Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5688/16.8T8LRS.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE FACTO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
TAXA SANCIONATÓRIA EXCEPCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. É legítimo que o credor duma prestação de facto infungível instaure contra o devedor uma acção creditória destinada a obter o reconhecimento do seu direito de crédito, do incumprimento do devedor e a condenação deste à realização da prestação devida.
2. Não constando do processo todos os elementos de facto que permitam o conhecimento imediato do mérito da causa, deve ser oficiosamente anulada a decisão proferida pela 1.ª instância, nos termos do Art. 662.º n.º 1 al. c) do C.P.C. em face da constatação de que é indispensável a produção de prova sobre matéria de facto que subsiste controvertida.
3. Não sendo manifesta a improcedência da acção, nem que a Autora tenha agido com imprevidência ou falta de diligência devida, não há lugar à condenação na taxa de justiça sancionatória excepcional prevista no Art. 531.º do C.P.C..
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A [ Natividade …] , veio propor a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra B [ Francisco …..] , pedindo que o R. seja condenado a cumprir com a obrigação a que se vinculou através de escritura pública outorgada em 14 de Abril de 2015, assumindo a qualidade de avalista da firma “Servidoce”, no plano de pagamento prestacionais à Segurança Social - processo n.º 1101201000884634/R0037533/2014 - em substituição da A.; e, alternativamente, caso tal não fosse possível por impedimento da Segurança Social, a indemnizar a A. por todos os prejuízos que tal omissão lhe venha a causar, nos termos dos princípios da responsabilidade contratual; e ainda pagar à A., a título de indemnização, a quantia de €40.000,00, para a compensar pelos danos morais, por si causados na esfera pessoal desta, nos termos do Art. 483º do CC., mais juros contados da citação.
Para tanto alegou que em 2 de Janeiro de 2014 foi nomeada gerente da firma “Servidoce, Produtos Alimentares, Lda.”, tendo no exercício dessas funções dado o seu aval pessoal ao plano de pagamento prestacional acordado entre essa firma e a Segurança Social, no processo n.º 1101201000884634/R0037533/2014, pelo valor de €85.582,70.
Entretanto, pela escritura de 14 de Abril de 2015, o R. adquiriu a totalidade das quotas da firma “Servidoce”, tornando-se o seu único sócio e gerente, tendo a A. renunciado a essa gerência.
O R. também se comprometeu a assumir o passivo da firma, confessando-se como principal e único pagador das dívidas existentes, assumindo a posição de avalista da sociedade, referente aos planos prestacionais nas Finanças e Segurança Social, que até então eram avalizados pela A., obrigando-se a tratar da desvinculação desta, quer da gerência, quer dos avais.
Sucede que, o R. não cumpriu o acordado, nada tendo feito quanto à desvinculação da A. dos avais prestados, como também por se recusar a assinar qualquer documento que esta lhe apresente para o efeito, desconhecendo se o R. se encontra a cumprir ou não os compromissos com a Segurança Social.
Segundo informação obtida junto da Segurança Social, bastaria ao R. assinar o contrato, cujo modelo juntou, para que a A. cesse as suas obrigações como avalista e aquele passe a assumi-las em seu lugar, sendo que a Segurança Social não colocou qualquer objeção à troca de avalistas entre si e o R., estando assim este a incumprir os compromissos que assumiu e que estaria obrigado a realizar (Art.s 397.º, 398.º e 817.º do C.C.).
Por força disso o R. estaria também obrigado a indemnizar a A., nos termos do Art. 798º do C.C., por todos os danos que esta tenha ou venha a ter em consequência de aquele não ter assumido o aval, conforme se obrigou em 14 de Abril de 2015.
Acresce que esta situação tem causado enorme transtorno à A., a qual receia pelo seu património pessoal e pelo seu bom nome, tendo esta preocupação e incerteza causado insónias, instabilidade e ansiedade, que agravam a sua saúde, pretendendo por isso ser indemnizada, nos termos do Art. 483º do C.C., pelos danos morais que sofreu em valor não inferior a €40.000,00.        
Citado, o R. contestou, dizendo que a obrigação em causa perante a Segurança Social, de que a A. é garante, trata-se de dívida pessoal desta decorrente da reversão de uma anterior dívida da “Servidoce”, não estando por isso abrangida pelo negócio celebrado entre as partes. De qualquer forma a dívida para com a Segurança Social de que a A. é garante está a ser paga, não existindo qualquer incumprimento.
Aproveitou para também deduzir pedido reconvencional no sentido da A. ser condenada a pagar, a título de indemnização pelos danos patrimoniais provocados ao R., a título de procuradoria, custas judiciais e lucros cessantes, o montante global de €20.000,00; e a título de danos não patrimoniais, a pagar a quantia de €50.000,00; ambas acrescidas de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento. Todos esses pedidos decorrentes de danos morais e patrimoniais decorrentes da instauração desta ação.
A A. replicou impugnando o alegado na reconvenção.
Findos os articulados, veio a realizar-se audiência prévia, na qual, na sequência de suspensões de instância com vista às partes a chegarem a acordo, veio a ser proferido despacho saneador tabelar e foi anunciada a possibilidade de conhecimento imediato do pedido da A..
Dada oportunidade às partes de se pronunciarem, nos termos do Art. 3º n.º 3 do C.P.C., a A. pugnou pela procedência do pedido, mais referindo que o que pretende é que “o tribunal se substitua ao R. no pedido - entrega à segurança social de um requerimento no qual conste um pedido de substituição da A., enquanto avalista, pelo próprio R., assumindo este a mesma posição daquela perante essa entidade - através de sentença da qual conste que o mesmo tribunal, em substituição do R., solicita a substituição deste enquanto avalista nos termos peticionados”.
O R. veio dizer que concorda com o entendimento do Tribunal.
