior é que era a correcta (tendo a sua favor as contra-alegações do recorrido e, contra, as alegações do recorrente) ou se é a nova decisão a correcta (tendo a sua favor as alegações do recorrente e, contra, as contra-alegações do recorrido). Só no caso em que o recorrente, perante o despacho de deferimento da arguição da nulidade da sentença, desistir do recurso ou restringir o respectivo âmbito, é que o recorrido se vê obrigado, para que o recurso seja apreciado nos termos referidos acima, a requerer a subida dos autos (art. 617/4 do CPC).
Parece evidente que a melhor solução seria a de entender que, perante a nova decisão dada ao caso pelo despacho complementar da sentença, a ré, recorrida, querendo, teria que recorrer da alteração, nos termos anteriores à reforma de 2013, e é essa a solução defendida por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no CPC anotado, vol. II, 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 746.
No entanto, não se vê que a nova redacção dada pela reforma de 2013 ao artigo que acolhia tal solução dê suporte a esta doutrina, pelo que este TRL tem que apreciar, à mesma, a questão do pedido E, tendo por base as alegações da autora e as contra-alegações da ré e, naturalmente, a nova fundamentação da decisão recorrida.
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Para a decisão destas questões importam os seguintes factos dados como provados [manteve-se a numeração, mas alterou-se a ordem dos §§, de modo a colocá-la cronologicamente; nos pontos em que se transcrevem passagens do contrato, colocaram-se, entre parenteses, algumas expressões em inglês, porque no decurso da produção da prova a dada altura colocou-se a hipótese de ter havido erro de tradução, o que, como se poderá ver, não corresponde à realidade, com uma única excepção, assinalada, em que realmente a tradução não é a melhor; para utilização de outras cláusulas do contrato, aceite por ambas as partes e que aliás a sentença deu por reproduzido embora de forma imprecisa no começo do ponto 4 dos factos provados, transcreveram-se, ainda, as clausulas 4ª/2, 5ª/6 e 5ª/7]:
1. A autora tem como objecto social a «exploração de estabelecimentos de restauração e bebidas e actividades afins, incluindo serviços de catering e organização de eventos na área de enologia e gastronomia, a distribuição a clientes com entrega na residência e o fabrico próprio de pastelaria, panificação, salgados e gelados; exploração de empreendimentos e projectos turísticos e hoteleiros; importação, exportação, distribuição, representação, compra e venda de produtos alimentares e de bebidas; quaisquer outras actividades que se afigurem conexas, relacionadas, necessárias ou convenientes à prossecução dos fins acima referidos, directamente ou através da constituição ou participação noutras sociedades».
2. A ré tem por objecto social a «prestação de serviços de gestão e consultoria, especialmente nas áreas comercial, marketing, informática, contabilidade, financeira e recursos humanos, designadamente a sociedades que se dediquem à actividade imobiliária, hoteleiras, de restauração e actividades turísticas em geral, podendo exercer directa ou indirectamente nessas actividades, nomeadamente, comprando e vendendo imóveis e efectuando a respectiva exploração.»
3. No âmbito da actividade comercial de ambas, a autora celebrou com a ré, em 11/04/2017, um contrato escrito denominado CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS.
4. Desse contrato, no campo dos Considerandos, consta, além do mais que ora se dá por reproduzido:
A) O SENHORIO é o legítimo proprietário e possuidor do prédio sito em (…), com a licença de utilização número 000/UT/2010, do dia 09/11/2010 (…)
B) Todo o prédio está a ser reabilitado sob a licença de construção número 000/EDI/2015, emitida pela Câmara Municipal de Lisboa a 12/01/2016;
C) O SENHORIO deverá requerer a licença de utilização [shall apply for the licence of use for the building] do Prédio após os trabalhos de reabilitação serem concluídos;
[…]».
5. Cláusula 1
Nos termos deste contrato, o SENHORIO arrenda ao INQUILINO, que aceita, as fracções, A, B e C pertencentes ao Prédio, correspondentes a uma área de 110 m2 no rés-do-chão e de 130 m2 no primeiro piso, ambas com uso aprovado e registado para bar e restaurante, doravante referidas como “instalações arrendadas” […]».
6. Nos termos […] do contrato, este tem por objecto as fracções A, B e C do prédio sito em Lisboa, na Rua Y, n.ºs 2, 4 e 6, e Rua X n.º 23, registado na CRP de Lisboa sob o n.º 00 da freguesia de M e inscrito na matriz sob o artigo 1710 da freguesia da M [este TRL omitiu o n.º da cláusula a que o ponto era referido, porque não é da cláusula referida pela autora que constava o objecto do contrato].
7-8. Cláusula 2 (Finalidade do arrendamento)
1. As instalações arrendadas deverão ser usadas exclusivamente pelo INQUILINO para fins não habitacionais, especificamente para instalação e operação de restaurante e bar, e nenhum outro fim [use] poderá ser atribuído às Instalações Arrendadas, sem o prévio consentimento do SENHORIO.
[…]
4. Sem prejuízo da responsabilidade do SENHORIO em relação à licença de utilização [licence of use], o INQUILINO é responsável pela obtenção de qualquer licença ou autorização necessária para a actividade a ser desenvolvida nas Instalações Arrendadas, requerida de acordo com a lei e regulamentação aplicáveis e/ou determinada por qualquer autoridade.
[…]
9. Cláusula 3
1. O arrendamento é feito pelo prazo de 10 anos, iniciando os seus efeitos a 15/05/2017 e mantendo-se em vigor até 14/04/2027.
[…]
10-11. Cláusula 4, Renda
1. O montante inicial da renda a ser pago pelo INQUILINO ao SENHORIO corresponderá ao seguinte:
a) Durante os primeiros 6 meses de produção de efeitos do contrato de arrendamento, o SENHORIO garante um período de carência ao INQUILINO, não sendo devida qualquer renda durante esse período;
b) Durante o 7.º, 8.º. 9.º, 10.º, 11 e 12 meses do arrendamento, o montante de renda mensal deverá corresponder a 7000€ (…);
c) Durante o 13, 14, 15, 16, 17, 18, mês, o montante de renda mensal deverá corresponder a 8000€ (…);
d) Durante o 19 mês de arrendamento (inclusive) o montante de renda mensal deverá corresponder a 9000€.
2. O montante da renda mensal deverá ser pago antecipadamente por transferência directa da conta bancária do inquilino para a conta bancária do senhorio […] devendo o montante ser recebido pelo senhorio durante os primeiros 8 dias úteis do mês anterior àquele a que a renda se refere.
3. Tendo em consideração o número anterior, a primeira renda a ser devida, ao abrigo do presente contrato, será a renda correspondente ao 7.º mês de produção de efeitos do contrato de arrendamento, a qual deverá ser paga no princípio do 6.º mês de início de produção de efeitos do contrato de arrendamento. No caso de a licença de utilização relativa às Instalações Arrendadas (alvará) [= the licence of use applying to the unit (alvará))] não ter sido obtida pelo SENHORIO no termo do período de carência, este será prorrogado até à data de obtenção de tal alvará.
[…]
12. Cláusula 5
1. A entrega das Instalações Arrendadas ao INQUILINO deverá ocorrer imediatamente após a data de início da produção de efeitos de acordo com a cláusula 3/1.
2. Sem prejuízo da data de entrega, o SENHORIO assegura ao INQUILINO, desde a data de assinatura do contrato, total acesso às Instalações Arrendadas, de modo a garantir a realização de medições, avaliações do espaço, produção de plantas, visitas e, em geral, com vista à preparação dos trabalhos de adaptação e instalação do equipamento técnico necessários para o desenvolvimento da actividade do INQUILINO.
3. Como condição suspensiva do início da produção de efeitos do arrendamento, o SENHORIO deve entregar as Instalações Arrendadas ao INQUILINO na condição de acabadas, ainda que em tosco [≠> condition of finished but in rough], de modo a permitir ao INQUILINO a realização de todos os trabalhos de adaptação à actividade a ser nelas desenvolvida.
4. Sem prejuízo do parágrafo anterior, o SENHORIO deverá suportar (i) o montante de 8.522,83€ correspondentes a 50% do montante devido ao Empreiteiro (S) correspondente à realização dos trabalhos descritos no orçamento […] e (ii) suportar, como seu custo próprio, os trabalhos relacionados com a abertura e fecho dos espaços necessários para os canos de água, rede de esgoto, electricidade e AVAC, a serem executados de acordo com o projecto a ser providenciado pelo INQUILINO até ao dia 15 de Maio, até ao montante máximo de 10.000€ […].
[…]
6. Quaisquer obras de conservação, manutenção ou reparação necessárias nas Instalações Arrendadas relacionadas com os trabalhos executados pelo SENHORIO no edifício em momento anterior à entrega das Instalações Arrendadas ao INQUILINO, serão da responsabilidade do SENHORIO.
7. Quaisquer obras de conservação, manutenção ou acção de reparação necessárias nas Instalações Arrendadas relacionadas com os trabalhos executados pelo INQUILINO nas Instalações Arrendadas, serão da responsabilidade do INQUILINO.
[…]
38. Quando a ré tomou conhecimento de que o locado não dispunha de licença de utilização adequada à afectação do mesmo à actividade de bar e restauração, [pensou] dirigi[r] à Câmara Municipal de Lisboa um pedido de alteração do uso, de forma a contemplar na mesma licença de utilização os serviços de restauração, esperando obtê-la no prazo de três a quatro meses [alteração introduzida em consequência da impugnação da decisão da matéria de facto].
39. Por razões de economia e celeridade e a pedido da autora, a ré optou por juntar o pedido de alteração da licença de uso do locado e o pedido de licenciamento para obras da responsabilidade da autora. Este ponto passa a ter o seguinte conteúdo, face ao decidido mais à frente quanto à impugnação da decisão da matéria de facto: Por razões de economia e celeridade, a ré separou o pedido de licenciamento das outras fracções do edifício em relação às arrendadas e fez o pedido de licenciamento das obras de alteração destas com elementos fornecidos pela autora.
17. Depois de ter verificado que, do projecto licenciado para o locado, não estava contemplado o uso do mesmo para restauração, a ré deu entrada de um projecto de alterações interiores para instalação de um restaurante no locado (processo 0000/EDI/2017).
18. O respectivo projecto de arquitectura foi aprovado em 30/11/2017 (cf. doc. fls. 49-52).
28. Em Fevereiro de 2018, com início de vigência previsto para 01/03/2018, autora e ré negociaram uma minuta de aditamento ao contrato de arrendamento, a qual não veio, porém, a ser assinada pela primeira.
29. Essa minuta previa a redução da renda mensal para 7000€ e passaria a ser devida a partir de 01/06/2018, ficando o período de carência de pagamento das rendas reduzido para três meses.
16. A ré facultou o acesso à autora do locado no início de Março de 2018, ainda sem licença de construção.
14. A autora promoveu e custeou as obras de adaptação do locado ao restaurante, para o que celebrou com a D-Lda, um contrato de empreitada pelo valor global de 217.347,55€, a que acresceu o montante aproximado de 67.343,77€ correspondente a trabalhos não inicialmente previstos [em requerimento de 22/10/2019, a autora “esclarece que onde indicou, n[a…] petição inicial, o montante de 67.347,77€, queria indicar o montante de 33.673,59€ - acrescento deste TRL; repare-se, no mesmo sentido, o ponto 25 destes factos provados].
24. No decurso dos trabalhos de empreitada aludidos em 14, a empreiteira da autora detectou desconformidades entre o projecto licenciado e o executado pela empreiteira da ré (S) em sede de AVAC, tendo constatado que não existia a pré-instalação para dois sistemas de ar condicionado conforme previsto e representado no projecto do prédio, em consequência do que foi necessário realizar trabalhos não previstos inicialmente.
25. A empreiteira da autora constatou, também, que as paredes das salas abobadadas do piso 1 jorravam água, pelo que, em consequência, foram executados trabalhos de execução de uma estrutura de impermeabilização adequada, não previstos inicialmente, cujo custo total ascendeu a 33.673,59€.
40. A electricidade e a água indispensáveis ao desenvolvimento da empreitada promovida pela autora foram asseguradas pela ré, que também suportou os respectivos custos, através das áreas comuns e/ou através de outras fracções que não a arrendada à autora [a parte em itálico foi acrescentada face ao decidido mais à frente - TRL].
20. Apesar de para isso ter sido solicitada pela autora, a ré não assinou o requerimento para levantamento do alvará de obras nem pagou as taxas camarárias necessárias para levantamento do referido alvará, tendo a suportado às entidades licenciadoras e pelo levantamento do alvará, os valores de 3033,24€ e de 90€, respectivamente [a parte em itálico foi acrescentada no despacho da 1.ª instância, de suprimento de nulidade, decorrendo do contexto que esse despacho incorreu no lapso de escrita de ter escrito ré onde quis escrever autora – parenteses deste acórdão do TRL].
