Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
619/20.3GDALM.L1-9
Relator: MARIA JOÃO LOPES
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
RECEPTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. Há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre os factos e a fundamentação probatória da matéria de facto.
II. Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
III. O princípio in dubio pro reo pressupõe um estado de dúvida insanável, razoável, racional, objectivo e sério no espírito do julgador, perante versões contraditórias dos factos, mas igualmente plausíveis, fundadas e demonstráveis, não se bastando com a simples existência de versões díspares e até contraditórias.
IV. Ao remeter o recorrente para as suas declarações, cujo “início ocorreu pelas 10 horas e 8 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 51 minutos”, incumpre o mesmo o ónus que lhe é imposto no artigo 412.º/3, b) e 4 do CPP.
V. O crime de tráfico de estupefacientes em nada foi afectado pela entrada em vigor da Lei n.º 55/2023, de 8 de Setembro, que apenas passou a considerar que constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo a aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas a lei, que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
VI. O crime de receptação do art.º 231.º do Código Penal é de natureza dolosa, exigindo o n.º 1 o dolo direto, bastando-se o n.º 2, com a existência de dolo eventual.
VII. Embora o art.º 14.º da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, não exclua em absoluto a sua aplicação pela Relação (quando no recurso se imponha a aplicação do perdão por necessidade de libertação imediata do arguido ou risco de excesso de prisão), tal aplicação deve ser feita pela 1ª Instância, de forma a respeitar-se o duplo grau de jurisdição sobre a matéria.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. Por acórdão de 03-11-2023 foi o arguido AA, com os demais sinais dos autos, condenado
- pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, com referência às Tabelas I-B, I-C e II-A anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão;
- pela prática, em autoria material, de um crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão;
- na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão efetiva.
2. Inconformado, recorreu o arguido pedindo a revogação da decisão, absolvendo-o da prática dos crimes que lhe são imputados ou, caso assim não se entenda, suspenda a execução da pena de prisão que lhe foi imputada.
Alinhou as seguintes conclusões:
“1 – Foi o arguido condenado pelo Douto Acórdão na pena de dois meses de prisão pela prática em autoria material de um crime de recetação, p. e p. pelo artigo 231.º n.º 2 do CP, na pena de dois meses de prisão;
2 – Foi também o arguido condenado pela prática em autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º al. a) do DL 15/93 de 22.01, com referência às tabelas IB, IC e IIA anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 3 anos e dois meses de prisão.
3 – Tendo operado o cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão efectiva.
4 – Entende o arguido que a presente condenação não pode subsistir porquanto tanto a prova produzida em sede de audiência de julgamento, como a fundamentação do Douto Acórdão são insuficientes para condenar o arguido.
5 – No que concerne ao crime de recetação deu o Tribunal de que ora se recorre como provado que:
“4. Em data não concretamente apurada mas que ocorreu entre o dia 17/08/2020 e o dia 20/12/2020, o arguido AA comprou a referida bicicleta a indivíduo cuja identidade se desconhece por 30€ (trinta euros), sabendo que a mesma valia mais e admitindo como possível que a mesma tivesse sido furtada.
5. Ao agir da forma descrita o arguido quis e representou adquirir a referida bicicleta por valor inferior ao seu valor real, tendo admitido como possível que a mesma tivesse sido obtida ilicitamente por quem lha vendeu, com o propósito de assim obter uma vantagem patrimonial à qual não tinha direito, o que conseguiu.”
6 – Tendo o Tribunal, quanto a esta matéria dado como não Provado:
“b) Nas circunstâncias referidas em 4) e 5) o arguido sabia que a bicicleta havia sido furtada.”
7 - Sob a epígrafe Justificação da Convicção do Tribunal, concluiu o tribunal de que se recorre que: “…. Consentiu a busca ao café. A bicicleta que lá tinha era sua e comprou-a por trinta euros, não sabe o valor da bicicleta e não estanhou o preço.” (declarações prestadas pelo arguido a 20.12.2020 das 14:24h às 15:13, em sede de 1.º interrogatório judicial, em que mais nada lhe foi questionado sobre tal bicicleta, cfr. se pode verificar das gravações efectuadas pelo sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal).
8 – O arguido que, para evitar qualquer conflito, optou por ir residir e trabalhar na ..., onde refez a sua vida, encontrando-se a laborar com contrato de trabalho sem termo desde 2021, não obstante ter dado autorização para o julgamento se realizar na sua ausência, de modo a tentar colaborar com a justiça, pediu 3 dias de férias e deslocou-se a Portugal para se por ao dispor do Tribunal para que o pudessem inquirir sobre qualquer matéria, o que sucedeu no dia 20.10.2023, tendo este optado por dizer toda a verdade ao Tribunal e esclarecido tudo quanto lhe foi questionado, cfr. resulta da acta de audiência de julgamento do dia 20.10.2023, tendo o arguido prestado declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, tendo se consignando em acta que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 8 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 51 minutos.
9 – Nesta data o arguido porque questionado esclareceu que:
“As declarações prestadas pelo arguido, após a reabertura da audiência de discussão e julgamento, no dia 20/10/2023 , o qual declarou, em síntese, que comprou a bicicleta por trinta euros, mas a mesma estava muito estragada e ele arranjou-a. Confrontado com o valor que é indicado na acusação como sendo o valor da bicicleta (899 euros), afirmou que não tinha a mínima noção disso atendendo à maneira como ela estava, tinha as rodas estragadas, a suspensão estragada, não conseguia andar com ela, sendo que a fotografia que consta dos autos é a bicicleta depois de arranjada. Não se recorda quando a comprou mas comprou-a a um rapaz que costumava estar ao pé do seu café na ..., o ...”. A pessoa abordou-o e perguntou-lhe se queria comprar a bicicleta, foi a primeira vez que viu a bicicleta, pensa que o vendedor era mecânico porque ele estava sempre sujo de óleo. Não achou estranho o valor, da maneira como estava e não lhe perguntou de onde tinha arranjado a bicicleta. Posteriormente, o arguido declarou que comprou a bicicleta em agosto ou em setembro daquele ano e que a mesma tinha as rodas empenhadas, os pneus furados e a suspensão da frente estragada, mandou-a arranjar a um amigo seu, ao pé da ... pagou-lhe à volta de cento e cinco ou cento e dez euros, mas não tem nenhuma fatura nem documento relativamente a isso nem sabe o nome da pessoa a quem ele comprou a bicicleta. Ele passou, perguntou se queria comprar a bicicleta, conhecia-o de vista, o preço não era nada de especial, não lhe passou pela cabeça que a bicicleta era furtada. Quando voltou a ser questionado acerca do local onde reparou a bicicleta que comprou disse que tinha sido ao lado da .... Não sabia quanto é que a bicicleta valia nova. A bicicleta não era velha, só precisava de uns arranjos, de resto estava como nova. Não estava interessado em comprar uma bicicleta, aquilo foi uma oportunidade que lhe apareceu, não sabia quanto valia, mas tinha noção de que a bicicleta valia mais do que trinta euros.”
10 – Cumpre referir que o que o arguido disse foi que reparou a bicicleta na ... que é uma oficina que fica ao lado da ..., oficinas estas bem conhecidas de qualquer pessoa que viva na margem sul, sendo a ... especializada em reparações de Motas e a ...de bicicletas.
11 – No entanto e mesmo face à prova que se encontra escrita na Decisão condenatória conclui o Tribunal que:
“Tendo presente os sobreditos meios de prova, importa, desde logo salientar que a convicção do Tribunal, no que concerne aos factos descritos nos pontos 1) a 5) emergiu do exame do auto de notícia constante de fls. 133, constante de certidão extraída dos autos de inquérito com o NUIPC 764/20.5GCALM, em conjugação com o depoimento prestado pela testemunha BB que confirmou ter chamado a Guarda Nacional Republicana quando se apercebeu do furto de uma bicicleta pertencente a CC do interior da sua propriedade, sendo que no referido auto se consignou ter sido apresentada a denuncia no dia 17/08/2020. Por seu turno, resulta do teor de fls. 17 que a bicicleta em causa foi reconhecida por CC, que lhe atribuiu o valor de aquisição de novecentos euros (em 2018), a qual lhe foi entregue em 20/12/2020. Relativamente ao facto do arguido se encontrar na posse da referida bicicleta no dia 20/12/2020, tal não só resulta do teor do auto de notícia de fls. 3 a 4 e do registo fotográfico n.º 17, de fls. 14, como também o arguido, em 21 /12/2020, quando prestou declarações em primeiro interrogatório judicial, afirmou que tinha comprado a bicicleta há um mês pelo valor de trinta euros, o que igualmente confirmou nas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento em 20/10/2023. Relativamente ao valor económico da bicicleta que o arguido tinha na sua posse – facto do ponto 2) - atendeu-se não só ao teor do auto de notícia de 17/08/2020 (cfr. fls. 133), no qual é mencionado, de acordo com a indicação do denunciante, um valor de a valiação de 899€ e ao auto de reconhecimento de 20/12/2020 (cfr. fls. 17), em que é referenciado o valor de aquisição, em 2018, de 900€ (novecentos euros), como também às características e modelo da bicicleta (bicicleta marca Focus, modelo Whistler, roda 29´, segmentos Shimano DEOR XT, quadro tamanho M e pneus da marca Continental – cfr. descrição constante do auto de reconhecimento de fls. 17) que, conforme decorre do registo fotográfico de fls. 14 (fotografia n.º 17), se encontrava em bom estado de conservação, pelo que se conclui, sem dificuldade, face aos valores normais de comercialização destes veículos, que a bicicleta teria, pelo menos, o valor de cerca de oitocentos euros. Ora, apesar do arguido ter afirmado não ter estranhado o facto daquela bicicleta lhe ter sido vendida por aquele valor, tendo em consideração a sua marca, modelo e características (bicicleta marca Focus, modelo Whistler, roda 29´, segmentos Shimano DEOR XT, quadro tamanho M e pneus da marca Continental), valor de aquisição (cerca de novecentos euros dois anos antes) e estado em que se encontrava (cfr. registo fotográfico de fls. 14), entende-se que o mesmo não poderia deixar de ter suspeitado da sua proveniência, atendendo à quantia que entregou para a sua aquisição (trinta euros). Com efeito, ainda que o arguido tenha afirmado, nas declarações que veio a prestar em audiência de discussão e julgamento no dia 20/10/2023, que recebeu a bicicleta em “mau estado”, certo é que reconheceu que a mesma não era velha, que “só precisava de uns arranjos” e que “de resto estava como nova” (sic) bem como que se apercebeu, quando a comprou, que valia mais do que aquele preço. Face às próprias declarações do arguido, conclui-se que o referido velocípede não estaria em condições muito distintas daquelas em que foi apreendido. Quanto à reparação do veículo, a que o arguido apenas fez menção nas últimas declarações que prestou e que olvidou no primeiro interrogatório judicial, julga-se tal facto inteiramente inverídico, porque o arguido não forneceu qualquer pormenor que o sustente (não tem memória do nome da pessoa e até do local, que a primeira refere situar-se perto da “...e à segunda à “...”), sendo inconsubstanciado em qualquer meio probatório. Outrossim, em face dos elementos de prova recolhidos, designadamente as declarações do arguido e as características da bicicleta apreendida na sua posse, não poderão subsistir dúvidas de que o mesmo, ao menos, admitiu como possível, que a referida bicicleta tinha proveniência ilícita, pois nenhuma outra explicação poderá haver para a ter adquirido (conforme afirmou) a um preço muito inferior daquele que era, manifestamente, o seu valor económico (mesmo admitindo a possibilidade da bicicleta precisar de reparações quando foi adquirida pelo arguido). Além do mais, o arguido declarou expressamente, em audiência, não ter questionado o vendedor acerca da proveniência da referida bicicleta, o que permite aduzir, face ao seu valor e às circunstâncias em que a adquiriu (a uma pessoa que circulava na ... e que o abordou), que o mesmo não poderia deixar de suspeitar da sua proveniência ilícita. Deste modo, concluiu o Tribunal que o arguido admitiu como possível que a bicicleta tivesse sido obtida ilicitamente por quem lha vendeu, tendo-a comprado, com vista a obter a vantagem patrimonial decorrente da diferença entre o valor real daquele objeto e o valor pelo qual o adquiriu, muito inferior – materialidade que se deu como assente no ponto 5).”
12 – Cumpre referir que nunca lhe haviam perguntado sobre reparações efectuadas no veículo e que não nos parece nada anormal que, quando se compra uma bicicleta que não anda, cuja marca e modelo o arguido sempre afirmou desconhecer, bem como o valor inicial de aquisição, também ninguém pediu uma factura ao Senhor alvo do furto, nem lhe questionou se o veículo foi comprado em alguma campanha, é certo que o arguido para poder usufruir da bicicleta estragada que adquiriu necessitou gastar dinheiro e de a reparar, não se podendo assim concluir que o arguido tenha sequer lhe passado pela cabeça, quanto mais admitido que a bicicleta tivesse uma proveniência ilícita, estamos a falar de uma bicicleta com mais de dois anos avariada, a conclusão a que o Tribunal chegou é ilógica e arbitrária, não podendo subsistir.
13 - É verdade que a prova dos factos em processo penal não tem de ser direta, pode ser indireta. Como se refere, entre outros no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de maio de 2010, proc. nº 86/06.0GBPRD.P1.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Soares Ramos (sum. in www.dgsi.pt): «Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art.º 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art.º 349.º do CC).
14 - As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).»
15 - Importa, porém, não olvidar um princípio estruturante do processo penal: o de que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade. Na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), vale o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e a regra, seu corolário, in dubio pro reo.
16 - A questão reside, então, em saber se o facto o arguido ter adquirido uma bicicleta usada, que não era utilizável, porquanto se encontrava avariada, tendo tido necessidade de gastar tempo e dinheiro para a arranjar a fim de a poder utilizar, é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que o arguido tinha de admitir como possível que a referida bicicleta tinha proveniência ilícita. E parece-nos que não.
17 – É muito provável (dizem-no as regras da experiência) que as pessoas por vezes equacionem quando compram um bem em segunda mão por um valor bastante acessível que este possa ser furtado, mas quando o bem está avariado e necessita de ser consertado para poder ser utilizado, tendo a pessoa de dispor de dinheiro e tempo para poder utilizar o bem danificado, que qualquer pessoa, colocada na mesma situação que o arguido não lhe passe sequer pela mente que tal objecto seja furtado e não do próprio que não está na disponibilidade de gastar dinheiro no arranjo da bicicleta, seja por que motivo for.
18 – Pelo que nos parece, pelo menos razoável, por um lado, a dúvida de que o arguido possa sequer ter equacionado a origem ilícita do bem danificado que adquiriu. Mesmo que se considerasse pouco provável, não podemos dizer que está, razoavelmente, de todo afastada essa hipótese. O lapso de tempo que mediou entre a data da prática do furto e a data da aquisição da bicicleta e o estado em que a mesma se encontrava quando foi adquirida, não é tão curto que torne de todo improvável tal hipótese, sem que isso represente, cogitar hipóteses porventura absurdas, e não nos digam que a livre apreciação de prova permite que existindo mais de uma explicação é legal que o Tribunal tenha outro entendimento e decida in dibio (sic) contra reo, porque o facto de ter mais de uma explicação, não representa que o Tribunal tenha tido qualquer dúvida.
19 – De facto o Tribunal de que se recorre não teve qualquer dúvida, mas imperava que o tivesse e que tivesse decidido conforme manda a Lei, in dúbio pro reo.
20 – Não basta dizer que como o Tribunal não teve dúvidas não se pode apreciar a matéria que se impugna, pois não basta a discordância do arguido, a discordância do arguido encontra-se fundamentada e se o mesmo não pudesse discordar das Decisões que considera serem incorretas e injustas qual é a lógica do Direito ao recurso consagrado constitucionalmente?
21 – Alega-se desde já a interpretação ilegal e inconstitucional do artigo 127.º do CPP na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal de que se recorre e supra indicada, pois esta é inconstitucional por nítida violação do princípio in dúbio pro reo.
22 – Deste modo, porque devemos considerar que, à luz do princípio in dubio pro reo, estamos perante erro notório de apreciação da prova e a prova produzida não permite a condenação do arguido, impõe-se dar provimento ao recurso e absolver o arguido do crime de recetação pelo qual foi condenado.
23 – Mais nem no inquérito, nem no julgamento não constam elementos de prova que permitam concluir que o arguido conhecia a proveniência ilícita do bem que adquiriu;
24 - Sendo que o preço pelo qual o adquiriu não é em si mesmo suficiente para gerar desconfiança no arguido até porque este não conhecia o preço “de mercado” do bem que adquiriu, sendo certo que o registo fotográfico de fls. 14, data em que a mesma foi apreendida ao arguido, demonstra a bicicleta já arranjada;
25 - E como resulta das declarações prestadas pelo arguido e plasmadas no texto do acórdão, que a bicicleta tinha as rodas empenadas, os pneus furados e a suspensão da frente estragada, não lhe tendo passado pela cabeça que o bem era de proveniência ilícita, atendendo a que era usada e aparentava estar pouco cuidada;
26 - Pelo que o arguido nem sequer suspeitou da proveniência ilícita dos bens, tendo agido de boa fé;
27 - Entregando o bem adquirido às autoridades logo que lho foi pedido e tendo desde logo informado que a havia adquirido há cerca de 2 meses e não em Agosto ou Setembro cfr. decorre do acórdão, os factos datam do dia 20 de Dezembro de 2020.
28 - Da estrutura típica do crime de receptação, nos termos p. e p. pelo artigo 231º, n.º 2, do Código Penal e da análise dos factos vertidos na acusação a este respeito:
29 – O arguido foi condenado pela prática do crime de receptação, nos termos p. e p. pelo artigo 231º, n.º 2, do Código Penal.
30 - A norma em causa estatui que “Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias.”.
31 - A interpretação da norma em apreço tem suscitado na doutrina e na jurisprudência diversas questões, sendo a mais relevante a de saber se a norma em causa prevê e admite a comissão deste crime por negligência (consciente ou inconsciente), ou se apenas se admite o dolo, nomeadamente o dolo eventual.
32 - Por outras palavras, e quanto à proveniência ilícita do bem, podemos conjecturar três possíveis atitudes mentais do agente, a saber:
a) O agente nem tão pouco desconfiou da proveniência ilícita do bem mas podia e devia tê-lo feito se agisse com a diligência que lhe era exigível (negligência consciente – artigo 15º, al. b) do Código Penal);
b) O agente desconfiou que o bem poderia ter proveniência ilícita do bem mas confiou que tal não sucederia (negligência consciente – artigo 15º, al. a), do Código Penal);
c) O agente admitiu como possível que o bem tivesse proveniência ilícita e conformou-se com essa possibilidade (dolo eventual – artigo 14º, n.º 3 do Código Penal).
33 - Como já se mencionou na acusação e agora no Acórdão condenatório afirma-se que o arguido podia e devia razoavelmente conhecer que, dado o preço abaixo do preço de mercado e o estado do bem adquirido, esse bem tinha uma proveniência ilegítima.
34 - Tais factos, a limite integrariam apenas a negligência inconsciente, pois não se refere que o arguido de facto desconfiou da proveniência ilícita do bem nem que se conformou com tal possibilidade.
35 - Coloca-se, pois, a questão de saber – este tipo legal admite a comissão por negligência?