Cumprido assim o contraditório, veio a ser proferido despacho saneador sentença, nos termos do qual julgou não admitir os pedidos reconvencionais e, apreciando o mérito da causa, julgou a ação improcedente por não provada, absolvendo o R. dos pedidos contra si formulados, condenando a A., ao abrigo do Art. 531º do C.P.C. e Art. 18.º do R.C.P., em 5 U.C.s de taxa sancionatória por motivo da ação ser manifestamente improcedente e a parte não ter agido com a prudência ou diligência devida.
É dessa sentença que a A. interpõe recurso de apelação, tendo no final das suas alegações apresentado as seguintes conclusões:
A. A decisão em crise é nula, nos termos do artigo 615º n.º 1 al. a) do C.P.C. pois, em parte alguma da sentença ora recorrenda o tribunal a quo especifica um, ou mais, fundamentos de direito, que o levam a decidir da forma como o fez, absolvendo o Recorrido do pedido contra si formulado pela Recorrente. Nem de forma clara e direta, nem de forma transversal ou por analogia. Apenas e só tece considerações de facto.
B. Devendo o tribunal a quo proceder em conformidade com o disposto no Art. 617º do mesmo diploma e, se assim o entender suprir o invocado vício ou proceder à reforma da sentença, ou ainda, caso assim não entenda, determinar a subida do presente recurso para o tribunal competente.
C. Contrariamente ao que vem referido na sentença ora recorrenda: “O pedido da autora é que o réu seja condenado a cumprir essa “obrigação” (…)”, “O ato jurídico pretendido é a desvinculação da autora do aval prestado à SS pelas dividas da Servidoce.”, sic. , a Recorrente não pretende que o Recorrido seja condenado a substitui-la como avalista, pois, conforme deixa bem claro na sua PI e na fundamentação que lhe foi solicitada na Audiência Prévia, tal ato, a efetivação da substituição, depende da aceitação da Segurança Social. A recorrente sempre pretendeu, outrossim, que o Recorrido cumprisse com a obrigação que assumiu, através de escritura pública, de diligenciar pelo envio e preenchimento do requerimento dirigido à segurança social para o efeito.
D. Refere a sentença, ora recorrenda, que “O Direito atribui eficácia jurídica aos atos das pessoas, mas estas têm de agir de forma a acautelar que as suas ações sejam de molde a produzir efeitos jurídicos e especificamente os efeitos jurídicos que pretendem. (…)”, tal argumentação, além de não ter qualquer suporte legal, vai contra os princípios civilísticos de direito das Obrigações, quer da Segurança Jurídica, quer da Segurança do Trato Negocial.
E. A Recorrente agiu de acordo com o que juridicamente estava ao seu alcance para assegurar que a sua pretensão estaria salvaguardada pelo direito, assegurando-se que o Recorrido, através de um documento público e autêntico, ou seja, uma escritura pública, se comprometeu a diligenciar para que substitui-la na qualidade de avalista da firma Servidoce, perante a SS, fazendo tudo o que estivesse ao seu alcance para o efeito.
F. A natureza da obrigação é fungível e a possibilidade do seu cumprimento é manifestamente existente. Trata-se de uma prestação de facto positivo, uma ação, que consiste na emissão de uma declaração, no mesmo sentido, vai a opinião do Professor A. Menezes Cordeiro, explicando que uma “(…) prestação de facto positivo pressupõe uma ação na qual o devedor está adstrito à realização de uma atividade (…) que pode ser a prestação de um facto jurídico.”. Exemplificando com uma situação idêntica à dos autos, em que I se obriga a celebrar um contrato com J, conferindo a este último um direito de crédito de uma obrigação sobre aquele.
G. É inequívoco que o Recorrido se obrigou, perante a Recorrente, a assumir o passivo da firma, confessando-se como principal e único pagador das dívidas existentes, bem como, a assumir a posição de avalista da sociedade, referente aos planos prestacionais nas Finanças e Segurança Social, que até à data da mencionada Escritura, eram avalizados por esta. Mais se comprometendo a tratar de todos os assuntos relacionados com a desvinculação da Recorrente quer da gerência, quer dos avais.
H. Não tendo o Recorrido cumprido com o que se comprometeu perante a Recorrente e perante a sociedade, cabe ao tribunal, ao abrigo dos princípios acima invocados, substituir-se ao mesmo no requerimento a apresentar à segurança social para que a Recorrente seja desvinculada da qualidade de avalista da firma em questão, passando o Recorrido a assumir este papel perante a segurança Social, devendo ser proferida sentença condenatória neste sentido.
I. Ainda que o tribunal a quo entenda, que a ação seja improcedente, não poderá, salvo o mais douto respeito, imputar à Recorrente falta de estudo, zelo, ou diligência na forma como estruturou a sua PI e todos os articulados posteriores a este.
J. O valor processual dos autos respeitou os critérios legais no seu apuramento.
K. Motivo pelo qual deve a decisão a quo ser revogada nesta parte, não havendo lugar à condenação em multa da Recorrente nos termos do art. 531º do C.P.C..
Pede assim que seja declarada a nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação de direito; ou, caso tal vício seja suprido, que seja revogada e substituída por decisão que condene o R., julgando proceder à substituição da posição da A., Recorrente, na qualidade avalista da firma Servidoce, substituindo-se o tribunal a quo a este, perante esta entidade, para todos os devidos e legais efeitos.
O Recorrido apresentou contra-alegações, sobrelevando delas as seguintes conclusões:
a) O Recorrido sempre cumpriu e vai continuar a efetuar o pagamento como acordado na escritura “Que assume a posição de avalista da sociedade referente aos planos prestacionais nas Finanças e Segurança Social, que até ao presente ato, eram avalizadas pela gerente A, mais se comprometendo a tratar de todos os assuntos relacionados com a desvinculação da referida gerente”.
b) O recorrido tentou junto da Segurança social que a anterior gerente ficasse desvinculada da dívida.
c) O recorrido assumiu o pagamento da dívida enquanto gerente da sociedade, em momento algum se comprometeu a assumir o pagamento da dívida a título pessoal!
d) A recorrente não tem qualquer fundamento legal para intentar a ação judicial uma vez que não existe qualquer incumprimento do plano de pagamentos estando os valores devidos a ser pagos atempadamente.
e) Até ao presente a recorrente não sofreu qualquer prejuízo ou diminuição de vantagem, porque o recorrido está a cumprir de forma atempada com os pagamentos à Segurança Social.
f) O persistente recurso à má-fé da recorrente, deverá ter como resultado a agravação da pena de multa a que foi condenada.
