Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | INÊS MOURA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO PROCESSO EXECUTIVO ABUSO DE DIREITO PERSI | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/21/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | 1.–Pretendendo impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o Recorrente terá de fazer constar das conclusões pelos menos os factos relativamente aos quais se verifica a sua discordância, exigência estabelecida pelo legislador no art.º 640.º n.º 1 al. a) do CPC e cuja inobservância determina a rejeição do recurso, conforme aí também previsto, por não estar devidamente definida a matéria a submeter à decisão do tribunal. 2.–A junção aos autos de dois documentos em forma de carta emitidos pelo Banco Exequente, onde se encontra identificado como destinatário o Executado, só permitem concluir que o Exequente elaborou aquelas cartas com aquele teor, sendo que na falta de qualquer outro elemento probatório não admitem que se tenha como errada a decisão do tribunal de 1ª instância de ter como não provado o seu efetivo envio e receção pelo destinatário. 3.–Quando no âmbito de um contrato de mútuo bancário se torna obrigatória a integração do cliente no PERSI, por estarem verificados os pressupostos que impõem tal obrigação à instituição de crédito, a sua falta obsta a que o credor venha num primeiro momento intentar ação judicial com vista à satisfação do seu crédito, o que só está legitimado a fazer após a extinção do PERSI, competindo ao credor fazer prova de que realizou as comunicações previstas. 4.–Não há abuso de direito do Executado quando alega a falta de cumprimento das obrigações do Banco relativamente à sua integração e extinção do PERSI, pelo facto de ter sido interpelado em data anterior para pagar, tendo corrido procedimento de injunção no qual foi aposta fórmula executória, sem que tenha contactado o Banco para regularizar a dívida. Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa I.–Relatório Vem “AA”, representado pelo Ministério Público, por apenso aos autos de execução que contra si é intentada pelo Banco Millenium BCP, S.A., deduzir a presente oposição à execução. Alega em síntese, que não foi junto pela Exequente o contrato celebrado entre as partes que está na origem da dívida do Executado, mais suscitando a questão da inexigibilidade da quantia exequenda por incumprimento do PERSI, concluindo, a final, pela procedência da oposição e consequente extinção da execução. Notificado o Embargado/Executado, o mesmo veio contestar, juntando o contrato de mútuo celebrado entre as partes. Mais alega que não está obrigado a demonstrar antecipadamente a inscrição do devedor no PERSI, referindo que respeita o regime jurídico vigente e que no caso interpelou e informou o Executado nos termos previstos em tal regime, concluindo pela improcedência dos embargos e juntando cinco documentos. Foi realizada audiência prévia onde foi discutida a possibilidade de ser proferida decisão de mérito por os autos conterem todos os elementos necessários para o efeito. Foi proferida sentença que concluiu no sentido de não estar demonstrado o cumprimento pelo Exequente do regime previsto no Decreto Lei 227/2012 de 25 de outubro, julgando verificada a exceção dilatória inominada que obsta ao prosseguimento da execução, julgando procedente a oposição. É com esta decisão que o Embargado/Exequente não se conforma e dela vem interpor recurso pedindo a sua revogação e substituição por outra que julgue improcedente a exceção em causa, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem: A)-Conforme exposto nos arts.º 1 a 16 do presente Recurso, dever-se-á dar como provado que a Recorrente enviou as missivas de PERSI ao Recorrido, cumprindo com as exigências legais do DL n.º 227/2012 de 25 de outubro bem como a recomendação da entidade supervisora no Aviso do Banco de Portugal n.º 17/2012; B)-Mais conforme verificado nos arts.º 16 a 19 em momento algum foi impugnado os respetivos documentos ou o alcance que foi indicado pela Recorrente pelo que, conjugado com a presunção de receção destas missivas dever-se-á dar como provado que o Recorrido foi interpelado a dar conhecimento da sua integração em PERSI, bem como da extinção do mesmo por falta colaboração; C)-Neste sentido dever-se-ão dar como provados os factos conforme exposto no art.º 20 deste Recurso; D)-Por fim, mesmo que se entenda que não existiu interpelação do Recorrido do procedimento de PERSI, deverá ser dada como provada os factos conforme exposto no art.º 21 a 34 deste Recurso, na versão alternativa dos factos 3 e 4 dos, e tendo em conta a má-fé, os incumprimentos contratuais e falta de colaboração do Recorrido, pese embora as diversas tentativas de a Recorrente e o Sistema Judicial o interpelar, fica demonstrado que além de completa inutilidade da interpelação da eventual inexistência da integração do Recorrido em PERSI a invocação da mesma em sede de Embargos consiste num verdadeiro abuso de Direito por parte do Recorrido. II.