23. A ré não apresentou o requerimento de licença camarária para ocupação do subsolo, necessária à execução do ramal nem pagou as respectivas taxas.
26. Por mensagem de correio electrónico de 08/05/2018, a autora comunicou à ré, dirigindo-se ao Sr. JP e com conhecimento ao Sr. JMG, além do mais, conforme fl. 151v, o seguinte: «Bom dia JP, Junto envio orçamento das alterações relacionadas com o AVAC por motivos que nos são alheios. Pedia-te que desses o ok a estes trabalhos com a maior urgência possível para poder dar frente de trabalho ao empreiteiro. (…) Aproveito para te pedir os dados da Lercoul para que o nosso empreiteiro Vos possa facturar o que está previsto no nosso contrato de arrendamento.(…)»
21. Só em Agosto de 2018 é que a instalação eléctrica do locado ficou concluída, com instalação da caixa P100 e execução do ramal de electricidade respectivo.
22. A autora adjudicou e pagou os trabalhos de execução do ramal de electricidade, os quais só ficaram concluídos em 24/08/2018, e pagou aos projectistas, pelas alterações de projecto efectuadas, o montante total de 1599€ [a parte em itálico foi acrescentada no despacho de suprimento de nulidade – parenteses deste acórdão do TRL].
15. A autora adquiriu equipamento e mobiliário para o locado no valor total de 193.826,29€.
13. O estabelecimento de restauração instalado no locado foi aberto ao público pela autora em 22/10/2018 sob a denominação P.
30. Por mensagem de correio electrónico e carta remetida por correio registado com aviso de recepção, ambas datadas de 25/10/2018, a autora comunicou à ré o seguinte, além do mais que se dá por reproduzido, conforme cópia de fls. 99:
«Assunto: Pagamento da renda relativa ao contrato de arrendamento relativo às fracções A, B e C da Rua Y n.ºs 2, 4 e 6, em Lisboa (…) Serve a presente para comunicar a V.Exas que procedemos na presente data, mediante transferência bancária para a conta da Vossa titularidade indicada no contrato de arrendamento, ao pagamento da quantia de 9100€, relativa à renda do mês em curso calculada numa base pro rata temporis (2100€) e ao mês de Novembro de 2018 (7000€), pagamento esse que é realizado nos termos seguintes: Embora a renda não seja ainda devida nos termos do contrato de arrendamento, pretendemos honrar o compromisso verbal que assumimos, aquando da assinatura do contrato de arrendamento, de iniciarmos o pagamento da renda quando o estabelecimento de restauração (…) abrisse portas ao público (mesmo que sem a licença de utilização ainda emitida), o que se verificou no passado dia 22 de Outubro (…)».
31. Tal carta registada veio devolvida com indicação “não reclamado”.
19. A licença de obras e utilização foi deferida a 29/10/2018 e foi concedida à autora e não à ré, tendo o alvará sido levantado em 29/11/2018 – cf. doc. fls. 53-55.
32. Por correio electrónico de 07/11/2018, a autora enviou à ré o comprovativo do pagamento da renda de Dezembro. Fs. 163
33. A autora remeteu à ré uma carta datada de 08/11/2018, registada com aviso de recepção, com o seguinte teor, além do mais que ora se dá por reproduzido, cf. cópia a fls. 142-143:
«Assunto: Questões contratuais pendentes no âmbito contrato de arrendamento relativo às fracções A, B e C da Rua Y n.ºs 2, 4 e 6 (…)
Vimos pela presente, conforme ressalvado anteriormente, e de forma lateral ao pagamento das rendas (já iniciado), transmitir a V.Exas o seguinte:
I. Pagamentos relativos à execução de trabalhos no âmbito da nossa empreitada (…) II. Pagamentos relativos ao licenciamento das especialidades (…) III. Pagamentos devidos às entidades licenciadoras (…) IV. Incumprimentos no âmbito do procedimento de licenciamento e averbamento em nome da B (…)».
Este TRL passa a transcrever os pontos I a IV para melhor compreensão das questões:
I. Pagamentos relativos à execução de trabalhos no âmbito da nossa empreitada
Para além da contribuição contratualmente estabelecida no Contrato de Arrendamento, foram realizados pelo nosso empreiteiro, a vosso pedido e com o vosso acordo e conhecimento, trabalhos da vossa responsabilidade decorrentes (i) das desconformidades detetadas entre o projeto licenciado e o executado pela vossa empreiteira S em sede de AVAC, (i) da falta de execução do projeto licenciado no que diz respeito à portinhola P100, ramal de eletricidade e caixa de contador da eletricidade, bem assim, (iii) da necessidade de impermeabilizar as paredes que jorravam água das salas abobadadas do piso 1.
Estes trabalhos totalizam a quantia de €33.673,59, conforme fatura proforma emitida pelo empreiteiro que anexamos [nesta factura, dirigida pela D à ré, junta com o requerimento referido no ponto 14 dos factos provados, consta: empreitada geral, proposta_pr982.04 - empreitada geral: 18.000€; pr982.04.tmm2 – avac: 4775,65€; pr982.04.tmm8 - estrutura piso 1: 9901,10€; pr982.04.tmm12 - portinhola p100: 300€; pr982.04.tmm12 - azulejos fachada: 666,84€, viúva lamego; obra_293 restaurante pica miolos - TRL]
Devemos referir que, embora nos termos do nosso Contrato de Arrendamento os trabalhos em questão sejam da vossa responsabilidade, o nosso empreiteiro só aceitou executá-los no pressuposto e sob condição de nós assumirmos o compromisso de efetuar o correspondente pagamento caso porventura V. Exas assim o não fizessem.
Estando os referidos trabalhos já concluídos (desde final do mês de setembro), solicitamos que V. Exas procedam ao pagamento da referida quantia ao nosso empreiteiro (para o IBAN na mesma constante) com a máxima brevidade possível, por forma a evitar sermos nós forçados a fazê-lo em vossa substituição e as consequências daí decorrentes.
Estando os referidos trabalhos já concluídos (desde final do mês de setembro), solicitamos que V. Exas procedam ao pagamento da referida fatura ao nosso empreiteiro (para o IBAN na mesma constante) no prazo máximo de 30 dias.
Caso V. Exas não efetuem o referido pagamento no indicado prazo, seremos forçados a fazê-lo em vossa substituição, com as consequências daí decorrentes, por forma a assegurar a inexistência de direitos, créditos e/ou contingências que afetem o funcionamento do nosso estabelecimento e operação.
II. Pagamentos relativos ao licenciamento das especialidades
Conforme é, também, do vosso conhecimento, celebrámos o Contrato de Arrendamento no pressuposto de que as mesmas já estariam licenciadas para restauração (ao nível da construção).
Tal pressuposto veio, no entanto, a revelar-se falso, criando, além do mais, a necessidade de apresentar projetos das especialidades junto das entidades licenciadoras relevantes.
A necessidade de tal licenciamento implicou valores adicionais aos honorários que tínhamos acordados com os nossos projetistas das especialidades pois a proposta que então adjudicámos não incluía o licenciamento urbanístico das frações arrendadas.
Segundo os nossos projetistas, os referidos valores adicionais dizem respeito ao tempo e custos de preparação de elementos de projeto necessários ao licenciamento, bem como a preparação de documentação, impressão de cópias, estudos que não estavam contemplados como por exemplo o de térmica e projeto de demolições e custos do tempo e deslocações aos serviços da Câmara Municipal de Lisboa e demais entidades licenciadoras.
Estes valores (cfr faturas anexas) totalizam a quantia de €1599 conforme segue:
- RECS+ Emissão de Pré Certificado (400€+IVA);
- Processo de Licenciamento do Projeto de Estruturas (200€ + IVA);
- Processo de Licenciamento de Projeto de AVAC+ ITED (400€+IVA);
- Processo de Licenciamento de Rede de Águas, Esgotos, Segurança Contra Incêndio, isenção de Acústica e demolição - (300€ + IVA)
Solicitamos, assim, que V. Exas procedam ao pagamento das referidas faturas aos respetivos projetistas (para o IBAN nas mesmas indicado) no prazo máximo de 30 dias.
Caso V. Exas não efetuem o referido pagamento no indicado prazo, seremos forçados a fazê-lo em vossa substituição, com as consequências daí decorrentes, por forma a assegurar a inexistência de direitos, créditos e/ou contingências que afetem o licenciamento e/ou o funcionamento do nosso estabelecimento e operação.
III. Pagamentos devidos às entidades licenciadoras
Tal como é igualmente do vosso perfeito conhecimento, não foram por V. Exas pagas várias taxas e quantias devidas às entidades licenciadoras, conforme segue:
(i) Taxas pagas à Câmara Municipal de Lisboa no âmbito do licenciamento, no valor total €1.165,50 (cfr. anexo)
(ii) Taxa para a instalação do ramal no valor de €897,08 (não temos o correspondente aviso nem fatura uma vez que apenas tivemos acesso ao valor e referência para pagamento);
(iii) Pagamento da instalação do ramal à CME no valor de €749,66;
(iv) Taxa para ocupação da via pública/obras de infraestruturas no valor de €221;
Como V. Exas não efetuaram - seja quando diretamente solicitados pelas respetivas entidades, seja quando por nós solicitado - qualquer um dos pagamentos acima indicados, e dado que os mesmos eram essenciais ao prosseguimento do procedimento de licenciamento (sendo este crucial para a instalação do restaurante nas frações arrendadas), não nos restou alternativa senão a de fazê-lo em vossa substituição. Esses pagamentos, porém, não são da nossa responsabilidade nos termos do Contrato de Arrendamento, pelo que solicitamos o respetivo reembolso no prazo máximo de 30 (trinta) dias para a nossa conta junto do Banco Santander com o IBAN […]
IV . Incumprimentos no âmbito do procedimento de licenciamento e averbamento em nome da B
A par da falta pagamento, V. Exas também não entregaram diversos documentos e requerimentos absolutamente essenciais ao prosseguimento do procedimento de licenciamento, não tendo dado cumprimento aos ofícios das entidades licenciadoras para o efeito e tendo ignorado todas nossas solicitações nesse sentido.
Conseguimos ir colmatando a vossa falta de resposta e entregar os documentos e pagamentos solicitados, mas chegados ao momento do levantamento do alvará para obras (em agosto passado) não nos foi possível prosseguir sem a vossa a colaboração pois a Vossa assinatura no requerimento exigido para o efeito era necessária.
Apesar da essencialidade desta assinatura, V.Exas, mais uma vez, não só nada fizeram no âmbito do processo como não nos deram qualquer resposta quando solicitámos a vossa ação.
Este licenciamento urbanístico — da responsabilidade contratual do senhorio — é absolutamente crucial à instalação e laboração do restaurante nas frações arrendadas, dado que sem ele não é legalmente possível proceder ao licenciamento do estabelecimento/atividade de restauração (este sim, da nossa responsabilidade contratual).
Neste quadro, não nos restou alternativa senão a de procedermos ao averbamento do processo de licenciamento em nosso nome, pois de contrário ficaríamos impedidos de levantar o alvará de obras e a subsequente licença de utilização e, consequentemente, obter o licenciamento do estabelecimento/atividade.
Devemos, no entanto, ressalvar que este averbamento é feito no exato contexto acima enunciado e, portanto, sem que esta nossa atuação vos exonere das vossas responsabilidades e obrigações contratuais, sane os incumprimentos verificados e/ou possa ser entendida como uma renúncia aos direitos legais e contratuais que nos assistem.
Estamos convictos de que o nosso entendimento sobre os pontos acima referidos tem plena sustentação legal e contratual, mas reiteramos a nossa disponibilidade para reunir, caso tal seja útil para esclarecer ou discutir algum deles.
34. A autora enviou à ré, na mesma data, uma mensagem de correio electrónico informando do conteúdo da carta que seguiria por correio.
