Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3122/06.0TTLSB-C.L1-4
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: SUSPEIÇÃO
DECISÃO JUDICIAL
RECURSO
IMPARCIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: SUSPEIÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: 1) Do facto de um juiz ter proferido decisões desfavoráveis a uma das partes não pode extrair-se qualquer ilação quanto a eventuais sentimentos de amizade ou inimizade ou, até, de mera simpatia ou antipatia por uma delas, ou ainda de parcialidade.
2) Não se conformando com as decisões judiciais proferidas, o requerente tem ao seu dispor todos os mecanismos legais de impugnação que sejam processualmente admissíveis.
3) Podemos entender que o requerente não se reveja no conteúdo de posições tomadas no processo pela Sra. Juíza, mas tal descontentamento não implica a constatação de alguma parcialidade do julgador.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. “A” veio, por intermédio do seu Advogado, apresentar incidente de suspeição, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 1, do CPC, relativamente à Sra. Juíza “B”.
Para tanto invocou, em síntese, que:
- É sinistrado e nessa qualidade tem direito aos apoios técnicos constantes da lei de acidentes de trabalho e fixados em sentença, bem como aos serviços de reabilitação e reintegração profissional e social, nos termos do artigo 25.º, alínea h), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, incluindo a adaptação ao posto de trabalho;
- Tais serviços de reabilitação profissional foram requeridos no processo em 23-03-2023;
- Os apoios técnicos consubstanciam-se no caso do sinistrado, aos apoios técnicos para se locomover, a saber o direito a uma cadeira de rodas;
- O sinistrado apresentou fatura, de 19-01-2024, no valor de € 6.593,34, à Companhia de Seguros, e esta recusou-se a pagar.
- A Sra. Juíza tinha a obrigação de diligenciar que os apoios técnicos fossem pagos ao sinistrado, uma vez que o mesmo é tetraplégico e necessita de cadeira de rodas para se locomover;
- A Sra. Juíza convocou o mandatário para uma Tentativa de Conciliação em 02-02-2024, no âmbito deste processo, e em que compareceu também o Advogado da Companhia de Seguros, que reconheceu que lhe fora apresentada pelo Sinistrado a referida fatura de cadeira de rodas, mas que se recusou a pagar a mesma;
- A Sra. Juíza recusou-se a ordenar à Companhia de Seguros que pagasse tal fatura, favorecendo contra o direito a seguradora, sendo parcial, obrigando o sinistrado a requerer em execução de sentença o pagamento da referida fatura, tendo despesas com Advogado com a referida execução;
- Não obstante o sinistrado apresentado tal execução de sentença, a Sra. Juíza indeferiu liminarmente a mesma, encontrando um pretexto processual para que a mesma não obtivesse êxito, prejudicando os direitos do sinistrado neste processo, e ainda o condenando em custas, não providenciando que ao sinistrado fossem prestados os serviços de reabilitação na Alemanha, conforme o sinistrado tem direito, e conforme requerimento de 23-03-2023;
- Pelos factos descritos, o Advogado fará queixa ao Conselho Superior de Magistratura contra a Sra. Juíza por entender estar a negar os direitos materiais e processuais do seu cliente e violar os seus deveres de imparcialidade, favorecendo contra o direito a Companhia de Seguros, “que será participada também junto do Ministério Público, por haver suspeitas de conivência entre esta entidade” e a Sra. Juíza.