Pede assim que o recurso seja julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Por despacho de 28 de fevereiro de 2019 o recurso foi admitido, tendo o Mm.º Juiz do Tribunal a quo se pronunciado sobre a questão da nulidade da sentença recorrida nos seguintes termos:
«Veio a autora recorrente, nas alegações de recurso, invocar a nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de direito.
«Pode, efetivamente, ser difícil aperceber os fundamentos de direito quando os mesmos se reportam à própria falta de fundamento da pretensão, que é exatamente a ausência de fundamento jurídico para o pedido formulado.
«O fundamento jurídico da decisão é a inexistência de fundamento material para a pretendida “execução específica” do estipulado no acordo, tendo-se mencionado o disposto nos Art.ºs 827º a 830º do CCivil, e a circunstância de o pretendido pela autora incidir sobre a esfera jurídica da Segurança Social e não sobre o réu, não decorrendo do acordo invocado pela autora os efeitos jurídicos que pretende obter por via desta ação.
«Consideramos que se tratam de fundamentos jurídicos bastantes, até porque se reportam a princípios gerais de Direito, que também são Direito, pois este não é apenas constituído pelos artigos do Código Civil
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de direito;
b) A obrigação de prestação de facto (in)fungível e a sua execução específica pela substituição do Tribunal à declaração do contraente faltoso;
c) A condenação da A. na taxa sancionatória excecional prevista no Art. 531.º do C.P.C. e o eventual agravamento da multa assim aplicada por má-fé da Recorrente.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso não especificou de forma discriminada a matéria de facto que julgou por provada, decorrendo dela apenas que se limitou a valorar o que foi alegado na petição inicial, que é o seguinte:
1- “1º- Em 02 de Janeiro de 2014, a A foi nomeada Gerente da firma “Servidoce, Produtos Alimentares, Lda.”, com o NIPC 5035 03 916, conforme Doc. 1 que ora se junta.
“2º- No âmbito das suas funções de gerência da sociedade supra-referida, a A. deu o seu aval pessoal num plano de pagamento prestacional acordado entre a respetiva firma e a Segurança Social, o qual corre termos no processo nº 1101201000884634/R0037533/2014, no valor de €85.582,70 (oitenta e cinco mil quinhentos e oitenta e dois euros e setenta cêntimos) Doc. 2 que ora se junta.
“3º- No dia 14 de Abril do ano de 2015, através de Escritura Pública, o R. adquiriu a totalidade das quotas da firma Servidoce, tornando-se o seu único sócio e proprietário, cfr. Doc 1 e Doc. 3 que ora se junta.
“4º- Também através do mesmo documento, a A. renuncia à gerência dessa firma, nessa mesma data, vide idem.
“5º- Sendo nesse ato nomeado como gerente o R., ibidem.
“6º- Igualmente através da Escritura Pública ora em questão, o R. comprometeu-se a assumir o passivo da firma, confessando-se como principal e único pagador das dívidas existentes, ibidem.
“7º- Bem como, assumiu o R. a posição de avalista da sociedade, referente aos planos prestacionais nas Finanças e Segurança Social, que até à data da mencionada Escritura, eram avalizados pela A.
“8º- E, comprometeu-se ainda o R. nesse ato, a tratar de todos os assuntos relacionados com a desvinculação da A., quer da gerência, quer dos avais.
“9º- Sucede, porém, que, até ao presente, o R. não cumpriu com o acordado, não só por nada ter feito quanto à desvinculação da A. dos avais prestados, como também por se recusar a assinar qualquer documento que esta lhe apresente para o efeito.
“10º- Uma vez que deixou de exercer o cargo de Gerente da firma Servidoce, a R. não mais teve acesso a qualquer dado relativo ao plano de pagamentos à Segurança Social, mencionado em 2º desta PI.
“11º- Desconhecendo se o mesmo se encontra a ser cumprido ou não.
“12º- Através de vários contactos com a Segurança Social, os quais são realizados através do atendimento ao público, a A. tem obtido a informação de que basta que o R. assine o contrato que ora se junta como Doc. 4, para que a mesma cesse as suas funções como avalista e o mesmo passe a assumi-las em seu lugar.
“13º- Ora, nos termos dos arts. 397º e 398º do Cód. Civil, através do Doc. 3 ora junto, o R. vinculou-se para com a A. ao cumprimento de uma prestação de carácter positivo, que passa por substitui-la como avalista no plano prestacional em questão e para tanto, efetuar todas as diligências necessárias a esse fim.
“14º- Assistindo à A, nos termos do Art. 817º do mesmo diploma, o direito a exigir o cumprimento judicial do ato ao qual o R se vinculou.
“15º- Mais, quando o R. assumiu esta obrigação perante a A., a sociedade encontrava-se a cumprir o plano de pagamentos acordado, estando a situação regular perante a Segurança Social.
“16º- Desconhecendo presentemente a A. qual a situação que em que se encontra a firma, e a existência ou não de incumprimento, caso o mesmo se verifique, será sempre o património da A., na qualidade de avalista, que responderá pela dívida o que, caso o R. tivesse cumprido com a sua obrigação atempada e diligentemente, não sucederia.
“17º- Mais, sabe a A. que, na data da assinatura da escritura junta como Doc. 3, a Segurança Social não colocou qualquer objeção à troca de avalistas entre si e o R. e que tal teria sido aceite.
“18º- À data de hoje, desconhecendo a A. qual a situação económica e qual o estado do pagamento das prestações em dívida, não tem esta forma de saber se será ainda possível o R. assumir a sua qualidade de avalista perante a Segurança Social.