35. A carta datada de 08/11/2018 veio devolvida com indicação “não reclamado”.
36. A ré remeteu à autora, que recebeu, uma carta datada de 16/11/2018, com o seguinte teor, além do mais que ora se dá por reproduzido, conforme doc.23 junto com a petição inicial (fls. 155):
«Assunto: Resolução do contrato de arrendamento (…) Acusamos a recepção da carta de V.Ex.ª, datada de 18/10/2018 [trata-se de um lapso de transcrição, cometido pela sentença; o que consta é, logicamente, “datada de 25/10/2018” – correcção e parenteses deste TRL] (…) Mesmo aceitando estar em vigor o acordo não assinado que alterou o início de vigência do contrato para 01/03/2018 e a obrigação de pagamento da renda de 7000€, para 01/06/2018, encontram-se vencidas e não pagas as rendas relativas aos meses de Junho, Julho, Agosto, Setembro e (parcialmente) Outubro de 2018. Está, assim, incumprida por mais de três meses a obrigação de pagamento das rendas. Nestes termos, vimos por este meio resolver por incumprimento o contrato de arrendamento que celebrámos (…), nos termos do artigo 1083/3 do Código Civil, sendo a presente comunicação efectuada ao abrigo e para os efeitos do disposto no artigo 1084/2 do mesmo Código. (…)»
27. A licença de utilização do locado foi emitida em 01/07/2019 [o que consta da licença, junta com o requerimento de 21/10/2019 é, na parte que importa, o seguinte: alvará de utilização 000/UT-CML/2019: Nos termos do art. 74 do DL 555/99, de 16/12, na redacção do DL 136/2014, de 09/09, é emitido o alvará de autorização de utilização [o referido n.º, em nome da autora], que titula a autorização de utilização do edifício […] a que corresponde o alvará de licença de construção 00/OD-CML/2019, emitido em 08/02/2019 [a favor da autora]. Por despacho do Sr. Vereador de 01/07/2019 foi autorizada a seguinte utilização: uma fracção para terciário/restauração […] – esta transcrição foi feita por este TRL]
37. Até ao presente, a ré não liquidou à autora qualquer quantia.
*
Quanto às nulidades da sentença
Quanto aos pedidos A e C, o recurso da autora diz, no essencial, o seguinte:
O tribunal a quo não se pronuncia, nem resulta da sentença qualquer evidência do sentido da decisão (não sendo suficiente para o efeito a mera declaração da improcedência do demais peticionado), relativamente à data de início de produção dos efeitos do contrato.
A declaração de vigência do contrato não determina nem o momento de início de produção de efeitos do contrato, nem o momento em que inicia a obrigação do pagamento da renda; o que é necessário para determinação do valor das rendas a pagar à ré.
Sendo a sentença omissa quanto a estes pontos é impossível para as partes pôr termo à consignação em depósito, não sendo a sentença exequível.
Não se tendo o tribunal a quo debruçado sobre estas questões, a sentença é nula nos termos do art. 615/1-d do CPC.
Tal disposição está directamente relacionada com o art. 608/2 do CPC que impõe sobre o juiz o dever de “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”.
À cautela, a sentença também é nula nos termos do art. 615/1-c porquanto é impossível perceber qual o sentido da decisão do tribunal a quo relativamente aos demais pedidos formulados pela autora, que não são “apenas” a devolução das rendas já liquidadas.
Quanto à nulidade relativamente aos pedidos A e C, importa ter em conta, antes de mais, a fundamentação de direito da sentença:
“Atentemos, então, à questão a decidir nestes autos, consubstanciada, fundamentalmente, em dois pontos: a validade (ou falta dela) da declaração de resolução do contrato de arrendamento operada pela ré; a produção de efeitos desse mesmo contrato, com a consequente determinação da obrigação de pagamento das rendas.
Entre as partes foi celebrado um contrato de arrendamento comercial, no qual a autora figura como inquilina e a ré como senhoria, regido, em primeira linha, pelas disposições contratuais acertadas entre as partes e, nas faltas ou omissões, pelo regime consagrado nos artigos 1022 e seguintes do CC, bem como legislação avulsa em vigor.
É sabido que, em matéria de responsabilidade contratual, regem os princípios da pontualidade no cumprimento (artigo 406 do CC) e da presunção de incumprimento culposo: nos termos do artigo 799/1 do CC, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua. Determina o artigo 798 por seu turno, que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
Para apurar, quer a pretensão da autora, quanto à validade do contrato, quer a existência, ou não, de incumprimento do seu clausulado no que concerne à liquidação das rendas, urge, naturalmente, analisar essas mesmas cláusulas.
A produção de efeitos do contrato, repercutida para o caso, fundamentalmente, na obrigação de pagamento das rendas, foi fixada contratualmente com clareza: o contrato iniciaria a sua efectiva vigência em 15/05/2017 e a primeira renda vencer-se-ia seis meses depois, correspondendo este a um período de carência durante o qual a inquilina, ora autora, estava isenta da liquidação de rendas. Porém, o contrato estabeleceu uma outra importante disposição, divergindo deste esquema temporal: prevendo a hipótese de, ao fim deste período de carência, o locado ainda não ter licença de utilização, a obter pelo senhorio, o mesmo contrato dispõe que o período de carência da obrigação de pagamento de rendas é prorrogado até à data de obtenção daquele “alvará” (cf. cláusula 4, n.º 3).
Independentemente da discussão factual que ocorreu na acção quanto à data em que ocorreu a entrega do locado à autora – cf. pontos 16, 21 e 40 dos factos provados – não nos restam dúvidas de que o ponto fulcral da discussão nos autos, a determinar a responsabilidade da ré no cumprimento do contrato, é outra: a licença de utilização do locado para a actividade de restauração, a essencialidade de tal licença para a autora e a incumbência da sua obtenção.
Antes do mais, cumpre clarificar de que licença estamos a falar. Ao contrário do que a ré pretendeu demonstrar, trata-se da autorização administrativa adequada a usar o imóvel objecto do contrato de arrendamento como restaurante. Sem nos pretendermos deter nos contornos técnico-jurídicos caracterizadores desta realidade, é importante frisar que, contrariamente ao alegado pela ré, trata-se de um licenciamento, distinto daquele que permite genericamente o uso de um imóvel para fim não habitacional nem industrial, que se não confunde com o funcionamento em concreto do estabelecimento que a autora ali se propunha instalar – nem tal faria sentido, considerando que o locado haveria de ser entregue pela ré em tosco. Estamos a falar, por exemplo, dos requisitos constantes da Portaria n.º 215/2011, de 31/05, relativos às normas para instalação de estabelecimentos de restauração e bebidas, que regula os vários aspectos associados ao concreto espaço a explorar. Só assim faz sentido, aliás, o teor da cláusula 2 n.º 4 (ponto 8 dos factos provados), ao prescrever, por um lado, a responsabilidade do senhorio quanto à licença de utilização e, por outro, a responsabilidade do inquilino para a actividade em concreto a ser desenvolvida por este: mais uma vez a título de exemplo, se o inquilino quisesse ali explorar um estabelecimento de bar, é diferente regular o funcionamento deste em horário diurno ou em horário nocturno/madrugada, embora para ambos seja necessária a licença de restauração/bebidas.
Percorrendo a factualidade provada, é segura a conclusão de que a licença de utilização do locado para restaurante era fundamental – essencial – para que a autora aí desenvolvesse o seu negócio e o que justificou a celebração do próprio contrato de arrendamento, bem como que a obtenção de tal licença incumbia à ré, nos termos do contrato. Veja-se, desde logo, a alínea (a) dos considerandos do contrato: o edifício onde se situa o locado já dispunha de licença de utilização, o que inculca a ideia de que haveria uma outra licença a obter; em conjugação com o n.º 3 da cláusula 4 (ponto 11 dos factos provados), que prevê a hipótese de a licença de utilização, a obter pelo senhorio, não estar atribuída até ao fim do período de carência – caso a licença fosse aquela que já consta identificada no contrato, esta cláusula não faria qualquer sentido.
Improcede, portanto, a argumentação da ré, quer quanto à sua falta de responsabilidade na falta ou atraso na atribuição de licença de utilização para o locado, quer quanto à iniciativa de resolução do contrato – permitindo-nos nós acrescentar que as demais questões discutidas na acção são, portanto, secundárias e longe de poder justificar tal resolução.
Aqui chegados, concluindo com segurança que [a] obtenção da licença de utilização do locado para exploração do mesmo como restaurante era incumbência da ré, não reveste dificuldade o apuramento da data em que, nos termos do contrato, a autora deveria cumprir com a sua fundamental obrigação de pagamento das rendas: independentemente das vicissitudes ocorridas durante o período de realização de obras no locado, considerando que a licença só foi obtida em 01/07/2019 (ponto 27 dos factos provados), então a primeira renda devida vencer-se-ia, apenas, em Novembro, por referência ao mês no qual se completaria o prazo da moratória de seis meses.
Se assim é, não assistia à ré qualquer fundamento para a resolução do contrato. Com efeito, enquanto o locado não dispusesse da licença de utilização, o período de carência não se deveria considerar cessado, nos termos estabelecidos pelo contrato. Assim sendo, por um lado, a renda seria inexigível durante os seis meses seguintes à obtenção da licença de utilização e, por outro, o contrato mantém toda a sua validade, não havendo fundamento para a declaração de resolução.
Neste quadro, cumpre ainda apontar dois aspectos.
O primeiro, relacionado com a falta de razão da ré no que concerne ao pretenso aditamento ao contrato, que, em sua perspectiva, poderia fundar e legitimar a declaração de resolução por si intentada. Como se verifica da factualidade provada, esse aditamento ao contrato nunca entrou formalmente em vigor, pese embora ambas as partes o terem dado como válido, pelo menos durante determinado período de tempo. Porém, considerando que se trataria de disposições complementares de um acordo escrito prévio, e que o mesmo não foi assinado por uma das partes contratantes, ao contrário do que aconteceu com aquele, não pode extrair-se validade a um instrumento contratual que não observou o mesmo figurino de forma escrita que o primeiro – cf. artigo 394 do CC.
O segundo aspecto tem a ver com o concreto apuramento da obrigação de pagamento da renda, no quadro geral da relação contratual das partes e considerando a circunstância – certamente não concebida pelas partes à data da celebração do contrato – de o estabelecimento da autora ter entrado em funcionamento em data anterior à obtenção da licença. Ora, tendo-se presente que o gozo do locado, para o fim a que foi destinado no contrato, é o fundamental efeito do arrendamento, mal se compreende que, em tal situação, a autora, como inquilina, se deva considerar como desonerada da obrigação de pagamento de rendas, sabendo-se que esta é a principal contraprestação devida por aquele gozo, especialmente num contexto em que, por motivos para o caso irrelevantes, a autora optou por abrir o seu estabelecimento e colocá-lo em funcionamento em situação irregular, derivada da inexistência da licença adequada. Assim, tendo tomado tal opção e retirando as vantagens a isso inerentes, não liquidar a renda poderia até configurar uma situação de enriquecimento sem causa. Aliás, a própria autora, em juízo e na pendência da acção, acabou por assumir tal posição.
Nesta medida, o pedido da autora, na parte respeitante à de-volução das rendas já liquidadas. [sic – falta a conclusão, lógica, ou seja, de que o pedido ‘improcede’ – parenteses deste TRL]. Também nesta medida, não cremos que faça sentido fixar a produção de efeitos ao contrato em data posterior ao início da exploração do estabelecimento pela autora: pois que, independentemente do que a tal respeito rege o contrato, o certo é que o efectivo gozo do locado é o principal efeito decorrente do contrato, a favor do inquilino, e é incindível, porque essencial, da sua própria existência e validade.
Impõe-se, portanto, com clareza, a conclusão de que a presente acção deve ser julgada procedente, no que diz respeito ao reconhecimento da validade e plena produção de efeitos do contrato de arrendamento e com a não ratificação da declaração de resolução operada pela ré. Falece, apenas, a pretensão referente à devolução das rendas já liquidadas, nos termos supra expostos.”
No despacho com que o tribunal recorrido indeferiu estas nulidades, escreveu-se:
[…Q]uanto à apontada falha na determinação do início da produção de efeitos do contrato de arrendamento, não compreen-demos, minimamente […], a posição da autora. Com efeito, da sentença constam as conclusões do tribunal quanto a toda esta questão, quer no que concerne à interpretação e vigência das cláusulas contratuais referentes a essa matéria, quer quanto à ponderação do momento a partir do qual se formou, na esfera jurídica da autora, a obrigação de liquidar a renda prevista nesse mesmo contrato. Daí, crê-se, foram retiradas as devidas consequências, quer quanto ao apuramento e densificação dessa obrigação, quer quanto à falta de razão da autora no pedido de devolução das rendas já liquidadas (primeiro pedido formulado na acção).
[…]
Também […] não se verifica, nem a ininteligibilidade da sentença, nem a falta de fundamentação de qualquer dos seus pontos da matéria de facto.
Decidindo:
Tendo em conta a fundamentação da sentença, dela decorre, claramente, que a sentença considerou, ao contrário do que a autora pretendia com a 1.ª parte do pedido A, que a obrigação do pagamento da renda era exigível desde a data em que a autora abriu o restaurante, pelo que, é lógica a decisão subsequente de julgar este pedido (de declaração de inexigibilidade) improcedente. Portanto, há decisão, há fundamentação, esta percebe-se e há congruência entre uma e outra.
Também logicamente, sendo, segundo a fundamentação da sentença, exigível a obrigação de pagamento da renda desde que a autora abriu o restaurante, então a ré não tem de reembolsar a autora das rendas que a autora pagou a partir dessa data, ou das que depois passou a depositar, pelo que se compreende a improcedência também dessa parte do pedido A.