A Sra. Juíza respondeu – cfr. despacho de 08-04-2024 – concluindo inexistirem razões válidas para o deferimento da suspeição, sustentando que:
- O incidente não tem qualquer fundamento, de facto, nem de direito;
- O incidente não se funda em qualquer facto objetivo a não ser um descontentamento do sinistrado com as decisões tomadas;
- Ainda não foi proferido despacho sobre os sucessivos requerimentos do sinistrado sobre as ajudas técnicas, nem proferiu despacho de indeferimento da notificação à entidade seguradora para pagar a cadeira de rodas;
- Ainda que o tivesse feito, todas estas decisões seriam sindicáveis em sede de recurso, tal como o pode ser o despacho de indeferimento liminar proferido na última ação executiva;
- O Sr. Advogado que representa o sinistrado aludiu à fatura da cadeira de rodas em sede de tentativa de conciliação realizada no âmbito de Embargos de Executado intentados pela seguradora, sendo que, a alegada despesa não fazia parte do objeto daqueles ou da ação executiva a que aqueles eram apensos e até àquela data existia apenas um requerimento nos autos principais onde aludia à necessidade de uma cadeira de rodas;
- Na tentativa de conciliação existiram apenas alusões verbais à existência da fatura dos advogados que representavam as partes tendo a Sra. Juíza dito que essa questão não tinha cabimento no âmbito daquela diligência em concreto;
- Não foi formulado requerimento nem o Tribunal proferiu despacho sobre tal pretensão não sendo verdade que tenha recusado notificar a entidade seguradora;
- Quanto ao requerimento de 23-03-2023, o Tribunal não proferiu qualquer despacho de indeferimento, tendo sido dado conhecimento à entidade seguradora dos requerimentos do sinistrado, não havendo ainda decisão sobre a questão; e
- A acusação de alegada “conivência” da seguradora com a Sra. Juíza é destituída de qualquer fundamento, tendo esta sempre pautado a sua intervenção processual neste processo (como em todos), na convicção do estrito cumprimento da lei, não tendo qualquer interesse no resultado deste ou de outros processos.
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II. Vejamos:
Nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 120.º do CPC, as partes podem opôr suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, o que ocorrerá, nomeadamente, nas situações elencadas nas suas alíneas a) a g).
Com efeito, o juiz natural, consagrado na CRP, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves.
E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
A dedução de um incidente de suspeição, pelo que sugere ou implica, deve ser resguardado para casos evidentes que o legislador espelhou no artigo 120.º do CPC, em reforço dos motivos de escusa do juiz, a que se refere o artigo 119.º do CPC.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
“A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-02-2013, Pº 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, rel. SANTOS CABRAL).
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
Sintetizando, referiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-11-2022 (Pº 38/18.1TRLSB-A, rel. ORLANDO GONÇALVES) que “de um modo geral, pode dizer-se que a causa da suspeição há de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com alguns dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o processo”.
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III. Colocados os parâmetros enunciados que importa observar, analisemos a situação concreta apreciando se o incidente de suspeição deverá proceder ou improceder.
No seu requerimento, o requerente considera que tem direito aos apoios técnicos (no caso, direito a uma cadeira de rodas) constantes da lei de acidentes de trabalho e fixados em sentença, bem como aos serviços de reabilitação e reintegração profissional e social, nos termos do artigo 25.º, alínea h), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, incluindo a adaptação ao posto de trabalho, tendo requerido tal pretensão em 23-03-2023 e apresentado fatura à seguradora em 19-01-2024, que se recusou a pagá-la.
Considerando o alegado pelo requerente, a suspeição relativamente à Sra. Juíza adviria do seguinte:
- Obrigação da Sra. Juíza de diligenciar que os apoios técnicos fossem pagos ao sinistrado, recusando-se a mesma a ordenar à seguradora o pagamento da fatura, favorecendo contra o direito a Companhia de Seguros Tranquilidade, sendo parcial, obrigando o sinistrado a requerer em execução de sentença o pagamento da referida fatura, tendo despesas com Advogado com a referida execução; e
- A Sra. Juíza indeferiu liminarmente a execução, encontrando um pretexto processual para que a mesma não obtivesse êxito, prejudicando os direitos do sinistrado e ainda o condenando em custas, não providenciando que ao sinistrado fossem prestados os serviços de reabilitação na Alemanha, conforme o sinistrado tem direito, e conforme requerimento de 23-03-2023.
Liminarmente, importa salientar que a apreciação sobre se a situação invocada pelo requerente se enquadra, ou não, na previsão legal do artigo 120.º do CPC, prende-se, tão só, com a materialização ou não dos requisitos do incidente, e não, com qualquer apreciação de natureza jurisdicional relativamente ao mérito da pretensão do requerente, a qual, não nos incumbe decidir, nem o poderemos efetuar.
Depois, cumpre salientar que não se patenteia qualquer das circunstâncias a que se referem as alíneas a) a f) do n.º 1, do artigo 120.º do CPC.
Quanto à alínea g) – existência de inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários – tem-se entendido que “não constitui fundamento específico de suspeição o mero indeferimento de requerimento probatório (RL, 7-11-12, 5275/09) nem a inoportuna expressão pelo juiz sobre a credibilidade das testemunhas (RG 20-3-06, 458/06)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 148).
Do facto de um juiz ter proferido decisões desfavoráveis a uma das partes não pode extrair-se qualquer ilação quanto a eventuais sentimentos de amizade ou inimizade ou, até, de mera simpatia ou antipatia por uma delas, ou ainda de parcialidade (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-05-2002, Pº 01P3914, rel. SIMAS SANTOS).
Efetivamente, a função jurisdicional “implica, pela sua própria natureza e quase sem excepções, a necessidade de dar razão a uma das partes e negá-la à outra, rejeitando as suas pretensões e sacrificando os seus interesses concretos. Daí que não seja possível retirar do facto de alguma, ou algumas, das pretensões formuladas por uma das partes terem sido rejeitadas a conclusão de que o julgador está a ser parcial ou a revelar qualquer inimizade contra a parte que viu tais pretensões indeferidas" (despacho do Presidente da Relação de Lisboa de 14-06-1999, in CJ, XXIV, 3.º, p. 75).
No seu requerimento, o requerente invoca, tão-só, questões de natureza jurisdicional, manifestando a sua discordância com as decisões jurisdicionais tomadas pela Sra. Juíza, mas este descontentamento não pode ser apreciado em incidente de suspeição, cujo escopo não se destina a apreciar questões técnicas relacionadas com o mérito de uma pretensão apresentada em juízo.
Não se conformando com as decisões judiciais proferidas, o requerente tem ao seu dispor todos os mecanismos legais de impugnação que sejam processualmente admissíveis.
De facto, os recursos são os mecanismos legais para se poder reagir em tais situações e para se aquilatar da correta ou incorreta aplicação da lei.
A Justiça é feita caso a caso, tendo em consideração a real e objetiva situação a dirimir.
O Juiz não é parte nos processos, devendo exercer as suas funções com a maior objetividade e imparcialidade.
Com efeito, os juízes têm por função ser imparciais e objetivos, fundando as suas decisões na lei e na sua consciência.
Como dispõe o artigo 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.
De acordo com o n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a independência dos magistrados judiciais manifesta-se na função de julgar, na direção da marcha do processo e na gestão dos processos que lhes forem aleatoriamente atribuídos.
Podemos entender que o requerente não se reveja no conteúdo de posições tomadas no processo pela Sra. Juíza, mas tal descontentamento não implica a constatação de alguma parcialidade do julgador.
Note-se, aliás, que, conforme salienta a Sra. Juíza, relativamente ao requerimento formulado em 23-03-2023, não foi ainda proferida decisão, pelo que, não se pode considerar emitido algum juízo a este respeito, não se podendo considerar posta em causa a imparcialidade do julgador, com tal fundamento.
E, quanto à pretensão de pagamento da fatura correspondente à cadeira de rodas, o requerente não apresentou requerimento formal nesse sentido, entendendo a Sra. Juíza que a referida pretensão, verbalmente manifestada pelo advogado do requerente, não teria cabimento no âmbito da tentativa de conciliação. Trata-se, igualmente, de uma posição jurisdicional do julgador, cujo meio impugnatório próprio seria a interposição de recurso ou reclamação, não se patenteando qualquer conduta passível de colocar em crise a imparcialidade e que legitime ou torne fundada a suspeição deduzida, muito menos, qualquer concertação ou “conivência” entre a Sra. Juíza e uma das partes do processo.
Não logramos descortinar na invocação do requerente nenhuma circunstância que possa conduzir ao afastamento do juiz a quem o processo foi distribuído, não se demonstrando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador.
Assim sendo, entendemos não se encontrarem reunidos os pressupostos que materializam o incidente, o que conduz à sua improcedência.
Não se nos afigura a existência de litigância de má-fé do requerente, não se patenteando alguma das circunstâncias a que se reporta o n.º 2 do artigo 542.º do CPC.
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IV. Face ao exposto, indefiro a suspeição deduzida relativamente à Sra. Juíza “B”.
Custas a cargo do requerente.
Notifique.

Lisboa, 10-04-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).