“19º- Nos termos do Art. 798º do C.C., resulta para o R. a responsabilidade de indemnizar a A., por todos os danos que esta tenha ou venha a ter, em consequência de aquele não ter assumido o aval, conforme se obrigou em 14 de Abril de 2015.
“20º- Motivo pelo qual, alternativamente, caso se mostre impossível ao R. cumprir com a obrigação a que se vinculou perante a A., por impedimento da Segurança Social, deve este indemnizá-la por todos os prejuízos patrimoniais presentes e futuros, de que a sua omissão seja causa e consequência direta.
“21º- Mais, a A. é uma pessoa de bem, honesta, trabalhadora, com formação académica superior.
“22º- Durante o seu percurso e vivência, a A. sempre se pautou por manter uma conduta digna e cumpridora, não tendo nunca tido problemas financeiros ou quaisquer dívidas.
“23º- Regendo-se por princípios de palavra e valores morais elevados, a própria A. assumiu de forma altruísta o aval do plano prestacional em questão, uma vez que a mesma era Gerente da firma e sabia que não iria falhar com o compromisso assumido.
“24º- Situação que deixou de fazer sentido no momento em que renunciou à gerência e passou o R. a assumir tal cargo, com todas as obrigações a ele adstritas.
“25º- A omissão do R., em conjunto com a falta de informações acerca do cumprimento do plano prestacional, causa enorme transtorno à A., a qual receia pelo seu património pessoal e pelo seu bom nome.
“26º- Sendo que, tal preocupação e incerteza a transtornam diariamente, causando-lhe insónias, instabilidade e ansiedade.
“27º- A A. é uma pessoa doente, que sofre de surdez acentuada e de doença de foro oncológico, facto bem conhecido do R., Doc. 5 que ora se junta.
“28º- De forma intencional, o R. recusa-se a cumprir com a sua obrigação, mantendo a A. na expectativa constante e, de forma consciente e intencional, efetua uma espécie de “tortura psicológica” à mesma, aproveitando-se da sua retidão moral e do seu débil estado de saúde, para com isso a afligir e atormentar.
“29º- Nos termos do Art. 483º do C.C., conjugado com o Art. 562º do mesmo diploma, o R. está também obrigado a indemnizar a A. pelos danos morais que a sua conduta lhe causa.
“30º- Indemnização esta que se calcula em valor não inferior a €40.000,00 (quarenta mil euros).
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Importa ter em conta que o R. na sua contestação, na parte que releva para a presente apelação, alegou o seguinte:
2- “1º- O R. aceita os factos vertidos nos artigos 1º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, da douta PI, no mais impugna todos os outros artigos, ou porque são falsos, ou porque contêm matéria que são do desconhecimento do R.
“2º- A A. vive em união de facto com o anterior Sócio maioritário da sociedade “Servidoce, Produtos Alimentares, Lda.”, Joaquim ……., à cerca de 10 anos.
“3º- Em Janeiro de 2014 foi a A. nomeada Gerente da referida Sociedade com as legais consequências para efeito de dívidas á Segurança Social e Finanças.
“4º- No decurso da gerência da A. houve incumprimentos do plano de pagamentos acordados com a Segurança Social, tendo por conta desses incumprimentos reiterados do plano de pagamentos acordados com a segurança social, sido exigido à cidadã A, que desse o seu aval a título pessoal à Segurança Social.
“5º- Reafirma-se o aval da cidadã A à Segurança Social, foi prestado enquanto pessoa singular e não como Gerente da Sociedade Servidoce.
“Acontece que
“6º- Em momento algum da negociação da cessão de Quotas entre o Sócio Joaquim .... e sua companheira A, o R. foi informado que a dívida existente à Segurança Social do montante global de €85.587,27 tinha o aval a título pessoal da A, em virtude de a sociedade ter incumprido por diversas vezes o plano de pagamentos anteriormente acordado com a Segurança Social.
“7º- O R. pensava tratar-se de um aval na qualidade de gerente da Sociedade, aval esse que passou a ser dado pelo atual gerente B, aquando da cessão de quotas.
“8º- Desconhecia o R., até ao dia 3 de Junho de 2016 que o aval prestado pela A. tinha sido a título pessoal e não como gerente da sociedade Servidoce.
“9º- O R. apenas teve conhecimento que se tratava de um aval a título pessoal, quando na sequência de reunião solicitada à Segurança Social, foi explicado ao mesmo que o aval da A. era a título pessoal e individual, porque a empresa tinha por diversas vezes incumprido com o plano de pagamentos anteriormente assumidos pela gerência da sociedade. ( Cfr. Doc. 2 que ora se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido)
“10º- O anterior sócio Joaquim …. e a sua companheira e gerente na altura da cessão de quotas a A., nunca informaram o R. que o Aval prestado à segurança Social era a título pessoal e não como gerente da Sociedade Servidoce.
“11º- Foi solicitada pelo Gerente da Servidoce o R., reunião com Segurança Social, na Av. .da Republica 67 Lisboa, onde foram solicitados esclarecimento de questões relacionadas com as Dividas/ Acordos à Segurança Social, contraídas pela anterior Gerência, questionando nomeadamente:
“1. Responsabilidades da anterior e da atual Gerência.
“2. Ponto de situação dos acordos
“12º- A reunião realizou-se no dia 03 de junho de 2016, e estiveram presentes na mesma B (Gerente Servidoce), José …. (Contabilista Sigilo), Isabel ….(Sócia Servidoce) e a Sra. D. Ana funcionária da Segurança Social.
“13º- Após inicio da reunião, com a Sra. D. Ana funcionaria da Segurança Social na Av. da Republica 67 Lisboa, foram confirmadas as seguintes informações:
“Existem atualmente quatro acordos estabelecidos com a Seg. Social, no valor total de 114.765,39€, à data de 3 de Junho de 2016.
“14º- Sendo que o acordo nº 1101201000884634, no valor de 84.157,62€ à data de 3 de Junho de 2016, está sob a total responsabilidade da Srª A, anterior gerente antes da cedência de quotas realizada em Abril de 2015.