–Questões a decidir São as seguintes as questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine: - da impugnação da matéria de facto; - da (im)procedência da exceção dilatória da falta de integração do Executado no PERSI; - do abuso de direito. III.–Fundamentos de Facto Foram considerados provados e não provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa: Factos provados: 1.º–Em decorrência da actividade a que se dedica, o Banco Exequente é dono e legítimo portador de um procedimento de injunção (n.º 21577/22.4YIPRT) no qual foi aposta a fórmula executória e que constitui título executivo contra o ora Executado – conforme documento que se junta como n.º 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 2.º–De facto, o Exequente, por requerimento de injunção datado de 07/03/2022 requereu a notificação do Executado para proceder ao pagamento do montante de €8.513,09, correspondente aos valores em débito provenientes de um Contrato de Mútuo com o n.º 3186122152, ao que, acrescia respectivos juros de mora, imposto de selo e taxa de justiça paga, perfazendo o valor global de €9.142,07. 3.º–Notificado para pagar ou deduzir oposição, o Executado nada fez pelo que, nos termos legais em 24/05/2022 foi aposta fórmula executória pelo secretário de justiça ao requerimento de injunção apresentado, conforme documento já junto e que se dá por integralmente reproduzido. 4.º–O Executado, não pagou ou amortizou as dívidas emergentes daquele contrato. 5.º–A presente acção executiva é proposta no seguimento de “PEPEX” com o n.º de processo 46925/22.3YLPEP, tendo sido o Exequente notificado pela Agente de Execução do resultado das pesquisas através do documento n.º 0Rzvv6biJ6X – conforme relatório que se junta como documento n.º 2, optando nesta sede, o Exequente, expressamente pela convolação do referido procedimento extrajudicial em processo de execução. Factos não provados - No cumprimento das obrigações elencadas no art.º 13.º e 14.º a Embargada informou o Embargante do incumprimento das suas obrigações – tudo conforme doc. 2 que se junta e se dá por integralmente reproduzido. - Tendo, ainda, igualmente informado o Embargante do insucesso da sua integração no respetivo PERSI devido à falta de resposta – tudo conforme doc. 3 que se junta e se dá por integralmente reproduzido. - Acresce que além das interpelações supramencionadas o Embargante foi ainda interpelado para pagamento e da resolução do contrato – cfr. docs. 4 e 5 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos. - da impugnação da matéria de facto Como tem vindo a ser pacificamente entendido e decorre do disposto nos art.º 635.º n.º 4 e 639.º do CPC são as conclusões apresentadas pelo Recorrente que delimitam o objeto do recurso e fixam a matéria a submeter à apreciação do tribunal, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 608.º n.º 2 do CPC. Neste sentido, escreve Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 85: “Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que, além disso, não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal.” Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões, onde o Recorrente sintetiza as questões a submeter à decisão do tribunal, é apenas sobre estas que o tribunal de recurso pode pronunciar-se, a menos, como se referiu, que surjam questões de conhecimento oficioso. Pretendendo impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o Recorrente terá de fazer constar das conclusões pelos menos os factos relativamente aos quais se verifica a sua discordância, exigência estabelecida pelo legislador no art.º 640.º n.º 1 al. a) do CPC e cuja inobservância determina a rejeição do recurso, conforme aí também previsto, por não estar devidamente definida a matéria a submeter à decisão do tribunal. No mesmo sentido, de que pelo menos a indicação dos factos considerados incorretamente julgados tem de constar das conclusões do recurso, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 12 de maio de 2016 no Proc. 324/20.9TTALM.L1.S1; de 19 de fevereiro de 2015, no Proc. 299/05; de 22 de setembro de 2015 no Proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, todos in www.dgsi.pt A necessidade do Recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, traduz uma opção do legislador que não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados, relativamente aos quais a parte manifesta e concretiza a sua discordância. Diz-nos Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 126, a propósito da impugnação da matéria de facto: “em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.” Acrescenta a pág. 128 - 129: “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; (…) Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.” À luz deste regime importa em primeiro lugar identificar quais são os factos concretos que a Recorrente impugna nas conclusões de recurso, nos termos previstos no art.º 640.º n.º 1 al. a) do CPC, sendo apenas estes os factos que são submetidos à apreciação deste tribunal e que importa avaliar em razão da prova produzida. Verifica-se que nas conclusões do recurso a Recorrente, em todos os seus quatro pontos remete para os artigos da motivação de uma forma abrangente e genérica, neles englobando os art.º 1.º a 34.º das alegações, ou seja, a sua totalidade, já que correspondem a toda a motivação do recurso, tanto de facto como de direito, não sendo sequer feita a distinção entre a impugnação da matéria da facto e a discussão jurídica da causa. Pela forma genérica e alargada como é feita esta remissão das conclusões para a motivação do recurso, não pode considerar-se que o Recorrente cumpre com a concreta menção dos factos que tem como incorretamente julgados, para efeitos de observação do disposto no art.º 640.º n.º 1 a) do CPC, com exceção dos dois factos que concretiza nas al. A) e B) das conclusões, que entende que devem ser dados como provados. Os dois factos que o Recorrente nas suas conclusões identifica como erradamente julgados, pretendendo que sejam tidos como provados são os seguintes: A)-O Recorrente enviou as missivas de PERSI ao Recorrido. B)-O Recorrido foi interpelado a dar conhecimento da sua integração em PERSI, bem como da extinção do mesmo por falta colaboração. Uma vez que o Recorrente nas conclusões do recurso não faz a menção concreta de outros factos que devam ser tidos como provados, ou que incorretamente ficaram omissos na decisão de facto, conforme é imposição do art.º 640.º n.º 1 al. a) do CPC, conclui-se que não introduziu outra matéria de facto à apreciação do tribunal de recurso que não a enunciada, rejeitando-se no mais a impugnação da matéria de facto apresentada, como previsto na norma mencionada. Cumpre então apreciar a impugnação da matéria de facto quanto aos seguintes factos que o Recorrente pretende que sejam tidos como provados: A)-O Recorrente enviou as missivas de PERSI ao Recorrido. B)-O Recorrido foi interpelado a dar conhecimento da sua integração em PERSI, bem como da extinção do mesmo por falta colaboração. Estes factos correspondem na verdade aos dois primeiros factos que o tribunal a quoconsiderou não provados. Como meios de prova para fundamentar a sua pretensão invoca o Recorrente “as missivas que enviou” ao Executado, afirmando que cumpriu a sua obrigação de efetuar a comunicação em suporte duradouro, como mostram os doc. 2 e 3 juntos com a contestação, que não foram impugnados. O tribunal a quo apresentou a seguinte motivação quanto à decisão de facto: “O Tribunal formou a sua convicção em relação aos factos provados no teor dos documentos juntos aos autos com o requerimento executivo e com a petição e contestação de embargos. Em relação aos factos não provados tal derivou da ausência de prova sobre os mesmos. O embargante impugnou os factos alegados pelo exequente, quer a celebração do contrato quer a integração no PERSI. A prova apresentada com os articulados é meramente documental. Da documentação junta aos autos resulta apenas a emissão de cartas pelo sistema. Não logrou a exequente provar quer o efectivo envio das mesmas quer a recepção pelo executado.” Tal como foi entendido na sentença, considera-se que os documentos em questão, só por si, são insuficientes para que possa ter-se como provado que as cartas foram enviadas e recebidas pelo Executado. Não está aqui em causa avaliar neste âmbito se a comunicação foi feita em suporte duradouro, o que corresponde a uma ponderação jurídica dos factos, ou se deve presumir-se que as cartas foram recebidas por terem sido enviadas para a morada constante do contrato, uma vez que previamente a tal questão teria que estar demonstrado que aqueles documentos foram remetidos ao Executado. A verdade é que além daqueles doc. 2 e 3 juntos com a contestação, não existiu qualquer prova complementar que pudesse atestar o envio daquelas cartas pelo Banco ao Executado, sendo que os mesmos por si só também não revelam essa situação. O facto dos documentos não terem sido impugnados, mostra apenas que não é posta em causa pela parte contrária a sua existência enquanto tal e que foram elaborados pelo Exequente, mas já não permite a conclusão de que há uma aceitação do seu envio, até porque o contrário foi alegado pelo Embargante no requerimento inicial. Os doc. 2 e 3 juntos com a contestação representam dois documentos em forma de carta emitidos pelo Banco, onde se encontra identificado como destinatário o Executado, só permitindo concluir que o Exequente elaborou aquelas cartas com aquele teor. Na falta de qualquer outro elemento probatório que possa indiciar que as cartas foram efetivamente enviadas ao Executado, não pode ter-se esse facto como assente e consequentemente muito menos pode concluir-se que foram por ele rececionadas. Nestes termos, conclui-se que os meios de prova indicados pelo Recorrente não admitem a alteração da decisão da matéria de facto nos termos por ele pretendidos, improcedendo a impugnação apresentada. IV.–Razões de Direito - da (im)procedência da exceção dilatória da falta de integração da Executada no PERSI Vem o Recorrente alegar que cumpriu os procedimentos do PERSI, notificando o devedor por carta simples da sua integração e extinção do mesmo, o que considera bastante para o efeito, não impondo a expressão “suporte duradouro” que a comunicação tenha de ser feita por carta registada. A sentença sob recurso considerou que não resultou provado que o Banco comunicou ao Embargante a sua integração e extinção do PERSI, tendo por não cumpridos os deveres de comunicação impostos pelos art.º 14.º n.º 4 e 17.º n.º 3 e 4º do Decreto Lei 227/2012 de 15 de outubro, concluindo que sendo ónus da Embargada demonstrar que foi observado aquele regime, não pode prosseguir a execução. Esta questão suscitada estava dependente da procedência da impugnação da decisão da matéria de facto que não veio a verificar-se. O denominado PERSI constitui um procedimento previsto no Decreto Lei 227/2012 de 25 de outubro que veio consagrar um conjunto de “princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.” Como esclarece o preâmbulo deste diploma: “Em concreto, prevê-se que cada instituição de crédito crie um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), fixando, com base no presente diploma, procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, por um lado, possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento e o acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos e que, por outro lado, promovam a adoção célere de medidas suscetíveis de prevenir o referido incumprimento. Adicionalmente, define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor.”. Diz-nos com clareza o Acórdão do TRP de 14 de janeiro de 2020 no proc. 4097/14.8TBMTS.P1 in www.dgsi.pt : “o decreto-lei n.º 272/2012, de 25 de Outubro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2013, o qual visou impedir que as instituições bancárias, confrontadas com situações de mora ou incumprimento relativamente a contratos de crédito, pudessem imediatamente recorrer às vias judicias para obterem a satisfação dos seus créditos relativamente aos devedores que integrem o conceito de “consumidores”, tal como este é tratado pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril). O objectivo foi proteger aqueles que, na relação contratual da qual emergiram aqueles contratos, têm uma posição mais enfraquecida. Significa que após a entrada em vigor deste diploma, as instituições bancárias ficaram obrigadas a promover várias diligências relativamente a clientes bancários em mora ou incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, tendo de integrá-los, obrigatoriamente, no chamado Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) - (artigo 12.º e 14º do citado DL nº 272/2012, de 25 de Outubro), onde, como se expressa no preâmbulo “devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objectivos e necessidades do consumidor”. A instituição de crédito terá necessariamente de iniciar o PERSI, nomeadamente quando “O cliente bancário se encontre em mora relativamente ao cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito e solicite, através de comunicação em suporte duradouro, a sua integração no PERSI”. - vide artigo 14º nº 2, a).” É pacífico na nossa jurisprudência, o que as partes também não contrariam e a decisão recorrida afirma, o entendimento de que a falta de integração do devedor no PERSI por parte da instituição bancária credora, quando tal deva verificar-se, constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, suscetível de levar à extinção da instância, nos termos dos art.º 576.º n.º 2 e 578.º do CPC – neste sentido e apenas a título de exemplo, pronunciam-se os Acórdãos do STJ de 13 de abril de 2021 no proc. 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1 e de 9 de fevereiro de 2017 no proc. 194/13.5TBCMN-A.G1.S1 ambos disponíveis in www.dgsi.pt Quando no âmbito de um contrato de mútuo bancário se torna obrigatória a integração do cliente no PERSI, por estarem verificados os pressupostos que impõem tal obrigação à instituição de crédito, a sua falta obsta a que o credor venha num primeiro momento a intentar ação judicial com vista à satisfação do seu crédito, o que só está legitimado a fazer após a extinção do PERSI. Como sintetiza o referido Acórdão do STJ de 13 de abril de 2021: “O PERSI caracteriza-se por comportar três fases essenciais: uma inicial, outra de avaliação e proposta e de negociação (artigos. 14.º, 15.º e 16.º, do DL n.º 227/2012), extinguindo-se, nos termos previstos no artigo 17.º, do referido diploma. De acordo com o disposto nos artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do citado DL, a integração no PERSI e a extinção do procedimento, têm de ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro”, sem prejuízo dos requisitos exigíveis quanto ao conteúdo dessas comunicações. (…) quer a comunicação de integração no PERSI, quer a de extinção do mesmo, constituírem condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância (artigo 576, nº 2, do CPC).”. Na situação em presença incumbia ao Embargado fazer a prova da realização e receção daquelas comunicações pelo Embargante, o que não fez, pelo que os factos apurados não permitem concluir que foram observados os concretos deveres de comunicação impostos pelos art.º 14.º n.º 4 e 17.º n.º 3 e 4 do Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro. Como é evidenciado pelo Acórdão do TRP de 8 de junho de 2022 no proc. 4204/20.1T8MAI-A.P1 in www.dgsi.pt: “A omissão de integração em PERSI configura uma inobservância dos princípios e finalidades que presidiram à consagração do regime legal e do procedimento em apreço, inviabilizando a possibilidade de obter a regularização do incumprimento verificado, o que, para além de ser do interesse das partes, é de interesse público, por afastar dos Tribunais situações que o legislador entendeu não deverem chegar, sem mais, àquela tutela.” Em face do exposto, não merece censura a sentença que concluiu no sentido da verificação da exceção dilatória da falta de integração do Executado no PERSI. - do abuso de direito Refere o Recorrente que a alegação de falta de cumprimento no PERSI é um abuso de direito por parte do Executado que notificado pelo Baco para regularizar a sua dívida e da resolução do contrato não mostrou vontade de propor a sua regularização, alterando a sua residência “com elevada probabilidade de ter mesmo deixado o país”. O invocado abuso de direito corresponde a uma questão nova suscitada pelo R. apenas agora em sede de recurso, nunca o tendo feito anteriormente no processo, designadamente na oposição que apresentou. O recurso tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes e objeto de apreciação pelo tribunal a quo. Não é controvertido e decorre do art.º 627.º nº 1 do CPC que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões anteriormente apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido, e não a pronúncia sobre questões novas- vd. neste sentido, entre outros, e apenas a título de exemplo, o Acórdão do TRL de 14 de fevereiro de 2013, no P. 285482/11.6YIPRT.L1-2 in www.dgsi.pt Como nos diz Brites Lameiras, in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, pág. 16: “o recurso não visa um segundo julgamento, mas apenas um reexame, por um tribunal superior, do julgamento proferido por um tribunal inferior, e para corrigir eventual erro de que enferme a decisão por este último tomada.” Ainda assim, uma vez que se trata de uma exceção de conhecimento oficioso, sempre se afirma sumariamente que o Recorrente não tem qualquer razão, suscitando esta questão sem que a mesma tenha qualquer suporte nos factos provados, sem invocar qualquer norma jurídica e com uma ligeireza de fundamentação, de uma forma que não pode deixar de considerar-se displicente. O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no art.º 334.º do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Está em causa o exercício anormal de um direito em termos reprovados pela lei, ou seja, é respeitada a estrutura formal do direito, mas violada a sua afetação substancial, funcional ou teleológica. Não é qualquer conduta que é suscetível de integrar o conceito de abuso de direito, já que a norma em questão impõe que o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Dizem-nos a este propósito, com grande propriedade, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, pág. 217, em anotação a esta norma: «Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).» O Acórdão do STJ de 15 de dezembro de 2002, in www.dgsi.pt refere a este respeito: “a teoria do abuso de direito serve, como se sabe, de válvula de segurança para casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação, geral e abstracta, de normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.” Retomando o caso concreto, não vê como o facto do Executado vir alegar a falta de cumprimento pelo Banco dos procedimentos PERSI pode ser qualificado como um comportamento muito censurável da sua parte, suscetível de ser considerado no âmbito do abuso de direito, por exceder manifestamente os limites da boa fé, apenas por lhe ter sido comunicado o incumprimento do contrato e solicitado o pagamento da dívida, tendo corrido procedimento de injunção no qual foi aposta fórmula executória, sem que aquele tenha entrado em contacto com o Banco ou manifestado vontade de regularizar a dívida, quando é o próprio Banco que não demonstra ter cumprido com os procedimentos impostos pelo legislador naquele diploma legal, em proteção dos devedores. Em conclusão, os factos apurados não nos permitem considerar abusiva a alegação do Executado da falta de cumprimento das obrigações do Banco relativamente à sua integração e extinção do PERSI. VI.–Decisão: Em face do exposto, julga-se o recurso interposto pela Recorrente totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pela Recorrente. Notifique. * Lisboa, 21 de março de 2024 Inês Moura - (relatora) Laurinda Gemas - (1ª adjunta) José Manuel Monteiro Correia - (2º adjunto) (assinado eletronicamente) |