Quanto ao pedido C, também existe decisão e fundamentação da mesma: ao concluir que a autora não tem direito ao reembolso das rendas que pagou a partir de Out2018, está a dizer que a obrigação de pagamento de rendas se venceu com a parte da renda que seria devida em Out2018. E a fundamentação desta decisão é clara: essa obrigação existe porque é o correspectivo da disponibilidade das fracções arrendadas, facto que tem de ser considerado, segundo a sentença, apesar de o contrato não prever esta situação.
Portanto, a sentença decidiu os pedidos A e C e fundamentou a decisão deles.
No entanto, para a sentença decidir estes pedidos e também o B e o D, disse que “a fundamental obrigação de pagamento das rendas vencer-se-ia, em Novembro” [de 2019].       Isto ao mesmo tempo que dizia que “não faz sentido fixar a produção de efeitos ao contrato em data posterior ao início da exploração do estabelecimento pela autora” [isto é, em Outubro de 2018], sendo que os efeitos a que se está a referir são as rendas pagas/depositadas.
Ora, isto é contraditório: se a obrigação de pagamento das rendas se vencia em Novembro de 2019, as rendas pagas/depositadas a partir de Outubro de 2018 não podiam ser devidas.
Esta contradição existe porque, ver-se-á à frente, para a solução da questão da inexigibilidade das rendas, a sentença parte do que consta do texto do contrato e, para a questão das rendas pagas em data anterior ao momento em que elas passaram a ser, segundo a sentença, exigíveis, a sentença tem em conta o contrato complementado por integração (art. 239 do CC) e a sentença não tem fundamentação expressa a explicar esta contradição, isto é, a afastá-la.
Esta contradição de fundamentação reflecte-se nas decisões: a sentença julga improcedente o pedido C porque “não faz sentido fixar a produção de efeitos ao contrato em data posterior ao início da exploração do estabelecimento pela autora [isto é, em Outubro de 2018]”, mas tinha acabado de dizer que “a fundamental obrigação de pagamento de rendas [que é um dos efeitos do contrato] vencer-se-ia em Novembro de 2019.”
Noutros termos, existe contradição entre o decidido quanto ao direito da autora ficar com os valores pagos/depositados deste Outubro de 2018 (negando-o) e parte da fundamentação da sentença ao considerar que esses valores só eram exigíveis desde Novembro de 2019 (pelo que a autora não os tinha de pagar e por isso o pedido devia ser procedente).
Daqui decorre a parcial nulidade da sentença (art. 615/1-c do CPC), o que terá de ser suprida por este TRL (art. 665 do CPC).
Por outro lado, acaba por faltar, na sentença, uma decisão sobre o destino dos depósitos efectuados pela autora, decisão que, apesar de não ter sido formulado pedido relativamente a esta matéria, tinha que existir, por força dos artigos 17 a 23 do NRAU e, aplicados com as necessárias adaptações, 841 a 846 do CC e 916 a 924 do CPC. Falta/nulidade que também tem que ser suprida por este TRL.
*
Quanto à nulidade por falta de fundamentação de um ponto da decisão da matéria de facto, a autora diz que:
“A sentença é ainda nula por falta de fundamentação relativamente ao ponto 39 dos factos provados, nos termos do art. 615/1b do CPC, porquanto não resulta de parte alguma da fundamentação da sentença, nem dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, que a junção dos pedidos tenha ocorrido “a pedido da autora”.
No despacho com que o tribunal recorrido indeferiu as nulidades, escreveu-se:
[…N]o que concerne à invocada falta de fundamentação do ponto 39 dos factos provados, é, novamente, com estranheza que se regista a posição da recorrente – pois que consta expressamente da fundamentação da matéria de facto provada da sentença, mais concretamente nas suas páginas 13-14, que, para prova desse ponto (e de outros), o tribunal ponderou os depoimentos das testemunhas aí referidas, de cujo conteúdo se serviu, nos termos que daí constam.
Decidindo:
A autora argui a nulidade da falta de fundamentação da decisão do ponto 39 dos factos provados, como se fosse uma nulidade da sentença, fazendo referência ao art. 615/1-b do CPC.
Mas a falta de fundamentação de uma decisão da matéria de facto (e ela falta, de facto, já que não se revela, na decisão recorrida, com base em que elemento de prova se dá como provado o preciso facto posto em causa pela autora), é um problema previsto e resolvido no art. 662/2a-3d do CPC, não sendo por isso enquadrável como nulidade da sentença e, por isso, não tendo a sua solução aqui.
*
Da impugnação da decisão da matéria de facto
Na conclusão 13 do recurso, a autora diz que:
Deverá constar dos factos provados que “a autora suportou o valor de 4722,24€, referente a licenças e taxas devidas no âmbito do licenciamento e bem assim à preparação de elementos de projecto necessários ao referido licenciamento e obtenção das respectivas licenças” (cfr. conjugação dos factos provados 4, 8, 19, 20 e 37, doc. 21 da petição inicial, artigo 514 do CPC).
Decidindo:
Esta questão tem a ver com a nulidade da falta de conhecimento do pedido E, que o despacho complementar da sentença resolveu com o aditamento da condenação C e dos factos provados sob 20 e 22, tendo esclarecido que: “Veja-se, por exemplo, os pontos 20, 22 e 25 dos factos provados e a fundamentação da matéria de facto na página 15 da sentença, aí se referindo, inclusivamente, que tais factos foram admitidos pelas próprias testemunhas arroladas pela ré (aliás, trata-se de matéria que a ré, na contestação, não põe em causa, inclusivamente afirmando que pretende ressarcir autora em conformidade – cf., p. ex., artigos 156 e 157 desse articulado).”
O valor de 4722,24€ referidos pela autora, subdivide-se em 3033,24€ + 90€ + 1599€. As duas primeiras parcelas reportam-se a taxas camarárias para levantamento do alvará de obras. A última diz respeito a pagamentos efectuados pelas alterações de projecto efectuadas (de que se falará mais à frente, onde se verá que eles foram realmente feitos por pessoas ao serviço da autora), nos termos descriminados no ponto II da carta do ponto 33. A ré não pôs em causa o que já constava como provado dos pontos 20, 22, 23, e estes valores são apenas a concretização do aí referido, sendo que a circunstância de não constar dos factos provados foi apenas um lapso, como referido no despacho complementar, que já o corrigiu.
*
Na conclusão 14, autora diz que:
O ponto 38 dos factos provados deverá ser alterado, atendendo a manifesta contradição com os restantes factos provados (cfr. pontos 16, 17, 18 e 19), sendo a licença em referência a licença de construção (e não de utilização como consta da sentença), devendo, consequentemente passar a constar daquele ponto que “Quando a ré tomou conhecimento de que o locado não dispunha de licença de construção adequada à afectação do mesmo à actividade de bar e restauração, dirigiu à Câmara Municipal de Lisboa um pedido de alteração do uso, de forma a contemplar na mesma licença de utilização os serviços de utilização, esperando obtê-la no prazo de três a quatro meses.”
Decidindo:
Basta ler a confusa e errada redacção que a autora propõe como alternativa para o ponto 38, para se ver que a autora está a fazer confusão de elementos: assim, por exemplo, quando repete: “de forma a contemplar na mesma licença de utilização os serviços de utilização […]”; e também quando diz: “sendo a licença em referência a licença de construção (e não de utilização como consta da sentença)” e depois, apesar de no ponto 38 se referir, por duas vezes, licença de utilização, só substitui uma delas.
E, principalmente, porque, logicamente, o que levaria a ré a fazer um pedido de alteração de uso seria a falta de licença de utilização adequada à afectação das fracções à actividade de bar e restauração e não a falta de licença de construção.
A questão que o ponto 38 levanta é parcialmente outra e que a pretensão da autora apenas aflora: é que não há a mais pequena prova de que tenha sido feito, ao contrário do que consta desse ponto, qualquer pedido de alteração de uso. E está aqui mais um erro da pretensão da autora, ao fazer constar da redacção alternativa do ponto 38 a referência ao pedido de alteração de uso, como se ele tivesse sido feito.
E os erros não são só da autora: é que apesar da testemunha principal da ré, “o braço direito do JMG” (o “dono da ré”), ou seja, a testemunha JP, ter expressamente declarado, de forma clara, no seu depoimento, repetidamente, que não foi feito pedido de alteração (ele ia ser feito, mas por causa da forma como as coisas se passaram, não foi feito – assim, numa repetição final, veja-se a passagem desse depoimento a 35:57 a 36:17 [a propósito disso até se aventou a hipótese de haver erro de tradução do contrato, porque a testemunha dizia que a licença de utilização que se referia no contrato era uma licença de alteração de uso…]), a ré, logo no depoimento da sua outra testemunha voltou à carga, interrogando-a como se o pedido de alteração tivesse sido feito.
Portanto, o que se passa não é que a licença em referência não seja a de utilização, porque é isso mesmo que estava em causa, ou seja, que a licença de utilização das fracções era uma licença genérica para comércio e não para restauração, e por isso era necessária a alteração do uso da licença de utilização, mas sim que a ré nunca chegou a fazer esse pedido de alteração, embora fosse pressuposto que o fizesse.
Por isso, o que há que alterar no ponto 38 é tão-somente a referência ao facto de se dizer que a ré dirigiu um pedido de alteração, quando o que se passou é que a ré pensou fazer esse pedido e não o chegou a fazer. 
Aliás, é isto que resulta da primeira parte do ponto 17 dos factos provados que a autora não põe em causa e, a contrario, resulta também da segunda parte do ponto 17 e também do ponto 19, pois que o que a ré fez foi o que aí consta (e aí sim há prova documental).
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Nas conclusões 15 e 16 autora diz que:
Quanto ao ponto 19, também resulta evidente que a licença a que se faz referência é a licença de obras e não à licença de utilização uma vez que esta apenas foi emitida em Julho de 2019 (cfr. ponto 27 dos factos provados).
Nestes termos o ponto 19 dos factos também deverá ser alterado e deverá a constar que “A licença de obras foi deferida a 29/10/2018 e foi concedida à autora e não à ré, tendo o alvará sido levantado em 29/11/2018 – cf. doc. fls. 53-55.”
Decidindo:
A autora confunde novamente as coisas: nas folhas invocadas pela sentença, que englobam a fl. 109 = fl. 123 do processo electrónico, consta um recibo por ‘licenças de obras e utilização’. Portanto, a decisão do ponto 19 limitou-se a empregar [embora utilizando o singular e não o plural que lá está] uma expressão constante de um documento autêntico e a dar como provado o que aí consta. Mas esta licença de utilização não é a licença de utilização referida no ponto 27 dos factos provados, sendo que a ré não põe em causa que esta licença de utilização só foi emitida nesta data. A ‘licença de obras e utilização’ referido no ponto 19, é a que resulta do “pedido de licenciamento para obras de alteração interiores para instalação de um estabelecimento de restauração”, referido no ponto 17 dos factos provados, tal como resulta expressamente da informação 00000/INF/DIVLU/GESTURB/2017 de 30/10/2017, proc. 0000/EDI/2017 [fl. 102 da PI no processo electrónico]. Portanto, não há nada a alterar.
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Na conclusão 17 autora diz que:
Quanto ao ponto 39 dos factos provados, nenhuma testemunha referiu que a junção dos pedidos tenha sido feita a pedido da autora, nem resulta provado que algum pedido de licenciamento era da responsabilidade da autora (cfr. depoimento de parte do legal representante da ré (1:30:03), testemunha JP (33:40), testemunha MT (06:55), testemunha CF (11:54), testemunha PT (04:27), testemunha TD (09:35), testemunha SF (05:50)); consequentemente, deverá constar da matéria de facto provada que “39. Por razões de economia e celeridade, a ré optou por separar o licenciamento das habitações da loja, e por realizar o pedido de alteração da licença de construção do locado com elementos fornecidos pela autora.”
Decidindo:
A pretensão da autora dirige-se por um lado a retirar do ponto 39 alguns factos e, por outro, em colocar lá outros que não têm a ver com eles.
Quanto ao ponto 39, desde logo a fundamentação da decisão impugnada não indica qualquer elemento de prova para o facto de a autora ter feito qualquer pedido à ré. Ouviu-se toda a prova – não só a indicada pelas partes – e não houve nenhuma testemunha que tenha referido tal pedido. Aliás, a ré, já se viu, não se pronuncia em concreto sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, e tal deve-se, sem dúvida, à impossibilidade de o fazer. Já agora acrescente-se que neste processo não foi junto um único documento pela ré.
Também já se viu acima que não há prova de ter sido feito qualquer pedido de alteração da licença de uso, o que é suficiente para afastar este facto do ponto 39.