“15º- A dívida transferiu-se para a esfera pessoal da A. porque houve incumprimento durante a sua gerência e esta divida foi revertida em 2014 para a sua esfera pessoal, não sendo neste momento da responsabilidade da empresa Servidoce. (Cfr. Doc. 3 que ora se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido).
“16º- Os atuais sócios só tomaram conhecimento deste facto aquando desta reunião, visto que o R. atual gerente da Servidoce, foi informado pelos anteriores sócio e gerência que todos acordos existentes eram da empresa Servidoce e portanto seria o responsável como gerente pelo pagamento dos mesmos.
“A Sr.ª D. Ana , referiu ainda que ,
“17º- “Perante a Segurança Social existe uma dívida com acordo celebrado com a Sr.ª A.”
“18º- “Mensalmente o pagamento está a ser feito, portanto está a ser cumprido o acordo.
Quem paga, não interessa. Caso haja incumprimento, a responsabilidade é da Sr.ª A.”
“19º- O cumprimento deste acordo está a ser garantido pela atual gerência da Servidoce, e os pagamentos estão todos em dia (Cfr. Doc. 4 que ora se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido)
“20º- Para a Segurança Social, em termos de dívida, o contrato de cedência de quotas, da anterior para a atual gerência, é do âmbito comercial, para a Segurança Social não é válido para excluir a responsabilidade pessoal da A. na dívida relativa ao acordo nº 1101201000884634.
“21º- A D. Ana informou “ não é obrigatório, mas poderia ter sido celebrado um contrato de assunção de divida, da A. para o R. , que seria de âmbito pessoal, pois a dívida não é da Servidoce”.
“22º- O que poderia ter sido feito se os anteriores Sócios e Gerentes tivessem esclarecido o R. em tempo oportuno, seria um contrato com a Segurança Social, onde existiria a assunção de dívida pelo R.
“23º- Para além do contrato de assunção de dívida, teria de existir também garantia pessoal do R. no valor da dívida acrescida de 25%.
“Ainda assim
“24º- Caso o R. não cumprisse o pagamento, a R. seria sempre responsabilizada.
“25º- Em súmula o R. não assinou nem irá assinar a assunção de dívida da A. perante a Segurança Social.
“26º- A dívida existente é do âmbito pessoal da A. por factos unicamente imputados à mesma!
“27º- O R. na qualidade de gerente da Servidoce está a cumprir todos os acordos celebrados com a segurança Social.
“28º- Inclusivamente o acordo nº 1101201000884634, que é apenas e só da responsabilidade da A.
“29º- Apesar da má-fé dos anteriores sócios e gerência, ao esconderem o facto de a dívida ter passado para o âmbito pessoal da A. o R está a pagar mensalmente todos os valores e irá continuar a efetuar o pagamento dos mesmos, como se comprometeu aquando da escritura de Cessão de Quotas.
“30º- O R. vai continuar a efetuar o pagamento como acordado na escritura “Que assume a posição de avalista da sociedade referente aos planos prestacionais nas Finanças e Segurança Social, que até ao presente ato, eram avalizadas pela gerente A, mais se comprometendo a tratar de todos os assuntos relacionados com a desvinculação da referida gerente”
“31º- O R. como gerente avaliza todos os planos de pagamentos à Segurança Social e às Finanças, e dessa forma a título comercial a anterior gerência está desvinculada do cumprimento de tais obrigações.
“32º- O que o R. não faz agora, nem nunca fará, é a título pessoal assumir a dívida pessoal da A. e tal nunca ficou estabelecido entre as partes!
“33º- O R. cumpriu, e está a cumprir com todas as funções e obrigações resultantes da Cessão de Quotas.
“34º- A dívida está efetivamente a ser paga pela Sociedade Servidoce, estando os pagamentos em dia como se pode confirmar pela declaração que se anexa (Cfr. Doc. 2 ).
“35º- A A. sabe perfeitamente que em momento algum o R. concordou em assumir pessoalmente a dívida relativa ao acordo nº 1101201000884634.
“36º- A A. sabe perfeitamente que as prestações mensais estão a ser atempadamente pagas pela servidoce, a mesma tem acesso a essa informação uma vez que pode perguntar, como devedora que é a Segurança Social se o acordo nº 1101201000884634 está ou não a ser cumprido.
“37º- A A. sabia que o acordo está a ser cumprido na integra e mesmo assim intenta ação judicial, sabendo não ter razão para tal.”
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Identificadas as questões que fazem parte do objeto do recurso, cumpre agora apreciar as mesmas começando pela questão da nulidade da sentença recorrida.
1. Da nulidade por falta de fundamentação de direito.
A Recorrente veio invocar a nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de direito, que levaram à decisão de absolver o R. do pedido, referindo que a sentença tece apenas e só “considerações de facto”, sem qualquer argumento jurídico.
Relembra que, com base na alegação da escritura de cessão de quotas (artigo 3.º da petição) e das obrigações nela assumidas pelo R. (artigos 6.º a 8.º da petição), bem como, pela invocação expressa dos Art.s 397.º, 398.º e 817º do C.C. (artigos 13.º e 14.º da petição), formulou o pedido de o R. ser condenado a «cumprir com a obrigação a que se vinculou através de escritura pública outorgada em 14 de Abril de 2015, assumindo a qualidade de avalista da firma Servidoce no plano de pagamentos prestacionais à Segurança Social – processo nº 1101201000884634/R0037533/2014 em substituição da A.».
Refere ainda que, ao contrário do mencionado na sentença recorrida, não pretende que o R. seja condenado a substitui-la como avalista, porque esse ato depende da aceitação da Segurança Social. Portanto, o que pretende é que o R. cumpra com a obrigação que assumiu na escritura pública, no sentido de diligenciar pelo envio e preenchimento do requerimento dirigido à segurança social para o efeito.
