Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
207/23.2JELSB.L1-9
Relator: NUNO MATOS
Descritores: CORREIO DE DROGA
REGIME ESPECIAL PARA JOVENS DELIQUENTES
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
MEDIDA DA PENA
NÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
I - Quando está em causa o transporte de cerca de 2,5 kg de cocaína proveniente do ..., estando assente que a arguida é um “correio de droga”, mostra-se irrelevante a indagação sobre o grau de pureza da droga.
II - A idade da arguida, isoladamente, não constitui factor determinante da atenuação especial da pena (por via da aplicação do regime especial para jovens previsto no DL nº 401/82, de 23-09), apenas podendo relevar como atenuante de carácter geral.
III - Quando o tribunal de 1.ª Instância, em face da prova, decide de determinada forma, sem que se perceba da decisão proferida que o tribunal tenha ficado com uma dúvida razoável quanto à ocorrência de determinado facto (nomeadamente, quanto à autoria dos factos pelo arguido), não há que convocar a aplicação do princípio do in dubio pro reo.
IV - O tribunal de recurso apenas deverá intervir, alterando o quantum da pena concreta, quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
V - Mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do quantum da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar.
VI - A não suspensão da execução da pena de prisão nos casos, como o dos autos, de “correio de droga” transatlântico (que transporta cerca de 2,5 kg de cocaína dissimulados numa mala de viagem) mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa as exigências de prevenção geral positiva e negativa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Por acórdão proferido no processo supra identificado, em 29/11/2023, foi decidido julgar a acusação totalmente procedente, por totalmente provada, e, em consequência (transcrição):
“a) Condenar a arguida AA, em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo Art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabelas I-B anexa, na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão efectiva;
b) Condenar a arguida AA na pena acessória de expulsão do território nacional, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do Art.º 34.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 e Art.º 151.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04/07; (…)”.
2. Inconformada, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, terminando a sua motivação com a extracção das seguintes conclusões (transcrição):
1.ª A decisão de não deferir o requerimento da Arguida, constante da sua contestação, de que fosse realização exame pericial para determinar o grau de pureza do produto estupefaciente que transportou e, por outro lado, decidir que – com base em regras da lógica e da experiência – tal grau é com certeza elevado, o Tribunal «a quo» colocou-se numa (desnecessária) situação de dúvida que resolveu contra a Arguida, numa clara violação do princípio da presunção da inocência e do «in dubio pro reo».
2.ª Tal decisão deve ser revogada e substituída por outra que, aplicando tais princípios constitucionais, consagrados no art.º 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, presuma favoravelmente à Arguida que o produto tinha um baixo grau de pureza;
3.ª À Arguida que tinha 18 anos à data da prática do crime, confessou-o integralmente e sem reservas, demonstrou arrependimento e foi levada a praticá-lo pelo convencimento de pessoas que se aproveitaram da sua situação de miséria e desespero deve ser aplicada uma pena especialmente atenuada por aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro;
4.ª A «gravidade do ilícito» não pode constituir, por si, fundamento para um juízo negativo, pois o que releva para este efeito será um juízo de prognose sobre a personalidade e o desempenho futuro da personalidade do jovem, sem qualquer consideração autónoma dos factos, que apenas deverão contribuir para aquele juízo no ponto em que revelam ou neles se manifeste uma projecção de personalidade especialmente desvaliosa. Tal como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, transcrito no “corpo” destas alegações;
5.ª Pelo que a decisão profligada de não aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro deve ser revogada e substituída por outra que o aplique;
6.ª Não ficou provado no presente processo que a Arguida tenha participado na decisão acerca de quais as quantidades que iria transportar;
7.ª Ou sequer que tenha tido conhecimento dessas mesmas quantidades;
8.ª Tais circunstâncias – não provadas – têm de ser analisadas segundo o princípio constitucional do «in dubio pro reo»;
9.ª O que equivale a dizer que a Arguida não poderia ser prejudicada ou punida mais severamente por um facto – a concreta quantidade transportada – que não se sabe sequer se estava no seu controlo;
10.ª Sendo certo que quer o senso comum quer as normas da experiência apontam claramente no sentido de não ser escolha do “correio de droga”, miserável desesperado que normalmente é, a concreta quantidade que vai transportar;
11.ª Além de não ter escolhido a quantidade que lhe deram para transportar, a Arguida tem todas as atenuantes a que o legislador deu relevância:
- A Arguida confessou os factos – ponto 12;
- Não tem antecedentes criminais – ponto 11;
- Durante a reclusão (em medida de coação de prisão preventiva) a Arguida tem manifestado um comportamento adequado – ponto 14;
- Mantém contacto regular com familiares e amigos, ou seja, continua, mesmo em reclusão e com todo o Atlântico a separá-la das pessoas que conhece, a revelar boa inserção social – ponto 14;
12.ª Pelo que sendo a moldura penal do crime que foi condenada situada, como limite mínimo nos 4 anos de prisão, essa mesma pena, ou muito próximo dela, deveria ter sido aplicada no caso concreto, mesmo que não fosse aplicada – como supra defendemos dever ser – uma atenuação especial da pena por aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro
13.ª A suspensão da execução de pena de prisão não superior a cinco anos não é uma mera faculdade do tribunal, mas sim um poder/dever que obriga sempre a verificar se estão preenchidos os respetivos requisitos;
14.ª De acordo com o estabelecido no art.º 50º do Código Penal, tribunal deve suspender a pena de prisão se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;
15.ª A arguida revelou arrependimento, não possui antecedentes criminais, aceitou fazer o transporte da cocaína apenas por se encontrar em situação de pânico económico, apresenta situação familiar estável e possui hábitos de trabalho. Tem, portanto, todas as condições para poder beneficiar de um juízo de prognose favorável que leve à suspensão da pena de prisão;
16.ª A decisão profligada é injusta e violadora pelo menos do disposto no regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, nos art.ºs 50º, 70º e 71º do Código Penal e 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Face ao exposto e com o muito que Vossas Excelências suprirão, deverá o Acórdão proferido pelo Tribunal «a quo» ser revogado e substituído por outro que, embora mantendo a condenação, substitua a pena aplicada por outra, especialmente atenuada nos termos do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, no limite mínimo dessa moldura penal ou muito próximo dele, e suspensa na sua execução, como é de J U S T I Ç A ! ! !”.
3. Admitido o recurso, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, na qual pugnou pela rejeição do recurso, por manifesta improcedência, mantendo-se o acórdão recorrido, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):
1º- A Recorrente interpõe o presente recurso, por não se conformar com o Acórdão de fls.172 a 194, datado de 29/11/2023, que o condenou na pena de 4 anos e 10 meses de prisão efectiva, pela prática, de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 21.º/1 e 25.º, al. a) do DL 15/93 de 22.01, por referência a tabela I-B anexa ao mesmo diploma, por discordar da medida concreta da pena; segundo o mesmo, o Tribunal “a quo” devia ter determinado o exame pericial requerido, para se determinar o grau de pureza do estupefaciente; mais devia, ter aplicado a atenuação especial da pena, por força da sua idade e do previsto no DL 401/82 de 23.09; ou então, devia reduzir a pena de prisão ao seu limite mínimo (4 anos) e a mesma ser suspensa na sua execução, nos termos do previsto no art.º 50.º do CP.
2º- Quanto à primeira questão, tendo em conta que o despacho de indeferimento da diligência de prova, foi notificado à recorrente e seu mandatário, no dia 23.11.2023, que não arguiu a nulidade (sanável) do mesmo, nos termos do previsto no art.º 120.º/2 al. d) do CPP.
3º- O prazo para recorrer do despacho de indeferimento terminou em 26.12.2023, e o recurso foi intentado em 28.12.2023 - sem cumprimento do previsto no art.º139.º/5 e 6 do CPC ex vi art.º 4.º do CPP – pelo que o mesmo é extemporâneo quanto a esta questão, por se mostrar ultrapassado o prazo legal previsto no art.º 411.º/1 al. a) do CPP.
4º- A recorrente alega que o Tribunal “a quo” ao rejeitar a perícia requerida e depois ter concluído que o produto tem com certeza um elevado grau de pureza, decidiu uma dúvida contra a arguida, o que, em seu entendimento, consiste numa violação direta do princípio do «in dubio pro reo», consagrado no art.º 32.º/2 da CRP.
5º- In casu, a arguida foi acusada e condenada de “ …da revisão efectuada à bagagem de porão da arguida, foram detectadas, no interior da mala que transportava no porão, (…), dissimulada na estrutura, uma embalagem de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 2.552,200 gramas;”[ponto 3 dos factos provados], proveniente do ... para ..., por via aérea e intercontinental, estando em causa o crime previsto no art.º 21.º da DL 15/93, de 22.01.
6º- Quando não está em causa a toxicodependência nem a detenção para consumo - como é o caso dos autos - o grau de pureza da droga e o conceito de “dose média individual diária” é irrelevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, pelo que não se mostra necessário o exame pericial, embora possa ser um elemento relevante para determinar a proximidade ao produtor, porém não é de determinação fundamental (vide jurisprudência citada).
7º- Ademais, da leitura do acórdão (factualidade provada e motivação da matéria de facto e direito) constata-se que, o Tribunal “a quo” não presumiu a pureza do produto estupefaciente pois não indicou o número de doses; também não teve qualquer dúvida sobre a factualidade e não decidiu contra a recorrente.
8º- Por outro lado, a tese perfilhada pela recorrente só lhe é prejudicial, ante a possibilidade de puder agravar a ilicitude na determinação concreta da medida da pena; sendo certo que, o Tribunal “a quo” assumiu um entendimento jurídico que se revela mais favorável á recorrente.
9º- Da leitura do texto da decisão recorrida apura-se que a fundamentação de facto sustenta a condenação sofrida e, não resulta da mesma, de forma clara, a violação do princípio do in dubio pro reo (art.º 32.º/2 da CRP);
10º- o Tribunal “a quo”, não teve quaisquer dúvidas quanto à ocorrência dos factos que considerou provados sendo, pois, irrelevantes as dúvidas que a recorrente, na sua interpretação subjetiva, entende que deveriam subsistir a propósito da matéria fáctica que sustenta a sua responsabilização criminal.
11º- Quanto à segunda questão, o Ministério Público [à semelhança do acórdão recorrido], entende que, em concreto, não é de aplicar o regime especial penal para jovens delinquentes, previsto no DL 401/82 de 23.09, pois, não obstante a idade da recorrente na data dos factos (18 anos), existem razões fortes para duvidar da sua possibilidade de reinserção, pois, a mesma não assumiu, integralmente, o mal praticado dado como provado, atenta a justificação que apresentou para a prática de ilícito.
12º- Neste quadro, consideramos que, a idade da recorrente, desacompanhada de qualquer outra atenuante de relevo, não perspectiva um juízo de prognose favorável e positivo de que uma eventual atenuação especial da pena propicie sérias vantagens para sua reintegração social, pelo que, bem andou o Tribunal “a quo” ao não aplicar o regime estabelecido no DL nº 401/82, de 23.09.
13º- Como terceira questão recursiva, a recorrente não concorda com a medida concreta da pena, por entender que pena aplicada deve ser reduzida, em face da sua confissão integral e sem reservas (art.º 344.º do CPP) e pelo facto que a mesma ignorava a quantidade que transportava o que, na sua tese é relevante para a dosimetria da pena.
14º- Também aqui não assiste razão à recorrente, uma vez que, não resulta do ponto 12 dos factos provados, nem da motivação da sentença a confissão integral e sem reservas (vide pág.7, § 2º e 3º, pág.8 § 3.º a 5º, pág. 8, §1º e 2º, pág. 14, § último, do acórdão), sendo certo que, a mesma não impugnou esta matéria de facto, nos termos do previsto no art.º 412.º/3 e 4 do CPP, pelo que, se deve ter como assente toda a factualidade plasmada no acórdão recorrido.
15º- Acresce que, o Tribunal “a quo” apenas deu como provado que, a recorrente reconheceu os factos de que se encontra acusada de forma livre e sem qualquer coacção, admitindo que aceitou deter, guardar e transportar a substância estupefaciente apreendida, durante uma viagem aérea, intercontinental, transatlântica, no interior da mala que consigo trazia; este reconhecimento constitui confissão parcial e com reservas.
16º- Também, foi dado como provada a quantidade de cocaína transportada pela recorrente (ponto 3) e que esta sabia que, era produto estupefaciente e que não podia fazer tal transporte, mas, mesmo assim concretizou tal conduta (pontos 1, 2, 3, 5, 6, 9 e 12), factualidade que se mostra assente.
17º- In casu, o Tribunal “a quo”, quer no exame crítica da prova, quer na motivação da sentença, não violou as regras de produção e valoração da prova, nem as regras de experiência comum e os critérios de normalidade.
18º- Já na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal “a quo” teve em consideração a confissão parcial, apesar de não valorar o alegado “desconhecimento da quantidade de produto estupefaciente transportada”, termos em que, não existe qualquer motivo para a alteração da medida concreta da pena, que foi correctamente determinada.
19º- Quanto à quarta questão o Ministério Público defende que, o Tribunal “a quo”, na determinação da medida concreta da pena, teve em conta a culpa do agente (art.º 40.º/2 do CP), as exigências de prevenção (geral e especial), as finalidades da punição (Cfr. art.º 71.º e 70.º do CP) e os princípios de proporcionalidade, necessidade, adequação e subsidiariedade (art.º 18.º/CRP)
20º- No acórdão recorrido, o Tribunal “a quo” sopesou o circunstancialismo da ação, a gravidade objetiva dos factos, a culpa evidenciada e o que contra e a favor do recorrente, tendo em vistas as necessidades de prevenção, geral que se fazem sentir, e bem assim a moldura penal abstrata da infração - 4 a 12 anos de prisão - tornam adequada, pela observância dos critérios definidores dos artigos 40.º e 71.º do CP, a pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão a que a recorrente foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21°/1 do DL 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-B anexa a este diploma
21º- A pena concretamente aplicada dá resposta cabal aos fins da punição, à culpa do recorrente e respeita os princípios da prevenção geral e especial ressocializadora, [as expectativas da comunidade sobre a reafirmação da validade das normas violadas e evitando a prática de novos crimes e a ressocialização do agente] pelo que, o acórdão recorrido não merece qualquer reparo ou censura e, em consequência, deve o recurso improceder, nesta parte.
22º- Fica, pois, à partida arredada a possibilidade de suspender a pena na sua execução, face ao disposto no art.º 50.º/1, do CP.
23º- Em síntese, não existe, assim, qualquer motivo atendível para alterar, como pretende a recorrente a pena fixada, uma vez que, o Tribunal “a quo” julgou corretamente e operou uma sensata subsunção jurídica e aplicação do direito, mormente quanto à determinação da medida da pena, por se manifestar justa, proporcional e adequada à gravidade da conduta do(a) recorrente e à medida da sua culpa.
24º- Assim, o Acórdão recorrido não viola e/ou mal interpreta o art.º 32.º da CRP, os art.º 40º, 50.º, 70.º, 71.º, 72.º e 73.º do CP, nem o DL 401/82 de 23.09, devendo o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência, nos termos do art.º 420.º/1, al. a), do CPP.
Nestes termos, julgamos que o presente recurso não merece provimento devendo ser considerado improcedente e mantida na íntegra a decisão recorrida.
Porém, Vª. Exas. como sempre, farão a costumada * JUSTIÇA!”.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer e, louvando-se na resposta da Exmª. Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, conclui pela improcedência do recurso e manutenção do acórdão recorrido.
5. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do CPP, não foi oferecida resposta ao parecer do Ministério Público.
6. Nada obsta ao conhecimento do recurso.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objecto do recurso.
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do tribunal superior (art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (sendo certo que os recursos servem para apreciar questões e não razões e não visam criar decisões sobre matéria nova), excetuadas as questões de conhecimento oficioso.
As questões de conhecimento oficioso prendem-se com (i) a detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10- 95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”) e (ii) a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP.
Face às conclusões extraídas pela Recorrente da motivação apresentada, as questões a conhecer são as seguintes:
- Indeferimento do requerimento de exame pericial sobre o grau de pureza do produto estupefaciente apreendido e posterior consideração da existência de elevado grau de pureza, com base em regras de lógica e experiência, em violação do princípio in dubio pro reo;
- Não aplicação do regime especial para jovens (DL nº 401/82, de 23-09);
- Dosimetria da pena concretamente aplicada;
- Não suspensão da pena de prisão.
2. Enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação, tal como constam do Acórdão sob recurso.
“ (…)
A) Na sequência do julgamento resultaram, com pertinência e relevância para a boa decisão da causa, os seguintes:
Factos Provados
1. No dia 01 de Maio de 2023, a arguida AA, natural do ..., desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, proveniente de Recife (Brasil), no voo TP…, com destino a esta cidade;
2. Pelas 11 horas e 25 minutos, a arguida apresentou-se nos serviços da Alfândega, no corredor “verde/nada a declarara”, tendo sido seleccionada para revisão de bagagem e revista pessoal;
3. Aquando da revisão efectuada à bagagem de porão da arguida, foram detectadas, no interior da mala que transportava no porão, do tipo “trolley”, de cor …, de marca “…”, dissimulada na estrutura, uma embalagem de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 2.552,200 gramas;
4. Nessa altura, a arguida tinha, igualmente, na sua posse os seguintes objectos que lhe foram também apreendidos;
- 1 (um) telemóvel, da marca “…”, de cor cinza antracite, com uma capa transparente, com os IMEI n.º ... e n.º ..., tendo inserido um cartão "SIM", das operadoras "...", com o número ...;
- 11 (onze) notas, emitidas pelo Banco Central Europeu, no valor total de €560,00 (quinhentos e sessenta euros);
- 1 (uma) nota de valor facial de 5,00BRL (cinco reais brasileiros);
- 1 (um) cartão bancário "Gold", n.º …, sem identificação do titular;
- 1 (um) cartão bancário "Gold" n.º …, sem identificação do titular;
- 1 (uma) etiqueta de bagagem, emitida pela "TAP", com o número …, com destino a Lisboa, na data de 30 de Abril de 2023, que se encontrava aposta na mala, da marca "…", com o nome "…" e o peso de 12 (doze) quilos;
- 1 (um) talão de embarque da companhia aérea "TAP", em nome de "...", do vooTP..., com partida a 30 de Abril de 2023, de Recife Basil e destino Lisboa;
- 1 (um) comprovativo de câmbio, emitido em nome de AA, no valor de €560,00 (quinhentos e sessenta euros);
- 3 (três) comprovativos de reserva "Booking.com", em nome de AA;
- 1 (um) comprovativo de assistência em viagem, em nome de AA;
- 1 (um) comprovativo de viagem com a origem em Salvador e destino em Manaus, em nome de AA;
- 1 (um) comprovativo de reserva de viagem da companhia aérea "...", com o número ...", com origem em Manaus e destino em Brasília, em nome de AA;
- 1 (um) comprovativo de reserva de viagem com o código "…", com origem em Recife e destino em Lisboa;
5. A arguida conhecia perfeitamente a natureza e características estupefacientes da cocaína que lhe foi apreendida, que transportara por via aérea, para ser, por si, entregue a terceiros, para ser comercializada, pretendendo obter montante pecuniário de €4.000,00 (quatro mil euros);
6. Produto esse que a arguida aceitou transportar por, para tanto, lhe ter sido prometida tal quantia pecuniária;
7. A quantia apreendida era parte do lucro que ia obter com o transporte de cocaína, custeando as despesas;
8. O telemóvel apreendido foi utilizado pela arguida nos contactos que estabeleceu para concretizar o transporte da cocaína apreendida;
9. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização de cocaína lhe eram proibidos e punidos por lei;
10. Acresce ainda que, a arguida é natural e nacional da ..., residindo e trabalhando no país da sua naturalidade, não possuindo quaisquer ligações familiares e/ou profissionais em Portugal só se encontrando em Portugal para transportar cocaína;
Mais resultou provado que:
11. Do certificado de registo criminal da arguida nada consta, bem como "não consta decisão judicial condenatória com trânsito em julgado" em nome da arguida na certidão de antecedentes criminais emitida pela Polícia Federal;
12. A arguida reconheceu os factos de que se encontra acusada, livremente, sem qualquer reserva, nem coacção, embora de forma fragmentada, denotando um fraco sentido crítico, em face do discurso autocomplacente, desculpabilizante e autocentrado, revelador de ausência de interiorização do desvalor da sua conduta;
13. A arguida beneficia de uma imagem adequada, integrada e responsável no seio das suas relações familiares e pessoais, gozando de apoio familiar;
14. Do relatório social, além do mais, consta a seguinte factualidade, cujo teor se dá integralmente por reproduzido:
- "a arguida, no presente com dezanove anos de idade, é natural da cidade ..., município do Estado da …, localizado na zona … do .... A vivência da sua infância e adolescência ocorreu no seio da família de origem, constituída pelo casal parental e seu irmão mais velho nove anos, sendo a arguida a mais nova da fratria. O núcleo familiar então constituído residia em habitação social inserida num meio social indiferenciado, por significativas dificuldades económicas na sustentabilidade familiar. A subsistência familiar tinha como suporte económico os rendimentos obtidos pelo desempenho laboral dos progenitores, em que o pai trabalhava como ... e a mãe como … para …;
- apesar da ambiência no seio da família nuclear ser estável, o casal parental veio a separar-se na fase da adolescência da arguida, contava a mesma dezasseis anos de idade, na origem da separação estiveram questões de natureza extraconjugal;
- nessas condições a sua inserção escolar, no ensino secundário decorreu no município de ..., em ..., vindo a concluir o 3.º ano do ensino médio, aos dezasseis anos de idade. Nessa contextualização, a arguida, na sequência da separação dos seus pais, passou a integrar o agregado familiar de uma tia paterna. A partir de então a sua prossecução no meio escolar foi condicionada de algum modo, em prol da sua necessidade em lhe ser garantida a sua subsistência. Para concluir poder concluir o 3.º ano do ensino médio, tinha de trabalhar em funções de "...", designadamente a tomar conta do … de idade;
- nesse período do seu crescimento arguida, ainda adolescente, a arguida deparava-se com dificuldades na gestão das despesas correntes. A vivência familiar, em casa da tia paterna, foi assinalada por uma significativa desvinculação. Nesse período da sua vida, dos dezasseis aos dezoito anos de idade, o seu processo de socialização decorreu num ambiente familiar pouco afectivo, não dispondo a família de uma situação económica razoável;
- ainda nesse período, a arguida assinalou o seu envolvimento no consumo de substâncias psicoativas, "maconha", ou seja, "canábis sativa", por volta dos dezoito anos de idade. E este seu comportamento toxicodependente, teve por base a sua curiosidade em experimentar o consumo de “maconha”. O seu comportamento adito na droga referida não alcançou níveis maior incidência, desde então;
- em termos da sua situação sociofamiliar, a tia paterna da arguida ficou desempregada da actividade comercial, como vendedeira de …, por conta de outrem, no mercado municipal. Nessas circunstâncias, a sua situação ficou comprometida e a arguida já não podia beneficiar de qualquer contributo financeiro, como até ali se passava;
- do ponto de vista emocional-afectivo, vivenciou uma relação de namoro, por volta dos dezasseis anos de idade, por volta dos dezoito anos de idade, passou a coabitar com o namorado. Este relacionamento perdurou cerca de 3 anos, até viajar para Portugal, em 01.05.2023;
- na data dos factos subjacentes aos presentes autos, a arguida encontrava-se a viver em casa arrendada, na morada indicada nos autos, apartamento tinha sido arrendado pela mãe do seu namorado;
- a arguida deu entrada no Estabelecimento Prisional de Tires em 02.05.2023, à ordem dos presentes autos. Em meio prisional tem sabido responder às solicitações institucionais e tem mantido um comportamento globalmente adequado. No decurso da actual situação de prisão, tem mantido contactos telefónicos e por videochamada com namorado, que se encontra preso preventivamente, à ordem do processo n.º 208/23.0JELSB. A arguida estabelece e mantém o contacto com o namorado;
- no que concerne ao futuro, a arguida apresenta propósitos de regressar ao ..., retomar os estudos no ensino secundário, e com a perspectiva melhor se preparar para a sua inserção no mercado de trabalho, pretendo propor-se à frequência do curso técnico, do sector terciário, como …. A situação jurídico-penal é vivenciada pela arguida com grande constrangimento, demonstrando alguma apreensão pelas passíveis repercussões que possam advir da situação jurídica em que se encontra indiciada, por questões de ordem financeira. A situação jurídico-penal é vivenciada pela arguida com grande sofrimento. Apresenta ideação depressiva e choro. Reconhece a sua conduta como inadequada, evidenciando capacidade de autocrítica;
- a arguida passou por um processo de socialização, cujo núcleo familiar clássico, de seus progenitores não se configurou estável e proporcionador ao amadurecimento. Desde adolescência, ainda com dezasseis anos de idade, seus pais separaram-se, vendo-se confrontada com a necessidade de passar a viver em casa de uma tia paterna, nesse período da vida da arguida, em 2004. O estilo de vida que sua tia paterna lhe apresentou não se revelou suficientemente organizado e com condições à sua estabilidade emocional afectiva. Dependente no consumo de substâncias psicoativas, nomeadamente "maconha" marcou o inicio do estado adulto da arguida, a qual no decurso do seu trajecto pessoal, profissional e familiar revelou algumas competências, que não ganharam secundariedade, em grande parte pelo facto de ter sido deslocada da casa dos pais, ainda adolescente, com dezasseis anos de idade, sem que tivesse condições para poder usufruir da estabilidade da sua actividade académica e, por sua vez, da inserção na vida activa. Além disso, afigura da tia paterna surge como uma pessoa desprovida de sentimento fraterno. O sentimento de desprotecção e alguma insegurança em determinados períodos da sua vida, nomeadamente dos dezasseis anos em diante, constituíram-se como factores desestruturantes na criação de condições à estabilidade da sua vida pessoal e familiar. A sua ligação amorosa anteriormente ao estado adulto, o ter continuado esse relacionamento, vindo a coabitar aos dezoito anos de idade, com o namorado não se constituíram suficientes a inverter um estilo de vida antissocial, sendo a situação jurídico-penal vivenciada pela arguida com grande constrangimento”.
*
B) Factos não Provados:
Inexistem.
*
C) Motivação da decisão de facto:
O Tribunal fundou a sua convicção quanto à matéria de facto provada pelo princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, analisando dialecticamente os meios de prova que teve ao seu alcance e procurando harmonizá-los e confrontá-los criticamente, entre si, de acordo com os princípios da experiência comum, de lógica e razoabilidade, pois, nos termos do Art.º 127.º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, inexistindo, portanto, quaisquer critérios pré definidores do valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei dispuser diferentemente (juízos técnicos), assim, alicerçou-se a convicção do Tribunal na inteligibilidade e análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, socorrendo-se das regras da experiência comum, da lógica e da razoabilidade, baseando-se:
- nas declarações da arguida, a qual reconheceu os factos de que se encontra acusada de forma livre e sem qualquer coacção, admitindo que aceitou deter, guardar e transportar a substância estupefaciente – que foi apreendida – durante uma viagem aérea, intercontinental, transatlântica, no interior da mala que consigo trazia.
No que tange à afirmação por parte da arguida, no sentido que não sabia qual o peso da cocaína que aceitou (e sabia) transportar, não só tal circunstância é inócua para a demonstração do tipo de crime pelo qual a arguida se encontra acusada, na medida em que, o crime de tráfico de estupefacientes na sua demonstração típica, quer na dimensão objectiva, quer subjectiva, não depende da quantidade de produto estupefaciente, e inexiste qualquer dúvida que a arguida deteve, guardou e transportou produto estupefaciente com vista a ser entregue a terceiro, cujo desiderato é a sua comercialização. Mais inexiste qualquer dúvida que a arguida sabia que transportava, nas citadas circunstâncias, produto estupefaciente, o que, aliás, a mesma confessa.
Sem descurar que, a mala, onde foi acondicionada a cocaína, foi entregue à arguida, e na posse desta permaneceu até embarcar no voo, ou seja, guardando-a, puxando-a e manuseando-a, tendo perfeita noção do peso da mesma — veja-se que a mala em causa nem é de estrutura rígida, cfr. fotogramas a fls. 37 e 38, logo mais maleável, manipulável e objectivamente permitindo uma maior percepção do peso não sendo minimamente crível que a arguida, atendendo ao tempo em que teve na sua posse a mala, os movimentos que com a mesma teve fazer (desde levá-la até ao aeroporto, fazer o check-in e embarcar no avião) e o facto de a mala lhe ter sido entregue vazia – sem qualquer objecto, que não os 2.552,200 gramas de cocaína – e não sendo de estrutura rígida, permite uma percepção mínima do peso que a mesma transportava na estrutura, dois quilos e meio de cocaína, veja-se igualmente o tamanho, as dimensões e o volume da embalagem de cocaína (cfr. fotogramas a fls. 39).
Mais é irrelevante para a demonstração dos factos praticados pela arguida o grau de pureza da cocaína que aceitou transportar, atendendo à quantidade e ao destino da mesma, sendo certo que, dizem as regras da experiência comum e da lógica que a cocaína chega ao continente europeu em elevado estado de pureza, sem ter sido sujeita a corte, pois, o que se pretende é a sua maximização quer de quantidade, quer de obtenção de proventos económicos aquando do fraccionamento em doses individuais para serem vendidas aos consumidores.
Na verdade, a factualidade objectiva – o transporte e detenção dos dois quilos, quinhentos e cinquenta e dois gramas, vírgula duzentos (2.552,200 gramas), de cocaína, nas circunstâncias e nos moldes acima descritos, e dados como provados –, resultou das declarações, neste segmento confessórias, prestadas pela arguida.
No entanto, tal reconhecimento em termos de elementos objectivos foi concomitantemente acompanhado de um discurso de autovitimização, autocomplacente e desculpabilizante, não denotando a arguida qualquer sentido crítico para com a sua conduta, que desvaloriza e autocentra a sua decisão nos seus interesses e nas suas necessidades.
Pois, não obstante, constar do teor ínsito ao seu relatório social que a mesma "reconhece a sua conduta como inadequada, evidenciando capacidade de autocrítica", a verdade é que, essa sua apreensão centra-se nas consequências pessoais que se encontra a vivenciar, na sua reclusão e nos seus sentimentos, não denotando a arguida comportamentos exteriores concludentes com interiorização do desvalor da conduta e da gravidade dos actos que decidiu praticar, que, aliás, a arguida desvaloriza, não revelando pensamento consequencial.
Com efeito, procura a arguida alijar a responsabilidade e autodeterminação da sua vontade criminosa, quer, por um lado, na sua frágil situação económica – estava desempregada e vivenciava dificuldades monetárias – quer, no facto de não ter suporte por força da pandemia.
Mais negou a arguida que o telemóvel fosse um meio de comunicação essencial na entrega da cocaína que transportava, não se compreendendo como é que tal ia ser executado em ... sem precisamente esse contacto telefónico ser efectuado, logo crucial para a concretização da entrega, aliás, a arguida, relutantemente, quando confrontada com qual inconsistência, acaba por admitir que foi contactada por essa via aquando a entrega da cocaína no ..., logo meio crucial na execução dos factos criminosos.
Na realidade, a arguida revela um discurso autocentrado e, consequentemente, denota um fraco sentido crítico em relação à gravidade do crime por si cometido e às consequências que do mesmo advêm para terceiros.
Veja-se que a arguida, pese embora reconheça, em parte, os factos pelos quais se encontra acusada e acima dados como provados, procura alijar a sua responsabilidade, escudando-se na sua difícil situação familiar e profissional, para além de clamar que só adquiriu consciencialização da gravidade do seu comportamento após a sua detenção, o que denota pouco sentido crítico, como também não se afigura minimamente crível que a arguida não tenha a percepção criminosa subjacente à detenção e transporte, ainda para mais num voo transatlântico, de substâncias estupefacientes, aliás, só se compreende a necessidade de dissimular tais embalagens na estrutura de uma mala com a plena consciência do desvalor criminal da sua conduta.
No que concerne à situação económica, familiar e social da arguida foram tidas em consideração as declarações da arguida, as quais se mostraram objectivamente plausíveis e consentâneas com a realidade vivencial daquela, como também foram as suas declarações corroboradas pelo teor do relatório social, a fls. 153 a 155 verso, cujo conteúdo igualmente se ponderou, permitindo igualmente a inequívoca demonstração da total ausência de qualquer ligação a território nacional, o que, aliás, a arguida expressamente reconhece (cfr. cópia do passaporte da arguida a fls. 31 a 33).
E quanto a estas aspectos de inserção social e familiar, igualmente se teve em consideração os depoimentos prestados pelas testemunhas BB, CC e DD, respectivamente, mãe, companheira do irmão e irmão da arguida, enfatizando o amparo familiar de que a arguida beneficia e a sua situação profissional de desemprego.
No que se refere ao dolo o mesmo baseia-se na matéria de facto provada e nas regras da experiência comum, que atentos tais meios de prova permitem concluir que ao agir da forma descrita a arguida não podia deixar de saber as características estupefacientes da substância que detinha e transportava e que tal detenção lhe estava vedada por lei, bem como estava vedada a venda, o transporte, a cedência e a entrega a outrem de produtos estupefacientes, como é a cocaína, do que a arguida estava plenamente ciente.
Ponderou-se igualmente o teor vertido no auto sumário de entrega por detenção de outra pessoa, de fls. 2 a 8 (quanto à hora, data e local aí devidamente discriminados), o teor do teste rápido e de pesagem, de fls. 9, a análise da reportagem fotográfica de fls. 37 a 39, o teor do auto de apreensão, constante de fls. 12 a 13, e conteúdo vertido nos bilhetes electrónicos (passagens aéreas e reservas) de fls. 14 a 30 e 36, de fls. 34 consta a nota de câmbio e de fls. 35 a etiqueta da bagagem, atinente à factualidade dada como provada, conjugados ainda com as declarações prestadas pela arguida, as quais confirmaram, em termos objectivos, na íntegra o substrato factual probatório ínsito a tais meios de prova de índole documental.
Teve-se ainda em consideração o conteúdo vertido no relatório de exame de índole pericial levado a cabo pelo Laboratório de Polícia Científica de fls. 96 dos autos (cfr. original a fls. 136), no que tange à natureza e à quantidade de estupefaciente da substância apreendida, sendo que o conteúdo de tal exame não foi impugnado, nem suscitada a sua falsidade ou a sua falta de rigor técnico-científico, para além de ter sido igualmente sustentado pelas declarações prestadas em audiência pela arguida, inexistindo qualquer dúvida no sentido que a substância apreendida à arguida era cocaína e na quantidade demonstrada.
No que tange à destinação quer do telemóvel, quer da quantia pecuniária apreendida resultou cabal e indubitavelmente demonstrado que tais objectos estão relacionados com a execução do crime, de forma essencial, dado que as quantias monetárias se destinam ao custear de despesas intrínsecas à viagem internacional, e o telemóvel, o único na esfera de disponibilidade da arguida, não tem outro desiderato que não seja o de permitir o contacto da arguida com os terceiros de quem recebeu e a quem ia entregar as embalagens de produto estupefaciente que consigo trazia.
No que se reporta à ausência de condenações sofridas, teve-se em consideração o teor do respectivo certificado de registo criminal da arguida, documento autêntico, constante de fls. 142 dos autos, de cujo teor se infere que nada consta. e de fls. 163, no que diz respeito às não condenações no seu país de origem. (…)”.
3. Apreciação do mérito do recurso.
Cumpre agora conhecer as questões / pretensões recursivas suscitadas pela Recorrente e acima assinaladas (em II.1. deste Acórdão).
3.1. Indeferimento do requerimento de exame pericial sobre o grau de pureza do produto estupefaciente apreendido e posterior consideração da existência de elevado grau de pureza, com base em regras de lógica e experiência, em violação do princípio in dubio pro reo.
A pretensão recursiva agora em análise apresenta uma dupla vertente, de acordo com a alegação vertida no corpo da motivação, ainda que nas conclusões do recurso (1.ª e 2.ª) a Recorrente [apenas] pretenda que se “presuma favoravelmente à Arguida que o produto tinha um baixo grau de pureza”.
Assim, numa primeira linha, a Recorrente ataca a decisão (despacho de 23/11/2023, proferido no decurso da audiência de julgamento) que indeferiu o requerimento (formulado na sua contestação) para que fosse analisado pelo Laboratório de Polícia Científica o produto estupefaciente apreendido, com vista a apurar-se o respectivo grau de pureza.
Em segunda linha, a Recorrente o acórdão condenatório quando, com base em regras de lógica e da experiência, conclui que o grau de pureza do produto estupefaciente apreendido é com certeza elevado, numa clara violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Vejamos, em primeiro lugar, as incidências processuais relativas ao despacho de 23/11/2023:
- Na contestação que apresentou nos autos (em 06/09/2023 – refª 46431920), a Recorrente requereu que fosse determinada a análise, por parte do LPC, do produto estupefaciente apreendido, de modo a apurar-se o respectivo grau de pureza;
- Determinada a abertura de vista ao Ministério Público para se pronunciar sobre o referido requerimento (despacho de 08/09/2023 – refª 428359205), foi promovido o indeferimento do exame pericial requerido, por se tratar de meio de prova irrelevante, não sendo útil na investigação dos factos (promoção de 13/09/2023 – refª 428468275);
- Em 18/09/2023, o Tribunal a quo remeteu a apreciação do requerimento para a audiência de julgamento (despacho de 18/09/2023 – refª 428554982);
- Em 23/11/2023, na sessão da audiência de julgamento, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (transcrito em acta – refª 430671369):
“(…) Por deliberação do Tribunal Colectivo, a Mm.ª Juiz Presidente proferiu DESPACHO que, em súmula, relativamente à requerida análise de grau de pureza di produto estupefaciente transportado pela arguida, tendo em conta a posição já manifestada a respeito pela Digníssima Magistrada do Ministério Público, ao tipo de crime em crise nos autos, e. bem assim, do teor das declarações ora prestadas pela Arguida, por a diligência probatória requerida se afigurar ao douto Tribunal irrelevante e inútil para a boa decisão da causa e para a descoberta da verdade material, indeferiu o requerido – gravadas através do sistema “H@bilus Média Studio”, com início pelas 15:06:09 horas e termo pela 15:10:07. (…)”.
A questão da ausência de apuramento do grau de pureza do produto estupefaciente apreendido, no exame laboratorial efectuado pelo LPC, não é nova, existindo vários acórdãos dos Tribunais Superiores que versam sobre a mesma.
Analisada tal jurisprudência, facilmente se conclui estar em causa, na esmagadora maioria dos casos, a “cannabis” e, concretamente, quando está em causa a pureza dos produtos estupefacientes destinados ao consumo.
De acordo com o disposto no art.º 62º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22-01, as plantas, substâncias e preparações apreendidas são examinadas, por ordem da autoridade judiciária competente, no mais curto prazo de tempo possível.
O exame a que alude a citada norma constitui prova pericial e traduz-se, basicamente, na qualificação e quantificação dos produtos apreendidos (arts. 151º e ss. do CPP e art.º 71º, nº 3, do DL nº 15/93, de 22-01).
O art.º 71º, nº 1, al. c), do DL nº 15/93, de 22-01, determina que os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria, os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente.
Tal portaria é a Portaria nº 94/96, de 26-03, que, no seu art.º 10º, nº 1, estabelece o seguinte: “Na realização do exame laboratorial referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência.”.
Esta norma refere o “princípio activo ou substância de referência”, sendo alternativa essa indicação.
O art.º 9º da Portaria refere que os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao DL nº 15/93, de 22-01, de consumo mais frequente, são as referidas no mapa anexo.
O mapa anexo, na nota 3, alíneas c) a f), faz referência à concentração média de «Tetraidrocanabinol (A9THC)» para a canábis, sendo pertinente exigir a identificação do grau de pureza (o princípio activo tem a ver com as propriedades de um produto e a sua capacidade de gerar uma acção farmacodinâmica, ou seja, com a pureza da droga, que, como é sabido, varia e muito, em função da própria droga e do “corte” que sofre), quer porque a Portaria dá indicação nesse sentido, quer porque a essência da razão legislativa se centra, também, na caracterização do estado de toxicodependência do possuidor da substância (art.º 1º, al. a), da Portaria), fazwendo sentido que a punibilidade do consumo se limite à potencialidade efectiva mínima de efeitos da substância, o que se mede por um mínimo de pureza da mesma.
Para a heroína e cocaína regem as notas 2 e 4 do mapa anexo, que não referem aquelas especificidades operantes para a canábis, devendo partir-se do princípio de que os exames realizados observam a definição da natureza do produto.
Em suma, estes considerandos apenas se enquadram nos tipos penais que dizem respeito ao consumo, designadamente os tipos penais previstos no art.º 26º e 40º do DL nº 15/93, de 22-01, e o tipo contraordenacional contido no art.º 2º da Lei nº 30/2000, de 29-11.
Ou seja, o conceito de “dose média individual diária” é irrelevante para os tipos penais relativos ao tráfico, designadamente os tipos penais contidos nos arts. 21º, 24º e 25º do DL nº 15/93, de 22-01 (cfr. Acs. RE, de 03/12/2013 e de 29/03/2016, ambos relatados pelo Desembargador João Gomes de Sousa e publicados em www.dgsi.pt, que temos seguido de perto).
De resto, conforme é referido no Ac. RL, de 10/01/2013 (relator: Abrunhosa de Carvalho; in www.dgsi.pt), quando os relatórios de exames a substâncias estupefacientes, elaborados pelo Laboratório de Polícia Científica, não referem o grau de pureza da droga examinada, deve entender-se que o grau de pureza da mesma se situa dentro dos parâmetros médios tidos em conta na Portaria nº 94/96, de 26-03, e quando o grau de pureza consta do relatório, deve entender-se que tal acontece porque o mesmo se afasta daqueles parâmetros (não sendo crível que o LPC faça ou não constar dos relatórios o grau de pureza por mero capricho).
Como é referido no Ac. RL, de 13/09/2017 (relator: Jorge Raposo; in www.dgsi.pt), “a indicação do grau de pureza da droga apenas se revela essencial para as situações em que está em causa a toxicodependência e a determinação sobre se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente excede a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias (art.º 40º do Decreto-Lei 15/93 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, de 25.6.2008, in DR IA Série, de 5.8.2008).
Ou seja, quando não está em causa a toxicodependência ou a detenção para consumo, o grau de pureza da droga – embora possa ser um elemento essencial para determinar a proximidade ao produtor do produto – não é de determinação fundamental.
Estando em causa o transporte de quase 4 kg de cocaína (cloridrato) proveniente do ... e estando assente que o arguido é um correio de droga torna-se absolutamente despicienda qualquer outra indagação.”.
Em suma, improcede o recurso na parte em que a Recorrente pretende ver revogada a decisão (despacho de 23/11/2023, proferido no decurso da audiência de julgamento) que indeferiu o requerimento (formulado na sua contestação) para que fosse analisado pelo Laboratório de Polícia Científica o produto estupefaciente apreendido, com vista a apurar-se o respectivo grau de pureza.
Vejamos agora a questão de o acórdão condenatório ter concluído, com base em regras de lógica e da experiência, que o grau de pureza do produto estupefaciente apreendido é com certeza elevado, invocando a Recorrente uma clara violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
No elenco dos factos dados como provados no acórdão recorrido não consta qualquer referência ao grau de pureza do produto estupefaciente transportado pela Recorrente (cocaína).
Na motivação do acórdão recorrido é afirmado que “a factualidade objectiva – o transporte e detenção dos dois quilos, quinhentos e cinquenta e dois gramas, vírgula duzentos (2.552,200 gramas), de cocaína, nas circunstâncias e nos moldes acima descritos, e dados como provados –, resultou das declarações, neste segmento confessórias, prestadas pela arguida”.
Aí também é referido ser “irrelevante para a demonstração dos factos praticados pela arguida o grau de pureza da cocaína que aceitou transportar, atendendo à quantidade e ao destino da mesma, sendo certo que, dizem as regras da experiência comum e da lógica que a cocaína chega ao continente europeu em elevado estado de pureza, sem ter sido sujeita a corte, pois, o que se pretende é a sua maximização quer de quantidade, quer de obtenção de proventos económicos aquando do fraccionamento em doses individuais para serem vendidas aos consumidores”.
Na fundamentação de direito do acórdão recorrido, concretamente na determinação concreta da medida da pena, não é feita qualquer referência ao grau de pureza do produto estupefaciente transportado pela Recorrente (cocaína).
Quer dizer, o «grau de pureza» (elevado, médio ou diminuto) da cocaína transportada pela Recorrente não serviu de fundamento ou critério para a decisão recorrida, quer no que respeita aos factos, quer no que respeita ao direito (consequências jurídicas do crime), não passando a referência a tal matéria feita na motivação do acórdão, a propósito, recorde-se, da irrelevância do apuramento do grau de pureza para a demonstração dos factos praticados pela arguida, de uma afirmação abstracta (uma possibilidade fáctica a que as regras da experiência comum e da lógica permitem aceder), sem consequências nos concretos factos dados como provados e na concreta pena aplicada, sendo ainda certo que a Recorrente não alegou nos autos (nomeadamente, quando requereu a realização do exame) que o grau de pureza do produto estupefaciente apreendido tinha um baixo grau de pureza.
Neste quadro, é manifesto não ter existido, no acórdão recorrido, qualquer violação do princípio da presunção de inocência ou do in dubio pro reo.
Em suma, improcede o recurso na parte em que a Recorrente pretende que a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que presuma favoravelmente à arguida que o produto estupefaciente apreendido tinha um baixo grau de pureza.
*
3.2. Não aplicação do regime especial para jovens (DL nº 401/82, de 23-09).
Pretende a Recorrente, por via do presente recurso, beneficiar da aplicação da atenuação especial da pena prevista no artigo 4º do DL nº 401/82, de 23-09, que foi negada pela decisão recorrida. Em síntese, a Recorrente invoca a circunstância de, à data dos factos, ter apenas 18 anos de idade (com a inerente falta de maturidade psicológica), ter confessado os factos sem reservas, não ter qualquer antecedente criminal, estar arrependida, o seu percurso de vida ser marcado por dificuldades económicas e sociais e a gravidade do ilícito dever ser colocada em perspectiva com a personalidade e o desempenho futuro da personalidade do jovem delinquente.
Vejamos.
Nos termos do art.º 9º do Código Penal (Disposições especiais para jovens), “aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial”.
Esta legislação especial está contida no Decreto-Lei nº 401/82, de 23-09 (Regime Especial para Jovens), e assenta na ideia de que o jovem delinquente é merecedor de um tratamento penal especializado, “não só porque a sua capacidade de ressocialização é mais fácil, por se encontrar no limiar da maturidade, como ainda porque se deve evitar, em princípio, um tratamento estigmatizante ”.
O Decreto-Lei nº 401/82, de 23-09, aplica-se a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime – nº 1 do art.º 1º, sendo considerado jovem o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos – art.º 1º, nº 2.
Este regime penal especial aplicável aos jovens entre os 16 aos 21 anos, corporizado através do citado diploma legal, surge historicamente, como sabemos, inserido num quadro de política criminal mais amplo [e inovador], implementado pelo Código Penal de 1982, de combate ao carácter criminógeno das penas detentivas, com a particular injunção de introduzir, no sistema de reacção penal, um tratamento penal especializado que dê resposta à prática, por jovens adultos, de factos penalmente ilícitos numa fase da vida «de latência social – em que o jovem escapa ao controlo escolar e familiar sem se comprometer com novas relações pessoais e profissionais» (cfr. Proposta de Lei n.º 45/VIII, no “Diário da Assembleia da República”, II série-A, de 21 de Setembro de 2000), e que, por natureza, se perspectiva transitória.
Desenhado para dar tratamento penal a tal fenómeno social, o regime jurídico consagrado assenta numa matriz característica de um direito mais reeducador do que sancionador (sem descurar, contudo, os interesses fundamentais da comunidade, como se extrai do respectivo preâmbulo), estatuindo um conjunto de medidas de flexibilidade na aplicação da reacção penal (que não relevam no caso dos autos) e prevendo, no seu artigo 4º, uma atenuação especial da pena para os casos em que é aplicável uma pena de prisão (que não sendo de aplicação automática, nem obrigatória é de apreciação oficiosa – poder/dever – sempre que se verifique o pressuposto legal da categoria etária de referência).
No que concerne às circunstâncias em que a atenuação especial da pena de prisão deverá ter lugar, a aplicação do referido normativo legal não tem merecido tratamento uniforme por parte da jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, perfilhando-se essencialmente duas orientações (cfr. Ac. RP, de 23/11/2016 (proc. 534/15.2 PWPRT.P1.L1) e Ac. STJ de 20/10/2021 (proc. 1441/19.5 PELSB.S1), in www.dgsi.pt), a saber:
- Uma que sustenta que só deve ter lugar o funcionamento da atenuação especial da pena quando se comprovem sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção do condenado (a atenuação não deveria acontecer a não ser em presença de circunstâncias positivas a acrescer à juventude do condenado) (Souto Moura, “A jurisprudência do STJ sobre fundamentação e critérios de escolha e medida da pena”, in Revista do CEJ, nº 13, pp. 112-113);
- Outra que defende que a atenuação especial da pena facilita a reinserção social do jovem (traz vantagens para a reinserção social do jovem condenado), e só deve ser afastada (regime regra) quando circunstâncias concretas documentarem a sua incapacidade para introduzirem benefícios com vista a essa almejada ressocialização do jovem (a atenuação deveria operar sempre perante a juventude do condenado salvo em presença de factores negativos).
Perfilhamos o entendimento de que o comando normativo ínsito no artigo 4º do referido diploma legal, segundo o qual «deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado» não dispensa, pelo contrário, impõe que se apure, casuisticamente, se a atenuação favorece a ressocialização do agente (o elemento literal e o propósito subjacente ao regime especial não autorizam outro entendimento - «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1), sendo que, contudo, «não pode (…) ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2) - art.º 9.º do Código Civil). Tal não significa que as razões de ressocialização, se se verificarem, não devam prevalecer sobre as razões dos demais fins das penas, quando não se apresentem conciliáveis.
Portanto, por determinação legal, a atenuação especial decorrente do regime em análise requer sempre, para além do requisito da idade (entre 16 e 21 anos, à data da prática dos factos), a formulação de um juízo de prognose favorável ao jovem delinquente: ela só terá lugar quando o juiz tiver sérias razões para crer que da atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Será, então, através da ponderação das circunstâncias concretas de cada caso, que se pode chegar ou não à conclusão de que se está perante um desvio meramente transitório e ocasional, próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, caso em que se poderá mostrar justificada a formulação de um juízo de prognose favorável à atenuação especial.
No caso dos autos, verifica-se que a Recorrente, à data dos factos, tinha 18 anos de idade (nasceu em 10/08/2004, situando-se a data da prática dos factos no dia 01/05/2023 – data do seu desembarque em ..., transportando a droga apreendida).
O Tribunal a quo entendeu ser de afastar a aplicação ao caso concreto do regime especial para jovens, referindo o seguinte (transcrição parcial):
“(…) não se bastando as finalidades visadas com a punição com a aplicação de medidas de correcção, especialmente, tendo em conta gravidade dos comportamentos preconizados pela arguida, transporte internacional de produtos estupefacientes por via aérea, o que revela energia criminógena intensa, para além da ausência de qualquer comportamento exterior concludente compatível com sentido crítico e de interiorização do desvalor da conduta, aliás, a arguida desvaloriza totalmente as suas condutas, circunstâncias que revelam que, a manterem-se, são potenciadoras de uma recidiva, e assim, há necessidades prementes de prevenção especial positiva e negativa que urge acautelar de forma eficaz e dissuasora.
Na verdade, afigura-se que da aplicação do instituto da especial atenuação da pena (cfr. Art.º 4, do Regime Penal Especial para Jovens) não existem reais e sérias vantagens que contribuam de forma significativa para a reinserção social da arguida, sem olvidar que, se denota a necessidade de aplicação de pena adequada, tendo em vista o forçar a arguida a adoptar comportamentos consentâneos com os valores penais e ético-legais vigentes e evitar, de forma eficaz, por um lado, que volte a delinquir e, por outro lado, promover de forma eficaz a sua reintegração na comunidade jurídica e no tecido social envolventes.
Efectivamente atento o crime, e a sua natureza, as suas vicissitudes e implicações, bem como alguma destruturação social, pessoal e laboral, que se mantém, tais circunstâncias denotam uma postura de desafio e de contestação às normas instituídas, cuja salvaguarda se impõe assegurar e dissuadir de forma eficaz.
Assim, considerando a personalidade da arguida e as circunstâncias dos factos, afigura-se não ser consentâneo com os fins das penas a aplicação das medidas de correcção estatuídas no Art.º 6.º, do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 /09, nem qualquer outro instituto previsto neste diploma legal, visto que, os contornos subjacentes ao caso concreto e a gravidade inerente ao comportamento da arguida não se compaginam com o aplicar de medidas tutelares educativas, nem análogas, sendo também, assim, de afastar o regime especial para jovens. (…)”.
Perante a fundamentação jurídica acabada de expor, ponderando ainda a circunstância de uma parte da argumentação recursiva da Recorrente não ter correspondência nos factos dados como provados (veja-se, por exemplo, a invocação do arrependimento da Recorrente e o que foi dado como provado sob o nº 12 dos factos provados: “12. A arguida reconheceu os factos de que se encontra acusada, livremente, sem qualquer reserva, nem coacção, embora de forma fragmentada, denotando um fraco sentido crítico, em face do discurso autocomplacente, desculpabilizante e autocentrado, revelador de ausência de interiorização do desvalor da sua conduta;”), impõe-se a nossa concordância com a conclusão do Tribunal a quo quanto à impossibilidade de afirmação da existência de «razões sérias» de que da atenuação especial resultarão vantagens para a reinserção da Recorrente.
Com efeito, a personalidade da Recorrente e as circunstâncias do caso, espelhadas nos factos provados, salientando-se a sua postura de desafio e contestação às normas instituídas, cuja salvaguarda se impõe assegurar e dissuadir de forma eficaz, bem como a sua destruturação social, pessoal e laboral, apontam para a necessidade de uma reacção penal contentora e adequada às necessidades de prevenção especial que o caso requer.
Considera-se ainda que o factor idade, isoladamente, não constitui factor determinante de atenuação especial da pena, apenas podendo relevar como atenuante de carácter geral (e a ausência de antecedentes criminais da Recorrente, in casu, não assume particular relevância atenuativa, pois que inerente à sua manifesta juventude).
Acresce que devem ser devidamente salvaguardadas as exigências de prevenção geral ligadas à proteção de bens jurídicos, que, sendo acentuadas, poderão obstar a essa atenuação especial da pena.
No caso de incompatibilidade entre exigências de prevenção geral e especial, as exigências (mínimas) de prevenção geral funcionam como limite ao que, numa perspectiva de prevenção especial, poderia ser aconselhável.
Nenhum ordenamento jurídico suporta pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral, nomeadamente conformando-se com a aplicação do regime de jovens, mas, quando essa aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a aplicação do regime penal especial para jovens cedem, devendo aplicar-se a pena de prisão.
A Recorrente foi condenada pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que consubstancia criminalidade grave, geradora de forte sentimento de insegurança, repúdio e alarme na comunidade, sendo as exigências de prevenção geral elevadas.
Por todo o exposto, nenhum reparo nos merece a decisão do Tribunal a quo, quanto à não aplicação, in concreto, do regime decorrente do Decreto-Lei nº 401/82, de 23-09, improcedendo, nesta parte, o recurso.
*
3.3. Dosimetria da pena concretamente aplicada.
Pretende a Recorrente, por via do presente recurso, a alteração da pena de prisão que concretamente lhe foi aplicada, sendo agora fixada no limite mínimo dos 4 anos ou muito próximo dele (caso não seja aplicada a atenuação especial da pena por aplicação do regime previsto no DL nº 401/82, de 23-09).
Alega, em síntese e para tanto, que a Recorrente não participou na decisão sobre a quantidade de droga a transportar e não teve conhecimento dessas mesmas quantidades, circunstâncias que devem ser analisadas segundo o princípio do in dubio pro reo, invocando, por outro lado, diversas atenuantes (confissão, ausência de antecedentes criminais, bom comportamento prisional, apoio familiar e boa inserção social) que impõem a fixação da medida concreta da pena de prisão em montante inferior.
Vejamos.
Se bem percebemos a alegação recursiva, a Recorrente pretende que as circunstâncias de não se ter apurado que tenha participado na decisão sobre as quantidades que iria transportar e de não se ter apurado que tenha tido conhecimento dessas mesmas quantidades, têm de ser analisadas segundo o princípio do in dubio pro reo, não podendo a Recorrente ser prejudicada ou punida mais severamente por um facto – a concreta quantidade transportada – que não se sabe sequer se estava no seu controlo.
Aceita-se que a Recorrente possa não ter participado na decisão sobre a concreta quantidade a transportar, porquanto os factos provados (ou a motivação) nada referem sobre esta específica matéria.
Contudo, parece-nos evidente que tal matéria é irrelevante no contexto da actividade criminosa desenvolvida pela Recorrente, i.e., a Recorrente aceitou fazer um transporte internacional de produto estupefaciente, mediante o pagamento de uma quantia monetária, enquadrando-se esta actividade nos chamados “correios de droga”, i.e., pessoas que aceitam transportar quantidades apreciáveis de droga por conta de outrem a troco de remuneração. Quer dizer, o essencial da actividade dos “correios de droga” é actuar em nome e no interesse de outrem (sabendo-se que no caso de transporte internacional, como o caso dos autos, quem decide a quantidade a transportar é o dono do negócio e este, visando a maior vantagem económica possível, tenderá a fazer transportar quantidade apreciável de droga), aceitando o “correio”, muitas vezes em situação de penúria ou desespero, transportar a quantidade de estupefaciente que aquele bem entender.
Não se aceita que a Recorrente não soubesse a quantidade de cocaína que transportava (independentemente de ser evidente, como afirma o acórdão recorrido e a Recorrente aceita, constituir circunstância inócua para a condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes o facto de a Recorrente não saber a concreta quantidade de droga que transportava).
Desde logo, a Recorrente “reconheceu os factos de que se encontra acusada, livremente, sem qualquer reserva, nem coacção (…)” (facto provado nº 12), neles se incluindo: “A arguida conhecia perfeitamente a natureza e características estupefacientes da cocaína que lhe foi apreendida, que transportara por via aérea, para ser, por si, entregue a terceiros, para ser comercializada, pretendendo obter montante pecuniário de €4.000,00 (quatro mil euros)” (facto provado nº 5), “Produto esse que a arguida aceitou transportar por, para tanto, lhe ter sido prometida tal quantia pecuniária” (facto provado nº 6) e “A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização de cocaína lhe eram proibidos e punidos por lei” (facto provado nº 9).
Depois, a motivação do acórdão recorrido analisa concretamente a questão em análise:
“O Tribunal fundou a sua convicção quanto à matéria de facto provada (…), baseando-se:
- nas declarações da arguida, a qual reconheceu os factos de que se encontra acusada de forma livre e sem qualquer coacção, admitindo que aceitou deter, guardar e transportar a substância estupefaciente – que foi apreendida – durante uma viagem aérea, intercontinental, transatlântica, no interior da mala que consigo trazia.
No que tange à afirmação por parte da arguida, no sentido que não sabia qual o peso da cocaína que aceitou (e sabia) transportar, não só tal circunstância é inócua para a demonstração do tipo de crime pelo qual a arguida se encontra acusada, na medida em que, o crime de tráfico de estupefacientes na sua demonstração típica, quer na dimensão objectiva, quer subjectiva, não depende da quantidade de produto estupefaciente, e inexiste qualquer dúvida que a arguida deteve, guardou e transportou produto estupefaciente com vista a ser entregue a terceiro, cujo desiderato é a sua comercialização. Mais inexiste qualquer dúvida que a arguida sabia que transportava, nas citadas circunstâncias, produto estupefaciente, o que, aliás, a mesma confessa.
Sem descurar que, a mala, onde foi acondicionada a cocaína, foi entregue à arguida, e na posse desta permaneceu até embarcar no voo, ou seja, guardando-a, puxando-a e manuseando-a, tendo perfeita noção do peso da mesma - veja-se que a mala em causa nem é de estrutura rígida, cfr. fotogramas a fls. 37 e 38, logo mais maleável, manipulável e objectivamente permitindo uma maior percepção do peso não sendo minimamente crível que a arguida, atendendo ao tempo em que teve na sua posse a mala, os movimentos que com a mesma teve fazer (desde levá-la até ao aeroporto, fazer o check-in e embarcar no avião) e o facto de a mala lhe ter sido entregue vazia – sem qualquer objecto, que não os 2.552,200 gramas de cocaína – e não sendo de estrutura rígida, permite uma percepção mínima do peso que a mesma transportava na estrutura, dois quilos e meio de cocaína, veja-se igualmente o tamanho, as dimensões e o volume da embalagem de cocaína (cfr. fotogramas a fls. 39).
(…)
Na verdade, a factualidade objectiva – o transporte e detenção dos dois quilos, quinhentos e cinquenta e dois gramas, vírgula duzentos (2.552,200 gramas), de cocaína, nas circunstâncias e nos moldes acima descritos, e dados como provados –, resultou das declarações, neste segmento confessórias, prestadas pela arguida.”.
Perante a motivação acabada de expor, resulta claramente deslocada a chamada à colação do princípio do in dubio pro reo, nos termos em que o faz a Recorrente.
O princípio do in dubio pro reo não é uma regra probatória, mas antes uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Logo, quando o tribunal de 1.ª Instância, em face da prova, decide de determinada forma, sem que se perceba da decisão proferida que o tribunal tenha ficado com uma dúvida razoável quanto à ocorrência de determinado facto (nomeadamente, quanto à autoria dos factos pelo arguido), não há que convocar a aplicação do princípio do in dubio pro reo. Neste caso, o recorrente terá de centrar a pretensão recursiva na invocação de um erro de julgamento, convencendo o tribunal de recurso de que a prova produzida (que serviu de fundamento à decisão do tribunal a quo) impõe decisão diversa.
No caso dos autos, o tribunal a quo entendeu, e bem (em face da prova produzida, apreciada de acordo com o princípio estruturante da livre apreciação da prova, segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente – art.º 127º do CPP), que a Recorrente tinha conhecimento da quantidade de cocaína que transportava.
Assim, nesta parte, improcede a pretensão recursiva da Recorrente.
Passemos agora à análise da pretensão recursiva baseada na invocação de diversas atenuantes (confissão, ausência de antecedentes criminais, bom comportamento prisional, apoio familiar e boa inserção social) as quais, segundo a Recorrente, impõem a fixação da medida concreta da pena de prisão em montante inferior (limite mínimo dos 4 anos ou muito próximo dele).
O Supremo Tribunal de Justiça, em vasta jurisprudência sobre a intervenção do tribunal de recurso no âmbito da concretização da medida da pena, concretamente, sobre o controlo da adequação e proporcionalidade no que respeita à fixação concreta da pena (cujos fundamentos são aplicáveis ao recurso interposto para a Relação), tem salientado que tal intervenção deve ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, entendendo poder sindicar-se no recurso a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada (cfr., entre muitos, Ac. STJ, de 21/03/2018, processo n.º 49/16.1T9FNC.L1.S1-3.ª; relator: Raul Borges; in www.dgsi.pt).
Como é referido no Ac. STJ, de 28/04/2016 (processo nº 37/15.5GAELV.S1; relator: Sousa Fonte; in www.dgsi.pt), “a eventual intervenção correctiva do STJ no domínio do procedimento de determinação da medida da pena só se justificará se for de concluir, face aos factos julgados provados, que o Tribunal Colectivo falhou na indicação de algum dos factores relevantes para o efeito ou se, pelo contrário, valorou outros que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, se tiver violado as regras da experiência ou se o quantum fixado se mostrar de todo desproporcionado em comparação com o que, para casos semelhantes, vem sendo decidido, nesta matéria, pelo STJ”.
Observados os critérios de dosimetria concreta da pena previstos no art.º 71º do CP (cuja aplicação a fundamentação da decisão deve evidenciar, permitindo assim o controlo da decisão), há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O tribunal de recurso apenas deverá intervir, alterando o quantum da pena concreta, quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
Mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do quantum da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar.
De acordo com as coordenadas lógicas do sistema penal português, no que respeita às reacções criminais, a compreensão dos fundamentos, do sentido e dos limites das penas deve partir de uma concepção de prevenção geral de integração (a pena só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídicos – art.º 40º, nº 1, do CP –, visando uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada e em que a intimidação só actua dentro do campo marcado por certas orientações culturais, por modelos ético-sociais de comportamento que a pena visa reforçar), ligada institucionalmente a uma pena da culpa (a pena deve supor sempre e sem alternativa um elemento ético de censura pessoal do facto ao seu agente, por exigência constitucional de respeito da dignidade da pessoa humana, revelando a personalidade do agente para a culpa na medida em que se exprime no ilícito típico perpetrado; a culpa constitui ainda o limite inultrapassável da pena – art.º 40º, nº 2, do CP), a ser executada com um sentido predominante de (re)socialização do delinquente (trata-se de oferecer ou de proporcionar ao delinquente o máximo de condições favoráveis ao prosseguimento de uma vida sem praticar crimes, ao seu ingresso numa vida fiel ou conformada com o ordenamento jurídico-penal – art.º 40º, nº 1, do CP).
Por sua vez, decorre do art.º 71º, nº 1, do CP que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial do agente, determinando o nº 2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime, “considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.
Decorre, por fim, do nº 3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.
O acórdão recorrido fundamentou a fixação da medida concreta da pena em termos que merecem a nossa inteira concordância:
(…) atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra o agente e a favor dele.
Há que considerar no caso concreto quanto às primeiras:
- o grau de ilicitude dos factos que se considera elevado, dadas as circunstâncias em que os mesmos ocorreram, bem como a circunstância de estarmos perante uma situação de tráfico internacional/intercontinental de estupefacientes (voo do ... para ...), ou seja, com passagem por continentes e países distintos;
- a quantidade de cocaína apreendida (2.552,200 gramas) e que a arguida transportava;
- o modo de transporte do produto estupefaciente, dissimulado na estrutura da mala, potenciando o efeito de ocultação, e assim, dificultando de forma severa a sua percepção pela capacidade de visão humana e de inequívoca dissimulação, pelo que, a conduta da arguida revela uma ainda maior resolução criminosa;
- a intensidade do dolo que se revela elevada, uma vez que actuou com dolo directo;
- a frequência, na actualidade, com que nos deparamos com a prática deste tipo de crime;
- a energia criminosa particularmente intensa revelada pela adesão da arguida a um plano, mediante a obtenção de proventos rápidos, e que implicou o transporte, 2.552,200 gramas de cocaína, dispondo-se ainda a arguida a efectuar uma deslocação substancial, intercontinental, transatlântica, por via aérea, trazendo acondicionado na mala que aceitou transportar, dissimulado na estrutura da mesma, tal quantidade de substância estupefaciente (mais de dois quilogramas e meio de cocaína).
Quanto às segundas:
- o facto de denotar estruturação, embora incipiente, familiar e social, a condição humilde, pois, veja-se que a arguida por pura motivação económica aceitou fazer este transporte de cocaína, e apesar de revelar algum amparo familiar, a verdade é que, tal circunstancialismo não se revelou suficientemente contentor para obstar a que a arguida praticasse estes factos;
- o facto de nada constar do seu certificado de registo criminal;
- a circunstância de não constarem registadas decisões judiciais condenatórias transitadas em julgado no registo do seu país de origem;
- o reconhecimento dos factos, mas concomitantemente revela um discurso autocomplacente e autodesculpabilizante, alijando a sua responsabilidade na frágil situação económica e as dificuldades financeiras que se encontrava a vivenciar, denotando fraco juízo crítico e pouca capacidade de descentração.
Sem descurar que inexiste qualquer circunstância que justifique uma atenuação especial da pena, dado que a arguida num contexto de voo internacional tem a livre disponibilidade de abordar as autoridades aeroportuárias, quer enquanto se encontra no aeroporto, quer durante voo proveniente do ... e com destino final em ..., quer quando aterra em solo europeu, tendo sido detida numa situação de flagrante delito, com 2.552,200 gramas de cocaína dissimulada no interior da estrutura da mala que transportava.
Tal como não consubstancia qualquer motivo ponderoso o ter aderido a tal plano, por estar a vivenciar uma situação de desemprego ou de vulnerabilidade económica, tanto mais, que como resultou dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas (familiares da arguida, mãe, irmão e a companheira deste) estas no presente declararam-se disponíveis para lhe prestar apoio, logo, mais uma razão para recorrer ao apoio de familiares, ao invés de aceitar transportar cocaína num voo internacional com vista à pura obtenção rápida e fácil de proventos económicos.
No que diz respeito às necessidades de prevenção geral, consideram-se as mesmas elevadas, atendendo à forte danosidade social que a violação do bem jurídico protegido por este tipo de crime acarreta, acrescidas perante este tipo de delitos e os seus efeitos "colaterais" (familiares, sociais e patrimoniais).
No respeitante à culpa da arguida, deve atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, sob pena de haver uma dupla valoração da culpa, depuserem a favor ou contra a arguida, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a intensidade do dolo, os fins ou motivos que o determinaram e as suas condições pessoais.
Têm de ser ponderadas, de forma equilibrada, todas as circunstâncias para a individualização da pena aplicada à arguida.
Assim, sopesando as circunstâncias acima elencadas que depõem a favor e contra a arguida, decide-se aplicar à arguida uma pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão.”.
A punição dos “correios de droga” (i.e., as pessoas encarregues de transportar quantidades apreciáveis de droga por conta de outrem a troco de remuneração) constitui um caso típico da necessidade de ponderação das exigências de prevenção geral com o princípio da culpa (e as exigências de prevenção especial).
Como refere Pedro Vaz Patto (“O Crime de Tráfico de Estupefacientes – Algumas Questões Suscitadas na Prática Judiciária”, in «Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Dopantes», Colecção Formação Contínua, Centro de Estudos Judiciários, Março de 2023; acessível em www.cej.justica.gov.pt), apesar de a jurisprudência acentuar o facto de não se justificar um tratamento “excessivamente benevolente” desta conduta (atendendo ao papel essencial que representa na cadeia de circulação e disseminação da droga, havendo até quem sustente que a actuação do “correio” é tão grave como a do “traficante” por conta de quem age), não pode ignorar-se que o “correio de droga” actua em nome e no interesse de outrem (que é quem colhe as maiores vantagens do negócio e não se expõe aos riscos, servindo-se do “correio” enquanto sujeito económico carenciado), devendo ser dado relevo à situação que possa ter levado o “correio” a aceitar a tarefa, que pode estar ligada à penúria ou ao desespero, mas também à ambição do enriquecimento rápido e fácil.
No caso dos autos, o acórdão recorrido ponderou, de modo profícuo, todas as circunstâncias que serviam de orientação à dosimetria da pena aplicada (a qual, de resto, se situa próxima do limite mínimo da moldura penal), não se impondo minimamente a intervenção correctiva deste Tribunal da Relação em sede de fixação da medida concreta da pena.
Improcede, assim, nesta parte, a pretensão recursiva da Recorrente.
*
3.4. (Não) suspensão da pena de prisão.
Pretende a Recorrente, por via do presente recurso, que seja determinada a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.
Alega, em síntese e para tanto, que revelou arrependimento, não possui antecedentes criminais, aceitou fazer o transporte da cocaína apenas por se encontrar em situação de pânico económico, apresenta situação familiar estável e possui hábitos de trabalho. Tem, portanto, todas as condições para poder beneficiar de um juízo de prognose favorável que leve à suspensão da pena de prisão.
Vejamos.
Como é sabido, a aplicação da generalidade das penas de substituição ocorre quando as mesmas realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Na ponderação da aplicação das penas de substituição, dentro do quadro das finalidades da punição, o tribunal deve atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
No caso dos autos, a pena de prisão concretamente aplicada (4 anos e 10 meses) convoca a possibilidade de aplicação da suspensão da execução da pena, nos termos do disposto no art.º 50º do Código Penal.
O tribunal tem o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art.º 50º do Código Penal).
É sabido que só se deve optar pela suspensão da execução da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro.
A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.
Esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar.
Trata-se, pois, de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 344).
De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição.
Numa perspectiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.
Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.
A aposta que a opção pela suspensão sempre pressupõe, há-de fundar-se num conjunto de indicadores que a própria lei adianta: personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste.
Numerosa jurisprudência salienta que o tráfico de estupefacientes, como tipo legal de crime, viola uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a saúde física e mental, e a liberdade; acelera desmedidamente o aumento da criminalidade e põe em causa, perigosamente, a segurança e estabilidade social, não podendo os tribunais usar de excessiva brandura na punição dos crimes de tráfico de estupefacientes.
Como é referido no Ac. STJ, de 11/10/2023 (relator: Agostinho Torres; in www.dgsi.pt), o Supremo Tribunal de Justiça vem desde há muito enfatizando a importância dos “correios de droga”, como peça fundamental na execução do ilícito e na cadeia delitiva do tráfico de estupefacientes concorrendo, de modo direto, para a sua disseminação, pelo que não merecem um tratamento penal de favor. No caso do tráfico internacional de estupefacientes, por meio dos chamados “correios de droga”, assume-se como um critério de grande intensidade a prevenção geral, visando forte dissuasão de actividade compensatória financeiramente para aqueles, sob pena de uma verdadeira invasão, já por si muito acentuada, de introdução de estupefacientes na Europa através de países da periferia europeia atlântica, como .... Expressivo dessa elevadíssima necessidade de prevenção foi o salientado em documento assinado em Roma, a 11 de Julho de 2021, por membros do judiciário do Brasil, Argentina, Portugal e Itália, apontando a necessidade de respostas penais diferenciadas para cada tipo de delito envolvendo drogas.
Aceitando-se, como já referido, que o facto de se tratar de um “correio de droga” (que anuiu ao transporte em função da sua debilidade económica ou pessoal) pode diminuir a sua culpa, importa salientar que a efectiva execução da pena de prisão (e a consequente recusa de suspensão da pena de prisão quando a medida concreta o permite, como sucede no caso dos autos) é indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias (cfr. Ac. RL, de 02/03/2021; relator: Paulo Barreto; in www.dgsi.pt).
O acórdão recorrido fundamentou a recusa de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, afirmando a necessidade de a Recorrente cumprir pena de prisão efectiva (em contexto prisional), em termos que merecem a nossa inteira concordância, salientando as exigências de prevenção especial positiva, de integração da arguida na sociedade, e de prevenção especial negativa, de obstar a que a arguida volte a delinquir, bem como as fortíssimas razões de prevenção geral, com expressa referência ao facto de ..., pela sua localização geográfica, ser um dos países de circulação (de entrada) de produtos estupefacientes na Europa, por via aérea, funcionando quer como ponto de entrada, quer como placa giratória.
Improcede, assim, nesta parte, a pretensão recursiva da Recorrente.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida / recorrente AA, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (arts. 513º do CPP 8º, nº 9, do RCP, por referência à Tabela III anexa a este diploma legal), sem prejuízo de se verificar o pressuposto a que alude a alínea j), do n.º1, do artigo 4.º, do Regulamento das Custas Processuais.
Comunique, de imediato, à 1.ª Instância, com cópia.
Notifique.
Certifica-se que foi dado cumprimento ao disposto no art.º 94º, nº 2, do CPP.

Lisboa, 11 de Abril de 2024
Nuno Matos
Fernanda Sintra Amaral
Jorge Rosas de Castro