Quanto a obras da responsabilidade da autora: é evidente que esta mandou fazer obras nas fracções, tanto que pede o seu pagamento à ré. Mas o ponto 39 fala de licenciamento para obras da responsabilidade da autora e está-se a referir às obras de adaptação das fracções para a restauração. Ora a autora fez estas obras em substituição da ré – é isso que também justifica que ela peça o preço delas à ré -, pelo que não se pode dizer que elas fossem da responsabilidade da autora. Ou seja, a autora arrendou as fracções no pressuposto, constante do contrato, que já estava autorizado o seu uso para a restauração e afinal não estava e tiveram que ser feitas algumas obras de adaptação para o efeito, ou seja, para permitir a alteração do uso, de comércio em geral, para a restauração em especial. A autora não era responsável por estas obras e por isso é que elas foram feitas sob licença requerida pela ré, que é a licença já muito referida. Para além disso, já se vê, a qualificação das obras como sendo da responsabilidade da autora seria uma conclusão jurídica a tirar doutros factos.
De qualquer modo, o que interessa é relatar os factos e os factos são estes: aquilo que foi feito, pela ré, foi um pedido de licenciamento para obras de adaptação das fracções à restauração, já muito falado.
E, esse pedido foi feito com base num projecto fornecido pelo arquitecto contratado pela autora, embora assinado, por economia e celeridade, pelo arquitecto da ré – como foi dito por todas as testemunhas, inclusive da ré, partes deles nos termos indicados, embora de forma muito confusa, sem necessidade, porque muitas outras passagens iam nesse sentido. Sendo que este pedido tem a denominação referida acima a propósito do ponto 38 e não o que a autora lhe dá.
Por fim, todas as testemunhas, também da ré (nos termos indicados pela autora), foram claras no sentido de que, por razões de celeridade a ré separou o pedido de licenciamento das outras fracções do edifício, deixando para depois o pedido de licenciamento das fracções destinadas ao restaurante. É certo que, não se vê, de imediato, o interesse na consignação deste facto, mas estando provado não se vê razão para o não consignar.
Pelo que a impugnação procede, mas apenas parcialmente, alterando-se o ponto 39 para o seguinte: Por razões de economia e celeridade, a ré separou o pedido de licenciamento das outras fracções do edifício em relação às arrendadas e fez o pedido de licenciamento das obras de alteração destas com elementos fornecidos pela autora.
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Na conclusão 18 autora diz que:
Quanto ao ponto 40 dos factos provados, deverá constar que a electricidade e água a que o tribunal a quo se refere são referentes às partes comuns e/ou fracções que não a arrendada à autora (cfr. depoimento de parte do legal representante da ré (1:25:09) e depoimento da testemunha CF (15:00), consequentemente, deverá contar da matéria de facto provada que “40. A electricidade e a água indispensáveis ao desenvolvimento da empreitada promovida pela autora foram asseguradas pela ré, através das áreas comuns e/ou através de outras fracções que não a arrendada à autora.”
Decidindo:
Trata-se apenas de acrescentar – embora na redacção do ponto proposta pela autora se esqueça a parte em que se dizia que foi a ré que também suportou os respectivos custos – que o fornecimento de água e da electricidade foi feito “através das áreas comuns e/ou através de outras fracções que não a arrendada à autora”, de modo a não ficar a ideia de que, antes de terem sido feitas as obras pela autora, já a água e a electricidade estavam ligadas.
O que se aceita que, naturalmente, aconteceu, face aos elementos de prova indicados pela autora, pelo que também esta impugnação procede.
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Do recurso sobre matéria de direito
Sobre esta matéria diz a autora (transcrevem-se apenas algumas das muitas conclusões, as suficientes para se compreender a argumentação da autora):
19. A sentença recorrida é um atentado ao princípio da liberdade contratual/autonomia da vontade (art. 405 do CC), violadora dos princípios da segurança jurídica e da protecção de confiança (art. 1.º da CRP), bem como da igualdade (art. 13 da CRP), da liberdade (art. 27/1 da CRP), da propriedade (art. 62/1 da CRP), inconstitucionalidades que desde já se invocam.
[…]
21. O tribunal a quo faz total tábua rasa da cláusula 4/3 do contrato (facto 11) que as partes estipularam livremente, ao abrigo do princípio da liberdade contratual/autonomia da vontade.
22. As partes, voluntariamente, estipularam que a obrigação da renda apenas ocorreria após a obtenção da licença de utilização. As partes não estipularam, porque não quiseram, que essa obrigação ocorresse com a abertura do estabelecimento ao público.
23. Podia o tribunal a quo, no caso em apreço, sobrepor-se à vontade das partes? Simplesmente porque entende que “não faça sentido”? A resposta é simples: não.
[…]
33. Acresce que, contrariamente ao que parece crer o tribunal a quo, nesta situação (inexigibilidade da obrigação de pagamento da renda até à data da emissão (01/07/2019) da licença de utilização) inexiste qualquer enriquecimento sem causa.
34. Em primeiro lugar, porque o tribunal a quo nem sequer fundamenta este instituto nem invoca qualquer norma legal, não demonstrando de forma alguma estarem preenchidos os seus pressupostos.
35. Em segundo lugar, porque a ré, nunca, ao longo do processo, invocou este instituto.
36. Em terceiro lugar, inexiste qualquer “enriquecimento” da autora e inexiste qualquer “empobrecimento” da ré; pelo contrário: existe um enriquecimento da ré e empobrecimento da autora.
37. A autora abriu o espaço ao público antes da obtenção da licença de utilização (que repita-se era da exclusiva responsabilidade da ré e que era fundamental para que a autora desenvolvesse o seu negócio) de forma a evitar mais prejuízos e para fazer face ao avultado investimento que a autora tinha realizado (pontos 14 e 15 dos factos provados).
38. Ainda que houvesse enriquecimento da autora (que não houve), seria totalmente irrelevante porque as partes estipularam que durante um determinado período a autora não pagaria a renda, e não pagaria por razões contratuais e negociais que não cabia ao tribunal a quo julgar.
39-40. Face ao exposto, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que [dê procedência aos pedidos C e A…].
41. […Ou pelo menos] que determine a data de início da obrigação do pagamento da renda (cfr. ponto 27 dos factos provados) para que as partes possam com certeza determinar quais os valores que deverão ser pagos à ré, devendo ficar claro que todos os valores pagos e/ou consignados em depósito (rendas e/ou indemnizações) referentes ao período anterior a 01/07/2019 deverão ser devolvidos ou reembolsados à autora.
[…]
A ré responde que:
C. A sentença é inequívoca ao reportar a data de produção de efeitos, inter partes, do contrato à data em que a autora passou a usufruir do espaço locado, destinando-o ao seu fim;
D. Não há neste ponto qualquer erro de direito nem violação de qualquer princípio civil ou constitucional de liberdade contratual;
E. A referência no contrato à emissão da licença de utilização como condição suspensiva da obrigação de pagamento da renda tinha um pressuposto de liminar evidência: porque ilegal, o restaurante a instalar no locado não abriria ao público, antes da emissão da licença de utilização, não podendo dele, por consequência, a inquilina retirar proveitos;
F. Violando uma lei imperativa de Direito Público, a autora abriu o seu estabelecimento e começou dele a tirar proveitos;
G. Pretender agora que usufruindo plenamente do espaço locado, abrindo-o ao público, explorando-o, colhendo dele os proveitos, a autora estava dispensada de pagar as rendas devidas por esta fruição, porque a abertura, por si unilateralmente decidida, violou ilicitamente normas legais imperativas, […] é atentar contra qualquer princípio de liberdade contratual;
H. Bem ao contrário: aceitar que tal é sequer pensável […] implicaria uma violação dos princípios gerais de respeito pela ordem pública e pelos bons costumes;
I. E corresponderia a um gravíssimo e grosseiro abuso de direito que o artigo 334 do CC proíbe.
Decidindo:
Antes de mais há que ter em conta que a segunda parte do pedido A reporta-se a duas situações diferentes.
Por um lado, trata-se da restituição dos valores que a autora pagou à ré como rendas a partir de Outubro de 2018; por outro, trata-se do destino dos valores que a autora depositou à ordem do tribunal a partir de Dez2018.
Quanto aos valores que a autora pagou a título de rendas, de Out2018 a Nov2018 (rendas de Out., Nov., e Dez2018) respeita, portanto, a uma restituição, que, no contexto, só pode ter por causa o enriquecimento injustificado (art. 473/1 do CC). Mas o que a autora alega é incompatível com esta causa de pedir, pois que diz que havia uma causa, qual seja o compromisso por ela assumido e que, naturalmente, cumpriu de sua espontânea e livre vontade, e não diz que esse compromisso deixou de existir. E mesmo que ela se estivesse a referir a uma obrigação natural, que não a uma obrigação jurídica, daí não decorre a obrigação de restituir por parte de quem recebeu a prestação, por força dos artigos 402 e 403 do CC (402: A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça; 403: 1. Não pode ser repetido o que for prestado espontaneamente em cumprimento de obrigação natural, excepto se o devedor não tiver capacidade para efectuar a prestação. 2. A prestação considera-se espontânea, quando é livre de toda a coacção).
Quanto à outra parte, ela corresponde a uma acção de simples apreciação negativa da existência de um direito; a autora vem dizer que a ré se arroga o direito a rendas baseado num contrato que a autora afirma que não contempla esse direito (impugnação antecipada); a ré afirma que o contrato contempla o direito a essas rendas. O tribunal tem pois que decidir se do contrato deriva ou não o direito da ré às rendas. Caso derive, o tribunal atribui à ré o valor depositado de Dez2018 a Julho2019 (rendas de Janeiro2019 a Agosto2019). Caso não, o valor correspondente será atribuído à autora. Para o direito a estas rendas está, assim, alegada uma só causa de pedir, que é o contrato: pelo que é só com base nele que se pode vir a declarar a existência do direito em litígio.
Posto isto, veja-se então:
Conjugando o pedido A, incluindo a frase final estendida a todo o pedido, o “articulado superveniente” e a pretensão da autora no recurso, vê-se que a primeira parte do pedido A da autora era o de que fosse declarada a inexigibilidade da obrigação de pagamento da renda, até que fosse emitida a licença de utilização.
A sentença deu razão à autora enquanto considerou apenas aquilo que o contrato dizia.       
Com efeito, as partes, no contrato, previram uma data de início da produção deste efeito (obrigação do pagamento da renda) diferente da data de início da produção dos demais efeitos do contrato. Enquanto todos os outros se verificaram antes disso, a obrigação de pagamento de rendas só se vencia depois do período de carência previsto no contrato, período de carência que só terminava – pelo jogo combinado das cláusulas 4/1-a e 4/3 parte final - depois da obtenção da licença de utilização das fracções para o exercício da actividade de restaurante. Ora, a obtenção do alvará só pode ter ocorrido depois da emissão da licença, que só ocorreu em 01/07/2019 (ponto 27 dos factos provados). Assim, a renda passava a ser exigível a partir deste termo (e não de uma prorrogação do período de carência por mais 6 meses, como considerou a sentença; ou seja, venceu-se com esse termo e não só em Novembro de 2019, com referência à renda de Dezembro de 2019; esta diferença de entendimento, entre este acórdão e a sentença, não tem relevo dado o que se segue). Note-se que, durante o processo e durante a audiência final, a ré tentou dizer que a licença em causa, a obter pela ré, não era esta, mas sim uma de alteração de uso. Mas, desde logo, não se fez, como se já viu acima, qualquer prova de a ré ter pedido uma licença de alteração de uso. E, por outro lado, o contrato era claro quando pôs a cargo da senhoria, a obtenção da licença de utilização (cláusula 4/3 que se refere especificamente a tal).
Mas, depois, a sentença, indo para além do que o texto do contrato dizia, considerou que as rendas que a autora pagou a partir da abertura do restaurante, não deviam ser reembolsadas pela ré à autora.
Compreende-se porquê: a partir do momento em que a autora passa a ter a disponibilidade das fracções arrendadas e a exercer nelas a actividade que visava exercer com a celebração do contrato, podendo, pois, obter delas o lucro inerente, à custa de um espaço que não era seu, não se compreenderia que o fizesse sem contrapartida económica para a ré que era a proprietária das fracções arrendadas.
A autora diz que isto vai contra o decidido no contrato.
Mas não é assim: o contrato contém, apenas, regras para a situação normal da abertura do restaurante depois da existência da licença de utilização. Não contém nenhuma regra para a situação que se verificou, que foi a abertura do restaurante e o início da actividade antes de ser concedida a licença.              
Pelo que a sentença decidiu resolver este problema através da integração do contrato, criando uma regra para o efeito, com recurso às normas que é possível extrair do art. 239 do CC, com a falha [que levou à contradição apontada neste acórdão na parte da arguição das nulidades e que agora se supriu] de não ter referido expressamente que estava a fazer isso.