Realça ainda que a Recorrente, à data da celebração da escritura de cessão de quotas, não era sócia da firma “Servidoce”, era apenas gerente, pretendendo apenas por esse ato assegurar que a sua pretensão teria um suporte contratual, tendo agido de acordo com o que juridicamente estava ao seu alcance para salvaguardar o seu direito, exigindo ao R. que se vinculasse, através da escritura pública, a proceder de determinado modo. Nessa medida, entende que não esteve a “forçar o direito a atribuir eficácia áquilo que pretendia atingir”, como se sustenta na sentença, sem invocação de qualquer fundamento jurídico.
Por outro lado, reconhece que a sentença terá invocado a natureza de obrigação infungível do compromisso tomado pelo R., mas sustenta que esse fundamento não procederia.
O Recorrido não se pronunciou especificamente sobre esta alegada nulidade da sentença recorrida.
Na verdade, bem vista a sentença recorrida, ali se reconhece claramente que a A. não era sócia, mas apenas gerente da sociedade “Servidoce”, tendo-se partido para o conhecimento da pretensão principal do facto de na escritura ter ficado acordado que o R. assumia «a posição de avalista da sociedade referente aos planos prestacionais nas Finanças e Segurança Social, que até à data da escritura de cessão eram avalizados pela autora, mais se comprometendo a tratar de todos os assuntos relacionados com a desvinculação da referida gerente (cfr. fls. 24-25 dos autos)».
Por outro lado, a sentença recorrida também afirma que: «O pedido da autora é que o réu seja condenado a cumprir essa “obrigação”, ou seja, que o tribunal o condene a assumir a qualidade de avalista da Servidoce no plano de pagamentos prestacionais à Segurança Social.»
Mas esclarece que interpreta assim o pedido, porque convidou a A. para esse efeito, já que esta não tinha bem ideia do pedido formulado. Foi assim que veio a saber desta que o que ela pretendia dizer é que: «pretende uma espécie de execução específica, devendo o tribunal proferir “sentença da qual conste que o mesmo tribunal, em substituição do R., solicita a substituição deste enquanto avalista nos termos peticionados”».
Chamou assim a atenção para o facto desta nova configuração do pedido se traduzir numa: «alteração do pedido, que não foi requerida nos termos devidos». Sendo que, tal execução específica apenas se reporta a ações para a prática de atos jurídicos que impliquem a entrega de coisa determinada, a prestação de facto fungível, a prestação de facto negativo e a produção dos efeitos da declaração negocial da parte faltosa de um contrato-promessa, nos termos dos Art.s 827º a 830º do C.C.. Não se aplica à prática de atos materiais, tais como a apresentação de “requerimentos” à Segurança Social.
Assim, como o ato jurídico afinal pretendido é a desvinculação da A. do aval prestado à Segurança Social pelas dívidas da “Servidoce” e sendo esse ato da inteira responsabilidade da própria Segurança Social, entendeu a sentença recorrida que só esta entidade pode desvincular a A., não podendo o tribunal condenar o R. a assumir a qualidade de avalista como peticionado. Entendeu-se assim, por tudo isto, que a pretensão da A. não poderia proceder por não ter fundamento legal.
Refira-se que, apesar de a Recorrente fazer menção expressa à violação da al. a) do n.º 1 do Art. 615.º do C.P.C., é evidente que se pretendia referir à al. b) do mesmo preceito.
É nos termos do Art. 615º n.º 1 al. b) do C.P.C. que se estabelece que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Ensinava a este propósito Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil  Anotado”, Vol. V, pág. 140): «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.» (No mesmo sentido, vejam-se: Acórdão da Relação de Coimbra de 14.4.93, Ruy Varela, BMJ nº 426, p. 541, Acórdão da Relação do Porto de 6.1.94, António Velho, CJ 1994- I, p. 197, Acórdão da Relação de Évora de 22.5.97, Laura Leonardo, CJ 1997-II, p. 266, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2004, Oliveira Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj; Rodrigues Bastos in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil  Anotado”, Vol. II, 2001, pág. 669.)
Nas palavras de Tomé Gomes (in “Da Sentença Cível”, pág. 39): «A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»
Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do Art. 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, Proc. n.º 781/11; de 28.5.2015, Granja da Fonseca, Proc. n.º 460/11; e de 10.5.2016, João Camilo, Proc. n.º 852/13).
Luís Mendonça e Henrique Antunes (in “Dos Recursos”, Quid Juris, pág. 116) também defendem que: «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade.»
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, Gilberto Jorge, Proc. n.º 91/09).
Ora, o que se constata da sentença recorrida, nos termos que tivemos oportunidade de sumariar, é que ali se sustenta a improcedência da pretensão principal da A., por se entender que a mesma não é enquadrável nos casos de execução específica previstos na lei.
A Recorrente pode não concordar com essa conclusão, mas daí não resulta que a sentença seja nula por falta de fundamentação jurídica. Quando muito poderá haver erro de julgamento, o que poderá levar à revogação da sentença, mas nunca ao reconhecimento duma invalidade, no quadro legal do Art. 615.º do C.P.C.. Pelo que improcede a conclusão A. das alegações de recurso.
2. Da obrigação de prestação de facto e da sua execução específica.
Passando agora aos aspetos relacionados com o conhecimento do mérito da causa, vejamos do mérito das pretensões formuladas pela A., começando pelo pedido principal constante da petição inicial.
Visa a A., no ponto 1. do petitório, que o R. seja condenado a: «cumprir com a obrigação a que se vinculou através de escritura pública outorgada em 14 de Abril de 2015, assumindo a qualidade de avalista da firma “Servidoce”, no plano de pagamento prestacionais à Segurança Social - processo n.º 1101201000884634/R0037533/2014, em substituição da A.».
Refira-se que, apesar do exposto na sentença, este pedido não foi objeto de qualquer requerimento de alteração.
O que se passou, numa primeira fase, foi apenas que, na sequência de uma das suspensões de instância, que permitiram ao R. a junção de prova documental de que teria promovido junto da Segurança Social que fosse retirado o nome da A. como avalista, veio esta, em resposta, dizer que aquele não deu cumprimento ao que se havia comprometido perante a A., ou seja: «nunca o mesmo requereu a sua substituição como avalista da A. nos planos prestacionais a pagamento na Segurança Social, limitando-se apenas a solicitar a desvinculação da mesma, sem qualquer contrapartida» (cfr. fls 104 verso – Requerimento de 18/6/2018).
Depois, numa segunda fase, perante a notificação de que o tribunal pretenderia conhecer de imediato do mérito da causa, determinando o cumprimento do Art. 3.º n.º 3 do C.P.C. (cfr. ata a fls 105 verso), é que a A. pela primeira vez, em termos formais fala que: «No caso em apreço, é perfeitamente viável, e possível, que o tribunal se substitua ao R. nesse pedido através de uma sentença da qual conste que o mesmo tribunal, em substituição do R., solicita a substituição deste enquanto avalista nos termos peticionados.» (cfr. Requerimento de 2/7/2018).
Seja como for, apesar do assim exposto, nunca a A. formulou efetivamente semelhante pedido. Pelo que, estaria o tribunal a quo limitado à apreciação da concreta pretensão da A., tal como ela foi formulada na petição inicial (Art. 609.º n.º 1 do C.P.C.).
Nessa medida, todas as considerações relativas à inaplicabilidade ao caso da “ação de execução específica”, tal como a mesma vem regulada nos Art.s 827.º a 830.º do C.C. afiguram-se-nos despiciendas, porque não correspondem ao pedido formulado pela A..
A doutrina reconhece várias formas de realização coativa da prestação, entre elas a ação de cumprimento, a execução específica e a execução por equivalente (vide, a propósito, entre outros: Antunes Varela in “Das Obrigações Em Geral”, Vol. II, 7.ª Ed., pág.s 149 a 150).
Proibindo a lei, por regra, o recurso à autodefesa com o fim de assegurar direito próprio (Art. 1.º do C.P.C.), confere-se ao titular do direito o poder de o fazer reconhecer ou declarar oficialmente perante um tribunal (Art. 2.º do C.P.C.).
Não possuindo o credor título executivo bastante e estando em causa um direito de crédito, é o recurso à ação de cumprimento que permitirá obter o efeito do reconhecimento desse direito, da sua violação e a intimação solene pelo tribunal para que o devedor cumpra.
A execução específica tem em comum com o cumprimento coercivo a circunstância de proporcionar ao credor a realização da prestação devida. Mas distingue-se daquela pelo facto da prestação não ser realizada pelo devedor, mas sim pelo próprio tribunal (Antunes Varela, Ob. Loc. Cit., pág. 150).
Ora, no caso, a A. só pede ao tribunal que o R. seja condenado a cumprir a obrigação que alegadamente consta da escritura de 14 de Abril de 2015 e é isso que deve ser apreciado, tendo em atenção o disposto no Art. 817.º do C.C., como foi invocado na petição.
Deste preceito legal não resulta que o Tribunal se pode substituir ao devedor na declaração negocial do faltoso. O que resulta desse preceito é apenas que: «Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo».
Independentemente da obrigação assumida pelo devedor ser fungível ou infungível, ou ter por natureza ser uma prestação de facto, positiva ou negativa, de entrega de coisa certa ou de pagamento de determinada quantia, a verdade é que, nos termos do Art. 817.º do C.C., se houver incumprimento, o credor pode exigir em tribunal que o devedor cumpra com o que se obrigou a prestar.
Nada obsta a que o tribunal possa condenar o R. na realização duma prestação de facto infungível. Estamos no domínio duma ação declarativa e, portanto, nesta fase, ainda não se coloca a questão da possibilidade ou impossibilidade da exequibilidade forçada da concreta obrigação em causa por iniciativa do tribunal.
Nesta ação não estão em causa os mecanismos legais previstos nos Art.s 827.º a 830.º do C.C., pois a questão não se chega a colocar nesses termos.
Para o caso, para a ação poder proceder, basta confrontar os termos da obrigação contratual assumida com o concreto pedido formulado e, demonstrando-se que há incumprimento voluntário, só restará ao tribunal condenar o devedor a cumprir (Art.s 817.º e 342.º n.º 1 do C.C.), exceto se se verificar alguma causa justificativa que inviabilize a realização da prestação, em termos temporários ou definitivos (Art. 342.º n.º 2 do C.C. – v.g. Art.s 790.º e ss, entre outros).
Ora, no caso, porque o R. aceitou o alegado pela A. na sua petição inicial nos Artigos 1.º e 3.º a 7.º (vide: Artigo 1.º da contestação), podemos dar por assente que foi celebrado entre as partes o contrato constante da escritura de “cessão de quotas, unificação, renúncia e nomeação de gerência, aumento de capital social e modificação de pacto social” outorgada a 14 de abril de 2015, tal como documenta nos autos de fls. 21 a 27.
Nessa escritura o R. declarou que: «tem conhecimento das dívidas e créditos existentes na sociedade (…) e que expressamente, assume tal passivo, bem como se confessa principal e único pagador das referidas dívidas» (cfr. cit. doc. a fls 24).
Mais declarou que: «assume igualmente a posição de avalista da sociedade referente aos planos prestacionais nas Finanças e Segurança Social, que até ao presente ato, eram avalizadas pela gerente A, mais se comprometendo a tratar de todos os assuntos relacionados com a desvinculação da referida gerente». (cfr. cit. doc. a fls 24 infra e 25 supra).
Em complemento do exposto, no artigo 9.º da petição inicial, a A. alega que o R. não cumpriu essa obrigação, sendo esse facto impugnado por este último no artigo 1.º da sua contestação.
Dito isto, a obrigação que o R. assumiu foi a de “assumir a posição de avalista da sociedade”, nomeadamente nos “planos prestacionais na Segurança Social” que eram “avalizados” até essa data pela A.. Por seu lado, o pedido do ponto 1. da petição inicial reporta-se precisamente a um concreto processo de “plano de pagamento prestacional da Segurança Social”, aí expressamente identificado pelo seu número. Pelo que há coincidência entre o pedido e a obrigação que alegadamente não foi cumprida.