36 - A doutrina e jurisprudência mais “tradicional” tende no sentido de que o crime de receptação previsto no artigo 231º, n.º 1, do Código Penal configura a forma dolosa desse ilícito, ao passo que o n.º 2, desse mesmo artigo prevê a sua forma “culposa” ou negligente, sem excluir também o dolo eventual.
37 - Neste sentido podemos encontrar o ao nível da jurisprudência Ac. da Rel. de Lisboa de 13-04-2010 (proc. n.º 1863/07.4PBPDL.L1-5, in www.dgsi.pt), que admite que o citado n.º 2 abrange tanto o dolo eventual como a negligência, citando em apoio desta tese – entre outros – a posição de Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do CP, Dez2008, UCE, pág. 638, nota 19).
38 - Também o Ac. da Relação de Guimarães de 17-10-2005 (proc. n.º 1335/05-1), interpreta o artigo 231º, n.º 2, do CP como integrando uma conduta negligente.
39 - Naturalmente foi também esta a posição assumida pelo Tribunal de que se recorre aquando da condenação do arguido.
40 - No entanto, ponderados os vários argumentos a considerar, pendemos para a posição assumida por Pedro Caeiro (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra, 1999, pág. 496 a 498.), no sentido de que este tipo legal de crime é exclusivamente doloso, exigindo
41 - Para além dos argumentos de ordem histórica citados na obra em apreço, que nos absteremos de reproduzir, não podemos deixar de considerar que a existência de um tipo de crime negligente que não fizesse menção expressa desse facto seria a todos os níveis uma aberração do ponto de vista da construção sistemática e da harmonia do Código Penal.
42 - Isto porque o artigo 13º, do Código Penal estatui que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, por negligência.”.
43 - Para clarificar este comando (e porque a clareza legislativa é um objectivo essencial na definição das condutas criminalmente puníveis) o legislador teve pois o cuidado de criar tipos negligentes autónomos (ex. artigos 137º, 148º e 228º do Código Penal) ou então a introdução no artigo que prevê o crime de um número que prevê expressamente a punição por negligência sem alterar os elementos objectivos do tipo (ex. artigos 156.º, n.º 3, 272.º, n.ºs 2, 274.º, n.º 5, 277.º, n.ºs 2 e 3, 278.º, n.º 3, 279.º, n.º 2 e 280.º, al. b), todos do Código Penal).
44 - Note-se pois que o princípio Nulla poena sine lege, segundo o qual só são criminalmente puníveis os comportamentos como tal definidos na lei, tem diversos requisitos que são já sedimentados na nossa legislação, bem como na nossa doutrina e jurisprudência.
45 - Este princípio tem, pois, sido analisado e “decomposto” em diversas asserções, que se exprimem pelas expressões:
46 - Nulla poena sine lege praevia – as condutas criminalmente puníveis devem sê-lo por lei anterior à sua prática;
Nulla poena sine lege scripta – as leis penais devem ser escritas e públicas;
Nulla poena sine lege certa – As leis penais devem ser claras e suficientemente definidas de modo a permitir aos cidadãos ter consciência dos comportamentos puníveis de modo a poderem adequar a sua conduta em conformidade;
Nulla poena sine lege stricta – Apenas os comportamentos expressamente previstos na lei são puníveis, não sendo admissível a interpretação analógica da lei penal.
47 - Por outro lado, o artigo 9º, n.º 3, do Código Civil, estatui que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.
48 - Temos pois que o Código Penal exprimiu o princípio geral de que a punição criminal por negligência só existe quando especialmente prevista na lei e ao longo do Código Penal sempre que se mencionam condutas puníveis por negligência, esta é expressamente mencionada.
49 - Tendo em conta o grau acrescido de certeza e definição que deve ter a lei penal e o princípio hermenêutico de que o intérprete deve presumir que o legislador se exprimiu “em termos adequados”, entendemos que caso o legislador tivesse pretendido prever um tipo negligente no n.º 2 do artigo 231º, do Código Penal, tê-lo-ia afirmado de modo a não deixar dúvidas.
50 - Neste sentido encontramos também os Acórdãos da Relação de Guimarães de 14-09-2009 (proc. n.º 869/02.4PBGMR) e da Relação do Porto de 03-04-2013(310/12.4TDPRT.P1, todos in www.dgsi.pt.).
51 - Somos, pois, forçados a concluir que, não contendo a acusação todos os elementos de factos que preenchem o tipo legal de crime – por faltarem os factos que permitiriam integrar o dolo, mesmo na sua modalidade de dolo eventual – outra solução não é possível que não a absolvição do arguido quanto a estes factos.
52 - Quanto a esta conclusão, louvamo-nos da doutrina do AUJ n.º 1/2015 (publ. no DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27), onde se decidiu que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal.” Que foi exactamente o que se tentou fazer no caso em concreto.
53 – O crime de receptação previsto no artigo 231.º, n.º 2 do Código Penal contém um tipo doloso, não podendo ser punido a título negligente.
54 - A referida conclusão decorre não só da interpretação literal do preceito, como à luz do princípio da legalidade (artigos 29.º n.º 1, da Constituição, e artigo 1.º, do CP), como ainda dos princípios nulla pena sine lege e da intervenção mínima.
55 - Mais se concluiu que, em julgamento, tal situação teria de ter tido como consequência necessária a absolvição do arguido, o que deveria ter sucedido e que se impõe.
54 – Quanto ao crime de trafico de menor gravidade pelo qual o arguido foi condenado:
55 - Não é decisivo para se poder concluir pela realidade dos factos descritos na acusação que haja provas diretas do seu cometimento pelo arguido, designadamente que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticá-los ou que o próprio arguido os assuma expressamente. Condição necessária, no entanto, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que os factos se passaram da forma narrada na acusação;
56 – Neste caso em concreto o arguido nega que tenha procedido a qualquer venda de produto estupefaciente e que na arrecadação comum do prédio onde se localizava o café que havia arrendado, tal consta do contrato de arrendamento que o arguido juntou aos autos em sede de inquérito e que é identificado na Decisão condenatória, guardava alguns bens do café que explorava , nomeadamente umas grades de cervejas e que no meio das grades tinha escondido o haxixe para seu consumo, o qual se encontrava a cortar quando foi detido pela GNR.
57 – No entanto veio o arguido a ser condenado por todos os produtos estupefacientes que foram encontrados numa arrecadação comum que para além de ter produtos estupefacientes tinha também diversos bens que até hoje ninguém quis apurar a quem pertenciam e quem os havia lá colocado, sem que ninguém quisesse também saber quantas pessoas tinham acesso e as chaves da referida arrecadação, ora bem tinha droga na arrecadação, portanto se o arguido estava no seu interior toda a droga que lá foi encontrada é de sua pertença. E assim se faz justiça. Não é o que resulta da prova, cfr. acta de audiência de julgamento do dia 20.10.2023, tendo o arguido prestado declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, tendo se consignando em acta que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 8 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 51 minutos.
58 – Percebo que os Tribunais estejam cansados de ouvir as mais mirabolantes histórias por parte dos arguidos, não consigo é perceber, provavelmente por ser néscia, e talvez até romântica por acreditar nas pessoas e na Justiça, que quando ao invés de fazer uso do seu Direito ao Silencio o arguido desloca-se ao Tribunal para contar a verdade, explicar que de facto consumia muito haxixe na data em que foi detido, que não raciocinava devidamente, que se encontrava “com a cabeça no ar”, confuso e com medo de ser preso, confessando efectivamente onde se encontrava e a fazer o quê, não obstante os militares da GNR no posto, o terem feito assinar uma autorização de busca, completamente desnecessária para efectuarem a busca na arrecadação que se encontrava com a porta escancarada, encontrando-se o arguido no seu interior a partir um bocado de haxixe para seu consumo, tendo o arguido se deslocado a Portugal, apenas e tão só, com o fim de se apresentar no Tribunal e explicar porque havia faltado à verdade nas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo este perante o colectivo, assumido a sua conduta e a sua adição, seja o mesmo punido de modo tão severo e ilegal, decidindo o Tribunal, tendo em conta os antecedentes criminais, condenar o arguido numa pena efectiva de prisão, que efectivamente apenas alcançará a sua desinserção.
59 – Quanto aos antecedentes criminais do arguido cumpre referir que todas as penas a que o mesmo foi condenado foram cumpridas efectivamente, cfr consta do CRC, e mais uma vez o Tribunal, não obstante o mesmo se ter afastado completamente do consumo das drogas e se encontrar integrado social e laboralmente, o que permite que sustente os seus três filhos, entenda que a única pena passível de ser aplicada ao arguido é uma pena efectiva, entende-se que o Tribunal ao concluir deste modo violou os artigos 50.º, 70.º, 71.º, 72.º n.º 1 e 2 al. d), mesmo que não procedesse qualquer um dos argumentos que supra se expenderam e que infra melhor se explanarão.
60 – Ou seja mesmo que o recurso não merecesse provimento quanto à impugnação dos factos sempre se terá de concluir que é contra o fim ultimo das penas aplicar a prisão efectiva, neste caso em concreto, atendendo a tudo quanto se verteu na Douta Decisão, da qual agora se recorre, não podendo deixar de se aplicar, neste caso em concreto o instituto da suspensão da pena de prisão ao arguido.
61 - No entanto sempre se dirá também que, dentro do quadro probatório global a apreciar existem, para além da prova direta, os procedimentos lógicos para prova indireta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
62 - Estas, ou seja, a noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349.º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido;
63 - Importa, neste âmbito, chamar à colação as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência;
64 - Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar;
65 - A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção;
66 - Mas a consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção. Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido;
67- Em síntese a presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável;
68 - Tem de existir e ser revelado pelo Tribunal na sua fundamentação, o percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões, coisa que não é legalmente admissível.
69 – Ora a decisão quanto ao crime de trafico de menor gravidade pelo qual o arguido foi condenado dá como provado que:
“6. No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas no anexo do café “...” sito na ..., o arguido procedia ao corte de canabis, para entrega a DD, a troco de dinheiro.”
70 – Ora tanto o arguido, como o Senhor DD negaram peremptoriamente tal facto em sede de audiência e os militares da GNR também não viram os arguidos sequer a conversarem, cfr. melhor resulta do texto da Douta Decisão.
71 – Considerou também o Tribunal como provado que:
“8. Ao agir da forma descrita o arguido AA, quis e representou deter na sua posse cocaína, canábis e MDMA para a entregar a troco de dinheiro a terceiros que o procuravam para efeito, retirando o consequente benefício económico que daí adviesse, o que conseguiu.
9. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes das substâncias que detinha e que cedia a terceiros, o que não o demoveu da sua conduta”
72 - Constando da matéria de facto não provada:
c) Desde data não concretamente apurada até pelo menos 20/12/2020 que o arguido adquiriu canábis, MDMA e cocaína para a entregar a terceiros que o procurassem para o efeito, a troco de dinheiro.
d) No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas, no anexo do café “...” sito na ..., o arguido vendeu a EE, canábis pelo preço de 10 € (dez euros).”
73 – Existe contradição insanável entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto não provada nos termos do artigo 410.º n.º 2 al. b) do CPP, cumprindo repor a verdade material dos factos e absolver o arguido do crime pelo qual foi condenado.
74 – Não olvidamos que consta do ponto 7 da matéria de facto dada como provada uma extensa lista de alguns dos objectos encontrados na arrecadação aquando das buscas, desconhece-se porque não se encontram elencados todos os objectos que ali se encontravam e como pode o tribunal afirmar tal facto como provado se resulta da fundamentação que tais itens não estavam na posse do arguido e sim no interior de uma arrecadação comum do prédio, a que todos os moradores e outras pessoas tinham acesso.
75 – Parece-nos que o texto da Douta Decisão verifica-se uma apetência para decidir in dúbio contra reo e tal não pode suceder.
76 – Não basta dizer-se que nenhum militar viu qualquer acto de venda, a testemunha nega que tenha sequer contactado o arguido que estava num outro café na companhia de uma outra pessoa, o arguido refere em primeiro interrogatório judicial que falou e tomou café no seu café com um FF, não se recordando passado este tempo, o que se mostra natural e razoável atendendo à quantidade de produto estupefaciente que este consumia à data e o nervosismo de passados estes anos e ter refeito a sua vida ter de se apresentar em audiência e confessar que mentiu em sede de primeiro interrogatório judicial.
77 – Estamos a falar do bairro do ... em que um carro de patrulha caracterizado para e que três ou quatro militares da GNR devidamente uniformizados saem do carro atravessam a rua dirigem-se à arrecadação e ninguém avisa ninguém, se se tratasse de trafico de estupefacientes, de venda de produtos estupefacientes é óbvio que existiriam vigias, e é óbvio que o arguido não estaria de porta e arrecadação escancarada a cortar um pedaço de haxixe que sempre afirmou que adquiriu para seu único e exclusivo consumo.
78 – Nada do que consta da fundamentação consegue afastar a afirmação do arguido que não praticou qualquer acto de venda e que o estupefaciente que detinha era para seu único e exclusivo consumo.
79 – Assim tendo em conta a Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, que clarifica o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade que vem alterar o artigo 40 da Lei 15/93 de 22.01, refere expressamente no seu n.º 4 que 4 “No caso de aquisição ou detenção das substâncias referidas no n.º 1 que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência, pelo que deverá o arguido ser absolvido do crime de tráfico de menor gravidade.
80.º - Por fim, cumpre esclarecer que o arguido detinha à data dos presentes factos 32 anos de idade, devendo-lhe ser aplicada, caso se entenda ser de condenar o arguido o perdão da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.
81 - 3, é entendimento do arguido que a discriminação positiva do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto em função da idade é inconstitucional por violação dos artigos 13.º da CRP e 21.º da CDFUA, o que por sua vez importa na violação dos n.ºs 2.º e 3 do artigo 3.º, n.º 1 do artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 18.º, todos da CRP,
82 - Razão pela qual, beneficia, também ele, do regime de perdão de penas e amnistia emergente da referida Lei relativamente aos ilícitos penais pelos quais tenha sido condenado e que não se encontrem excepcionados no artigo 7º da referida Lei.
83 - No mesmo sentido vai a douta sentença proferida no âmbito do Processo n.º 29/23.0PAMGR, que correu seus termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande – Juiz 1.
Nestes Termos e nos Demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão deve o presente recurso merecer provimento e o arguido ser absolvido, caso assim não se entenda deve a pena de 3 anos e 3 meses aplicada ao arguido ser suspensa na sua execução, só assim se fazendo Douta e Costumada Justiça.
(…)”
3. Admitido o recurso, o MP, sem apresentar conclusões, respondeu pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida.
4. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se a Srª. Procuradora Geral Adjunta, igualmente, no sentido da improcedência do recurso, acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público em Primeira Instância e acrescentando que,
“(…)
Relativamente à pretendida impugnação de matéria de facto verifica-se não ter o recorrente dado integral cumprimento ao disposto nos nsº 3 e 4 do art.º 412º do CPP.
Na verdade, o recorrente não concretiza, como determina a alínea a) do nº3 do referido artigo, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, por referência concreta aos pontos da matéria de facto tida como provada no acórdão.
Não indica, em concreto, qual a alteração que se impõe, não referindo qual a nova redação que deve passar a ter cada ponto concreto ou a mudança para provado/não provado que se imporia.
Por fim: Não indica para cada ponto concreto que pretende ver alterado, qual é a concreta passagem do depoimento que imporia essa alteração.
Por outro lado, ao invocar a existência dos vícios elencados no nº 2 do art.º 410º do CPP, verifica-se que o recorrente não delimita, por referência ao texto do acórdão, onde tais vícios ocorrem.
Os vícios previstos no art.º 410º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correta conforme á lei, na expressão do acórdão do STJ de 5.11.1997 (proc. 97P549, em www.dgsi.pt).
E tais vícios de lógica jurídica manifestamente não se vislumbra onde possam ocorrer no texto do acórdão proferido, de per si ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Em face do exposto, deverá a matéria de facto tida como provada e não provada dar-se como definitivamente fixada.
A clareza e amplitude da fundamentação aduzida no acórdão condenatório, quer quanto a matéria de facto, quer de direito, permite ao tribunal de recurso verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária ou violadora das regras da experiência comum, requisitos reiteradamente definidos pelos necessários, designadamente pelo STJ e pelo TC.”
5. No cumprimento do estatuído no artigo 417.º/2 do CPP, nada mais foi acrescentado.
6. No exame preliminar a relatora deixou exarado o entendimento de que nada obstava ao conhecimento do recurso, que, por sua vez, havia sido admitido com o regime de subida adequado.
7. Seguiram-se os vistos legais.
8. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
*
II. Fundamentação
1. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º/2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).
Assim e tenho presente, ainda, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, então, as questões suscitadas no presente são,
- se verificam os vícios das alíneas b) e c) do artigo 410.º/2;
- se foi violado o princípio in dubio pro reo;
- se existiram erros de julgamento;
- a verificação dos elementos constitutivos dos tipos legais de receptação e tráfico de estupefacientes de menor gravidade;
- se o Tribunal a quo violou os artigos 50.º, 70.º, 71.º, 72.º n.º 1 e 2 al. d) do CP;
- se deve o arguido beneficiar do perdão previsto na Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.
2. No que à matéria de facto concerne, consta da decisão recorrida, para o que agora interessa, o que a seguir se transcreve:
“(…)
II. FUNDAMENTAÇÃO
1.1) Matéria de facto provada
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão de mérito:
1. No dia 17/08/2020, entre as 20:00 e as 22:00 horas, individuo ou indivíduos cuja identidade se desconhece, subiram o muro do logradouro da residência de GG, sita na ..., introduzindo-se no seu interior.
2. De seguida, dirigiram-se para a garagem, que estava com o portão aberto, de onde retiraram, levaram consigo e fizeram sua a bicicleta da marca Focus, de cor cinzenta e laranja, no valor de cerca de 800 € (oitocentos euros).
3. Factos que deram origem ao processo de inquérito com o NUIPC 764/20.5GCALM.
4. Em data não concretamente apurada mas que ocorreu entre o dia 17/08/2020 e o dia 20/12/2020, o arguido AA comprou a referida bicicleta a individuo cuja identidade se desconhece por 30 € (trinta euros), sabendo que a mesma valia mais e admitindo como possível que a mesma tivesse sido furtada.
5. Ao agir da forma descrita o arguido quis e representou adquirir a referida bicicleta por valor inferior ao seu valor real, tendo admitido como possível que a mesma tivesse sido obtida ilicitamente por quem lha vendeu, com o propósito de assim obter uma vantagem patrimonial à qual não tinha direito, o que conseguiu.
*
6. No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas no anexo do café “...” sito na ..., o arguido procedia ao corte de canabis, para entrega a DD, a troco de dinheiro.
7. Nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar o arguido detinha na sua posse:
- 2 (dois) rolos de papel aderente para embalar produto estupefaciente;
- 2 (duas) embalagens de redrate para misturar com produto estupefaciente;
- 1 (uma) balança de precisão;
- 30 (trinta) sacos zip;
- 17 (dezassete) cartões SD com 8GB;
- 2 (dois) cartões SD 16GB;
- 1 (um) saco de plástico com 8,413 gramas de canábis em sumidades, suficiente para 12 (doze) doses individuais;
- 56,800 gramas de canábis em resina, suficiente para 215 (duzentas e quinze) doses individuais;
- 1 (um) saco de plástico com 18,723 gramas de MDMA, suficiente para 108 (cento e oito) doses individuais;
- 1 (um) saco de plástico com 14,044 gramas de cocaína, suficiente para 52 (cinquenta e duas) doses individuais;
- 1 (um) saco de plástico com 3,745 gramas de cocaína, suficiente para 4 (quatro) doses individuais;
- 8 (oito) sacos de plástico com 0,767 gramas cocaína, suficiente para 19 (dezanove) doses individuais;
- 77,05€ (setenta e sete euros e cinco cêntimos) em notas e moedas do Banco Central Europeu.
8. Ao agir da forma descrita o arguido AA, quis e representou deter na sua posse cocaína, canábis e MDMA para a entregar a troco de dinheiro a terceiros que o procuravam para efeito, retirando o consequente benefício económico que daí adviesse, o que conseguiu.
9. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes das substâncias que detinha e que cedia a terceiros, o que não o demoveu da sua conduta.
10. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Das condições pessoais do arguido:
11. Por decisão proferida pelo Tribunal de Execução de Penas em 02/04/2019 tinha sido concedida a liberdade condicional ao arguido pelo tempo de prisão que lhe faltava cumprir, isto é, até 04/12/2020.
12. Desde então o arguido passou a explorar o estabelecimento de café “...”, auferindo, em dezembro de 2020, com a companheira, rendimentos globais de mil e quinhentos euros que não declarava à autoridade tributária.
13. Em dezembro de 2020, o arguido vivia com a companheira e dois filhos menores de idade.
14. O arguido tem outro filho menor, então com dez anos de idade, o qual vivia com a mãe, a quem o arguido entregava cento e cinquenta euros a título de alimentos.
15. Vivia numa casa camarária, pela qual pagava doze euros de renda, tendo ainda como despesas a quantia de trinta e quatro euros de creche de um dos seus filhos e oitenta euros de prestação mensal para aquisição de um eletrodoméstico.
16. Atualmente e desde novembro de 2021, que o arguido reside e trabalha na ....
17. O arguido encontra-se separado, vivendo sozinho.
18. Trabalha numa empresa de …, auferindo o rendimento mensal bruto de 4.000 francos, correspondente ao valor líquido de 3.200 francos.
19. Tem como despesas fixas mensais 1.300 francos de renda de casa e 400 francos de seguro de vida.
20. Ao filho mais velho o arguido continua a enviar mensalmente 150 euros.
21. Para os outros dois filhos o arguido envia mensalmente 500 euros de modo a contribuir para as demais despesas da casa (água, luz, internet).
22. À data dos factos, 20/12/2020, o arguido era consumidor de canabis, destinando parte desse estupefaciente ao seu consumo, sendo que, atualmente o arguido declarou que já não consome estupefacientes.
23. Tem como habilitações literárias o 7.º ano de escolaridade.
24. Em território nacional o arguido mantém residência na ....
25. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:
(1) No âmbito do processo n.º 647/07.4GDALM, do Tribunal Judicial da Comarca de Almada, 1.º Juízo de Competência Criminal, foi condenado, por decisão proferida em 21/07/2009, transitada em julgado em 21/09/2009, pela prática, em 19/11/2007, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por 5 anos, com regime de prova, a qual foi declarada extinta por decisão proferida em 02/06/2016;
(2) No âmbito do processo n.º 724/15.8GDALM, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Almada, Juiz 3, foi condenado, por decisão proferida em 29/04/2016, transitada em julgado em 30/05/2016, pela prática, em 24/11/2015, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa por 1 ano e 2 meses, a qual foi declarada extinta por decisão proferida em 22/11/2017;
(3) No âmbito do processo n.º 69/15.3PEALM, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Almada, Juiz 1, foi condenado, por decisão proferida em 03/11/2016, transitada em julgado em 23/11/2017, pela prática, em 04/12/2015, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93, na pena de 5 anos de prisão;
(4) No âmbito do processo n.º 11/16.4JASTB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Criminal de Setúbal, Juiz 4, foi condenado, por decisão proferida em 13/02/2017, transitada em julgado em 15/03/2017, pela prática, em 17/01/2016, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 25.º do Decreto-lei n.º 15/93, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 2 anos e 6 meses, com regime de prova, a qual foi declarada extinta por decisão proferida em 27/11/2019.
*
1.2) Matéria de facto não provada
Da audiência de discussão e julgamento não resultou provado que:
a) O NUIPC 764/20.5GCALM encontra-se arquivado.
b) Nas circunstâncias referidas em 4) e 5) o arguido sabia que a bicicleta havia sido furtada.
c) Desde data não concretamente apurada até pelo menos 20/12/2020 que o arguido adquiriu canábis, MDMA e cocaína para a entregar a terceiros que o procurassem para o efeito, a troco de dinheiro.
d) No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas, no anexo do café “...” sito na ..., o arguido vendeu a EE, canábis pelo preço de 10€ (dez euros).
*
1.3) Justificação da convicção do tribunal
Em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cumpre expor, de forma tanto quanto possível, completa, ainda que concisa, os motivos que fundamentam a antecedente decisão fática, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Assim, fundamentaram a antecedente decisão fáctica e contribuíram para formar a convicção do Tribunal, os seguintes elementos de prova produzidos e examinados em audiência de discussão e julgamento:
- O teor da prova documental de fls. 3/4 (auto de notícia); 12 a 14 (relatório fotográfico); 17 (auto de reconhecimento de objetos); 18 (termo de entrega); 21 (declaração); 22 a 24 e 28 (auto de apreensão); 25 (auto de pesagem); 26 (teste rápido); 32 (copia de contrato de arrendamento); 132 a 133 (certidão extraída dos autos de inquérito com o NUIPC 764/20.5GCALM), 255 (informação da D.G.R.S.P.) e 277 a 282 (Certificado de Registo Criminal);
- O teor da prova pericial de fls. 137 a 145 e 168 (relatório); 146 e 148 (CD’s); 181 a 183 (relatório de exame pericial do LPC);
- As declarações prestadas pelo arguido, no dia 21/12/2020 em sede de primeiro interrogatório judicial, reproduzidas em audiência de discussão e julgamento (nos termos dos artigos 355.º, n.º 1 e 2, 356.º, n.º 9 e 357.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal) o qual declarou, em síntese, ser mentira que dedicasse à venda de estupefacientes. Afirmou que no dia 20 foi contactado por esta pessoa, que era seu amigo, com o qual combinou ir ter consigo ao café para ir beber e falar, não para comprar produto estupefaciente (não tendo recebido uma nota de vinte euros do seu amigo, nem lhe tendo dado uma de dez em troco). Explicou que tem um café e no mesmo prédio do café há uma arrecadação que pertence ao prédio e foi aí que os agentes encontraram as coisas, sendo que ele estava lá perto, mas não estava na arrecadação. Afirmou que o haxixe que tinha consigo (58 gramas) era seu, para seu consumo e a faca era para cortar o haxixe. Tinha o haxixe nesse anexo e não dentro de casa, apesar de se tratar de um sítio onde outras pessoas têm acesso, não deixando o estupefaciente em casa por causa dos seus filhos (que têm 4 meses, 4 anos e 10 anos). As outras coisas que os agentes da autoridade encontraram estavam dentro de um saco, não eram seus, designadamente o estupefaciente, película aderente, redrate. Ele só consome haxixe. O dinheiro (77,50 euros) que tinha consigo era dinheiro para ir as compras. Quando os agentes de autoridade chegaram fugiu porque tinha o haxixe. Consentiu a busca ao café. A bicicleta que lá tinha era sua e comprou-a por trinta euros, não sabe o valor da bicicleta e não estranhou o preço. Ele e a mulher ganham mil euros por mês e ainda quinhentos euros que não declaram às finanças. Habita uma casa camarária pela qual paga 12 euros, tem três filhos, dois deles moram consigo e o terceiro vive com a mãe a quem paga 150 euros de pensão de alimentos. Paga a quantia de 34€ de creche de um dos seus filhos e paga 80 euros de prestação mensal para aquisição de uma máquina de lavar louça em doze prestações. Tem como habilitações literárias o 7.º ano de escolaridade. Está em liberdade condicional desde 2019 e desde então que explora este café. Acede à arrecadação pela rua. As pessoas que tem a chave da arrecadação são pessoas mais velhas não sabendo o nome deles em concreto. Uma das pessoas que tinha acesso à arrecadação, de que era mais próximo, está detido há quatro meses e chama-se HH. Nessa altura não houve nenhuma busca a essa arrecadação. Naquela rua, aquele prédio tem dois andares por cima do café e cada bloco tem uma arrecadação. Quando confrontado com a declaração de fls. 21 - autorização de busca, “na qualidade de proprietário/locatário da residência sita em ... e respetiva arrecadação (Estabelecimento ...)” - confirmou que se tratava da sua assinatura, mas afirmou que tal não se passou às 11:00 horas e que não chegou a ler o documento, assinou porque havia muita pressão e que acompanhou a busca mas depois levaram-no para o carro. Declarou que quando foi intercetado pelos militares da Guarda Nacional Republicana estava no café, ao balcão com o FF, que estava a beber uma cerveja, às 10 horas da manhã. Quando a Guarda Nacional Republicana chegou dentro do café disse para tirar o que tinha nos bolsos, sendo que ele tinha um bocado de haxixe no bolso do casaco, que entregou. O FF também foi revistado e não tinha nada com ele. Estavam presentes quatro elementos da Guarda Nacional Republicana que foram para a arrecadação e que os levaram os dois. Não disseram que tinham visto ninguém lá. Os militares da Guarda Nacional Republicana arrombaram a porta não tendo ele dado autorização nenhuma, eles fizeram o que quiseram e depois é que ele assinou o papel. Depois voltaram para dentro do café para fazer a busca no café, sempre consigo. A seguir levaram-no para a esquadra a si e não ao FF não sabe porquê. Fugiu quando eles abriram a arrecadação, encontraram o saco e disseram que o saco era seu porque ficou nervoso. Já conhecia um dos militares da Guarda Nacional Republicana, pensa que o agente II que já o tinha detido num processo por injurias. O FF não está zangado consigo, não sabe porque é que ele disse uma coisa diferente daquela que ele está a dizer. Estava muita gente, mas não consegue identificar ninguém que tenha assistido a esta situação. Comprou a bicicleta há um mês. A bicicleta estava dentro do café. O amigo que entrou no café é padeiro e conhece-o pelo nome de FF.
- As declarações prestadas pelo arguido, após a reabertura da audiência de discussão e julgamento, no dia 20/10/2023 , o qual declarou, em síntese, que comprou a bicicleta por trinta euros, mas a mesma estava muito estragada e ele arranjou-a. Confrontado com o valor que é indicado na acusação como sendo o valor da bicicleta (899 euros), afirmou que não tinha a mínima noção disso atendendo à maneira como ela estava, tinha as rodas estragadas, a suspensão estragada, não conseguia andar com ela, sendo que a fotografia que consta dos autos é a bicicleta depois de arranjada. Não se recorda quando a comprou, mas comprou-a a um rapaz que costumava estar ao pé do seu café na ..., o ...”. A pessoa abordou-o e perguntou-lhe se queria comprar a bicicleta, foi a primeira vez que viu a bicicleta, pensa que o vendedor era mecânico porque ele estava sempre sujo de óleo. Não achou estranho o valor, da maneira como estava e não lhe perguntou de onde tinha arranjado a bicicleta. Posteriormente, o arguido declarou que comprou a bicicleta em agosto ou em setembro daquele ano e que a mesma tinha as rodas empenhadas, os pneus furados e a suspensão da frente estragada, mandou-a arranjar a um amigo seu, ao pé da ... pagou-lhe à volta de cento e cinco ou cento e dez euros, mas não tem nenhuma fatura nem documento relativamente a isso nem sabe o nome da pessoa a quem ele comprou a bicicleta. Ele passou, perguntou se queria comprar a bicicleta, conhecia-o de vista, o preço não era nada de especial, não lhe passou pela cabeça que a bicicleta era furtada. Quando voltou a ser questionado acerca do local onde reparou a bicicleta que comprou disse que tinha sido ao lado da .... Não sabia quanto é que a bicicleta valia nova. A bicicleta não era velha, só precisava de uns arranjos, de resto estava como nova. Não estava interessado em comprar uma bicicleta, aquilo foi uma oportunidade que lhe apareceu, não sabia quanto valia, mas tinha noção de que a bicicleta valia mais do que trinta euros. Relativamente aos demais factos que lhe foram imputados afirmou que a única coisa que foi encontrado na sua posse foi a faca e 58 gramas de resina de haxixe. Os demais objetos que foram apreendidos estavam na arrecadação perto do café. Ele estava nessa arrecadação a cortar o haxixe para ir fumar, em cima de uma mesa que estava na arrecadação. Em cima da mesa só estava o haxixe e a faca. A arrecadação estava completamente cheia, aquilo é a arrecadação do prédio onde toda a gente guarda coisas. Ele tinha guardado as grades da cerveja e o haxixe. Porque é que ele foi cortar o haxixe. Os outros objetos apreendidos não eram seus. O anexo é do prédio e ele servia-se desse anexo para guardar as grades de cerveja e para ter lá o haxixe para não o ter em casa por causa dos seus filhos que estavam sempre no café. Deixava o haxixe com acesso a todas as pessoas do prédio, tinha aquilo guardado num bocado de papel dentro de uma grade de cerveja. Relativamente à testemunha DD, conhece do bairro, ele chegou quando ele já tinha sido abordado, depois os policias pararam-no também. Explica a sua abordagem da seguinte forma: saiu do café, foi à arrecadação apanhou o haxixe e estava a cortar o haxixe para fumar quando os agentes chegaram, estava ainda com a faca na mão a cortar o haxixe, sozinho. Quando deixou o café não estava ninguém no café, apanhou o haxixe que estava dentro da grade da cerveja. A mesa estava mesmo colada a porta, ele estava de costas e de lado para a porta de entrada do anexo. No momento em que estava a cortar o haxixe, os agentes apanharam-no, eram cinco ou seis agentes, eles puxaram-no, ele estava a tentar explicar a situação. Depois quando estava encostado à parede, eles começaram a revistar a arrecadação toda, estiveram a tirar tudo e depois vieram confrontá-lo com um saco de coisas e ele ficou indignado porque aquilo não era seu e estava a dizer para irem tocar às campainhas das pessoas que estavam ali, até saiu do pé deles, eles depois começaram a agarra-lo, deram tiros para o ar e depois lá se acalmou. Saiu dali a andar com eles, ele queria ir tocar as campainhas com eles. Foi detido. O DD surgiu quando ele estava a ser abordado. Conhece-o há muitos anos ali do bairro, não tinha combinado nada consigo, já tinha ido ao seu estabelecimento, nunca lhe tinha cedido estupefaciente, nem tinham fumado juntos, sabia que ele fumava, as vezes via-o la fumar. Confrontado com as fotografias de fls. 14 verso referiu que aquela era a mesa do anexo, só tinha a faca, não tinha visto lá nenhuma balança, nem sacos com estupefaciente. O dinheiro que tinha no bolso, 77 euros, era dinheiro do café para ir as compras. Quando foi abordado pela polícia eles tiraram-lhe logo a faca que ainda era grande, de cabo preto, com um palmo e meio. Os polícias apontaram-lhe a pistola e disseram “larga a faca” e ele largou a faca, não saiu para fora do anexo com a faca. Reconheceu a faca a fls. 14 verso, sendo a faca grande cabo preto. Tinha comprado o haxixe por duzentos ou duzentos e vinte euros, há poucos dias atrás, comprou pouco mais do que foi apanhado, tinha cerca de 70 gramas. Consumia cerca de 5 gramas de haxixe por dia, habitualmente de manha quando acordava e às vezes durante o dia. Foi abordado pelas dez horas da manha. Já tinha saído de casa há cerca de dez ou vinte minutos, tinha acabado de abrir e depois foi buscar o haxixe, não estava ninguém no estabelecimento. Conhece o DD do café, do bairro, neste dia não o tinha servido, não o tinha visto antes, não tinha estado com ele antes de ter sido detido. Confrontado com as declarações que havia prestado anteriormente em primeiro interrogatório judicial, contraditórias com aquelas que estava a prestar (segundo as quais quando foi abordado fugiu porque tinha haxixe e que estava ao café ao balcão a beber uma cerveja, às 10 horas da manhã e quando a Guarda chegou dentro do café disse para tirar o que tinha nos bolsos, e que ele tinha um pedaço de haxixe no bolso do casaco, que entregou e que depois os elementos da Guarda foram a arrecadação e que os levaram a si e ao FF, que os militares arrombaram a porta e não dado autorização nenhuma, fizeram o que quiseram e depois é que ele assinou o papel a autorizar a busca), afirma que não faltou a verdade mas que na altura não estava lúcido da cabeça e que hoje em dia está, reconhecendo que estava efetivamente no anexo quando foi intercetado, reafirmando que viu o DD quando já estava algemado. A balança não era sua. Só o pedaço maior de haxixe e a faca é que eram seus. Não viu lá os objetos que estão retratados na fotografia (balança, cocaína, mdma) de fls. 14 verso, nem sabe explicar a presença desses objetos naquele local. A arrecadação era comum a mais de dez pessoas, não tinha o seu haxixe exposto. Não era normal aqueles objetos e substâncias estarem ali expostos, só se foram os agentes que tiraram as coisas tirarem a fotografia, a mesa para si estava limpinha, nunca viu a mesa tal como esta retratada a fls. 14 verso. Quando viu os guardas não fugiu, quando eles apanharam muita coisa e o confrontaram com as coisas é que ficou enervado e mais. Quando foi confrontado pelos agentes com um saco ou muitos sacos deduziu que eram coisas ilícitas, que não eram suas e ficou indignado e foi nessa altura que tentou sair dali para ir tocar as campainhas, não ia sair dali com o café aberto, saiu em passo acelerado para ir tocar as campainhas. Pediu aos agentes para ir tocar as campainhas, disse na hora que aquilo não era seu que eles podiam fazer exame à vontade. Pensava que ia ficar preso devido ao seu passado. Já tinha terminado o período da sua liberdade condicional uns meses antes. Posteriormente a este episódio era perseguido pelos agentes, cada vez que os militares o viam, com os filhos no carro, intercetavam-no, faziam buscas no carro e em todo o lado. Prestou ainda declarações quanto às suas condições pessoais, confirmando as anteriormente prestadas quanto às suas condições, à data da sua detenção, que continuou a explorar o estabelecimento “...” quando saiu em liberdade, o qual já era explorado pela sua companheira. Quanto à atualidade referiu que vive sozinho em ..., na ..., encontrando-se separado, trabalha numa empresa de batatas, auferindo o rendimento mensal bruto de 4.000 francos (com correspondência ao mesmo valor em euros), correspondente ao valor líquido de 3.200 francos. Tem como despesas mensais a 1.300 francos de renda de casa, 400 francos de seguro de vida, ao filho mais velho manda, pelo menos 150 euros e para os outros dois filhos manda 500 euros também para pagar as despesas da casa (água, luz, internet). Preferiu comprar duzentos euros de haxixe, uma quantidade apreciável porque lhe saia mais barato.
- O depoimento da testemunha DD, o qual afirmou, em síntese, não conhecer o arguido. Afirmou conhecer o café “...” e lembrar-se da situação da ..., no .... Na altura era pasteleiro, na pastelaria “...” no ... e trabalhou numa pastelaria chamada “...”. Nesse dia foi beber um cafezinho, o colega foi à vida dele, entrou no café e começou a ouvir tiros, veio-se embora e foi quando a polícia o abordou, a perguntar o que estava ali a fazer. Depois ficou detido dentro do carro da Guarda Nacional Republicana uma ou duas horas. Não sabe que estabelecimento era. Estava dentro do café quando isto aconteceu, não estava no anexo, não estava com o AA. Não adquiriu nada ao AA, não o conhecia. Depois foi à esquadra, não o deixaram ler o papel que assinou. Não consumia estupefaciente na altura, há seis ou sete anos, anteriormente era consumidor de haxixe. Não lhe foi apreendido haxixe, não tinha nada consigo.
- O depoimento da testemunha BB, o qual afirmou, em síntese, que a sua casa foi objeto de um furto de uma bicicleta de montanha que ali se encontrava e que pertencia ao genro da sua companheira, de nome CC. Chamou a Guarda Nacional Republicana e viu que os indivíduos que tinham retirado a bicicleta tinham saltado do muro (do lado da sua vizinha), para muro para dentro da sua garagem. Mais tarde o JJ conseguiu recuperar a bicicleta, que a veio reconhecer e levantar;
- O depoimento da testemunha KK, militar de Guarda Nacional Republicana, o qual afirmou, em síntese, conhecer o arguido do exercício das suas funções e que no dia 20/12/2020, circulavam na ..., visualizaram um individuo numa zona em que é sistemático o consumo e venda de estupefacientes, a ir para uma arrecadação que estava com a porta aberta onde ficou. Não viram nenhuma troca. O Guarda LL e o Guarda MM foram os primeiros a ir ao local, ele chegou alguns segundos a seguir. Quando chegou viu o arguido a fazer o corte de uma substância que lhe parecia haxixe. O Guarda LL disse-lhe para ele largar a faca. Ele largou a faca e saiu em fuga apeada pela ..., fugindo a trinta metros. Eles estavam à porta, o outro individuo estava na rua e a mesa estava praticamente encostada à entrada. Em cima da mesa encontravam-se sacos com as substâncias, cocaína e redrate uma balança de precisão e cartões de memoria. Depois fizeram uma busca à arrecadação e ao estabelecimento de café (cujas entradas distam cerca de dez metros) e fizeram a apreensão de outro material, de máquinas, que eram dele, no entanto ele não tinha qualquer tipo de contacto. O arguido era arrendatário das duas portas. A bicicleta pensa que estava no interior do estabelecimento. Não sabe o que aconteceu ao outro individuo, que foi identificado. Quanto ao documento de fls. 32/33 (contrato de arrendamento), não se recorda se foi o arguido que o facultou. O carro onde se faziam transportar era caraterizado e eles estavam devidamente uniformizados. O café tem inquilinos por cima, pensa que a arrecadação não tem janela. A faca que o arguido utilizava tinha o cabo preto. Aquela arrecadação não é do prédio. Num policiamento de proximidade já tinha visto o arguido naquela arrecadação. Nessa outra situação a porta estava aberta. O estabelecimento estava aberto, não sabe quem estava no estabelecimento. Não voltou a ver o arguido depois deste episódio, nunca mais nesta arrecadação.
- O depoimento da testemunha NN, militar de Guarda Nacional Republicana o qual afirmou, em síntese, que conhece o arguido do âmbito territorial onde presta funções. Encontrava-se de piquete às ocorrências, quando verificou um indivíduo na zona do café “...”, que se situa na rua principal. Ao lado desse estabelecimento existe uma arrecadação que tinha a porta aberta, sendo que esse indivíduo encontrava-se no exterior. Foi verificar o que se passava e deu com o arguido com uma faca na mão a fazer o corte de um produto castanho numa mesa. Aquilo é uma arrecadação muito pequena, a porta da saída estava a um metro de si. O arguido ficou assustado porque não deu por ele a chegar. Deu-lhe voz de detenção e pediu para lhe dar de imediato a faca (disse “larga a faca”) e ele, em corrida, passou por si em fuga, mas foi logo abordado pelos seus colegas que vinham atrás. Ficou com o outro indivíduo que estava cá fora e que identificou, não se recordando se ele tinha na posse dele alguma coisa, acha que não tinha produto estupefaciente. O produto que o arguido estava a cortar era castanho e foi apreendido. Havia mais produto na mesa de outra variedade. Lembra-se também de uma bicicleta que estava no interior do café. O estupefaciente estava todo perto da banca, onde também estava uma balança, material celofane, uma faca, telemóveis. Não foi ele que fez a assinatura da autorização de busca. Não se recorda a que título o arguido ocupava esse espaço. A viatura policial era caracterizada e estavam todos fardados. O primeiro a chegar ao local foi ele e o Guarda OO. O arguido estava de lado, a fazer o corte em cima da mesa, estava a cerca de um metro da porta. A ele não lhe foi cedido nenhum contrato de arrendamento. Quando vêm os outros dois colegas não conseguem ver para dentro da arrecadação.
- O depoimento da testemunha PP, militar de Guarda Nacional Republicana o qual afirmou, em síntese, conhecer o arguido, do exercício funções, tendo sido ele a elaborar o aditamento constante de fls. 137 a 139, respeitante a exame do conteúdo do telemóvel apreendidos nos autos.
Tendo presente os sobreditos meios de prova, importa, desde logo salientar que a convicção do Tribunal, no que concerne aos factos descritos nos pontos 1) a 5) emergiu do exame do auto de notícia constante de fls. 133, constante de certidão extraída dos autos de inquérito com o NUIPC 764/20.5GCALM, em conjugação com o depoimento prestado pela testemunha BB que confirmou ter chamado a Guarda Nacional Republicana quando se apercebeu do furto de uma bicicleta pertencente a CC do interior da sua propriedade, sendo que no referido auto se consignou ter sido apresentada a denuncia no dia 17/08/2020. Por seu turno, resulta do teor de fls. 17 que a bicicleta em causa foi reconhecida por CC, que lhe atribuiu o valor de aquisição de novecentos euros (em 2018), a qual lhe foi entregue em 20/12/2020. Relativamente ao facto do arguido se encontrar na posse da referida bicicleta no dia 20/12/2020, tal não só resulta do teor do auto de notícia de fls. 3 a 4 e do registo fotográfico n.º 17, de fls. 14, como também o arguido, em 21/12/2020, quando prestou declarações em primeiro interrogatório judicial, afirmou que tinha comprado a bicicleta há um mês pelo valor de trinta euros, o que igualmente confirmou nas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento em 20/10/2023.
Relativamente ao valor económico da bicicleta que o arguido tinha na sua posse – facto do ponto 2) - atendeu-se não só ao teor do auto de notícia de 17/08/2020 (cfr. fls. 133), no qual é mencionado, de acordo com a indicação do denunciante, um valor de avaliação de 899€ e ao auto de reconhecimento de 20/12/2020 (cfr. fls. 17), em que é referenciado o valor de aquisição, em 2018, de 900 € (novecentos euros), como também às características e modelo da bicicleta (bicicleta marca Focus, modelo Whistler, roda 29´, segmentos Shimano DEOR XT, quadro tamanho M e pneus da marca Continental – cfr. descrição constante do auto de reconhecimento de fls. 17) que, conforme decorre do registo fotográfico de fls. 14 (fotografia n.º 17), se encontrava em bom estado de conservação, pelo que se conclui, sem dificuldade, face aos valores normais de comercialização destes veículos, que a bicicleta teria, pelo menos, o valor de cerca de oitocentos euros.
Ora, apesar do arguido ter afirmado não ter estranhado o facto daquela bicicleta lhe ter sido vendida por aquele valor, tendo em consideração a sua marca, modelo e características (bicicleta marca Focus, modelo Whistler, roda 29´, segmentos Shimano DEOR XT, quadro tamanho M e pneus da marca Continental), valor de aquisição (cerca de novecentos euros dois anos antes) e estado em que se encontrava (cfr. registo fotográfico de fls. 14), entende-se que o mesmo não poderia deixar de ter suspeitado da sua proveniência, atendendo à quantia que entregou para a sua aquisição (trinta euros). Com efeito, ainda que o arguido tenha afirmado, nas declarações que veio a prestar em audiência de discussão e julgamento no dia 20/10/2023, que recebeu a bicicleta em “mau estado”, certo é que reconheceu que a mesma não era velha, que “só precisava de uns arranjos” e que “de resto estava como nova” (sic) bem como que se apercebeu, quando a comprou, que valia mais do que aquele preço. Face às próprias declarações do arguido, conclui-se que o referido velocípede não estaria em condições muito distintas daquelas em que foi apreendido. Quanto à reparação do veiculo, a que o arguido apenas fez menção nas últimas declarações que prestou e que olvidou no primeiro interrogatório judicial, julga-se tal facto inteiramente inverídico, porque o arguido não forneceu qualquer pormenor que o sustente (não tem memória do nome da pessoa e até do local, que a primeira refere situar-se perto da “...e à segunda à “...”), sendo inconsubstanciado em qualquer meio probatório.
Outrossim, em face dos elementos de prova recolhidos, designadamente as declarações do arguido e as características da bicicleta apreendida na sua posse, não poderão subsistir dúvidas de que o mesmo, ao menos, admitiu como possível, que a referida bicicleta tinha proveniência ilícita, pois nenhuma outra explicação poderá haver para a ter adquirido (conforme afirmou) a um preço muito inferior daquele que era, manifestamente, o seu valor económico (mesmo admitindo a possibilidade da bicicleta precisar de reparações quando foi adquirida pelo arguido). Além do mais, o arguido declarou expressamente, em audiência, não ter questionado o vendedor acerca da proveniência da referida bicicleta, o que permite aduzir, face ao seu valor e às circunstâncias em que a adquiriu (a uma pessoa que circulava na ... e que o abordou), que o mesmo não poderia deixar de suspeitar da sua proveniência ilícita.
Deste modo, concluiu o Tribunal que o arguido admitiu como possível que a bicicleta tivesse sido obtida ilicitamente por quem lha vendeu, tendo-a comprado, com vista a obter a vantagem patrimonial decorrente da diferença entre o valor real daquele objeto e o valor pelo qual o adquiriu, muito inferior – materialidade que se deu como assente no ponto 5).
*
No que respeita à materialidade descrita nos pontos 6) a 10), a convicção do Tribunal decorreu da ponderação dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, em conjugação com os meios de prova constantes dos autos e examinados em audiência de discussão e julgamento.
Primeiramente, cumpre referir que pese embora o arguido e a testemunha DD tenham negado genericamente que se encontravam no contexto de uma transação de estupefaciente, junto à arrecadação, quando foram abordados por elementos da Guarda Nacional Republicana certo é que vários elementos de prova evidenciam que faltaram à verdade nas declarações que prestaram.
Para tanto aponta o facto de o arguido ter afirmado, nas declarações que prestou (quer em primeiro interrogatório judicial, quer em audiência), que se servia daquele anexo para guardar o seu estupefaciente e que tinha na sua posse, aquando da abordagem policial, 58 gramas de haxixe, isto é uma quantidade de estupefaciente muito significativa (suficiente para 215 doses, conforme decorre do teor do exame pericial de fls. 181) e uma faca para o cortar. A mera circunstância do arguido ter admitido que guardava o seu estupefaciente no anexo onde foram encontrados, pelos militares da Guarda Nacional Republicana, em cima da mesma mesa em que o arguido fazia o corte da canabis quando foi surpreendido pela chegada dos militares, diversos outros estupefacientes, produtos de corte (redrate e fenacetina) e utensílios normalmente utilizados para a pesagem (balança de precisão) e embalamento (rolo de papel aderente e trinta sacos zip) de estupefacientes (conforme retratado nas fotografias de fls. 14 verso), permite questionar a verosimilhança dessas declarações.
Por seu turno, a falta de verosimilhança e de credibilidade das declarações do arguido decorre ainda do mesmo ter entrado em total contradição, nas declarações que prestou em audiência de discussão e julgamento relativamente às que já havia prestado em primeiro interrogatório judicial, no que concerne à descrição dos acontecimentos do dia 20/12/2020:
- Num primeiro momento (em interrogatório judicial) afirmou ter combinado encontrar-se com o seu amigo no café, local onde foi abordado pelos militares da Guarda Nacional Republicana, tendo no seu bolso o estupefaciente (haxixe) e por isso fugido, tendo os militares arrombado posteriormente a porta da arrecadação;
- Num segundo momento (em audiência) o arguido apresentou uma descrição totalmente distinta dos acontecimentos, em que afinal não tinha contactado com o amigo (que apenas apareceu depois da sua abordagem e detenção), afirmando que foi surpreendido pelos militares na arrecadação a cortar haxixe com uma faca, que largou aquando da chegada dos militares por sua ordem, mas mantendo que os demais objetos apreendidos (designadamente os retratados nos registos fotográficos de fls. 14 verso), não lhe pertenciam.
Ora, no entender do Tribunal é evidente que, mais uma vez, esta nova versão dos factos apresentada pelo arguido, tal como a anterior, não poderá prevalecer. Com efeito, o que o arguido pretende fazer crer é que os militares da Guarda Nacional Republicana, no período em que fizeram a busca a arrecadação, “construindo um cenário”, colocaram os objetos que encontraram noutros locais da arrecadação (balança, facas, sacos, casaco) bem estupefaciente em cima da mesa onde ele cortava o estupefaciente, que de imediato fotografaram, para assim, o incriminar e lhe imputar a posse desses objetos, quando essa mesa estaria “limpa”. Contudo a mera observação dos registos fotográficos extraídos do anexo/arrecadação, na data das apreensões do estupefaciente e demais objetos e substâncias, constantes de fls. 14 verso, conjugada com as declarações dos militares NN (que surpreendeu o arguido no corte de estupefaciente) e KK (que chegou uns segundos a seguir), foi suficiente para convencer o Tribunal acerca da inverosimilhança dessa versão, totalmente desprovida de fundamento.
No que tange ao depoimento da testemunha QQ, ainda que o Tribunal desconheça as declarações que prestou em sede de inquérito perante os elementos da Guarda Nacional Republicana, certo é que tudo indica que o mesmo faltou à verdade em audiência de discussão e julgamento, quando referiu não conhecer o arguido, na medida em que o próprio arguido o contradisse, quer em primeiro interrogatório judicial (quando referiu que naquele dia ele havia combinado consigo ir ao café, beber e falar), quer em audiência de julgamento (em que referiu que já o conhecia há muitos anos do bairro). Para tanto também aponta o resultado do exame pericial a um dos telemóveis apreendidos no dia 20/12/2020 (cfr. auto de apreensão de fls. 22 a 24), exame autorizado judicialmente (cfr. despacho de fls. 128), do qual consta o registo de várias chamadas com origem e para o numero de telefone da testemunha indicado no rosto do auto de inquirição (cfr. fls. 15), pelo menos mais de dez chamadas desde o mês de outubro de 2020 (cfr. exame pericial constante do CD junto a fls. 148).
No entanto, para além das incongruências que decorrem da análise e ponderação das declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha DD, dos depoimentos dos militares da Guarda Nacional Republicana PP e KK, resultou uma versão distinta dos acontecimentos.
Com efeito, ambos os militares da Guarda Nacional Republicana, de forma essencialmente convergente e num registo de cuja fidedignidade e veracidade não existiram motivos para duvidar, afirmaram que a abordagem e interceção ao arguido e a DD ocorreu junto à arrecadação anexa ao estabelecimento de café, para onde foi visto a dirigir-se este último, o que levantou suspeitas e suscitou a sua intervenção, por se encontrarem em local conotado com o tráfico de estupefacientes.
Por outro lado, também ambos os militares da Guarda Nacional Republicana atestaram que o arguido se encontrava no interior do anexo, de onde fugiu quando se apercebeu da chegada dos mesmos e o outro individuo cá fora, tendo sido o militar NN que se aproximou em primeiro lugar, acompanhado de um colega.
Ambos os militares da Guarda Nacional Republicana referiram ainda que, no interior do anexo e em cima da mesa onde o arguido foi visto, pelo militar NN, com uma faca a cortar a placa de haxixe, se encontravam os sacos com estupefaciente, a balança, as facas, sacos zip, tudo exposto conforme retratam os registos fotográficos constantes de fls. 14 verso, estando esses objetos descritos no auto de apreensão de fls. 22 a 24.
As substâncias encontradas no interior de sacos por cima da mesa e na posse do arguido, foram examinadas laboratorialmente, tendo-se concluído que se tratava de (cfr. fls. 181):
- Canabis: 56,800 gramas (resina) em dois plásticos, suficientes para 215 doses e 8,413 gramas (fls./sumid.) num saco de plástico, suficiente para 12 doses;
- MDMA num saco de plástico: 18,723 gramas suficientes para 108 doses;
- Cocaína: 14,044 gramas num saco suficiente para 52 doses; 3,745 gramas noutro saco, suficientes para 4 doses e 0,767 gramas em oito sacos, suficientes para 4 doses;
Assim como 8,3 gramas de fenacetina.
Relativamente à balança apreendida e visível naqueles registos fotográficos e na fotografia n.º 9 de fls. 13, detetou-se no exame pericial realizado aos telemóveis apreendidos (autorizado no despacho judicial de 15/04/2021, fls. 128) a existência de um registo fotográfico em tudo semelhante, com produto acastanhado colocado, o que aponta inequivocamente para o uso que lhe era dado (cfr. fls. 138).
Tendo presentes esses meios de prova, sendo certo que as declarações dos militares da Guarda Nacional Republicana se mostraram fidedignas e merecedoras de crédito, não poderão suscitar-se dúvidas de que o produto estupefaciente encontrado em cima da mesa da arrecadação em causa, bem como os demais instrumentos e objetos pertenciam ao arguido, sendo o estupefaciente destinado à venda a terceiros, mediante uma contrapartida económica.
Na verdade, todo o contexto apurado permite tal ilação, sendo que as declarações do arguido, conforme se referiu, não são merecedoras de crédito, devido à sua total incongruência e inverosimilhança, não sendo credível que o mesmo, sendo um mero consumidor de estupefacientes, guardasse o seu estupefaciente num local a que tinham acesso outras pessoas cuja identidade desconhecia os quais, por sua vez, guardavam também outros estupefacientes, que deixavam naquele local sem qualquer controlo ou supervisão.
Por seu turno, e mais relevantemente, tendo o arguido sido surpreendido a cortar estupefaciente (haxixe), num local (anexo/arrecadação) e em cima de uma mesa onde se encontravam sacos de plástico contendo outras substâncias estupefaciente, uma balança, facas, sacos zip, objetos e instrumentos destinado ao corte, pesagem e acondicionamento de estupefacientes, conforme relataram os militares da Guarda Nacional Republicana PP Sousa e KK, de forma escorreita e convicta, tida como persuasiva, não pode senão concluir-se que o arguido bem sabia o que se encontrava naquele local e se dedicava a transacionar tais estupefacientes, que se encontrava a manusear e estavam sob a sua esfera de domínio.
Deste modo, e sendo certo que o próprio arguido reconheceu que tinha consigo produto estupefaciente em quantidade muito superior ao que seria destinado ao seu consumo individual (56,800 gramas correspondem a 215 doses individuais diárias), todos os elementos de prova recolhidos confluem no sentido de se concluir que o arguido preparava estupefaciente (cocaína, canabis e MDMA que tinha em sacos e também já divididos em doses individuais) para a venda a terceiros, conforme foi observado a preparar.
A circunstância da testemunha DD, o qual era consumidor de estupefacientes, (conforme o arguido declarou ser do seu conhecimento, em audiência de discussão e julgamento), se ter dirigido à porta do anexo onde permaneceu enquanto o arguido estava no seu interior a cortar a placa de haxixe, conforme foi atestado pelas testemunhas NN e KK permite concluir, para além de toda a dúvida razoável e de acordo com as regras da normalidade, que o arguido se preparava para entregar esse estupefaciente aquele, a troco de dinheiro, pois nenhuma outra razão justifica a permanência do mesmo naquele local, enquanto o arguido procedia ao corte de estupefaciente, senão a de adquirir aquela substância.
Pelo exposto, não teve o Tribunal dúvidas de que o estupefaciente encontrado pertencia ao arguido e que o mesmo se destinava, pelo menos parte da canabis e a totalidade da cocaína e o MDMA, à comercialização por terceiros - facto do ponto 8).
No tocante aos pontos 8) a 10) dos factos provados, os mesmos assim se consideraram como decorrência lógica daqueles que objetivamente resultaram provados, não podendo o arguido desconhecer que a cocaína, o MDMA e a canabis são consideradas pela sua composição, natureza, caraterísticas e efeitos, substâncias estupefacientes e que, como tal, todas as atividades relacionadas com ela, designadamente a posse, oferta, cedência a qualquer título não são permitidas e são punidas por lei, desde logo porque já havia sido condenado pelo cometimento de crimes de trafico de estupefacientes, estando devidamente alertado para o cariz ilícito desses comportamentos, o que, conjugado com o facto de não se ter apurado qualquer limitação à capacidade cognitiva ou à liberdade de determinação do arguido, conduziu à conclusão segura relativamente à consciência do carácter proibido da sua conduta.
O universo fáctico respeitante às condições pessoais do arguido – pontos 11) a 16) - estribou-se nas declarações que foram prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial - conjugadas com o teor do Certificado de Registo Criminal, no que respeita aos factos do ponto 11) - sendo certo que, conforme resulta do teor da informação prestada pelos serviços de reinserção social em 22/11/2022, não se mostrou possível a elaboração de relatório social, porque o arguido passou a residir fora do território nacional desde novembro de 2021, tendo sido julgado na ausência, por tal ter sido requerido pelo mesmo em 09/06/2023, o que foi autorizado por despacho proferido em 16/06/2023, nos termos do artigo 334.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. fls. 292). Os demais factos relativos às atuais condições pessoais do arguido – pontos 17) a 24) - resultaram da apreciação das declarações que prestou em audiência de discussão e julgamento em 20/10/2023.
Os antecedentes criminais do arguido mostram-se averbados no seu Certificado de Registo Criminal atualizado a fls. 277.
*
Quanto aos factos não provados, considerou-se que a prova produzida nos autos e em sede de julgamento, analisada que foi de uma forma crítica e conjugada, não permite concluir pela positividade dos mesmos, designadamente quanto ao período em que o arguido desenvolveu a atividade de venda de estupefacientes e quanto à concretização da venda de estupefaciente a DD no dia 20/12/2020 pelo montante de dez euros.
(…)”
2.1. Preliminarmente, e para que, mais tarde, não venha a ser invocada qualquer omissão de pronúncia, cumpre salientar que no n.º 4 das suas conclusões alega o arguido “4 – Entende o arguido que a presente condenação não pode subsistir porquanto tanto a prova produzida em sede de audiência de julgamento, como a fundamentação do Douto Acórdão são insuficientes para condenar o arguido.”
Na respectiva resposta ao recurso o MP, logo no início, defende a inexistência do vício a se se reporta o artigo 410.º/1, 2) do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada), vício, aliás de conhecimento oficioso.
Muito sinteticamente o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.
Completamente diferente é a invocação da insuficiência de prova, que se prende com a impugnação ampla da matéria de facto, nos termos previstos no artigo 412.º/3 do CPP.
Ora, pela forma como se exprime julgamos que esteve longe da cogitação do recorrente a invocação do vício da decisão a que se refere o artigo 410.º/2, a) do CPP, tendo o mesmo pretendido proceder à impugnação ampla da matéria de facto, que abaixo se tratará.
2.2. Da contradição insanável da fundamentação (artigo 410.º/2, b) do CPP).
Alega o recorrente existe contradição insanável entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto não provada pois que deu o Tribunal como provado que:
“8. Ao agir da forma descrita o arguido AA, quis e representou deter na sua posse cocaína, canábis e MDMA para a entregar a troco de dinheiro a terceiros que o procuravam para efeito, retirando o consequente benefício económico que daí adviesse, o que conseguiu.
9. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes das substâncias que detinha e que cedia a terceiros, o que não o demoveu da sua conduta”
Constando da matéria de facto não provada:
“c) Desde data não concretamente apurada até pelo menos 20/12/2020 que o arguido adquiriu canábis, MDMA e cocaína para a entregar a terceiros que o procurassem para o efeito, a troco de dinheiro.
d) No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas, no anexo do café “...” sito na ..., o arguido vendeu a EE, canábis pelo preço de 10€ (dez euros).”
“Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de Germano Marques da Silva “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos” – cf. Ac. RG de 11-05-2015, proc. nº 3805/12.6IDPRT.G1, www.dgsi.pt.
Com se refere se forma exemplar no Ac. STJ de 24-02-2016 (proc. n.º 502/08.0GEALR.E1.S1, www.dgsi.pt) “Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de março de 2015, Proc. n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Assim, pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques (Código de Processo Penal anotado, II volume, 2. Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, p.379), «[p]or contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
No sentido de os vícios mencionados se tratarem assim de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser autossuficiente também se pronunciaram Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279); Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339) e Simas Santos e Leal Henrique (Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.).
Em síntese o vício previsto no artigo 410.º/2, a) ocorre quando se dá como provado e não provado o mesmo facto, quando se afirma ou nega a mesma coisa ao mesmo tempo, ou quando se dá como provado determinado facto e a fundamentação é contrária ao facto.
É claro que esse vício só pode ocorrer relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.
Ora, de uma análise meramente perfunctória da matéria em causa não se vislumbra nem se alcança qualquer contradição insanável entre apontados factos dados como provados e os dois factos dados como não provados.
Ficou provado que No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas no anexo do café “...” sito na ..., o arguido procedia ao corte de canabis, para entrega a DD, a troco de dinheiro” – facto provado n.º 6.
O facto não provado sob a al. c) (“Desde data não concretamente apurada até pelo menos 20/12/2020 que o arguido adquiriu canábis, MDMA e cocaína para a entregar a terceiros que o procurassem para o efeito, a troco de dinheiro.”) reporta-se a data anterior àquela mencionada no n.º 6 dos factos provados.
Por outro lado, ao ter o tribunal dado como não provado que “No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas, no anexo do café “...” sito na ..., o arguido vendeu a EE, canábis pelo preço de 10€ (dez euros)” não incorre qualquer contradição com ter-se dado como provado que “No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas no anexo do café “...” sito na ..., o arguido procedia ao corte de canabis, para entrega a DD, a troco de dinheiro.”, salientando-se que o recorrente nem sequer invocou este facto, naturalmente porque não era do seu interesse.
Não pode o recorrente desconhecer que uma coisa é proceder ao corte de produto estupefaciente para entregar ao dito DD a troco de dinheiro e realidade bem diferente é ter efectivamente vendido o dito produto estupefaciente ao dito indivíduo (o que não chegou a acontecer) e, logo, dado como não provado. Só uma leitura superficial e desatenta do acórdão poderia dar azo à confusão entre as duas distintas realidades.
De resto, a factualidade dada como provada atinente aos elementos subjectivos do crime de tráfico, naturalmente dados como provadas na sequência da factualidade provada em 6. e 7., não se encontra, manifestamente, em contradição com qualquer ponto dos factos considerados não provados, pelas razões já mencionados.
Assim sendo, cumpre concluir, sem necessidade de mais considerandos, porque supérfluos e inúteis, pela improcedência do recurso neste segmento
2.3. Do erro notório na apreciação da prova
O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.
Conforme se refere no Ac. desta Relação 04-02-2016 (proc. n.º 23/14.2PCOER.L1-9, jurisprudência.pt) “Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, é necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.”
O vício apontado, previsto no artigo 410.º/ 2, alínea c), do CPP – erro notório na apreciação da prova –, só se pode verificar quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.
Como se lê no acórdão no ac. do STJ 19-11-2008 (proferido no processo n.º 3453/08 - 3.ª Secção), citado pelo Ac. do mesmo Tribunal de 27-04-2017 (proc. n.º 452/15.4JAPDL.L1.S1, https://www.direitoemdia.pt/), “o erro notório na apreciação da prova constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. (…) A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.
Para se verificar este vício tem, pois, de existir uma “(…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum”.
Acompanhando de perto o Ac. deste Tribunal acima citado, “Este entendimento da jurisprudência é também seguido pela doutrina, como se alcança da transcrição do seguinte texto de Paulo Saragoça da Matta no qual se refere que, ao tribunal de recurso cabe apenas “(…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significa que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. – Cf. “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
Como se escreveu no Ac. desta Relação, de 24/10/2021 (proc. n.º 72/19.4...-3, jurisprudencia.csm.org.pt) “Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se podem ter verificado. Trata se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada.”
O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater apenas ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Como ensina Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Verbo, 2011, Vol. II, pág.188), regras da experiência comum, “são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Têm origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.”
Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 740.
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (cfr. artigo 374.º/2). Este erro na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média.
Dito de outro modo, o requisito da notoriedade afere-se, como bem refere o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal Português - Do Procedimento, Marcha do Processo, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 326), pela circunstância de não passar “despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando um homem de formação média facilmente dele se dá conta”, ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.
Ora, analisando a sentença ora colocada em crise conjugando o seu texto com as regras da experiência comum, não se deteta qualquer “lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito”, vício que “não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida” – cf. Germano Marques da Silva, Curso de processo penal, T. III, 2ª edição, Verbo, Lisboa, 2000, p. 340.
De igual forma, não se deteta qualquer “erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”, ou seja, qualquer erro do qual “o homem de formação média facilmente dele se dá conta” – op. cit, p. 341.
O Colectivo fundamentou a factualidade dada como provada de forma racional, estruturada, lógica e coerente, apreciando criticamente os diferentes elementos probatórios, discriminando, fundamentadamente, os que lhe mereceram ou não credibilidade, não se vislumbrando que tenha retirado de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Conclui-se, pois, pela inexistência do apontado do vício de erro notório na apreciação da prova, aliás não concretizado, especificado e fundamentado cabalmente no recurso, trazendo à colação elementos probatórios e, logo externos à matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal porventura porque o próprio recorrente não está convencido da respectiva existência.
Pelo exposto, também neste segmento improcede o recurso.
2.4. A violação do princípio in dubio pro reo.
Do mesmo passo, defende o arguido, depois de dissertar longamente sobre a prova indirecta e presunções judiciais que:
- para a condenação exige-se um juízo de certeza e não de mera probabilidade e, na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), vale o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e a regra, seu corolário, in dubio pro reo;
- a questão reside em saber se o facto o arguido ter adquirido uma bicicleta usada, que não era utilizável, porquanto se encontrava avariada, tendo tido necessidade de gastar tempo e dinheiro para a arranjar a fim de a poder utilizar, é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que o arguido tinha de admitir como possível que a referida bicicleta tinha proveniência ilícita, parecendo-lhe que não;
- e muito provável (dizem-no as regras da experiência) que as pessoas por vezes equacionem quando compram um bem em segunda mão por um valor bastante acessível que este possa ser furtado, mas quando o bem está avariado e necessita de ser consertado para poder ser utilizado, tendo a pessoa de dispor de dinheiro e tempo para poder utilizar o bem danificado, que qualquer pessoa, colocada na mesma situação que o arguido não lhe passe sequer pela mente que tal objecto seja furtado e não do próprio que não está na disponibilidade de gastar dinheiro no arranjo da bicicleta, seja por que motivo for;
- pelo que nos parece, pelo menos razoável, por um lado, a dúvida de que o arguido possa sequer ter equacionado a origem ilícita do bem danificado que adquiriu. Mesmo que se considerasse pouco provável, não podemos dizer que está, razoavelmente, de todo afastada essa hipótese. O lapso de tempo que mediou entre a data da prática do furto e a data da aquisição da bicicleta e o estado em que a mesma se encontrava quando foi adquirida, não é tão curto que torne de todo improvável tal hipótese, sem que isso represente, cogitar hipóteses porventura absurdas, e não nos digam que a livre apreciação de prova permite que existindo mais de uma explicação é legal que o Tribunal tenha outro entendimento e decida in dubio contra reo, porque o facto de ter mais de uma explicação, não representa que o Tribunal tenha tido qualquer dúvida;
- de facto o Tribunal de que se recorre não teve qualquer dúvida, mas imperava que o tivesse e que tivesse decidido conforme manda a Lei, in dúbio pro reo.
Ora nesta última asserção resulta um manifesto equívoco por parte do arguido, desde logo a fundamentar um juízo de improcedibilidade do por ele invocado.
O princípio in dubio pro reo, enquanto expressão ao nível da apreciação da prova do princípio político-jurídico de presunção de inocência, traduz-se na imposição de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido - a dúvida resolve-se a favor do arguido.
No que se traduz que apenas pode haver condenação se se tiver alcandorado a verdade com um grau de certeza, para além de qualquer dúvida razoável, que naturalmente, fica aquém da noção de qualquer sombra de dúvida.
“Em processo penal, vigora o princípio da presunção de inocência do arguido, com consagração constitucional, artigo 32º/2 da Constituição da República Portuguesa e ainda na Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, “cuja primeira grande incidência, assenta fundamentalmente, na inexistência de ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem de provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo; e ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele.
Na verdade, e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual parece imposta (ou ficcionada) pela lei, o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.
Em segundo lugar, do referido princípio da presunção de inocência do arguido - embora não exclusivamente dele - decorre um princípio in dubio pro reo, princípio que procurando responder ao problema da dúvida na apreciação do caso criminal (não a dúvida sobre o sentido da norma, mas a dúvida sobre o facto) e, partindo da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, determina que na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido” (cfr. Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, Ass. Académica da FDL, 2000, 93/94.)
Como cremos resultar do supra transcrito, que a decisão recorrida procurou demonstrar, na motivação e no exame crítico da prova, a existência das razões pelas quais o tribunal deu como provados os factos, contra cujo julgamento o arguido se insurge, permitindo-lhe, nesta fase, de recurso, todos os meios de defesa, e ao tribunal de recurso, assim como a qualquer cidadão, reconstruir retrospectivamente o iter percorrido na decisão recorrida.
O princípio in dubio pro reo como regra de decisão da prova, é a solução que resulta de um conjunto de factores em verificação cumulativa:
- necessidade de pôr fim ao processo, com decisão definitiva que não represente, do ponto de vista da paz jurídica do arguido, uma demora intolerável;
- a inadmissibilidade da pena de suspeição;
- a opção pelo modus probandi de livre apreciação da prova ou livre convicção do tribunal, necessariamente objectivável e motivável;
- a possibilidade do surgimento de dúvidas, resistentes à prova e impeditivas da tal convicção, na verificação dos enunciados factuais abrangidos pelo objecto do processo;
- a consciência da diferença entre o processo criminal e a lide civilística, que impede a transferência para o primeiro da solução do ónus de prova, típica de um processo de partes;
- a convicção de que o Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente.
Daí que, este princípio deve ser perspectivado e entendido, como remate da prova irredutivelmente dúbia, destinado a salvaguardar a legitimidade da intervenção criminal do poder público e, naturalmente, pode revestir a decorrência de um erro notório na apreciação da prova. O Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente. Consequentemente, só releva e restringe o seu âmbito de aplicação à questão de facto, é mais do que o equivalente processual do princípio da culpa, desligando-se, quanto ao fundamento, da presunção de inocência e abarcando, quer as dúvidas sobre o facto crime, quer a incerteza quanto à perseguibilidade do agente. E finalmente o controle da sua efectiva boa ou má aplicação está dependente de os tribunais cumprirem a obrigação de fundamentarem a sua convicção (cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, 165 e ss.
Quer isto dizer, que a sua verificação pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, sendo certo, todavia, que a simples existência de versões díspares e até contraditórias sobre os factos relevantes, não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo.
Não basta a mera probabilidade de existir uma hipótese contrária à da acusação, para que se possa afirmar que tal obsta à condenação do arguido.
Será seguramente, necessário para fazer desencadear a aplicação deste princípio, que a versão do arguido dos factos seja plausível, fundada e demonstrável, pois só uma versão credível subjaz a uma dúvida racional. Não basta a mera plausibilidade e verosimilhança da sua versão para que surja sem mais, a dúvida séria e razoável.
Se da decisão recorrida resultar que o tribunal chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido, há que concluir pela violação de tal princípio. Da mesma forma há violação do dito princípio, se o mesmo for invocado sem fundamento, sério e razoável, seja fora das condições concretas de que depende a sua aplicação e, não obstante, se decretar a absolvição do arguido.
A questão mais premente a este propósito é a de saber qual a natureza, a dimensão e a característica que deve assumir a dúvida - a que o tribunal chegue - como pressuposto e justificação da aplicação deste princípio.
Não pode deixar de ser uma dúvida insanável, razoável, racional, objectiva e séria e, não meramente subjectiva, intuitiva e assente em meras conjecturas ou suposições.
Tão pouco, fundada e estruturada numa errada apreciação da prova e, muito menos, na apreciação subjectiva da prova efectuada pelo recorrente, como acontece in casu, como decorre da alegação por aquele feita a este propósito e que surge como corolário da apreciação da prova por ele efectuada de que o “…Tribunal de que se recorre não teve qualquer dúvida, mas imperava que o tivesse e que tivesse decidido conforme manda a Lei, in dúbio pro reo.”
Importa, assim, indagar se no caso, a regra da absolvição na dúvida, foi, ou não, violada.
E a resposta a dar depende da apreciação que se fizer sobre se merece censura o processo lógico e racional, subjacente à formação da afirmada convicção. Depende do facto de se poder, ou não considerar como suficiente e bastante a fundamentação. Depende do facto de se poder, ou não, afirmar que o tribunal errou, notoriamente - na apreciação e na valoração que fez da prova.
O que nos remete para a formulação da questão de saber qual o grau de certeza exigível para que se dê determinado facto como provado.
Isto, porque a certeza que se visa alcançar será sempre uma certeza possível, uma firme persuasão da verdade e nunca a certeza absoluta. A verdade objecto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directa ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.
É uma verdade lógica, racional e processualmente válida resultante da concreta prova produzida nos autos.
Será que se justifica que o Tribunal de 1.ª instância tivesse ficado na dúvida sobre a afirmação dos factos cujo julgamento o arguido impugna?
Obviamente que, desde logo, a conclusão afirmada pelo recorrente tem subjacente a sua própria, subjectiva, interessada e parcial, valoração do conjunto da prova produzida.
E como se sabe, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.
Repassando a fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, que nos abstemos de repetir aqui, é ostensivo, visível e notório que nenhuma dúvida assolou o tribunal sobre o modo como os factos se passaram e sobre a culpabilidade do arguido, sendo certo que “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida” (Cfr. Roxin, Derecho Processual Penal, Buenos Aires, 111).
E a dúvida, que impede o julgamento como provado de determinado facto, é apenas aquela que o tribunal tiver e, não a dúvida que o arguido entende que o tribunal deveria ter tido.
Donde, no caso concreto, a resposta não pode deixar de ser negativa.
E, assim, improcede, também, este segmento o recurso.
2.5. Pretende ainda o recorrente impugnar o julgamento sobre a matéria de facto, no que a doutrina denomina como impugnação ampla, nos termos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, embora nunca o afirmando de forma clara e inequívoca.
Nesta situação a apreciação do Tribunal ad quem alarga-se à análise da prova produzida em audiência, mas com os limites impostos pelos nºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do CPP.
Nos termos deste preceito,
“1 - A motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Assim, nos termos do normativo acabado de citar, incumbe sobre o recorrente que pretende impugnar amplamente a matéria de facto “o ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art.º 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas…” - cf. Ac. do TRC de 06-07-2016, proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, www.dgsi.pt.
Por outro lado, a procedência da impugnação, com a consequente modificação da decisão sobre a matéria de facto, não se satisfaz com a circunstância de as provas produzidas possibilitarem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
E a demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionar o “conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135).
Como se refere no ac. do TRC de 12-07-2023 (proc. n.º 982/20.6PBFIG.C1, www.dgsi.pt) a impugnação alargada não se satisfaz com “mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados.”
No caso concreto o arguido mostra discordar do julgamento firmado sobre os factos contidos nos pontos 4. e 5. da sentença (desde já se fazendo notar que o não afirmou de forma perfeitamente inequívoca)
Para tentar demonstrar as razões da sua discordância alega o seguinte:
- sob a epígrafe Justificação da Convicção do Tribunal, concluiu o tribunal de que se recorre que: “…. Consentiu a busca ao café. A bicicleta que lá tinha era sua e comprou-a por trinta euros, não sabe o valor da bicicleta e não estanhou o preço.” (declarações prestadas pelo arguido a 20.12.2020 das 14:24h às 15:13, em sede de 1.º interrogatório judicial, em que mais nada lhe foi questionado sobre tal bicicleta, cfr. se pode verificar das gravações efectuadas pelo sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal);
- tendo o arguido prestado declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, tendo se consignando em acta que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 8 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 51 minutos;
- passando a transcrever parte da fundamentação da matéria de facto constante do acórdão atinente às declarações por si prestadas;
- para, a seguir, referir que a ... “que é uma oficina que fica ao lado da ..., oficinas estas bem conhecidas de qualquer pessoa que viva na margem sul”;
- voltando a citar a conclusão a que o Tribunal chegou sobre a culpabilidade do arguido quanto ao crime de receptação;
- referindo que que “nunca lhe haviam perguntado sobre reparações efectuadas no veículo e que não nos parece nada anormal que, quando se compra uma bicicleta que não anda, cuja marca e modelo o arguido sempre afirmou desconhecer, bem como o valor inicial de aquisição, também ninguém pediu uma factura ao Senhor alvo do furto, nem lhe questionou se o veículo foi comprado em alguma campanha, é certo que o arguido para poder usufruir da bicicleta estragada que adquiriu necessitou gastar dinheiro e de a reparar, não se podendo assim concluir que o arguido tenha sequer lhe passado pela cabeça, quanto mais admitido que a bicicleta tivesse uma proveniência ilícita, estamos a falar de uma bicicleta com mais de dois anos avariada, a conclusão a que o Tribunal chegou é ilógica e arbitrária, não podendo subsistir”;
- passando a tecer considerações sobre a prova indirecta, as presunções judiciais, para concluir que o Tribunal decidiu conta o principio in dubio pro reo;
- no que toca ao crime de tráfico de estupefacientes o arguido nega que tenha procedido a qualquer venda de produto estupefaciente (sem referir, especificadamente que concretos pontos de facto foram incorretamente julgados);
- invoca factos não constantes da matéria de facto provada ou não provada, atinentes ao uso da arrecadação, não podendo, obviamente, merecer qualquer ponderação em sede recursiva;
- afirmando que “Não é o que resulta da prova, cfr. acta de audiência de julgamento do dia 20.10.2023, tendo o arguido prestado declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, tendo se consignando em acta que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 8 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 51 minutos”.
Daqui resulta ser manifesto que o arguido em momento algum deu cumprimento a todos os ónus que sobre ele incidia:
- não especificou, concretamente quais os factos – pedaços da vida real – de cujo julgamento discorda, nem, tão pouco, em que sentido os mesmos deveriam ser julgados;
- por outro lado, não especificou, citou, transcreveu e localizou no suporte da gravação digital as concretas provas, no caso, os excertos da prova pessoal que entende imporem decisão diversa da recorrida.
Quanto a esta última questão não vale, como faz o arguido, invocar o que consta da fundamentação da matéria de facto ou referir as declarações do arguido cujo “início ocorreu pelas 10 horas e 8 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 51 minutos” – cf. Ac. RE de 22/11/2011, proc. n.º 238/07.0GCSLV.E1, jurisprudência.pt
Necessário era localizar os concretos excertos e analisá-los de forma a justificar a sua pretensão de alteração do sentido do decidido.
Assim sendo, se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas no artigo 412.º/4 do CPP, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, nos termos do artigo 417.º/3, do mesmo Código, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite. Endereçar o convite para que o recorrente aperfeiçoe as conclusões do recurso, conduziria, necessariamente, ao paradoxo de termos umas conclusões – consabidamente o resumo das razões do pedido – mais extenso, mais complexas e com matéria que não constava do corpo da motivação.
Isto porque, consabidamente, só relativamente às conclusões pode recair o convite ao aperfeiçoamento, já que, de outra forma, se fosse permitido alargá-lo ao corpo da motivação tal se traduziria num injustificado e inadmissível alargamento do prazo do recurso.
Em face do exposto é de rejeitar, o recurso interposto pelo arguido quanto ao erro de julgamento por ele invocado, nos termos do estatuído no artigo 412.º/4 do CPP, a contrario, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto vertida na decisão sob recurso.
3. No que toca ao direito, consta da decisão recorrida, o que a seguir se transcreve:
“2.1) Enquadramento jurídico penal da causa
Do crime de tráfico de estupefacientes
É imputada ao arguido a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, por referência ao tipo previsto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, o qual estabelece:
“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”
Tendo subjacente a proteção de uma pluralidade de bens jurídicos, designadamente a saúde pública, a estabilidade económica e financeira, cultural e política da sociedade e a segurança e soberania do Estado1, a realização do tipo de crime de tráfico de estupefacientes não exige a verificação de um prejuízo efetivo para tais bens, constituindo o que se designa por “crime de perigo abstrato”.
O que se visa, outrossim, é a antecipação da tutela penal, com vista a prevenir o perigo para a saúde (física e psíquica), em que se traduz o abuso de estupefacientes e os efeitos perturbadores do equilíbrio, estabilidade e organização económica e social, devido aos rendimentos avultados que gera a sua comercialização ilícita.
A realidade conexa com este tipo de atividade pode, contudo, assumir contornos e gradações diversas, pelo que na esteira desta constatação, o crime de tráfico de menor gravidade, previsto no 25.º do aludido diploma legal, introduz um tipo privilegiado que se baseia na mesma atuação típica do tipo fundamental, mas na qual concorrem circunstâncias que diminuem consideravelmente a ilicitude dos factos2, designadamente:
- Os meios utilizados;
- A modalidade ou as consequências da ação;
- A qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
Com efeito, estabelece o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 que: “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; (…)”
Como decorre da própria epígrafe do artigo, em causa está um tráfico correspondente a uma danosidade social significativamente reduzida, avançando-se no próprio texto da norma, de forma não taxativa, indicadores desse menor desvalor da ação e do resultado (nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a quantidade ou a qualidade das plantas, substâncias ou preparações).
Trata-se de uma significativa diminuição da ilicitude (não estando, por isso, dependente de uma sensível diminuição da culpa), a refletir-se num ataque menos gravoso aos bens jurídicos protegidos e consequentemente, uma menor danosidade social.
Procurando estabelecer critérios de avaliação da atividade com vista à aferição ou não da “considerável diminuição da ilicitude do facto” o Supremo Tribunal de Justiça veio, no Acórdão do 23/11/20113, sugerir que se pondere, entre outras circunstâncias, se:
“a) A actividade de tráfico é exercida por contacto direto do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);
b) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;
c) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;
d) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas.
e) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;
f) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;
g) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;
h) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93”.
Não pode deixar de ter-se presente, contudo, que independentemente dos indicadores que, em abstrato, se considere ser de ponderar, a ilicitude exigida no tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade é, ou tem de ser, não apenas diminuta mas, mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da ação e do resultado.
No que concerne ao elemento subjetivo deste tipo de incriminações de tráfico, há a referir que a conduta a que se reporta este tipo de crime é de natureza dolosa.
*
Importa, pois, à luz do supra exposto, analisar a atividade que nestes autos é de imputar ao arguido.
Em face da factualidade dada como provada, verifica-se, em termos gerais, que no dia 20/12/2020, pelas 10:00 horas, o arguido procedia ao corte de canabis, para entrega a DD, a troco de dinheiro.
Foi ainda encontrado na posse de 1 (um) saco de plástico com 8,413 gramas de canábis em sumidades, suficiente para 12 (doze) doses individuais, 56,800 gramas de canábis em resina, suficiente para 215 (duzentas e quinze) doses individuais; 1 (um) saco de plástico com 18,723 gramas de MDMA, suficiente para 108 (cento e oito) doses individuais; 1 (um) saco de plástico com 14,044 gramas de cocaína, suficiente para 52 (cinquenta e duas) doses individuais; 1 (um) saco de plástico com 3,745 gramas de cocaína, suficiente para 4 (quatro) doses individuais; 8 (oito) sacos de plástico com 0,767 gramas cocaína, suficiente para 19 (dezanove) doses individuais, 2 (dois) rolos de papel aderente para embalar produto estupefaciente; 2 (duas) embalagens de redrate para misturar com produto estupefaciente; 1 (uma) balança de precisão; 30 (trinta) sacos zip.
Em suma, o arguido detinha 56,800 gramas de canábis em resina, suficiente para 215 (duzentas e quinze) doses individuais; 18,723 gramas de MDMA, suficiente para 108 (cento e oito) doses individuais; 18,556 gramas de cocaína, de diversos graus de pureza, suficientes para 75 (setenta e cinco) doses individuais.
O arguido destinava o produto estupefaciente à comercialização tendo em vista a obtenção de benefícios monetários.
Sendo ele próprio consumidor de canabis, parte desse estupefaciente certamente seria destinado ao seu consumo.
As referidas substâncias (cocaína, canabis e MDMA) encontram-se previstas nas Tabelas I-B, I-C e II-A anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, pelo que a sua detenção e transporte, quando não destinadas exclusivamente ao consumo e fora das condições a que alude o artigo 40.º do mesmo diploma, preenche o elemento objetivo do tipo base de tráfico de estupefacientes.
Tendo resultado provado que o arguido conhecia a natureza e característica daqueles produtos estupefacientes, que destinava a terceiros (e a canabis, parcialmente ao seu consumo próprio), sabendo que ao agir nos termos em que o fez incorria em conduta proibida e punida por lei, o que traduz uma atuação dolosa, assim se mostra preenchido igualmente o elemento subjetivo do crime em apreço.
No entanto, afigura-se que, no caso concreto em apreço, a modalidade e as circunstâncias da ação não se revestem de especial desvalor - atenta a quantidade de produto estupefaciente apreendido, sendo certo que o arguido destinava parte do produto ao seu consumo - o que permite a subsunção do caso ao tipo privilegiado do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às Tabelas I-B, IC e II-A anexa ao referido diploma legal, pelo qual deverá o arguido ser punido.
*
Do crime de recetação
Ao arguido é imputada a prática de um crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal, no qual se preceitua:
“Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
O bem jurídico protegido com esta incriminação penal é, em geral, o património, numa vertente acrescida de “segurança geral da comunidade” contra “o perigo (abstrato) do cometimento futuro de crimes patrimoniais”4, no sentido da repressão e refreamento de condutas propiciadoras da entrada no comércio de bens ilicitamente obtidos que, nessa medida, favorecem e fomentam a prática desses crimes.
O preenchimento do tipo objetivo deste ilícito penal tem como elementos:
a) A aquisição ou receção de coisas, a qualquer título, com efetiva tradição;
b) A coisa tenha sido obtida por outrem, mediante facto ilícito típico contra o património.
Por seu turno, o elemento subjetivo do crime de receção, na formulação do n.º 1 do artigo. 231.º exige:
a) Dolo específico relativamente à proveniência da coisa, isto é, “que o agente saiba efetivamente que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património” e
b) A intenção de obter uma vantagem patrimonial.
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Reportando-nos à matéria dos autos, verificamos que se comprovou que entre o arguido e uma outra pessoa se transacionou um objeto com proveniência ilícita, isto é que a coisa adquirida pelo arguido foi obtida por facto ilícito típico contra o património.
Foi, contudo, claramente insuficiente a matéria probatoriamente demonstrada, para o preenchimento do tipo subjetivo do crime de recetação previsto no n.º 1 do artigo 231.º do Código Penal.
Com efeito, não tendo sido dado como assente que o arguido conhecesse a proveniência do objeto que adquiriu, falece o elemento subjetivo da incriminação pela prevista no artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal, no que respeita ao dolo específico exigido pelo tipo.
Na verdade, a conduta que se sanciona na aludida incriminação, exige uma conduta, exclusivamente dolosa, cujo conteúdo “reside na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica, aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior.
É, pois, nosso entendimento que, no domínio da incriminação penal prevista no n.º 1 do artigo 231.º do Código Penal, o recetador na sua atuação deverá ter a “certeza de que o bem provem de facto ilícito típico.
Assim, a responsabilização do arguido pela prática deste ilícito está excluída in casu porquanto o elemento subjetivo do crime exige o conhecimento da proveniência ilícita da coisa, sendo que tal conhecimento não resultou provado.
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Porém, a lei penal igualmente tipifica a chamada recetação culposa ou negligente, preceituando o n.º 2, do citado artigo 231º, do Código Penal:
“Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido (...)”.
Destarte, o aludido preceito legal igualmente contém um tipo doloso em que é suficiente que o agente “represente, ao menos a título de dolo eventual a aquisição ou o recebimento da coisa e os factores que a tornam, em concreto, suspeita, tendo, pois, de representar, pelo menos, a possibilidade de a coisa provir de facto ilícito típico contra o património, conformando-se com tal representação.”
Sanciona-se ainda com este normativo legal a inobservância de um determinado dever de cuidado, ou seja, a omissão da averiguação da legítima proveniência da coisa, nos casos em que o negócio faz razoavelmente suspeitar dessa proveniência criminosa.
Revertendo as considerações tecidas ao caso vertente e perscrutando o complexo fáctico provado, verificamos que se apurou que o arguido adquiriu a bicicleta, admitindo como possível, face ao seu valor de aquisição (30 euros), que a mesma tivesse sido furtada.
Ora, não podemos deixar de considerar que o arguido, face a estas circunstâncias, tinha obrigação de se assegurar da proveniência legítima do bem que adquiriu e, para além de incumprir esse dever, tinha consciência de que tal objeto poderia ter proveniência ilícita, pelo que, em nosso entender, se constituiu na autoria de um crime de recetação negligente.
Assim sendo e pelos motivos expostos, conclui-se que a conduta do arguido deverá ser convolada para o disposto no artigo 231.º, n.º 2 do Código Penal (e não como integradora da ação prevista no n.º 1).
*
2.2) Determinação da medida concreta das penas O crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Por sua vez, o crime de recetação, previsto pelo artigo 231.º, n.º 2 do Código Penal é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias.
Dentro das molduras acima indicadas, deverão as penas ser agora determinadas em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção.
O modelo mais adequado de determinação da pena é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico e, por último à prevenção
especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato de pena que melhor sirva as exigências de socialização.
Assim, deverá salientar-se que, no caso do crime de tráfico de estupefacientes estão presentes necessidades muito fortes de prevenção geral, recorrente e reiteradamente afirmadas, pela constatação de que o “narcotráfico vem sendo classificado como crime contra a saúde pública, tais os efeitos perniciosos que causa, não só aos consumidores, como aos familiares mais próximos, e de um modo geral à sociedade, provocando intranquilidade e insegurança nos cidadãos, muitas vezes, vítimas de violência e criminalidade vária (...).”
Com efeito, o fenómeno do abuso de estupefacientes que está subjacente ao narcotráfico assume uma danosidade social muito forte, que “atinge as famílias dos nossos dias como se de uma epidemia se tratasse, provocando desavenças, amarguras, desilusões, sofrimentos psíquico e físico e, até mesmo, a morte de cidadão. A busca de momentos de felicidade efémera produz chagas no consumidor e nos entes mais próximos, cujas cicatrizes jamais encontrarão cura verdadeira.”
Assim, atendendo às elevadas exigências de prevenção geral, que implicam uma particular necessidade de afirmação da norma violada, os limites mínimos da pena a aplicar deverão ser consideravelmente aumentados.
Por seu turno, quanto ao crime de recetação, deverá salientar-se que se trata de crime “parasitário” de outro crime, o qual propicia as condições à prática de outros crimes contra o património, pelo que também as necessidades de prevenção são consideráveis.
No caso vertente, ainda que seja possível a aplicação de pena não privativa da liberdade quanto ao crime de recetação, tendo em consideração as necessidades de ressocialização que o arguido revela pelas sucessivas condenações sofridas, entende-se que resulta inequívoca a insuficiência da pena de multa para salvaguardar eficazmente as exigências de prevenção especial que o caso requer, havendo que optar pela pena de prisão.
*
Agora os critérios parametrizadores enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal e reportando-nos aos fatores concretos concernentes à execução dos factos evidenciam-se as seguintes circunstâncias com relevo para a correspondente ponderação:
- O grau de ilicitude dos factos é considerável, atendendo, quanto ao crime de tráfico, à natureza, quantidade e qualidade do estupefaciente que o arguido detinha (18,556 gramas de cocaína, de diversos graus de pureza, suficientes para 75 doses, 56,8 gramas de canabis, suficientes para 215 doses, 8,4 gramas de canabis - fls/sumid -, suficientes para 12 doses e 18,723 gramas de MDMA, suficientes para 108 doses), sendo que o arguido alegou ser apenas consumidor de canabis; relativamente ao crime de recetação, a ilicitude dos factos é menos significativa, embora estivesse em causa um bem com valor económico e de uso considerável;
- O grau de culpa do arguido, no cometimento dos factos é muito elevado no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes, tendo agido com dolo direto, bem sabendo da proibição e punição legal do seu comportamento e é menos acentuado no caso do crime de recetação que praticou com dolo eventual;
- A conduta do arguido anterior aos factos deverá ser ponderada muito desfavoravelmente na medida em que já tem averbadas quatro condenações referentes a factos praticados entre 2007 e 2016; três pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes (duas pelo artigo 21.º e uma pelo artigo 25.º do Decreto-lei n.º 15/93), tendo sido condenado em penas de prisão suspensa e efetiva (que cumpriu até abril de 2019, quando lhe foi concedida a liberdade condicional) e outra condenação pela prática de um crime de resistência e coação;
- As condições pessoais do arguido sugerem que o mesmo apresenta dificuldades de contenção (desde logo atendendo aos seus antecedentes criminais), sendo certo que manteve os comportamentos aditivos, no que concerne ao consumo de estupefacientes, após ter cumprido pena de prisão pelo cometimento de vários crimes de trafico de estupefacientes, mesmo tendo a seu cargo dois filhos menores de idade.
Tudo visto e ponderado, entende-se equilibrado aplicar ao arguido, as penas de:
- 3 (três) anos e 2 (dois) meses prisão, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade;
- 2 meses de prisão, pela prática do crime de recetação.
*
2.3) Da pena unitária
Atentos os crimes imputados e preenchidos pelo arguido, dir-se-á que estamos perante um concurso efetivo, verdadeiro ou puro, em que a ilicitude de um dos tipos legais não abrange a ilicitude contida no outro, pelo que as duas normas concorrem paralelamente na aplicação concreta.
Ora, esta aplicação concreta, tem lugar na nossa lei, através do sistema do cúmulo jurídico, consagrado no artigo 77.º do Código Penal.
De acordo com este preceito legal, dever-se-á proceder à fixação das penas parcelares respeitantes a cada um dos crimes em concurso. Posteriormente, somam-se as penas parcelares e obtém-se o limite superior da moldura abstrata aplicável, dentro dos limites absolutos agora expressamente previstos no n.º 2. O limite mínimo é constituído pela mais grave das penas parcelares fixadas.
Encontrada desta forma a moldura abstrata, a pena única é determinada, nos termos da última parte do n.º 1, isto é, considerando “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, assim se respeitando o essencial da pena unitária.
Considerando os parâmetros a que alude o artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, entende-se que se deverá salientar, com relevância para a determinação da pena única:
- A personalidade de desconformidade ao direito revelada pelo arguido que evidencia dificuldade em manter um modo de vida estruturado, devido ao envolvimento no tráfico e consumo de estupefacientes;
- As condenações sofridas pela mesma tipologia de crime (tráfico de estupefacientes), já tendo sido condenado em penas de prisão suspensas na sua execução e em pena de prisão efetiva por este tipo de ilícito, sendo de assinalar, contudo, que o arguido não tem averbadas condenações anteriores pelo cometimento de crimes contra o património;
- O conjunto dos factos aponta no sentido de que o arguido assumia globalmente um comportamento antijurídico e contrário às normas de convivência em sociedade, alheio às responsabilidades familiares e parentais que sobre si incidiam (designadamente quanto aos seus três filhos menores de idade, dois dos quais ainda residiam consigo à data dos factos), sem ter revelado qualquer reflexão sobre o seu anterior comportamento apesar das condenações, em penas privativas da liberdade, que já havia sofrido.
Assim, somadas as penas parcelares de prisão, temos que o limite máximo é de três anos e quatro meses de prisão e o limite mínimo é de três anos e dois meses de prisão, pelo que, operando o cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal e considerados em conjunto os factos e a personalidade do arguido, reputa-se ajustada a pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.
*
2.4) Da suspensão da pena de prisão
Nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Verificados que sejam, pois, os pressupostos expressamente formulados pelo dispositivo em análise, o Tribunal tem o poder-dever de decretar a suspensão.
Na base de tal decisão, está em causa a ponderação, não de razões atinentes à culpa, mas apenas de razões ligadas às finalidades preventivas da punição, especialmente as que respeitam à prevenção especial de ressocialização, acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral.
A finalidade política criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é, pois, o afastamento do agente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correção ou melhora das conceções daquele sobre a vida e o mundo.
Por conseguinte, a suspensão da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, sendo que, a ser determinada constituirá numa crença fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida.
O Tribunal poderá, pois, “correr o risco” fundado e calculado sobre a manutenção do agente em liberdade, a não ser que haja razões sérias para pôr em causa a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, devendo neste caso o juízo de prognose ser desfavorável e a suspensão negada.
Em tal juízo de prognose, há que ter em conta a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias desse mesmo facto.
No que concerne às necessidades de prevenção geral deste tipo de criminalidade, entende-se que as mesmas são elevadas, conforme se tem vindo a assinalar, constantemente na jurisprudência:
“Estamos perante um crime contra a saúde pública, onde as necessidades de prevenção geral de integração da norma e de proteção de bens jurídicos são prementes. Além disto, o “sentimento jurídico da comunidade” apelando, por um lado, a uma eliminação do tráfico de estupefacientes destruidor de vidas e famílias, por outro lado, também anseia por uma diminuição deste tipo de criminalidade e uma correspondente consciencialização de todos aqueles que se dedicam a estas práticas ilícitas para os efeitos altamente nefastos para a saúde e vida das pessoas, isto é, uma exigência acrescida de tutela dos bens jurídicos lesados com o crime. Aliás, tendo em conta as características desta criminalidade e os seus efeitos nefastos para a sociedade, as exigências de manutenção da confiança geral na validade da norma e, portanto, a confiança de que estas condutas são punidas, impõem exigências acrescidas de restauração da paz jurídica.”
No caso concreto, afigura-se-nos que as condenações criminais já sofridas pelo arguido, em particular pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, não justificam como minimamente razoável um juízo de prognose positivo no sentido de que a mera censura do ato e a ameaça de prisão sejam já suficientes para realizarem de forma adequada as finalidades da punição.
Com efeito, o arguido praticou os factos em apreciação após ter sofrido três condenações pelo crime de tráfico de estupefaciente, duas em pena de prisão suspensa (pelo cometimento de crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93 e uma pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto no artigo 25.º do mesmo diploma) e uma em pena de prisão efetiva, que cumpriu (pelo cometimento de crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93).
Assim sendo, o arguido revelou, através da conduta que adotou no caso em apreço, falta de capacidade de contenção e de manter uma conduta lícita, caso se mantenha em liberdade.
Na verdade, o arguido através do seu comportamento, denotou total indiferença pelos valores protegidos pela norma incriminadora e igual alheamento pelas condenações que sofreu, não tendo as mesmas surtido eficácia para o afastar de comportamentos contrários à ordem jurídica e para o dissuadir da reiteração do mesmo ilícito criminal, o que não é compreensível, atenta a sua idade, experiência e responsabilidades familiares.
Neste contexto, tendo também em consideração que o arguido manteve os hábitos de consumo, que aparentemente terá apenas cessado em momento posterior, mostra-se evidente que o arguido não demonstrou reunir condições pessoais para permitir concluir que adotará uma conduta diversa, caso seja mantido em liberdade.
Com efeito, pese embora o arguido se encontre atualmente a residir e a trabalhar no estrangeiro, desconhece-se em concreto as suas condições de vida e de trabalho (designadamente a existência de qualquer vínculo formal), inexistindo qualquer elemento fático que aponte decisivamente no sentido da sua ressocialização ou de uma alteração de comportamento, apesar do arguido ter declarado que abandonou o consumo de estupefacientes.
Pelo exposto, entende-se que as sobreditas circunstâncias não permitem a formulação de um juízo de prognose positivo quanto à capacidade do arguido manter uma conduta lícita, caso seja suspensa na sua execução a pena de prisão que lhe foi aplicada.
(…)”
3.1. Da subsunção dos factos ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
De harmonia com o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Preceitua o artigo 25.º do mesmo diploma, “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade, ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até dois anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”
No artigo 21.º está previsto o tipo essencial, relativo ao tratamento penal da actividade de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo; nas condutas ali descritas, basta-se a lei, com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores, a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade, considerando integrado o tipo logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine; a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se na categoria dos crimes de perigo abstracto: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos.
O perigo presumido envolve-se na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la.
Cada uma das actividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.
Trata-se de crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral) – cf. acs. do STJ de 12-02-1986, BMJ 354, 331; de 30-04-1986, BMJ 356, 166; de 23-09-1992, BMJ 419, 464; de 24-11-1999, BMJ 491, 88; de 01-06-2004, CJ STJ 2004, tomo II, 239.
Noutra perspectiva, trata-se de um crime pluriofensivo. O normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores - visando ainda a protecção da vida em sociedade, o bem-estar da mesma, a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral - a saúde pública - pressupondo apenas a perigosidade da acção para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo - ver acórdão do Tribunal Constitucional n.º 426/91, de 06-11-1991, DR, II Série, n.º 78, de 02-04-1992 e BMJ 411, 56 (seguido de perto pelo acórdão do TC n.º 441/94, de 07-06-1994, DR, II Série, n.º 249, de 27-10-1994).
“O escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia”.
Já no preâmbulo da Convenção Única de 1961 sobre os estupefacientes, concluída em Nova Iorque, em 31-03-1961 (Aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 435/70, de 12-09 (BMJ 200, 348) e ratificada em 30-12-1971) se referia a preocupação com a saúde física e moral da humanidade, reconhecendo a toxicomania como um grave mal para o indivíduo, constituindo um perigo social e económico para a humanidade.
Por seu turno, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 420/70, de 3/09, referia-se terem-se presentes os perigos que o consumo de estupefacientes comportava para a saúde física e moral dos indivíduos e a sua não rara interpenetração com fenómenos de delinquência.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13-12, que efectuou a adaptação do direito interno ao constante daquela Convenção de 1961 e da Convenção sobre as substâncias psicotrópicas de 1971, aprovada para adesão pelo Decreto n.º 10/79, de 30-01, fazia-se referência a relatório coevo de um organismo especializado das Nações Unidas, onde se dizia: “A luta contra o abuso de drogas é antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso das drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca”.
De tal forma assim é que a mera detenção de produto estupefaciente já é punido como crime consumado, pela potencialidade do perigo que encerra, pois a experiência mostra que ninguém detém plantas substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV única e exclusivamente para seu deleite ou por mera curiosidade científica, independentemente de ulterior destinação, que, no caso concreto até se provou destinar-se, em parte, ao consumo de terceiros, nomeadamente a irmã do arguido e amigos de ambos.
A nível subjectivo, este tipo-de-ilícito pressupõe a existência de uma vontade livremente dirigida à prática de qualquer das acções descritas no tipo incriminador e por ele proibidas.
O crime base do artigo 21.º está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico.
Por outro lado, cumpre referir que, como se ensina no Ac. STJ de 30-11-2006 (www.dgsi.pt), uma situação de tráfico de drogas ilícitas tipificada no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 só merecerá o tratamento privilegiado do artigo 25.º “se a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta (…) os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das substâncias [traficadas ou a traficar]”.
Como se referiu já, conforme o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando, a tipificação do referido artigo 25.º parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do artigo 21.º do mesmo diploma e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º, sendo, no fundo a necessidade de distinguir, afinal, o “verdadeiro tráfico” [grande e médio] do pequeno tráfico que actualmente se vê o STJ claramente assumir. E isso para que não se “metam no mesmo saco” todos os traficantes, distinguindo-se entre os casos graves (artigo 21.º), os muito graves (artigo 24.º) e os pouco graves (artigo 25.º).
Sendo a quantidade, indiscutivelmente um elemento importante de ponderação para o efeito de integrar a conduta no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, não será, em muitos casos, o aspecto decisivo da valoração a efectuar.
Há que procurar a imagem global do facto, para se concluir pela verificação ou não da hipótese atenuada de tráfico.
O tráfico de menor gravidade do artigo 25.º não quer significar que se esteja perante um caso de pequena gravidade ou gravidade necessariamente diminuta.
A tipificação do artigo 25.º parece, antes significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes de elevada gravidade considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta, encontre a medida justa da punição em casos que, porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º, resposta que nem sempre seria viável e ajustada através dos mecanismos gerais da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º e 73.º do Código Penal, cuja possibilidade de aplicação não podia ter deixado de estar presente no espírito do legislador ao decidir-se pelo tipo privilegiado do mesmo artigo 25.º.
Este artigo 25.º constitui a válvula de segurança do sistema, destinado a evitar que se parifiquem os casos de tráfico de menor gravidade aos de tráfico importante e significativo.
O tráfico de menor gravidade compreende as actividades de pequeno tráfico, designadamente o denominado “tráfico de rua”.
A atenuação especial da pena só deve funcionar quando, na imagem global dos factos e de todas as circunstâncias envolventes fixadas, a culpa do arguido e ou a necessidade da pena se apresentem especialmente diminuídas, seja, quando o caso é menos grave que o “caso normal” suposto pelo legislador, quando estatuiu os limites da moldura correspondente ao tipo.
Como se referiu já, conforme o S.T.J. vem afirmando, a tipificação do referido artigo 25.º parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito, justificativa da tipificação do artigo 21.º do mesmo diploma e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º, sendo, no fundo a necessidade de distinguir, afinal, o “verdadeiro tráfico” [grande e médio] do pequeno tráfico.
Como refere o S.T.J. (Ac. de 12-03-2015, Proc n.º 7/10.OPEBJA.S1, www.dgsi.pt) “A ilicitude exigida no tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade é, ou tem de ser, não apenas diminuta, mas mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da acção e do resultado, funcionando, exemplificativamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a quantidade ou a qualidade das plantas, substâncias ou preparações, como factos-índice a atender numa valoração global, não isolada, de que a configuração da acção típica não prescinde, em que a quantidade não é nem o único e nem, eventualmente, o mais relevante.”
A tipificação do referido artigo 25.º “parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, fica aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do artigo 21.º do mesmo diploma e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º”.
De harmonia com o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”, referindo-se, desde já que a canábis (folhas e sumidades) integra a tabela I-C.
De harmonia com o disposto no artigo 25.º do mesmo diploma, “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade, ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até dois anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV
Note-se, com refere o S.T.J. (cf. Ac. de 12-03-2015, Proc n.º 7/10.OPEBJA.S1, www.dgsi.pt) “A ilicitude exigida no tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade é, ou tem de ser, não apenas diminuta, mas mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da acção e do resultado, funcionando, exemplificativamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a quantidade ou a qualidade das plantas, substâncias ou preparações, como factos-índice a atender numa valoração global, não isolada, de que a configuração da acção típica não prescinde, em que a quantidade não é nem o único e nem, eventualmente, o mais relevante.”
A tipificação do referido artigo 25.º “parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, fica aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do artigo 21.º do mesmo diploma e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º” - Ac. TRC 26-03-2014, Proc n.º 4/12.0PECTB.C1, www.dgsi.pt .
Fazendo a síntese, cumpre chamar à colação, pelo que, julgamos, importantíssimo contributo para a clarificação do tipo legal em análise, o Acórdão do S.T.J., de 23/11/2011 (Processo n.º 127/09.3PEFUN.S1, www.dgsi.pt) que, após descrever, de modo exaustivo, a evolução que a interpretação do citado artigo tem sofrido na nossa jurisprudência, elenca alguns factores que devem estar presentes no caso a apreciar, de modo a que possamos estar perante a prática do citado crime:
Diríamos, em suma, que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas:
i) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);
j) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;
k) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;
l) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas;
m) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;
n) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;
o) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;
p) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”
No caso que agora apreciamos o arguido foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, com referência às Tabelas I-B, I-C e II-A anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão.
E isto porque o Tribunal a quo deu como provado que:
(…)
6. No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas no anexo do café “...” sito na ..., o arguido procedia ao corte de canabis, para entrega a DD, a troco de dinheiro.
7. Nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar o arguido detinha na sua posse:
- 2 (dois) rolos de papel aderente para embalar produto estupefaciente;
- 2 (duas) embalagens de redrate para misturar com produto estupefaciente;
- 1 (uma) balança de precisão;
- 30 (trinta) sacos zip;
- 17 (dezassete) cartões SD com 8GB;
- 2 (dois) cartões SD 16GB;
- 1 (um) saco de plástico com 8,413 gramas de canábis em sumidades, suficiente para 12 (doze) doses individuais;
- 56,800 gramas de canábis em resina, suficiente para 215 (duzentas e quinze) doses individuais;
- 1 (um) saco de plástico com 18,723 gramas de MDMA, suficiente para 108 (cento e oito) doses individuais;
- 1 (um) saco de plástico com 14,044 gramas de cocaína, suficiente para 52 (cinquenta e duas) doses individuais;
- 1 (um) saco de plástico com 3,745 gramas de cocaína, suficiente para 4 (quatro) doses individuais;
- 8 (oito) sacos de plástico com 0,767 gramas cocaína, suficiente para 19 (dezanove) doses individuais;
- 77,05€ (setenta e sete euros e cinco cêntimos) em notas e moedas do Banco Central Europeu.
8. Ao agir da forma descrita o arguido AA, quis e representou deter na sua posse cocaína, canábis e MDMA para a entregar a troco de dinheiro a terceiros que o procuravam para efeito, retirando o consequente benefício económico que daí adviesse, o que conseguiu.
9. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes das substâncias que detinha e que cedia a terceiros, o que não o demoveu da sua conduta.
10. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
(…)
Argumenta o arguido que “tendo em conta a Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, que clarifica o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade que vem alterar o artigo 40 da Lei 15/93 de 22.01, refere expressamente no seu n.º 4 que 4 “No caso de aquisição ou detenção das substâncias referidas no n.º 1 que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência, pelo que deverá o arguido ser absolvido do crime de tráfico de menor gravidade.
É ostensiva a falta de razão do arguido, não podendo este Tribunal deixar de manifestar alguma perplexidade perante tal argumentação.
Nos termos do artigo 40.º da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, em vigor à data dos factos,
“1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivadas, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3 - No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.”
Tal norma veio a ser objecto de revogação, nos termos do artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29/11: “São revogados o artigo 40.º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime.”.
Entretanto entrou em vigor a Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, que se destinou a clarificar o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade e estabelece prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, alterando o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro.
Por via do artigo 2.º da Lei n.º 55/2023, o artigo 40.º da Lei 15/93, passou a ter a seguinte redacção:
“1 - Quem, para o seu consumo, cultivar plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2 - A aquisição e a detenção para consumo próprio das plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior constitui uma contraordenação.
3 - A aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo.
4 - No caso de aquisição ou detenção das substâncias referidas no n.º 1 que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.
5 - No caso do n.º 1, o agente pode ser dispensado de pena.”
Por outro lado, por força da Lei n.º 55/2023 (artigo 3.º), do artigo 2.º da Lei 30/2000, de 29/11, passou a constar:
“1 - O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
2 - Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo.
3 - No caso de aquisição ou detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência.”
Com os mesmos intuitos de clarificação, no seu artigo 4.º, sob a epígrafe “Atualização da portaria prevista no artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro”, dispõe que: “Sem prejuízo do prazo previsto no n.º 2 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na redação que lhe é dada pela presente lei, o Governo desencadeia a atualização da portaria referida no prazo de 30 dias a contar da publicação da presente lei”.
Prevê ainda o Artigo 5.º da lei em causa, quanto à “Entrada em vigor”, que “A presente lei entra em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação”, ou seja, esta lei entrou assim em vigor em 01-10-2023.
Com refere, e bem o MP, dos dispositivos legais citados resulta apenas que o consumo de produtos estupefacientes foi descriminalizado, sendo que o crime de tráfico de estupefacientes em nada foi afectado pela dita legislação, que apenas passou a considerar que constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo a aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas a lei que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Ora, no caso sub judice, ficou provado que o recorrente:
6. No dia 20/12/2020, cerca das 10:00 horas no anexo do café “...” sito na ..., o arguido procedia ao corte de canabis, para entrega a DD, a troco de dinheiro.

8. Ao agir da forma descrita o arguido AA, quis e representou deter na sua posse cocaína, canábis e MDMA para a entregar a troco de dinheiro a terceiros que o procuravam para efeito, retirando o consequente benefício económico que daí adviesse, o que conseguiu.
9. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes das substâncias que detinha e que cedia a terceiros, o que não o demoveu da sua conduta.
10. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.”
Ora, assim sendo, perante tal facultada provada e definitivamente fixada, fica definitivamente afastada a subsunção destes factos ao mero consumo, tendo o Tribunal recorrido procedido correctamente à respectiva subsunção ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, a que é completamente alheia a aplicação da Lei n.º 55/2023, de 8 de Setembro.
Improcede assim também este segmento do recurso.
3.2. Da subsunção dos factos ao crime de receptação, p.p. no artigo 231.º, n.º 2 do Código Penal.
Na decisão recorrida ficou provado que:
“1. No dia 17/08/2020, entre as 20:00 e as 22:00 horas, indivíduo ou indivíduos cuja identidade se desconhece, subiram o muro do logradouro da residência de GG, sita na ..., introduzindo-se no seu interior.
2. De seguida, dirigiram-se para a garagem, que estava com o portão aberto, de onde retiraram, levaram consigo e fizeram sua a bicicleta da marca Focus, de cor cinzenta e laranja, no valor de cerca de 800€ (oitocentos euros).

4. Em data não concretamente apurada, mas que ocorreu entre o dia 17/08/2020 e o dia 20/12/2020, o arguido AA comprou a referida bicicleta a indivíduo cuja identidade se desconhece por 30€ (trinta euros), sabendo que a mesma valia mais e admitindo como possível que a mesma tivesse sido furtada.
5. Ao agir da forma descrita o arguido quis e representou adquirir a referida bicicleta por valor inferior ao seu valor real, tendo admitido como possível que a mesma tivesse sido obtida ilicitamente por quem lha vendeu, com o propósito de assim obter uma vantagem patrimonial à qual não tinha direito, o que conseguiu.
(…)
Em face de tal factualidade concluiu o Tribunal a quo que “Ora, não podemos deixar de considerar que o arguido, face a estas circunstâncias, tinha obrigação de se assegurar da proveniência legítima do bem que adquiriu e, para além de incumprir esse dever, tinha consciência de que tal objeto poderia ter proveniência ilícita, pelo que, em nosso entender, se constituiu na autoria de um crime de recetação negligente.”, sendo que já anteriormente havia referido que “Porém, a lei penal igualmente tipifica a chamada recetação culposa ou negligente, preceituando o n.º 2, do citado artigo 231º, do Código Penal:)”
O artigo 231.º do CP preceitua o seguinte:
“1 - Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa ou animal que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias.
…”
Seguindo de perto, com a douta vénia, o Ac. RG de 09-12-2009 (proc. n.º 171/16.4PBGMR.G1, www.dgsi.pt), “Elemento comum às duas modalidades é, como vemos, a origem da coisa ou animal objeto do crime de recetação, que terá necessariamente de provir de facto ilícito típico contra o património.
Não basta, assim, que essa coisa ou animal tenha simplesmente origem em qualquer tipo de facto ilícito ou até mesmo criminoso, como acontece, por exemplo – e entre outras situações – quando provenha de crimes de contrabando, de fraude no transporte de mercadorias ou de introdução fraudulenta no consumo, ps. e ps., respetivamente, pelos artigos 92.º a 94º, 95.º e 96.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT); quando provenha de um crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355.º do Código Penal; ou, simplesmente, quando a coisa ou animal provenha de um ilícito civil ou administrativo.
É necessário que a conduta do autor do facto referencial «preencha o tipo de ilícito (objetivo e subjetivo) de um crime patrimonial. As concretas condições em que o facto referencial foi praticado (v.g., a identidade do agente e da vítima, o local e o modo de obtenção da coisa, etc.) são irrelevantes e, por isso não carecem de ser provadas. O mesmo se diga da concreta subsunção jurídica do facto (v.g., é irrelevante determinar se o facto referencial constituiu um furto ou um abuso de confiança, desde que seja certo que integra necessariamente um desses crimes)» - Comentário conimbricense, tomo II, pág. 487.
Não é, pois, por acaso que o crime de recetação se encontra inserido no TÍTULO II do Código Penal, denominado «Dos crimes contra o património», concretamente no seu Capítulo IV «Dos crimes contra direitos patrimoniais». Para a perfeição do tipo de recetação a coisa ou animal têm de provir – reitere-se – de ilícito típico contra o património. O recetador tem sempre de atuar com a intenção de obter vantagem na perpetuação de uma situação anti-jurídica patrimonial - Cfr. neste sentido Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, anot. Ao artigo 231.º.
A distinção entre os casos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 231.º está apenas ao nível dos elementos típicos subjetivos: enquanto no primeiro se exige o conhecimento efetivo pelo agente de que a coisa ou animal provém de um facto ilícito típico contra o património (dolo específico); na segunda modalidade, do n.º 2, já é suficiente que o agente admita que a coisa ou animal provém de facto ilícito típico contra o património (dolo eventual).”
Ora, durante muito tempo, foi-se referindo (incorrectamente em termos dogmáticos) ao ilícito previsto no n.º 2 do artigo 231.º como “receptação negligente” ou “culposa” (cf. ac. do STJ de 22-02-1995, proc. 045884; RC 20-05-2009, proc. 1065/08.2TAFIG.C1, jurisprudência.pt; desta Relação, de 13/04/2010, proc. n.º 1863/07.4PBPDL.L1-5, jurisprudencia.csm.org.pt/ecli), por contraponto ao ilícito previsto no n.º 1 da dita norma que exige, para a sua consumação, o dolo directo.
Actualmente é pacífico que no que respeita ao elemento subjetivo do crime em apreço o elemento subjetivo preenche-se com o conhecimento da proveniência ilícita da coisa e especifica-se “na intenção de obter para o agente ou para terceiro vantagem patrimonial”. Na esteira de Pedro Caeiro (neste preciso sentido Pedro Caeiro, ibidem, 494/495; Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado (1995), 787/788; Borges de Pinho, Dos Crimes Contra o Património e Contra o Estado no Novo Código Penal, 20/21; Rodriguez Devesa/Serrano Gomez, Derecho Penal Español – Parte Especial (1995), 569; na jurisprudência o Ac. Rel. Coimbra de 89.10.10, sumariado no BMJ, 390/474) tem vindo a aceitar-se generalizadamente que o crime de receptação do art.º 231.º do Código Penal é de natureza dolosa, mas enquanto no seu n.º 1 se exige um dolo direto (ou, pelo menos se reconduz a entender que no n.º 1 do art.º 231.º se prevê o tipo fundamental de crime de receptação, necessário) relativamente à proveniência da coisa, no sentido do agente saber que ela provém de um facto ilícito contra o património e (um dolo específico) a intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros, o preenchimento do tipo do n.º 2, basta-se com a admissão pelo agente da possibilidade de as coisas terem tal origem e conformando-se com tal situação, não se assegurando da sua proveniência legítima (dolo eventual) - op. e loc. citados.
Ou seja, enquanto o n.º 1 exige que o agente tenha conhecimento efetivo de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, para o preenchimento do nº 2 é suficiente que o agente admita que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património. Como realça Pedro Caeiro, “a principal diferença entre os dois tipos dolosos, encontra-se na espécie de dolo requerida por cada um deles: no nº 1 o recetador tem “ciência certa” de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, atuando com a intenção de obter vantagem da perpetuação de uma situação patrimonial anti-jurídica; no nº 2 o recetador admite a possibilidade de a coisa ter tal origem e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência legítima”.
Nos termos do artigo 14.º do CP,
1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”
Ora, no seu recurso o arguido atém-se a esta questão de nomenclatura (sem dúvida errada tal como consta da decisão recorrida), alegando que no acórdão condenatório se afirma que o arguido podia e devia razoavelmente conhecer que, dado o preço abaixo do preço de mercado e o estado do bem adquirido, esse bem tinha uma proveniência ilegítima, sendo que “Tais factos, a limite integrariam apenas a negligência inconsciente, pois não se refere que o arguido de facto desconfiou da proveniência ilícita do bem nem que se conformou com tal possibilidade.”, a configurar a comissão do tipo legal em causa por negligência.
Ora, da factualidade dada como provada, acima dúvidas não temos de que se encontram preenchidos todos os elementos da receptação como dolo eventual, a que se reporta o artigo 231.º/2 do CP.
Obviamente sem o recurso a fórmulas sacramentais e tabelares, afirmar-se a negligência numa tal situação, implicaria julgar-se como provado que o arguido comprou a bicicleta omitindo o dever geral de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz (artigo 15.º/1 e 2 do CP). Realidade bem diversa da que vem provada e que, indubitavelmente preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de receptação p.p. no artigo 231.º/2 do CP.
Assim, também neste segmento improcede o recurso do arguido.
4. Da violação, pelo Tribunal, do estatuído nos artigos 50.º, 70.º, 71.º, 72.º n.º 1 e 2 al. d) do CP.
Começando pelo fim e apesar do arguido ter elencado a ditas normas em apreço, é completamente inequívoco que o mesmo se insurge apenas quanto à não suspensão da pena de prisão imposta ao arguido. Ou seja, apesar de no ponto 59. das conclusões ter mencionado a violação do artigo 70.º nunca alega que errou o Tribunal ao escolher as penas aplicadas ao arguido (o que, aliás, só seria possível quando ao crime de receptação); não se insurge sobre a dosimetria das penas concretas que foram aplicadas, para o que teria e chamar à colação o artigo 70.º do CP e, muito menos defende que o arguido deveria beneficiar de uma atenuação especial da pena, prevista no artigo 72.º/ 1 e 2 al. d) do CP (ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta). Pelo exposto, resulta medianamente inequívoco que o Tribunal não violou nenhuma das normas apontadas.
Recalcando, as razões de discordância do arguido prendem-se, única e exclusivamente com a circunstância de ao arguido ter sido aplicada uma pena de prisão efectiva.
Atentemos, então agora, necessariamente, na questão da substituição da pena de prisão.
Dispõe o artigo 50.º/1, 2 e 3 do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova., sendo que os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
Nos termos do n.º 5 da mesma norma, o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, entendemos, com o apoio da melhor doutrina, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma, de substituição – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências jurídicas do crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pags. 91, 329 e 339.
Constitui pressuposto material da aplicação desta pena que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. É pressuposto formal de aplicação da suspensão da prisão que a medida desta não seja superior a 5 anos.
O referido artigo 50.º consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos. – Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado.
Para tal, é preciso, como já se salientou, que o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido (sendo de arrendar quaisquer considerações sobre a gravidade dos factos e a culpa do agente, estas a ponderar em sede de escolha e determinação da pena concreta), no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar tais finalidades - que o artigo 40.º identifica como sendo “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Na formulação deste juízo, “o tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa”. – cf. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª edição, p. 639, em anotação ao artigo 50.º
São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial, que determinam a preferência por uma pena de substituição – como é a suspensão da execução da prisão -, sem perder de vista que a finalidade primordial é a de protecção dos bens jurídicos. Não está aqui em causa uma qualquer finalidade de compensação da culpa, mas considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, em função das quais se limita o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto da suspensão da execução da pena.
4.1. Efectuadas estas considerações de carácter geral, cumpre agora descer ao caso concreto.
Revisitemos então a decisão recorrida quanto a esta concreta questão.
A este propósito escreveu-se na decisão recorrida:
“(…)
Em tal juízo de prognose, há que ter em conta a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias desse mesmo facto.
No que concerne às necessidades de prevenção geral deste tipo de criminalidade, entende-se que as mesmas são elevadas, conforme se tem vindo a assinalar, constantemente na jurisprudência:
“Estamos perante um crime contra a saúde pública, onde as necessidades de prevenção geral de integração da norma e de proteção de bens jurídicos são prementes. Além disto, o “sentimento jurídico da comunidade” apelando, por um lado, a uma eliminação do tráfico de estupefacientes destruidor de vidas e famílias, por outro lado, também anseia por uma diminuição deste tipo de criminalidade e uma correspondente consciencialização de todos aqueles que se dedicam a estas práticas ilícitas para os efeitos altamente nefastos para a saúde e vida das pessoas, isto é, uma exigência acrescida de tutela dos bens jurídicos lesados com o crime. Aliás, tendo em conta as características desta criminalidade e os seus efeitos nefastos para a sociedade, as exigências de manutenção da confiança geral na validade da norma e, portanto, a confiança de que estas condutas são punidas, impõem exigências acrescidas de restauração da paz jurídica.”
No caso concreto, afigura-se-nos que as condenações criminais já sofridas pelo arguido, em particular pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, não justificam como minimamente razoável um juízo de prognose positivo no sentido de que a mera censura do ato e a ameaça de prisão sejam já suficientes para realizarem de forma adequada as finalidades da punição.
Com efeito, o arguido praticou os factos em apreciação após ter sofrido três condenações pelo crime de tráfico de estupefaciente, duas em pena de prisão suspensa (pelo cometimento de crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93 e uma pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto no artigo 25.º do mesmo diploma) e uma em pena de prisão efetiva, que cumpriu (pelo cometimento de crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93).
Assim sendo, o arguido revelou, através da conduta que adotou no caso em apreço, falta de capacidade de contenção e de manter uma conduta lícita, caso se mantenha em liberdade.
Na verdade, o arguido através do seu comportamento, denotou total indiferença pelos valores protegidos pela norma incriminadora e igual alheamento pelas condenações que sofreu, não tendo as mesmas surtido eficácia para o afastar de comportamentos contrários à ordem jurídica e para o dissuadir da reiteração do mesmo ilícito criminal, o que não é compreensível, atenta a sua idade, experiência e responsabilidades familiares.
Neste contexto, tendo também em consideração que o arguido manteve os hábitos de consumo, que aparentemente terá apenas cessado em momento posterior, mostra-se evidente que o arguido não demonstrou reunir condições pessoais para permitir concluir que adotará uma conduta diversa, caso seja mantido em liberdade.
Com efeito, pese embora o arguido se encontre atualmente a residir e a trabalhar no estrangeiro, desconhece-se em concreto as suas condições de vida e de trabalho (designadamente a existência de qualquer vínculo formal), inexistindo qualquer elemento fático que aponte decisivamente no sentido da sua ressocialização ou de uma alteração de comportamento, apesar do arguido ter declarado que abandonou o consumo de estupefacientes.
Pelo exposto, entende-se que as sobreditas circunstâncias não permitem a formulação de um juízo de prognose positivo quanto à capacidade do arguido manter uma conduta lícita, caso seja suspensa na sua execução a pena de prisão que lhe foi aplicada.
(…)”
A tais considerações, a que nada há a apontar, é necessário acrescentar que não se coibiu o arguido de cometer os crimes pelos quais foi condenado apenas 16 dias apenas o termo da liberdade condicional que lhe foi concedida por decisão proferida pelo Tribunal de Execução de Penas.
O recorrente cumpriu já 3 penas de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes sendo que apenas a primeira foi suspensa na sua execução, o que não serviu de suficiente persuasão para voltar a delinquir pelo mesmo crime.
Além do mais, o crime de receptação, conforme ditam as mais elementares regras de experiência, está, na esmagadora maioria das situações, intimamente ligado àquele crime de tráfico de estupefacientes, sem escamotear a circunstância de que os crimes contra o património, mormente o crime de furto, são praticados, no contexto da toxicodependência, precisamente porque os agentes sabem que alguém lhes adquirirá os bens subtraídos por valor muito inferior ao seu valor de mercado.
Todas estas estas circunstâncias são de forma a reclamar, a título de prevenção geral positiva, o efectivo reforço da consciência jurídica comunitária e respectivo sentimento de segurança, impondo-se uma reação mais enérgica de modo a que o arguido interiorize a ilicitude da sua conduta e, de forma definitiva, o afaste da delinquência, de forma a restaurar, ainda, a confiança dos cidadãos na justiça.
Não se olvidando ainda que não consta da matéria de facto provada que o arguido tenha confessado os factos e, muito menos, demonstrado qualquer arrependimento, o que bem denota a sua personalidade desviante e carente de valores inerentes a qualquer cidadão normativo e cumpridor e com o comportamento que a comunidade dele espera.
Pelo exposto, também neste segmento improcede o recurso do arguido.
5. Por fim, defende o arguido que, tendo, à data dos factos, 32 anos de idade, a ser o mesmo condenado, deve ser-lhe aplicada, o perdão a que se refere a Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, sendo seu entendimento que a discriminação positiva do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto em função da idade é inconstitucional por violação dos artigos 13.º da CRP e 21.º da CDFUA, o que por sua vez importa na violação dos n.ºs 2.º e 3 do artigo 3.º, n.º 1 do artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 18.º, todos da CRP.
A Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (art.º 1º).
Esta Lei entrou em vigor em 01/09/2023.
A decisão recorrida (datada de 03/11/2023) não ponderou a sua aplicação ao caso dos autos.
Em sede de apreciação do recurso, já se concluiu ser de manter a condenação do arguido, quer no que se refere aos crimes que lhe vêm imputados.
Assim, seguir-se-ia a ponderação da aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 02-08.
Contudo, é nosso entendimento que a análise e aplicação das leis de amnistia e perdão (no caso concreto, a Lei n.º 38-A/2023, de 02-08) é da competência do tribunal de 1.ª Instância (art.º 14º da referida Lei), ainda que tal questão seja colocada, como foi, no recurso agora em apreciação.
Como é referido no Ac. STJ, de 29/01/1992 (em CJ, 92, I, pag. 19), “sempre que no recurso se não imponha a aplicação do perdão por necessidade de libertação imediata dos arguidos ou risco de excesso de prisão, deve ser deferida a 1ª instância a decisão sobre a sua aplicação” (cfr. também o Ac. STJ, de 27/09/2023. www.dgsi.pt).
Quer dizer, embora o art.º 14.º da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, não exclua em absoluto a sua aplicação pela Relação (nomeadamente, nos casos excepcionais acima referidos), bem se compreende que se deixe essa aplicação para a 1ª Instância, até porque de outro modo iria ser suprimido um grau de jurisdição no que tange à decisão sobre a matéria.
Em suma, não se conhece do recurso, nesta parte.
*
III. Dispositivo
Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam as juízas que compõem este tribunal em:
- rejeitar o recurso interposto pelo arguido no que toca à impugnação ampla da matéria de facto;
- não conhecer da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto;
- no restante, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se, na íntegra, a decisão recorrida.
*
Taxa de justiça pelo recorrente, que se fixa em 4 Ucs – artigos 513.º, a contrario do Código de Processo Penal e artigo 8.º/9 do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa.
*
Notifique.
*
Lisboa, 11-04-2024
Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP.
Assinado digitalmente pela Relatora e pelas Senhoras Juízas Desembargadoras Adjuntas.
Maria João Lopes
Paula Cristina Bizarro
Carla Carecho