A questão que agora se coloca é a de saber se o podia fazer.
Quase toda a doutrina diz que a integração do contrato, prevista no art. 239 do CC, depende da verificação de um, entre outros, requisito, qual seja, a detecção de uma lacuna (na expressão de Carlos Ferreira de Almeida, pág. 321 – todas as obras referidas serão identificadas mais à frente). Só nesse caso é que o juiz está autorizado a integrar o contrato.
Assim, apenas por exemplo: Baptista Machado, págs. 161-163: “[…] logo que se vinculam contratualmente, as partes ficam sujeitas a um contexto normativo objectivo quando seja necessário preencher lacunas (originárias ou supervenientes) do acordo por elas gizado – melhor, do ‘regulamento’ contratual a que deram vida.’”; Antunes Varela e Pires de Lima, pág. 225: “[…] Neste preceito [art. 239 do CC] prevêem-se as lacunas da declaração e procura fixar-se o critério geral que deve ser adoptado para a sua integração.”; Oliveira Ascensão, pág. 172: “[…] Pode faltar um trecho de regulamentação necessário para a execução do negócio. Que fazer então? Responde o art. 239 […]” ” Mota Pinto, pág. 455: “O critério a utilizar para o efeito de realizar a integração dos negócios lacunosos é enunciado no art. 239 […]”; José Alberto Vieira, pág. 48: “Há lacuna negocial quando as partes omitiram no negócio a solução de um ponto que carece de regulação. […]” Galvão Telles, pág. 448: “[No art. 239] prevê-se a existência de lacunas nessa declaração [na declaração negocial] e definem-se os critérios à luz dos quais se devem integrar as lacunas.”; Menezes Cordeiro, págs. 490-491: “O CC português dispôs, de modo expresso, sobre a integração da declaração negocial – art. 239. […E]squema[…] destinado a preencher eventuais lacunas contratuais. […] Áreas que exijam, pelo concreto subsistema negocial adoptado, uma regulação contratual que, na verdade e sem pôr em crise a subsistência do contrato, falte.”; Manuel Pita, pág. 325: “Realizada a interpretação, estará encontrada a regulação de interesses que corresponde à vontade declarada. Com base nessa regulação procede-se à qualificação do negócio […] É necessário agora determinar os efeitos jurídicos que o negócio vai produzir. Neste momento, poderão surgir pontos omissos [a lacuna], elementos do negócio que precisam de regulação e sobre que a declaração negocial calou. A actividade a realizar para preencher estes aspectos não regulados directamente pelas partes é a integração.” Evaristo Mendes e Fernando Sá, pág. 536: “Um negócio jurídico pode apresentar lacunas. Saber se existe ou não lacuna é, ainda, um problema de interpretação […] Sobre a sua integração rege, em geral, o art. 239. […]” e págs. 548 e 549: “Ocupa-se o preceito das eventuais lacunas do negócio jurídico […]. A aplicação do preceito pressupõe, naturalmente, a existência de uma lacuna e de uma lacuna suprível.” Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, pág. 568, m867: “Se a declaração negocial não apresentar um sentido obscuro ou equívoco, mas lacunas […]”; Maria Raquel Rei, pág. 703: “A aplicação do disposto no art. 239 supõe concluída a tarefa de interpretação do negócio. Só depois de apurado o sentido de uma declaração negocial se torna possível verificar se essa declaração contém pontos omissos. Uma lacuna negocial corresponde a uma cláusula que as partes teriam querido contemplar no negócio que celebraram.”
Desenvolvendo o assunto, Carlos Ferreira de Almeida diz (págs. 322 a 324):
“Lacuna não é qualquer omissão ou insuficiência; só há lacuna se a omissão houver de ser preenchida. Segundo um princípio da necessidade […] o problema da justificação e dos limites da integração de lacunas contratuais circunscreve-se a situações em que uma questão inserida no conteúdo do contrato, tal como resulta da sua interpretação, não encontra solução completa no mesmo contrato. […]
[…] A integração do contrato verifica-se sempre que, e só se, for necessária para a plena realização das funções (económico-social e eficiente) tal como se concretizam num dado contrato. A integração deve observar um princípio de contenção, segundo o qual não pode nunca servir para resolver questões que o contrato poderia ter contemplado, mas que efectivamente não pertencem ao âmbito do acordo contratual […].
Este autor afasta um outro critério da necessidade de integração, que é aquele que é geralmente seguido, qual seja, o ‘da execução do restante conteúdo’, mas defende aquele afastamento porque ele será limitado se estiver orientado apenas para os contratos obrigacionais, pelo que, nos casos de contratos obrigacionais, o critério usado por Carlos Ferreira de Almeida acaba por ser coincidente com o geralmente aceite; é a este título significativo, por isso, o exemplo que dá da aplicação do critério (pág. 323): “em qualquer contrato obrigacional, se as circunstâncias de tempo e de espaço, necessárias para o cumprimento, não constarem do contrato, terão de ser determinadas por integração.”
O critério da execução do restante conteúdo vem de Manuel de Andrade (págs. 324-325):
‘[É possível suprir lacunas por integração] pelo menos quando a regulação do ponto lacunoso for indispensável para se dar execução ao restante conteúdo das declarações negociais.” E segue-o, por exemplo, Carvalho Fernandes (págs. 355 e 357). Praticamente no mesmo sentido, Oliveira Ascensão, 172: “pode faltar um trecho de regulamentação necessário para a execução do negócio. […]” Também Evaristo Mendes e Fernando Sá, pág. 549/III: “Por exemplo, falta uma disposição regulatória sem a qual o programa contratual acordado não se realiza completamente e de forma a obter uma solução razoável, ajustada aos interesses em jogo. Saber se esse é o caso ou não, é, ainda, um problema interpretativo.”
Dando-lhe desenvolvimentos, veja-se Menezes Cordeiro, págs. 491-492:
“[…] a área lacunosa tenha de ser preenchida para permitir a execução global do negócio: seja por razões de pura ordem prática – sem as regras em falta o negócio torna-se inexequível – seja por razões de justiça – sem elas o contrato torna-se injusto.”
Carneiro da Frada, págs. 76-78:
“[…A lacuna contratual] traduz-se numa incompletude do conteúdo perceptivo do contrato como falha do plano regulador previsto ou querido pelas partes. O critério de determinação da lacuna implica, portanto, um padrão aferidor imanente ao contrato. Não é qualquer ausência de estipulação das partes que autoriza a lacuna e o processo integrativo: somente aquela que se reporte a uma condição sine qua non da execução do plano obrigacional gizado pelas partes, ou então, a que contrarie a própria lógica ou unidade de sentido do negócio, levam àquele resultado. Ou seja, lacuna só pode aferir-se em função da teleologia do contrato conforme resulta do plano contratual. […]”
E Filipe Cassiano dos Santos, págs. 323-324:
“A resolução fundada em previsão contratual tanto pode resultar de cláusula colocada pelas partes no contrato como ser fixada por integração de lacuna que se apure existir no clausulado contratual. […] Com efeito, se por interpretação do contrato (das suas cláusulas e do seu sentido geral, bem como dos específicos objectivos prosseguidos pelas partes) se concluir que o ponto foi omitido não por as partes terem tido em vista a aplicação do regime legal, mas porque simplesmente incorreram numa lacuna, ou seja, se se concluir que as partes não trataram o ponto mas que o deveriam ter tratado, na lógica regulativa do contrato, se este tivesse sido concluído de forma completa: numa frase só, se o próprio contrato, por interpretação, revelar que as partes não disciplinaram a matéria mas que o teriam feito se tivessem figurado a necessidade de a prever e que afastaram expressa ou tacitamente a aplicação do regime legal supletivo – então deve proceder-se à integração da lacuna do contrato, nos termos definidos no art. 239 do CC […]”
Contra, no entanto, tem de se ter em conta a posição, de 2006, de Mafalda Miranda Barbosa (págs. 385-386): “Entendemos hoje que não estamos presos à prévia identificação de uma lacuna contratual. […] De facto, se afirmámos que a integração não se distingue verdadeiramente da interpretação, isso significa que em cada um dos casos estamos a desenvolver as potencialidades inerentes às declarações das partes, à luz do sistema, até onde a sua intencionalidade o permitir, E se estamos legitimados a ir até aos limites dessa intencionalidade não faz sentido dizer que só podem recorrer aos mecanismos integrativos naquelas situações em que é evidente a existência de uma lacuna.” E antes tinha referido que “Rui de Alarcão, no anteprojecto do CC, […] entend[eu] preferível deixar em aberto a questão de saber se para além destas situações é possível ter lugar a actividade integrativa […] cabe[ndo] ao intérprete decidir, se, mesmo fora dele, deverá ter lugar.”     Pensa-se que é também esta a posição de Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos. [Também Carolina Cunha, na aplicação que faz da integração (para criar a possibilidade de resolução num contrato), não se refere, previamente, a nenhuma lacuna (para a mesma situação em que Cassiano dos Santos, pelo contrário, como se viu acima, primeiro diz que se terá de demonstrar a existência da lacuna, para criar a possibilidade de resolução num contrato fundada em incumprimento de obrigações ou em alteração de circunstâncias). Mas já no estudo para a integração de um acordo de preenchimento de um título cambiário, a autora demonstra, primeiro, a existência de um “ponto omisso” para efeitos de aplicação do art. 239 do CC].
Dado os termos da lei (o ponto omisso a que se refere o art. 239 do CC), considera-se preferível a posição tradicional da necessidade da prévia determinação de uma lacuna, mas entendida de acordo com os desenvolvimentos mais recentes.
Ora, no caso dos autos descortina-se facilmente a lacuna: a plena realização das funções do contrato de arrendamento em causa – que foi transferir para a autora o gozo das fracções da ré para o exercício da sua actividade lucrativa, contra o pagamento, pela autora, à ré, de um valor monetário a partir do momento em que pudesse utilizá-las, para obter, da actividade nelas exercidas, proventos económicos -, só tem sentido e só se cumpre se, a partir do momento em que de facto pode exercer tal actividade, passar a pagar aquela contrapartida. De outro modo estaria a permitir-se que o gozo potencialmente produtivo das fracções, estivesse a ser feito por outrem sem qualquer contrapartida para o proprietário das fracções, o que é manifestamente contra a lógica do contrato, ou dito de outro modo, contra o sentido das finalidades prosseguidas pelas partes com a celebração do contrato.
*
Por outro lado, mas agora com o acordo de toda a doutrina (como se verá em concreto relativamente a Mafalda Miranda Barbosa), a lacuna deve ser suprível.
Assim, Carlos Ferreira de Almeida, pág. 324:
“A primeira causa de insusceptibilidade de suprimento é estrutural. Como é pelas funções do contrato que se ajuíza a necessidade de suprir lacunas, as funções contratuais são insusceptíveis de integração, o que significa não ser admissível, pela integração, criar novos efeitos ou modificar essencialmente os efeitos que derivam do contrato devidamente interpretado. […]
Em relação ao objecto, tem-se escrito que, pela integração, não é admissível substituir ou alargar o objecto material (por exemplo, a coisa vendida ou o serviço a prestar). Esta afirmação tem de ser devidamente entendida, generalizando-a, por um lado, de modo a excluir da integração qualquer objecto principal (corpóreo ou incorpóreo), e restringindo-a, por outro lado, de modo a permitir o preenchimento de lacuna do preço (caso paradigmático de integração) e de prestações secundárias, complementares ou instrumentais […].”
Manuel de Andrade, pág. 362:
[a integração pode ter lugar, “m]as nunca substituindo-se ou alargando-se o objecto material – digamos – do negócio questionado (a coisa vendida, o serviço a prestar, etc.). A integração tem de manter-se portanto, num certo sentido, dentro do domínio negocial traçado pelas partes.”
Mota Pinto, pág. 457:
“[…] Não pode proceder-se na integração como se se estivesse a aplicar uma norma estranha ao contrato. Certos problemas, mesmo que seja evidente a prova da vontade hipotética das partes, a partir da finalidade e da conexão dos significados manifestados na regulamentação contratual, não podem ser equacionados e resolvidos em sede de integração negocial. Designadamente não pode a integração conduzir a uma ampliação do objecto negocial, que foi pretendido pelas partes.” (no mesmo sentido, Carvalho Fernandes, pág. 357).
E Mafalda Miranda Barbosa, pág. 386:
“Podemos avançar como critério que a actividade integrativa não pode conduzir a uma ampliação da prestação devida que foi acordada pelas partes. […] O que quer dizer que […o âmbito do] dever principal de prestação […] não pode ser ampliado pela actividade integrativa […]” [na parte que agora se omitiu, a autora defende que, já pelo contrário, os deveres acessórios e os deveres de protecção podem decorrer da actividade integrativa].
Ora, ao criar-se uma regra para regular a questão da utilização das fracções sem licença administrativa, não se está a alargar a prestação principal do contrato, está-se simplesmente a dizer que essa prestação principal, tal como pensada pelas partes, tem a ver com qualquer período de tempo em que a autora já pudesse usar e fruir das fracções.
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Por fim, a alegação da autora de que assumiu o compromisso verbal de pagar rendas a partir da abertura do restaurante (não impugnadas pela ré), levanta duas hipóteses diferentes (como a autora não descreveu de que forma ocorreu o compromisso verbal, não é nem seria possível chegar a nenhuma conclusão segura), ambas no sentido da vontade das partes de atribuírem à ré o direito às rendas a partir do momento em que fosse feita a exploração das fracções da ré:
1.ª - esse compromisso verbal foi assumido perante a ré que o aceitou, acordando nele, pelo que as partes, embora sem formalização no contrato escrito, regularam o ponto omisso no contrato formal – é certo que se levantariam problemas quanto à validade de uma tal cláusula contratual contemporânea do contrato, pois que neste caso estamos perante uma cláusula essencial do contrato (diz respeito aos efeitos principais do contrato), nula por não ter assumido a forma imposta por lei (artigos 1069 na redacção da Lei 31/2012 de 14/08 em vigor à data e 221 do CC, a contrario, já este artigo admite, em alguns casos, a validade das estipulações acessórias, não das essenciais); mas não é essa a questão que se está a discutir aqui e mais à frente falar-se-á da consequência da nulidade do contrato para o destino das rendas.
2.ª - as partes não acordaram quanto àquele compromisso, provavelmente por não quererem formalizar num contrato escrito uma estipulação relativa a uma exploração ilícita das fracções, mas tê-lo-iam feito se pensassem puder fazê-lo – abertura antes da licença necessária para o efeito (artigos 294/1 e 1070 do CC); foi um compromisso unilateral, que não é válido por não estar a coberto de nenhuma norma especial (art. 457 do CC), sem prejuízo de dar origem a uma obrigação natural que não pode ser repetida quando cumprida espontaneamente, como já se viu. Repare-se, de resto, que a ré recebeu as rendas desse período, pagas pela autora, e não disse nada quanto a elas; este comportamento posterior das partes revela que ambas tinham ponderado o ponto e o tinham querido regular neste sentido.
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(as obras citadas foram as seguintes: Antunes Varela e Pires de Lima, CC anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1982, págs.225-226; Baptista Machado, A cláusula do razoável, artigo publicado na RLJ 119/3747, Out1986, esp. págs. 161-163; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2.ª edição, Lex, 1996, págs. 355-360; Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, vol. II, Coimbra Editora, 1999, págs. 153-175; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, págs. 454-457; José Alberto Vieira, Negócio jurídico, Coimbra Editora, 2006, págs. 48-49; Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, “O problema da integração das lacunas contratuais à luz de considerações de carácter metodológico – algumas reflexões”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Coimbra Editora, vol. II, 2006, pp. 367-392; Carolina Cunha, Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência [4/2013], publicado na DSR, Março 2013, ano 5, vol. 9, págs. 106-107; Filipe Cassiano dos Santos, na anotação ao AUJ do STJ de 11/12/2012, Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação, publicada na RLJ 142/3980, Maio-Junho 2013, págs. 323-324, 325-327 e 343; Carolina Cunha em anotação ao ac. do TRC de 19/02/2013, Nulidade do contrato garantido e aval em branco, publicada na RLJ 143/3982, Set-Out2013, pág. 77; Carolina Cunha, no artigo Aval em branco e plano de insolvência, publicado na RLJ 145/3997, Março-Abril de 2016, pág. 229; Carlos Ferreira de Almeida, Contratos IV, 2014, Almedina, págs. 315-333; a nota prévia aos artigos 236 a 239, de Evaristo Mendes e Fernando Sá, e as anotações dos mesmos ao art. 239, do Comentário ao CC, Parte Geral, UCP/FD/UCE 2014, págs. 532-537 e 547-551; anotação de Manuel Pita, CC anotado, Almedina, vol. I, 2019, 2.ª edição, págs. 325-326; Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão de Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, Almedina, 2019, págs. 544-548 e 559-562; Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, TGDC, 2019, 2.ª edição, Almedina, págs. 568-569; anotações de Maria Raquel Rei ao art. 239 no CC comentado I, CIDP/Almedina, 2020, págs. 691-692 e 702-704)
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Assim, considera-se que se está perante uma lacuna contratual suprível, pelo que agora se trata de saber se a sentença a podia integrar como o fez.
Ora, o que a sentença fez foi, aplicar por analogia, ao abrigo da 1.ª parte do art. 239 e do art. 10/1 e 2 do CC, a regra de um caso paralelo extraída do art. 1045/1 do CC -: Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado.
Este artigo revela que a continuação do uso e fruição, por um ex-arrendatário, de um prédio que lhe estava arrendado até aí e deixou de o estar continua a gerar a obrigação de pagar aquela que seria a contrapartida acordada para a concessão do gozo.
E esta é uma das normas que tem conduzido à conclusão que, no caso de nulidade dos contratos de arrendamento (art. 289 do CC), não há que devolver as rendas pagas, relativamente a um período de tempo em que o prédio esteve a ser usufruído, pois que elas são compensadas pelo gozo do prédio arrendado (sobre esta não devolução veja-se, por exemplo, o que é dito por Maria Clara Sottomayor, no ponto II da anotação 4 ao art. 289, no Comentário ao CC, parte geral, citado, pág. 718).
Assim, quando há gozo de um prédio de outrem, embora por alguma razão o contrato de arrendamento que o permitiria não esteja em vigor, deve ser paga a contrapartida correspondente a esse gozo.
Ora, o mesmo deve acontecer, quando o contrato apenas prevê a hipótese de o gozo do prédio ser feito a partir da obtenção de uma licença necessária para tal, relativamente ao período em que, mesmo sem essa licença, o prédio está à mesma a servir para esse gozo.
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Por fim, a questão da inconstitucionalidade da solução alcançada pela sentença fica afastada, porque a sentença ainda aplicou o contrato: não o contrato tal como ele aparecia inicialmente, mas o contrato complementado por integração permitida por lei. Ou como diz Carvalho Fernandes, lembrado por Carolina Cunha (Set/Out2013, pág. 76, nota 46): “ainda estamos em presença de ‘efeitos negociais, i.e., imputáveis à vontade funcional […:…] os efeitos sucedâneos são tão queridos como os dos negócio inválido, pois só se produzem enquanto se mostrem ajustados à intenção prática dos autores do negócio.’” (A conversão dos negócios jurídicos, Quid Juris, 1993, pág. 527).
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Assim, quanto à primeira parte do pedido A, de que fosse declarada a inexigibilidade da obrigação de pagamento da renda, até que fosse emitida a licença de utilização, a solução correcta é a solução final a que a sentença chegou (da improcedência do pedido, pois que as rendas passaram a ser exigíveis com a abertura do restaurante: 22/10/2018, antes da emissão da licença), não com base no contrato lacunoso, mas sim com base no contrato integrado.
A minuta negociada pelas partes, de que dão notícia os pontos 28 e 29 dos factos provados, não altera esta conclusão, pois que os factos desses pontos não são suficientes para se poder falar num acordo posterior alcançado pelas partes quanto à data de vencimento das rendas. Pelo que não se coloca sequer a questão da validade e eficácia dessa minuta.
Sendo assim, quanto à segunda parte do pedido A, também ele improcede quanto aos valores pagos e depositados a títulos de renda de 22/10/2018 a Agosto2019 (quanto aos valores pagos de Out e Nov2018 há pois um duplo fundamento da improcedência do pedido da autora, sendo o primeiro o referido acima, no início da parte de direito deste acórdão).
Mas há que ter em conta que os valores depositados não são só os das rendas de Jan2019 a Agosto2019, pois que, à cautela, a autora fez outros depósitos (das ‘rendas’ de Set2018 a 21/10/2018 e acréscimo de 50%) a que a ré não tem direito (porque as rendas só começaram a ser exigíveis a 22/10/2018). Assim, quanto a esta parte, ela tem de ser atribuída à autora, como parte da decisão da questão do destino dos depósitos.
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Quanto ao pedido C, isto é, quanto à data do início de produção dos efeitos do contrato.
Nos termos da cláusula 3/1 do contrato, “o arrendamento iniciava os seus efeitos a 15/05/2017.” Mas a cláusula 5/3 estipulava que “como condição suspensiva do início da produção de efeitos do arrendamento, o senhorio deve entregar as instalações arrendadas ao inquilino na condição de acabadas, ainda que em tosco [já se viu que esta tradução está errada, o que terá de ser tomado em conta mais à frente], de modo a permitir ao inquilino a realização de todos os trabalhos de adaptação à actividade a ser nelas desenvolvida.” Antes ainda, a cláusula 5/2 dizia que “sem prejuízo da data de entrega, o senhorio assegura ao inquilino, desde a data de assinatura do contrato, total acesso às instalações arrendadas, de modo a garantir a realização de medições, avaliações do espaço, produção de plantas, visitas e, em geral, com vista à preparação dos trabalhos de adaptação e instalação do equipamento técnico necessários para o desenvolvimento da actividade do inquilino.”
Portanto, os efeitos do arrendamento (todos eles, à excepção da obrigação do pagamento das rendas) só se iniciavam, por vontade das partes, com a verificação da condição suspensiva da entrega das instalações à autora, nas condições indiciadas. Sendo a principal a da entrega das instalações na condição de acabadas mas em tosco, como a autora diz, desconsiderando a tradução mal feito. Ou seja, o que aquelas frases indiciam é que o que importava é que as fracções já estivessem em condições de sofrerem obras de adaptação; assim, o que importava era o momento em que a autora já pudesse realizar os trabalhos de adaptação das fracções à actividade. Da entrega das fracções, nestas condições, distinguia-se, entretanto, a disponibilização do acesso às fracções.
Ora, tal não aconteceu em Março de 2018, pois que, por exemplo, o ponto 16 refere-se ao acesso e não à entrega.
E não aconteceu só em 29/11/2018, como pretende a autora a título principal, pois que essa data foi a da obtenção do alvará de obras e a própria autora admite que iniciou as obras de adaptação antes sequer de o poder ter feito e em 22/10/2018 já o restaurante estava aberto.
A autora pretende, a título subsidiário, que a data da entrega seja então fixada a 24/08/2018, pois que só nessa data, como se vê nos pontos 21 e 22, é que a instalação eléctrica das fracções ficou concluída, com instalação da caixa P100 e execução do ramal de electricidade respectivo, e, segundo ela, só então puderam ser realizadas as obras de adaptação.
A ré, por sua vez, diz que a entrega ocorreu antes, porque, como se vê dos pontos de facto provados, a autora teria efectuado obras antes de 24/08/2018.
A autora responde a isto que as obras que realizou antes, foram promovidas pela autora mas eram da responsabilidade da ré (por isso é que o custo desses trabalhos foram postos a cargo da ré), pelo que não se trataram das obras de adaptação do locado, mas de outras, necessárias a estas, pelo que só quando elas ficaram acabadas é que se pode considerar que a entrega, nos termos acordados, ocorreu.
A sentença, por sua vez, como se lê da transcrição feita acima, mistura duas questões diferentes, quais sejam, a data de início da produção dos efeitos do contrato e a data de início da obrigação de pagamento da renda, resolvendo-as como se fossem uma só – a data de início da obrigação de pagamento das rendas – e a que responde de duas formas diferentes: primeiro, como se esse início ocorresse 6 meses depois da data da obtenção da licença (6 meses depois de 01/07/2019) e depois como ocorresse na data da abertura do restaurante ao público (22/10/2018). E para este efeito a sentença desconsidera a diferença entre períodos de suspensão e de carência e entre a produção de efeitos em geral e o efeito específico da obrigação de pagamento de rendas.
A ré, nas contra-alegações, segue, como se pode ver acima, esta posição da sentença, misturando o período de suspensão dos efeitos do contrato com o período de carência de pagamento das rendas.
Ou seja, as partes previram 5 coisas diferentes no contrato:
i/ Data da celebração do contrato =>   
ii/ Período de suspensão [até que as fracções fossem entregues acabadas mas em tosco, de modo a poderem ser feitas obras de adaptação] =>
iii/ Data da produção dos efeitos do contrato =>
iv/ Período de carência [de pelo menos 6 meses depois do termo do período de suspensão, mas o termo do período de carência era prorrogado até à obtenção da licença de utilização] =>
v/ obtenção da licença / início da obrigação de pagar rendas.
A sentença – e agora também a ré - entende que iii/ = v/ e desconsidera ii/.
É certo que, no fundo, a sentença tem razão. Não se vê que interesse possa ter a data da produção dos efeitos do contrato. Mas a verdade é que a questão foi colocada ao tribunal e tem de ser resolvida e a data da produção dos efeitos do contrato é diferente da data do início da obrigação de pagar rendas.
Ora, tendo então que ser decidida, diga-se que, no fundo, a sentença está certa ao ter julgado improcedente este pedido, embora com outra fundamentação, que não é aquela que agora este acórdão dá e que é a seguinte: não há a certeza de que a entrega das fracções em condições de a autora as poder adaptar para o exercício da sua actividade – que era a condição suspensiva colocada pelas partes para o início da produção dos efeitos do contrato, em termos gerais – só tenha ocorrido em 24/08/2018, podendo ter ocorrido antes disso, pois que nada garante que os trabalhos referidos nos pontos 14, 24 e 25, que já são obras de adaptação das fracções do exercício do comércio para o exercício da restauração, não abranjam já, também, obras de adaptação para o restaurante em concreto concebido pela autora (veja-se o que se disse, na matéria de facto, sobre as obras de adaptação feitas pela autora no âmbito da licença de obras pedida pela ré; é isto que explica a diferença, que se faz, entre obras de adaptação das fracções preparadas para o comércio em geral para a restauração em particular, e obras de adaptação do espaço, já adaptado para a restauração, para um restaurante em concreto).
*  
Quanto ao pedido E:
A autora diz o seguinte:       
42. Caso se considere inexistir omissão de pronúncia relativamente à condenação da ré no pagamento da quantia de €38.395,83, o que se admite por mera cautela e dever de patrocínio sempre se dirá que, atendendo aos factos provados (cfr. 20 a 25 e 37 dos factos provados e ao que acima se expôs no ponto I do presente recurso), deverá a sentença recorrida ser substituída por outra que condene a ré no montante peticionado.
43. Sendo da responsabilidade da ré a obtenção da licença, conforme resulta dos termos do contrato (cfr. ponto 8 dos factos provados) e da sentença recorrida, e não tendo esta pago os respectivos custos (cfr. ponto 37 dos factos provados), suportados pela autora, deveria aquela ter sido condenada no reembolso das despesas pagas, devendo, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a ré no pagamento da quantia peticionada.
A ré diz que:
A autora pretende ser ressarcida por determinadas obras do seu interesse que fez no locado (e fora dele, causando danos graves à propriedade da ré) e por determinadas taxas que pagou e que deviam ser pagas pela ré´.
Invocando esses direitos, competia-lhe fazer prova deles, designadamente que as obras que fez foram executadas nos termos contratuais, em benefício da senhoria, por esta aprovadas, competindo-lhe, por isso, custeá-las.
Do conjunto da prova documental e testemunhal produzida não resulta objectivamente a prova daqueles direitos.
O contrato estabelece de forma clara e inequívoca que as obras de adaptação do locado à actividade a exercer nele pela inquilina são da responsabilidade desta. Realizou-as. Tem de assumir o seu custo.
Não resulta provado de nenhum elemento dos autos que tivesse realizado obras por conta e no interesse da senhoria, que esta tivesse aprovado como obra sua ou para si ou que esta tivesse assumido como custo seu. Ficou apenas provado que a autora, para além das obras realizadas no locado, no seu exclusivo interesse, realizou também obras fora do locado, danificando e desvalorizando o imóvel da ré. Pelo que, nem com base nas regras do enriquecimento sem causa (de resto, não invocadas), poderia a autora pretender ver-se ressarcidas por obras que contratualmente assumiu como da sua exclusiva responsabilidade, no seu exclusivo interesse e até contra o interesse da ré.
O mesmo se diga quanto às taxas que autora reclama.
O contrato – documento escrito cujo conteúdo não poderá, em regra (não se verificando aqui qualquer excepção), ser afastado por depoimentos de testemunhas – é inequívoco quanto à obrigação de a autora suportar o custo do licenciamento das obras indispensáveis à utilização do locado.
Está demonstrado e assumido pela ré que esta teve de alterar a licença de uso do espaço locado. Não está assumido nem ficou provado que esta alguma vez tenha assumido o custo das licenças que contratualmente competiam à autora. Nenhum elemento probatório carreado aos autos, de qualquer natureza, legitima tal conclusão. E nenhum elemento probatório carreou a autora aos autos, provando que a pedido da ré lhe pagou licenças que esta devesse assumir.
O despacho que deferiu a arguição da nulidade quanto à falta de conhecimento deste pedido, tem a seguinte fundamentação:
[…] verifica-se, antes do mais, que existiu manifesto lapso na parte da sentença referente ao último dos pedidos formulados na petição inicial. Na verdade, houve erro na identificação da quantia aí peticionada (alínea e do pedido) como sendo referente a rendas – o que manifestamente não é o caso, como se depreende de todo o processo – quando essa quantia é relativa ao valor de trabalhos alegadamente suportado pela autora no âmbito da empreitada que levou a cabo para adaptação do imóvel a restaurante, bem como referentes à liquidação das despesas relacionadas com o levantamento do alvará, conforme se infere, cremos que com clareza, do conjunto da sentença, em particular da matéria de facto. Veja-se, por exemplo, os pontos 20, 22 e 25 dos factos provados e a fundamentação da matéria de facto na página 15 da sentença, aí se referindo, inclusivamente, que tais factos foram admitidos pelas próprias testemunhas arroladas pela ré (aliás, trata-se de matéria que a ré, na contestação, não põe em causa, inclusivamente afirmando que pretende ressarcir autora em conformidade – cf., p. ex., artigos 156 e 157 desse articulado).
Assim sendo, é de reconhecer e lamentar, sem hesitações, a existência de manifesto lapso na decisão quanto ao pedido referente ao valor despendido pela autora naqueles trabalhos e na liquidação daquelas despesas, no montante total de 38.395,83€, que deverá merecer decisão de condenação, nos termos que infra se consignarão.
Cumpre acrescentar que [a] menção feita na sentença de que “falece, apenas, a pretensão referente à devolução das rendas já liquidadas, nos termos supra expostos” (último parágrafo da fundamentação de direito), tem a ver precisamente com aquele lapso/omissão, pois que o tribunal sempre deu por adquirido que a autora tinha direito ao ressarcimento das despesas supra assinaladas, só não procedendo a acção na totalidade quanto ao pedido de reembolso das rendas (cifrado, esse sim, em 16.100€).
Decidindo:
No contrato de arrendamento em causa está pressuposto que o edifício onde se localizam as fracções estava a ser reabilitado com a realização de obras necessárias para deixar as fracções em condições de poderem ser usadas para o fim a que autora/inquilina as destinava (considerandos B e C do contrato, ponto 4 dos factos provados; cláusula 1 do contrato, ponto 5 dos factos provados). As fracções arrendadas foram-no com o fim de nelas ser instalado um restaurante e no contrato diz-se que as fracções estavam autorizadas a ser usadas com esse fim (cláusula 1 do contrato, ponto 5 dos factos provados; clª 2/1, pontos 7-8 dos factos provados) e que para além disso a senhoria ficava responsável pela obtenção da licença de utilização das instalações para o fim de restaurante (clª 2/4, pontos 7-8 dos factos provados; parte final da clausula 4/3, pontos 10-11 dos factos provados). Assim, é evidente que as partes partiam do princípio que as obras que estavam a ser feitas pela ré, a senhoria, quando acabassem de ser feitas, permitiriam o uso das fracções para esse fim. Pelo que, só as obras de adaptação das fracções ao restaurante em concreto é que são da responsabilidade da autora, tal como está pressuposto no art. 1111/2 do CC. As outras, necessárias para deixar as fracções prontas a ser adaptadas para esse fim, ou seja, as obras de adaptação das fracções, de comércio em geral, para a restauração em especial, são da responsabilidade da ré. É o que decorre das normas citadas do contrato e, em consonância com este, do disposto no art. 1031 do CC: São obrigações do locador: a) Entregar ao locatário a coisa locada; b) Assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina. [Como lembra Elsa Sequeira Santos: “Casuisticamente poderão encontrar-se outras situações em que só o locador pode praticar algum acto necessário ao gozo da coisa para o fim a que se destina, estando então o locador obrigado à sua prática. Tais situações ocorrem frequentemente quando o locado se integra em edifício em regime de propriedade horizontal, em que só o locador/condómino está legitimado a um conjunto de actuações que podem ser necessárias ao gozo da fracção arrendada” – CC anotado, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2019, pág. 1293]. Daí que a ré, para além do mais, se comprometa a pagar parte dos custos das obras que a autora ainda fará (ponto 12 dos factos provados: clª 5ª/4).
Pelo que todas as obras que a autora mandou fazer – e que, nos factos dados como provados, consta que pagou – quer nos termos expressos do contrato (cláusula 4.ª/5) quer para corrigir desconformidades entre o projecto licenciado e executado pela empreiteira da ré [referidos como trabalhos não inicialmente previstos nos pontos 14, 24, 25, 21 e 22 dos factos provados], são obras cujo custo deve ser suportado pela ré e não pela autora (neste sentido, também a cl.ª 5/6): assim, a instalação da caixa P100 e execução do ramal de electricidade respectivo, a pré-instalação para dois sistemas de ar condicionado e a impermeabilização das paredes que jorravam água; tudo no valor de 33.673,59€, incluindo os 18.000€ [arredondados para baixo] previstos no contrato (tal como também resulta da carta consignada no ponto 33 dos factos provados). A forma como a autora alegou e a forma como os factos foram dados como provados, parece, por vezes, imputar este valor apenas a parte dos trabalhos a mais, como por exemplo, nos pontos 25 e 14, mas não é assim, como resulta dos outros pontos de facto já referidos.
A própria ré, nos arts. 156 e 157 da contestação aceitou esta solução, como lembra o despacho complementar: a ré dizia que “assume todas as despesas a que se comprometeu nos termos do contrato [que são os 18.522,83€ referidos na clª 4ª/5 do contrato, ponto 12 dos factos provados - TRL] e assume também e reconhece serem da sua esfera as obras de reparação dos defeitos de construção registados, de resto, abrangidos no período legal de garantia do construtor.”
Quanto aos 3033,24€ e 90€ são taxas devidas pela licença pedida pela ré – logo são da responsabilidade da ré; tendo sido pagas pela autora (ponto 20), a ré deve reembolsá-la; o mesmo se diga dos 1599€ que são os honorários devidos pela parte a mais dos projectos que resultaram do pedido de alterações (feito com elementos fornecidos pela autora: ponto 39 dos factos provados), resultante do facto de, ao contrário do que constava do contrato, as fracções em causa não terem o seu uso autorizado para restauração (pontos 5, cláusula 1, e 17 dos factos provados).
As contra-alegações da ré não têm qualquer correspondência com os factos dados como provados, designadamente os 33.673,59€ não dizem respeito a trabalhos de adaptação das fracções a restaurante ou de obras realizadas pela autora “fora do locado” ou por obras que a autora tenha assumido como da sua exclusiva responsabilidade ou como obras indispensáveis à utilização do locado que fossem da responsabilidade da autora, mas trabalhos que a ré se comprometeu a pagar no contrato e a trabalhos não inicialmente previstos, relativos a desconformidades nos termos descritos acima, tudo naturalmente da responsabilidade da ré e não da autora. Tal como 1599€ pagos aos projectistas pelas alterações de projecto efectuadas, não têm nada a ver com isso. E o mesmo vale para os 3033,24€ + 90€ que a autora suportou para levantamento do alvará de obras e utilização.
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Quanto a custas, que são fixadas na proporção do decaimento (art. 527/1-2 do CPC).
O valor económico directo que a autora pretendia obter com a acção era de 54.495,83€ e foi esse o valor que foi dado à acção. A autora obteve 38.395.83€, pelo que, na acção, ganhou em 29,54% e decaiu em 70,46%.
Quanto ao recurso: nele estava em causa o valor de 38.395,83€, mais o valor dos depósitos efectuados pela autora, de 78.850€, que a autora pretendia que ficasse para si, no total de 117.245,83; a autora teve provimento (através do despacho complementar, confirmado neste acórdão) no valor de 38.395,83€ + 17.850€, ou seja, 56.245,83€; pelo que decaiu em 52,03% e a ré em 47,97%.
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Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos:
a) julgar parcialmente procedente a arguição de nulidade da sentença e, em substituição do que aí foi decidido, atribuir à ré, dos depósitos efectuados pela autora, o valor correspondente às rendas de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019, no total de 61.000€, atribuindo-se o resto à autora.
b) confirmar, quanto ao demais, a sentença, complementada pelo despacho posterior de 06/03/2020 (suprindo-se a contradição dos fundamentos da mesma nos termos supra expostos).
Custas da acção, na vertente de custas de parte (não há outras), pela autora em 29,54% e pela ré em 70,46%.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não há outras), pela autora em 52,03% e pela ré em 47,97%.

Lisboa, 10/09/2020
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas.