Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
427/10.0IDLSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: ABSOLVIÇÃO
BOLETINS DE REGISTO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- No dispositivo da sentença, a alíneas, respetivamente, a), c), e), g) e i), foi decidido absolver todos os arguidos, mais aí se declarando,  nas alíneas, respetivamente, b), d), f), h) e j), que os factos praticados nestes autos, por cada um deles, em Abril, Maio, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2010 e Fevereiro, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2011, são integradores do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 5 do RGIT e 30º, n.º 2, do Cód. Penal, pelo qual foram condenados no processo n.º 771/14.7IDLSB, que correu termos junto do Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 2, devendo considerar-se, em aplicação do artigo 79.º do Cód. Penal, integrados na continuação criminosa dos factos praticados naquele processo n.º 771/14.7IDLSB.
Mais foi ordenado, no final daquela sentença: “Boletins à D.S.I.C.”, pretendendo ali registar o resultante das alíneas b) a j);
II-Posteriormente, ao trânsito em julgado daquela sentença, a Mmª Juíza, atendendo a que aquelas acima mencionadas declarações (as das alíneas b), d), f), h) e j) do dispositivo) não possuíam campo informático adequado ao seu respetivo averbamento no registo criminal, ordenou à Secção, que efectuasse diligências junto da D.S.I.C., no sentido de adaptar o sistema informático de registo de boletins ao determinado na sentença visando, o que foi feito;
III- Ora é por demais evidente que tal registo é ilegal, o qual foi ordenado por um despacho judicial, consistindo verdadeiramente numa manifesta violação do legalmente estatuído, pois o despacho que ordenou tal é manifestamente contraditório com o efeito jurídico da própria sentença, a qual absolveu os arguidos, não estando assim em consonância com o decidido na sentença proferida. Esta situação, que podemos classificar de anómala pode ferir o nosso Estado de Direito Constitucionalmente consagrado, pelo que tal despacho tem de ser revogado, repondo-se a ilegalidade da inscrição no Boletim de registo criminal, nos moldes em que foi feita, “in casu” correspondente a uma sentença de absolvição e ordenando-se o cancelamento da inscrição efectuada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No âmbito do processo comum n.º 427/10.0IDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 4, foram submetidos a julgamento os arguidos AA, BB, CC, DD e EE, todos melhor id. nos autos, vindo a ser proferida em 2 de outubro de 2018 a sentença constante de fls. 7259 a 7272 verso, transitada em julgado, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
No dispositivo daquela a sentença, a alíneas, respetivamente, a), c), e), g) e i), foi decidido absolver todos os arguidos, mais aí se declarando,  nas alíneas, respetivamente, b), d), f), h) e j), que os factos praticados nestes autos, por cada um deles, em Abril, Maio, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2010 e Fevereiro, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2011, são integradores do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 5 do RGIT e 30º, n.º 2, do Cód. Penal, pelo qual foram condenados no processo n.º 771/14.7IDLSB, que correu termos junto do Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 2, devendo considerar-se, em aplicação do artigo 79.º do Cód. Penal, integrados na continuação criminosa dos factos praticados naquele processo n.º 771/14.7IDLSB.
Mais foi ordenado, no final daquela sentença: “Boletins à D.S.I.C.”
Posteriormente, ao trânsito em julgado daquela sentença, a Mmª Juíza, atendendo a que aquelas acima mencionadas declarações (as das alíneas b), d), f), h) e j) do dispositivo) não possuíam campo informático adequado ao seu respetivo averbamento no registo criminal, ordenou à Secção, através do despacho, proferido a 21 de dezembro de 2018, constante de fls. 7283, que aqui se dá por integralmente reproduzido, diligências junto da D.S.I.C., no sentido de adaptar o sistema informático de registo de boletins ao determinado na sentença.
2. Os arguidos AA, BB, CC e DD inconformados com a mencionada decisão, interpuseram recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
“A. Os arguidos, ora Recorrentes, vêm apresentar o presente recurso do douto despacho de 21/12/2018, a fls. 728 dos autos, por violação do princípio ne bis in idem e dos seus efeitos no registo criminal dos arguidos, onde passou a constar novo registo da prática de um crime de abuso de confiança fiscal e no extracto da decisão a dispensa de pena.
B. Em Abril, último, por consulta via Citius, o mandatário dos arguidos veio a ter conhecimento do douto Despacho de 21/12/2018, a fls. 728 dos autos, tendo de imediato solicitado certidão judicial do referido Despacho, ainda a 10/04/2019, conforme consta dos autos a fls., que veio a ser emitida em 29/04/2019, com o código de acesso AO8N-WHKV-G3ZX-TLVC, conforme consta dos autos, a fls.
C. Com efeito, por consulta dos autos, resulta que em 20/12/2018 a Senhora Escrivã, de informava o Exmo. Juiz do seguinte:
Ao pretender enviar os boletins à DSIC, com a informação adicional constante das alíneas b), d), f), h) e j) da douta Decisão, o sistema não permite, uma vez que os arguidos foram absolvidos. Face ao exposto solicito a V. Exa. se digne ordenar o que tiver por conveniente.
D. Por douto despacho de 21/12/2018, o Exmo. Juiz de Direito ordenava da seguinte forma:
Não se sobrepondo “o sistema” à lei, diligencie-se junto da DSIC no sentido de, eventualmente com auxílio do respectivo técnico de informática, adaptar “o sistema” ao decidido em cumprimento de lei penal.
E. O douto Despacho de 21/12/2018, ora posto em crise, é posterior ao trânsito em julgado da douta sentença.
F. Os Recorrentes nunca foram notificados destes despachos, proferidos depois do trânsito em julgado da sentença.
G. Como efeito do Despacho ora recorrido resultou que no registo criminal de cada um dos Recorrentes passou a constar a prática de um crime de abuso de confiança fiscal e no extracto da decisão (no campo da decisão), e a dispensa de pena, com o seguinte extracto:
- Declarar que o(s) arguido(s) praticou em Abril, Maio, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2010, Fevereiro, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2011, factos integrantes do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. no art.º 105º, n.ºs 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, e art.º 30º, n.º 2, do Código Penal. Por que foi condenado no Proc. n.º 771/14.7IDLSB que correu termos no Tribunal de Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 2.
Tudo conforme certificados de registo criminal de cada um dos Recorrentes que constam dos autos a fls.
H. Nos termos da fundamentação da douta sentença, não poderia ser ordenado que fosse transcrito para o certificado do registo criminal de cada um dos Recorrentes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal e no extracto da decisão (no campo da decisão), e a dispensa de pena, com o extracto acima referido.
I. Na realidade, se a sentença em causa reconhece que os autos se integram ainda na actividade criminosa objecto do Proc. n.º 771/14.7IDLSB, e, em consequência, nos termos do disposto no art.º 79º, n.º 2, do CP, a contrario, manteve a pena da sentença proferida nesses autos, não existe nenhuma condenação dos Recorrentes ou situação de dispensa de pena.
J. O despacho, ora posto em crise, viola o disposto no nº 1 do art. 625º do CPC, que comina que “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar “, a aplicar, subsidiariamente, nos termos do artigo 4.º, do CPP.
K. Está em causa o princípio ne bis in idem, que radica na figura do caso julgado e proíbe a instauração de um segundo procedimento ao mesmo sujeito pelo mesmo objecto e com o mesmo fundamento, que recebeu consagração constitucional no nº 5 do artigo 29º da CRP, ao dispor que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».
L. Portanto, por efeito do caso julgado a primeira decisão torna impossível nova pronúncia sobre a mesma questão, i.e. proíbe a repetição de julgado sobre os mesmos factos.
M. Pelo que, a decisão do Tribunal em causa viola o disposto no art. 6º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio, porque a decisão judicial não está sujeita a inscrição no registo criminal.
N. Tal despacho foi proferido depois do trânsito em julgado da sentença, ou seja, depois de esgotado o poder jurisdicional do Juiz.
O. Princípio elementar e básico de direito adjectivo é o de que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa, cfr. n.º 1 do art. 613º do CPC, aqui aplicável ex vi art. 4.º do CPP.
P. O douto despacho infringiu o princípio da extinção do poder jurisdicional, porque não é de mero expediente e não se limita a resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente.
Q. Efectivamente, tal despacho exerce influência na sentença e no registo criminal dos Recorrentes, porque dele decorrem transcrições sem fundamento legal, como a condenação e dispensa de pena, como se tivesse existido uma condenação.
R. Com efeito, não existindo segunda condenação, falece título de suporte ao registo, havendo que ordenar o respectivo cancelamento, sob pena de nada fazendo, subsistindo o registo da condenação ineficaz, poder vir o mesmo a ser base, noutro plano, de novo erro judiciário.
S. O Tribunal a quo violou, assim, o disposto no art. 625.º, n.º 1, do CPC, que determina o cumprimento pelo arguido apenas a pena decretada em primeiro lugar.
T. Com o devido respeito, o douto Tribunal recorrido deveria era ter dado sem efeito a condenação dos arguidos, ora Recorrentes, devendo em conformidade, comunicar tal facto ao registo criminal.
U. Ao invés, o Tribunal a quo, através do despacho em causa, depois de informado de que os serviços do registo criminal não poderiam assegurar a transcrição porque se tratava de uma sentença absolutória, ordenou junto da DSIC no sentido de, eventualmente com auxílio do respectivo técnico de informática, adaptar “o sistema” passando aí a constar a condenação e dispensa de pena.
V. O despacho ora posto em crise é manifestamente contraditório com o efeito jurídico da própria sentença.
W. A comunicação electrónica, datada de 21/01/2019, da DGAJ- Registo Criminal, que refere como fundamento o disposto no art. 6º al. h) da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, é apenas aplicável aos casos de acórdãos proferidos em recurso extraordinário de revisão, o que não é manifestamente o caso em apreço, sendo que, mesmo que se tratasse de um lapso material e pretendessem invocar o disposto na al. c do mesmo normativo, i.e. a dispensa de pena, tal não resulta da sentença, pelo que não pode ser objecto de transcrição nos registos criminais.
X. Destarte, a decisão do douto Tribunal também viola o princípio da legalidade e, bem assim, os princípios da autenticidade, veracidade, univocidade e segurança dos elementos identificativos, expressamente previstos no art. 4º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio.
Nestes Termos,
Com o douto suprimento de V. Exas., dever ser julgado procedente o presente recurso, por provado e, consequentemente, ser ordenado a revogação do despacho de 21/12/2018, sendo substituído por outro que dê sem efeito a condenação dos arguidos e ordene o cancelamento da transcrição dos registos criminais dos Recorrentes, por ilegalidade, nos termos e fundamentos supra expostos, assim, se fazendo a esperada Justiça.(fim de transcrição).
3. Foi, num primeiro momento, proferido, a 29 de maio de 2019, despacho judicial de não admissão do recurso, nos seguintes termos:
"Fls. 7331 a 7339: Vêm os arguidos recorrer do despacho de fls. 7283 (de 21.12.2018) que determinou apenas à Secção - na sequência de questão pela mesma suscitada relacionada com aplicação informática - que executasse o que fora decidido e que resulta da Lei.
Ora, sendo esse o despacho, não é mais do que uma ordem dada à Secção, Secção que não precisava de tal despacho para executar o que decidido foi por sentença.
O despacho em causa e de que pretendem os assistentes recorrer é, assim, de mero expediente.
Com efeito, são despachos de mero expediente aqueles que se destinam “a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes (…)”, conforme definição do art.º 152º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Ora, sobre tal despacho não é admissível recurso nos termos do art.º 400º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Consequentemente, rejeita-se o recurso em apreço.
Custas pelo(a)(s) recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.
Notifique." (fim de transcrição).
4. E, num segundo momento, após decisão de reclamação apresentada pelos recorrentes junto do Exmº Presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa, e àqueles favorável (prolatada em 18 de novembro de 2019, consta de fls. 44 e verso do processo 427/10.0IDLSB-A, que aqui se dá por integralmente reproduzida) a Mmª Juíza a quo profere, a 16 de dezembro de 2019, despacho de admissão do recurso, nos seguintes termos:
"Fls. 7331 a 7339: Em exclusiva obediência ao decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 44 do Apenso A, considera-se tempestivo, interposto por quem tem legitimidade, motivado e sendo a decisão recorrível, admitindo-se o recurso apresentado pelo(a)(s) arguido(a)(s), que sobe de imediato e com efeito devolutivo, nos termos dos art.ºs 399º, 400º, a contrario, 401º, n.º 1, alínea b), 407º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 408º, a contrario, 411º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto no art.º 406º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recurso em apreço deveria subir em separado, porém, não se determina a autuação em separado por implicar maiores dispêndios e processado inútil, podendo com maior facilidade o recurso subir com os próprios autos atento o seu estado.
*
Notifique, bem como da(s) resposta(s) nos termos do disposto no art.º 413º, n.º 3, do Código de Processo Penal." (fim de transcrição).
5. Respondeu o Ministério Público ao recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"1º. O presente recurso vem interposto do douto despacho proferido a fls. 7283 que ordenou diligências junto da DSIC, no sentido de adaptar o sistema informático de registo de boletins ao decidido na sentença proferida nos autos.
2º. Nos presentes autos, foi proferida a sentença constante de fls. 7159 a 7272, transitada em julgado que, no respetivo dispositivo, decide absolver cada um dos arguidos. Na parte decisória, consta ainda a decisão de declarar que cada um dos arguidos praticou factos integradores do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105º, n.º 1 e 5 do RGIT e 30º, n.º 2 do Cód. Penal por que foram condenados no processo n.º 771/14.7IDLSB que correu termos junto do Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 2.
3º. Em estrito cumprimento do disposto no artigo 374, n.º 3 do Cód. De Processo Penal, a douta sentença absolveu os arguidos, declarando que os factos praticados nestes autos se consideram integrados na continuação criminosa dos factos praticados no processo n.º 771/14.7IDLSB.
4º. Com efeito, a sentença dos autos considerou provados os factos e, a final, proferiu decisão sobre a aplicação do artigo 79º do Cód. Penal à situação dos autos (fls. 7269 a 7271).
5º. Atendendo a que aquela declaração não possuía campo informático adequado, ordenou a Mmª Juiz, através do despacho recorrido, que se diligenciasse no sentido da adequação de tal sistema informático ao determinado na sentença, entretanto transitada em julgado.
6º. Assiste razão aos recorrentes ao citar o artigo 613º, n.º 1 do Cód. De Processo Civil aplicável aos despachos em processo penal (n.º 3 e artigo
4º do Cód. de Processo Penal), nos termos do qual “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.”
7º. Contudo, olvidam os recorrentes que a douta sentença, em cumprimento da lei penal interpretada e analisada através da mesma, ordenou o envio dos boletins à DSIC.
8º. A questão em apreciação no presente recurso prende-se com o facto de o sistema informático de registo de boletins não comportar o campo necessário para o registo daquela decisão e a entidade competente ter procedido ao respectivo registo num campo virtual que não corresponde ao decidido por sentença.
9º. De facto, o despacho recorrido apenas vem reiterar o já decidido por sentença e determinar que se diligencie pelo cumprimento dessa decisão, com vista a que a secção judicial pudesse atestar junto da DSIC a realização do registo (cfr. fls. 7285 a fls. 7288).
10º. Em face do exposto, uma vez que o despacho recorrido se limitou a reiterar o já determinado na sentença, transitada em julgado, nada há a apontar ao teor do mesmo.
Nestes termos, Vossas Excelências melhor decidindo, farão a costumada Justiça." (fim de transcrição).
5. Proferido despacho de sustentação (cfr. fls. 7367) e subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação teve neles “Vista” e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de nada mais se lhe oferecer acrescentar à posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. fls. 7373).
6. Foi cumprido, oficiosamente, o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido qualquer resposta.
7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
A questão suscitada pelos recorrentes, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de que o despacho o recorrido, proferido nos autos a 21 de dezembro de 2018, é manifestamente contraditório com o efeito jurídico da própria sentença, prolatada a 2 de outubro de 2018, sendo proferido já com esta transitada em julgado, tendo sido violados os princípios da legalidade, autenticidade, veracidade, univocidade e segurança dos elementos identificativos, expressamente previstos no art. 4º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, pelo que deve ser ordenada a revogação daquele despacho, sendo substituído por outro que ordene o cancelamento da transcrição entretanto efetuada nos registos criminais dos recorrentes.
2. Vejamos se assiste razão aos recorrentes.
A fls. 7283 dos autos, a Senhora Escrivã do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 4, em 20/12/2018, abre conclusão, à Mmª Juíza, exarando “Informando V. Exa. que ao pretender enviar os boletins à DSIC, com a informação adicional constante das alíneas b), d), f), h) e j) da douta Decisão, o sistema não permite, uma vez que os arguidos foram absolvidos. Face ao exposto solicito a V. Exa. se digne ordenar o que tiver por conveniente.” (fim de transcrição).
E a Mmª Juíza, no dia seguinte (21/12/2018), profere o seguinte despacho:
Não se sobrepondo “o sistema” à lei, diligencie-se junto da DSIC no sentido de, eventualmente com auxílio do respectivo técnico de informática, adaptar “o sistema” ao decidido em cumprimento de lei penal.(fim de transcrição).
Conforme expendeu a Veneranda Desembargadora Vice-presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa na decisão que proferiu, em 18 de novembro de 2019, no apenso de reclamação (cfr. fls. 44 e verso do processo 427/10.0IDLSB-A), contrariando a posição da Mmª Juíza a quo quanto à natureza do seu despacho, ora recorrido:
“( …) o despacho proferido em 21/12/2018 ao dar uma ordem à secção para diligenciar junto da DSIC no sentido de, eventualmente com auxílio do respectivo técnico de informática, adaptar "o sistema" ao decidido em cumprimento de lei penal, permitiu que o funcionário que a executou remetesse boletins de registo criminal dos arguidos/ reclamantes que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não estão em consonância com o decidido na sentença proferida em 2/10/2018.
Um tal despacho não pode ser considerado de mero expediente, com o sentido supra referido, porquanto interfere "no conflito de interesses entre as partes". (fim de transcrição).
Como já demos conta no Relatório do presente acórdão, o referido despacho judicial de 21 de dezembro de 2018, acima transcrito e ora posto em crise, é posterior ao trânsito em julgado da douta sentença.
Na sentença, prolatada a 2 de outubro de 2018, como também assinalamos no Relatório do presente acórdão, mas não é por demais sublinhá-lo, foi no dispositivo, a alíneas, respetivamente, a), c), e), g) e i), decidido absolver todos os arguidos, mais aí se declarando, nas alíneas, respetivamente, b), d), f), h) e j), que os factos praticados nestes autos, por cada um deles, em Abril, Maio, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2010 e Fevereiro, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2011, são integradores do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 5 do RGIT e 30º, n.º 2, do Cód. Penal, pelo qual foram condenados no processo n.º 771/14.7IDLSB, que correu termos junto do Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 2, devendo considerar-se, em aplicação do artigo 79.º do Cód. Penal, integrados na continuação criminosa dos factos praticados naquele processo n.º 771/14.7IDLSB.
Para além do mais que já dissemos sobre a tramitação processual dos autos no Relatório do presente acórdão, que aqui trazemos à colação, importa ainda reter que o Tribunal de Execução das Penas de Évora - Juízo de Execução das Penas de Évora - Juiz 2, também foi chamado a pronunciar-se sobre a questão que ora nos ocupa, tendo o Mmº Juiz, em 16 de maio de 2019, proferido no âmbito do Proc. nº 999/19.3TXLSB-A [Processo Supletivo (Lei 115/2009)], a seguinte decisão (consta de fls. 7330 e verso dos presentes autos):
“Nos termos e com os fundamentos que melhor constam de fls. 2 e ss., veio AA «Apresentar recurso sobre a legalidade do conteúdo das transcrições dos certificados do registo criminal, resultantes da douta sentença proferida nos autos do Tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 4, Proc. 427/10.0IDLSB, nos termos do art. 42º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio (Lei de Identificação Criminal)».
Compulsado o referido “recurso”, verifica-se que o mesmo não se enquadra minimamente no disposto no art. 42º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio.
Com efeito, nos termos do disposto no referido art. 42º, compete ao Director-Geral da Administração da Justiça decidir sobre as reclamações respeitantes ao acesso à informação em matéria criminal e seu conteúdo, sendo que da sua decisão quanto à legalidade do conteúdo dos certificados de registo criminal cabe recurso para o Tribunal de Execução das Penas (de ora em diante designado apenas por TEP).
Ora, no caso dos autos, não se verifica que o requerente tenha apresentado reclamação quanto à referida matéria junto do Director-Geral da Administração da Justiça, pelo que inexiste qualquer decisão de tal entidade administrativa. Logo, não pode haver recurso do que não existe (a aludida decisão) para o TEP.
Na realidade, o que o requerente verdadeiramente pretende é impugnar o despacho proferido a 21 de Dezembro de 2018 pela Mma. Juiz titular do processo comum singular nº 427/10.0IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 4) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (veja-se as conclusões P a X do seu “recurso”).
Ora, o TEP (tribunal de competência territorial alargada) e o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa são ambos tribunais de primeira instância [veja-se o art. 33º, nº 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do sistema Judiciário)], logo da mesma hierarquia, pelo que obviamente das decisões de um não se pode interpor recurso para o outro e vice-versa.
Se o requerente não concordava com a decisão proferida no processo comum singular nº 427/10.0IDLSB no dia 21 de Dezembro de 2018, restava-lhe interpor recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o que desconhecemos se fez ou não.
O que não podia certamente fazer era lançar mão do meio processual referido no art. 42º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio.
***
Serve isto por dizer que o recurso interposto não é admissível, o que se decide.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s.
Notifique o requerente e o Ministério Público.
Remeta cópia do presente despacho ao processo comum singular nº 427/10.0IDLSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 4) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa” (fim de transcrição).
Estabelece a Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal, preceituando-se no seu art. 6.º que:
“Estão sujeitas a inscrição no registo criminal as seguintes decisões:
a) Que apliquem penas e medidas de segurança, determinem o seu reexame, substituição, suspensão, prorrogação da suspensão, revogação e declarem a sua extinção;
b) Que concedam, prorroguem ou revoguem a liberdade condicional ou a liberdade para prova;
c) De dispensa de pena;
d) Que determinem a reabilitação de pessoa coletiva ou entidade equiparada;
e) Que determinem ou revoguem o cancelamento provisório no registo;
f) Que apliquem perdões ou amnistias, ou que concedam indultos;
g) Que determinem a não transcrição em certificados do registo criminal de condenações que tenham aplicado;
h) Os acórdãos proferidos em recurso extraordinário de revisão;
i) Os acórdãos de revisão e confirmação de decisões condenatórias estrangeiras.” (fim de transcrição).
Mais dispondo o n.º 1 do seu art 7.º que:
“São inscritos no registo criminal:
a) Extratos das decisões criminais proferidas por tribunais portugueses que apliquem penas e medidas de segurança, determinem o seu reexame, substituição, suspensão, prorrogação da suspensão, revogação e declarem a sua extinção;
b) Extratos das condenações proferidas por tribunais de Estados membros da União Europeia relativamente a portugueses maiores de 16 anos, desde que se refiram a factos previstos como crime na lei portuguesa e permitam a identificação da pessoa a que se referem, bem como das demais decisões subsequentes, comunicadas a Portugal nos termos da Decisão-Quadro 2009/315/JAI, do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009;
c) Extratos das condenações proferidas por outros tribunais estrangeiros relativamente a portugueses e a estrangeiros residentes em Portugal, maiores de 16 anos e a pessoas coletivas ou entidades equiparadas que tenham em Portugal a sua sede, administração efetiva ou representação permanente, que sejam comunicadas a Portugal nos termos de convenção ou acordo internacional vigente, desde que se refiram a factos previstos como crime na lei portuguesa e permitam a identificação da pessoa a que se referem.” (fim de transcrição).
A situação ora em apreço, decorrente da mencionada sentença absolutória, não cabe em nenhuma daquelas sujeitas a inscrição no registo criminal.
Como se viu o tribunal a quo absolveu, sem mais e em respeito ao princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, os arguidos AA, BB, CC e DD, ora recorrentes, do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 5 do RGIT e 30º, n.º 2, do Cód. Penal, que nos autos lhes era imputado, sendo, salvo melhor opinião, inócua, para efeitos de registo criminal, as declarações contidas nas alíneas b), d), f), h) e j) do dispositivo da sentença.
Daí que ao pretender a Secção enviar os boletins à D.S.I.C., com a informação adicional constante das alíneas b), d), f), h) e j) da sentença em causa, o sistema não o permitiu, uma vez que os arguidos foram absolvidos, como e bem deu conta a Senhora Escrivã do Tribunal a quo na informação que lavrou ao abrir a supra citada conclusão.
A impossibilidade era não só real mas legal e é ao arrepio da lei, certamente convencida, mas mal, com o devido respeito, que o problema era de sistema informático, que a Mmª Juíza a quo profere a decisão recorrida.
Tal como é ao arrepio da autenticidade e veracidade do decidido na sentença, que foi absolutória, que nos boletins de registo criminal, emitidos em 28 de fevereiro de 2019, com referência à “Sentença” do “Processo: 427/10.0IDLSB”, da “Data: 02-10-2018”, com “Trânsito: a 02-11-2018”, é averbado, para todos e cada um dos cinco arguidos: “Condenação”, pelo crime de “Abuso de confiança fiscal. Suporte Legal: p. p. pelo art.º 105.º, n.º 1 e 5 do R.G. Infracções Tributárias e 30º e n.º 2 do C.P.”, com “Dispensa de pena” (cfr. fls. 7289 a 7293).
Sendo que, como resulta do Código Penal, só há “Dispensa de pena” em caso de condenação e não em situação de absolvição como sucedeu in casu.
Com efeito, quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal não aplicar qualquer pena se a culpa do agente for diminuta, o dano tiver sido reparado e a tal se não opuserem as exigências da recuperação do delinquente e da prevenção geral, como preceitua o artigo 74.º, do Código Penal. E ainda, no caso dos crimes contra a honra, nos termos dos artigos 186.º e 189.º, n.º 1, no dos crimes de perigo comum nos termos do art. 286.º, nos crimes contra a segurança das comunicações nos termos do art. 294.º e no dos crimes contra a realização da justiça nos termos do art. 364.º, todos do mesmo diploma.
Têm, pois, inteira razão os recorrentes quando alegam que o despacho recorrido é “manifestamente contraditório com o efeito jurídico da própria sentença”, e como também no apenso de reclamação considerou a Exmª Vice-presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa, a decisão contida nesse despacho “permitiu que o funcionário que a executou remetesse boletins de registo criminal dos arguidos/ reclamantes que (…) não estão em consonância com o decidido na sentença proferida em 2/10/2018.
Atrevemo-nos mesmo a afirmar que a situação gerada é não só ilegal como o processo, por via dela, correu o risco de aos poucos tomar, verdadeira e arrepiantemente, um rumo quase ao estilo Kafekquiano, o que não é expectável num Estado de Direito democrático, como aquele em que felizmente vivemos.
Em face do exposto e sem necessidade de mais considerandos, o recurso logra procedência e nessa conformidade impõe-se, como vem peticionado, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que ordene o cancelamento dos boletins de registo criminal em causa entretanto incorreta e indevidamente emitidos.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelos arguidos AA, BB, CC e DD, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene o cancelamento dos boletins de registo criminal entretanto emitidos.
Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, do CPP).
Notifique nos termos legais.

Lisboa, 10 de setembro de 2020
Calheiros da Gama
João Abrunhosa