É certo que, esse pedido, tal como formulado termina com a expressão: «em substituição da A.». O que poderia ser interpretado no sentido de que, não só a A. pretende que o R. assuma a qualidade de avalista, tal como decorre expressamente da escritura, como ainda que por essa assunção se opere a efetiva substituição da A. pelo R..
Não temos por certo que essa interpretação seja muito rigorosa. Mas se assim fosse, parece evidente que este efeito substitutivo da pessoa que figurará como “avalista” nesse plano de pagamentos não está no inteiro domínio de ação do R.. Isto porque é a Segurança Social, enquanto credora dessas prestações, que poderá exonerar, ou não, a devedora-garante inicial (Art. 595.º n.º 2 do C.C.).
Em qualquer caso, não podemos deixar de ter em atenção que, relativamente a este pedido a A. alegou também, no artigo 12.º da petição, que obteve informação junto da Segurança Social de que bastaria ao R. assinar o documento que juntou com o n.º 4, para que a mesma deixe de figurar como avalista, passando o R. a assumir essa posição no seu lugar.
Sucede que esse facto é controvertido, porque foi impugnado pelo R. (vide: Artigo 1.º da contestação). Nessa medida, importaria apurar se o R. se recusa a assinar o documento em menção e se é esse facto que está a obstar à substituição de avalistas. Sendo certo que esse dever de diligência é claramente uma obrigação que competia ao R., nos termos da escritura pública de 14 de abril de 2015, e está no seu domínio cumprir.
Acresce ainda que, se a A. não lograr provar que era intenção da Segurança Social aceitar essa substituição dos garantes, haveria que depois considerar ainda o pedido “alternativo” constante do ponto 2. da petição inicial.
Esse pedido é claramente formulado para o caso da Segurança Social não aceitar essa substituição de “avalistas”.
Conforme decorre desse segundo pedido: «Em alternativa, caso tal não fosse possível, por impedimento da Segurança Social, [pede então a condenação do R.] a indemnizar a A. por todos os prejuízos que tal omissão lhe venha a causar, nos termos dos princípios da responsabilidade contratual».
Aqui estarão em causa danos emergentes futuros, ou atuais mas ainda não concretamente apurados, devendo ter-se em atenção que a A. invoca expressamente não ter possibilidade de controlar a situação económica da sociedade ou o pagamento efetivo das dívidas desta, por ter deixado de ser a sua gerente (vide: artigo 18.º da petição).
A tudo acresce ainda que no n.º 3 do petitório é formulado um outro pedido de indemnização por danos não patrimoniais, que tem como pressuposto a demonstração do incumprimento da obrigação pelo R. (v.g. artigos 8.º, 9.º e 12.º da petição) e o conjunto de danos invocados (v.g. artigos 21.º a 28.º da petição), os quais foram todos impugnados pelo R..
De todo o exposto decorre que a ação ainda não continha todos os elementos de facto necessários ao conhecimento do mérito da causa, tendo existido precipitação na conclusão de que estávamos perante uma ação em que se pretendia uma “execução específica”.
Concordamos assim com as conclusões que sustentam que a sentença que absolveu o R. do pedido não pode subsistir, mas julgamos que a mesma não pode ser revogada e substituída por outra que condene o R. no pedido, pela simples razão que os autos não fornecessem elementos suficientes para o efeito, dado subsistir matéria de facto controvertida relativamente à qual há que produzir prova.
Foi violado o Art. 595.º n.º 1 al. b) do C.P.C. e, por não constarem do processo todos os elementos de facto que permitam o conhecimento imediato do mérito da causa, deve ser oficiosamente anulada a decisão proferida pela 1.ª instância, nos termos do Art. 662.º n.º 1 al. c) do C.P.C., considerando-se indispensável a produção de prova sobre matéria de facto que subsiste controvertida.
3. Da condenação na taxa de justiça sancionatória.
A sentença recorrida condenou a A. na taxa sancionatória excecional prevista no Art. 531.º do C.P.C., sendo que Recorrido pretende agora que essa taxa seja até agravada, em face da má-fé da Recorrente.
A condenação nessa taxa sancionatória excecional funda-se na conclusão da manifesta improcedência da ação e na consideração de que a parte não agiu com a prudência ou diligência devida.
Sucede que, de tudo o que já tivemos oportunidade de expor, nomeadamente na parte 2. do presente acórdão, essa conclusão nasce duma interpretação do que é peticionado que por nós não é sufragado.
O pedido principal formulado na petição inicial em nada se assemelha a uma ação de execução específica. Estamos perante uma mera ação creditória em que se visa o reconhecimento do incumprimento duma prestação de facto pessoal e infungível, com o propósito de obter a condenação judicial do devedor a realizar uma prestação que é devida, porque contratualmente obrigou-se nesse termos.
A conduta processual da A. não merece censura, só em face do que consta do até ao momento processado. Pelo que, deve ser revogada a condenação da mesma em 5 U.C.S. de taxa de justiça sancionatória, procedendo nesta parte as conclusões que vão neste sentido e improcedendo as que constam das contra-alegações que pugnavam pelo agravamento dessa condenação.
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V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação nos seguintes termos:
a) Improcede a apontada nulidade da sentença recorrida por alegada falta de fundamentação de direito;
b) Procede parcialmente a apelação relativamente à parte da sentença recorrida que condenou a A. no pagamento de 5 U.C.s de taxa sancionatória excecional, nos termos do Art. 531.º do C.P.C.;
c) Julgamos oficiosamente, ao abrigo do Art. 662.º n.º 2 al. c) do C.P.C., anular a sentença da primeira instância, por não constarem do processo todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, dado ter sido violado o Art. 595.º n.º 1 al. b) do C.P.C. e ainda subsistir matéria de facto controvertida para cujo apuramento é indispensável a produção de prova.
- Custas pelo apelado (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 15 de Setembro de 2020
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva