Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5794/18.4T8LRS-B.L1-4
Relator: PAULA PENHA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CONHECIMENTO OFICIOSO
DECISÃO APÓS A SENTENÇA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Sumário: I – Tendo havido, após sentença de mérito transitada em julgado, uma decisão condenatória de uma das partes como litigante de má-fé, decisão incidental que transitou em julgado, formou-se caso julgado material relativamente ao mérito desta questão incidental, tornando-a inimpugnável (salvo, através de eventual recurso extraordinário de revisão que não está aqui em causa).
Assim sendo, já não se pode questionar, directa ou indirectamente, a validade ou invalidade desta decisão já transitada em julgado.
II – Logo que seja proferida uma decisão ou um despacho judicial, em regra, e imediatamente, fica esgotado o poder jurisdicional do respectivo juiz, mas só relativamente à matéria da causa sobre a qual ele se pronunciou nessa peça processual.
Quanto ao mais, pode/deve o juiz proferir despachos e/ou decisões no mesmo processo e/ou seus apensos. Caso contrário, estaria encontrada a fórmula de bloquear o ulterior prosseguimento do respectivo processo judicial e atentaria contra o princípio constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos contra ameaças ou violações desses direitos.
III – Aquando do proferimento da sentença com decisão sobre o mérito da acção, o juiz pode, oficiosamente, suscitar a questão da eventual litigância de má-fé de alguma das partes até esta fase processual, mas não sendo obrigatório concentrar na sentença a decisão desta questão incidental que não contende com aquela.
Assim, não retardando a prolação da sentença. E, assim, possibilitando que haja discussão entre as partes sobre esta questão incidental (oficiosa e atempadamente suscitada), seguida de uma completa e serena ponderação aquando da sua respectiva decisão por parte do juiz.
(sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório

Neste processo nº 5794/18.4T8LRS do J2 do Juízo do Trabalho de Loures, em que figura como autor/sinistrado AA e como ré/seguradora Liberty Seguros, S.A., após a sentença absolutória da ré ter transitado em julgado e após ter sido proferida (em 29/3/2023 sob a refª. 156330473) decisão condenatória do autor como litigante de má-fé, veio este (em 20/4/2023 sob a refª. 45346494) arguir a nulidade desta última decisão (nos seguintes termos que se transcrevem):
«AA, Autor, nos autos acima melhor identificados, notificada do despacho de fls., datado de 29/03/2023, com a referência nº 156330473, vem, muito respeitosamente, nos termos dos artigos 195º e seguintes do C.P.C., arguir a nulidade do mesmo, o que faz como segue:
1º - Em 15/02/2023 foi proferido Acórdão no âmbito dos presentes autos.
2º - Tendo em 24/03/2023 transitado em julgado.
3º - Em 29/03/2023, e já após trânsito em julgado da decisão, foi proferido o seguinte despacho:
O tribunal fez constar da sentença que ponderava apreciar da litigância de má fé do autor, face ao disposto no art.º 542º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, concedendo prazo ao autor para se pronunciar, querendo. O autor não o fez. Cumpre apreciar.
Dispõe o art.º 542.º do Código de Processo Civil: «Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. (…)».
Como resulta da decisão proferida sobre a matéria de facto, em particular das respostas dadas aos temas da prova 8 a 12, provou-se que o acidente em causa nos autos ocorreu em circunstâncias diversas das relatadas pelo autor tanto na petição inicial como em audiência final, pelas razões que se fizeram constar da fundamentação da matéria de facto, decisão que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Não apenas não se provou a versão do autor no que concerne às circunstâncias de tempo e lugar em que sofreu o acidente (alegadamente no tempo e local de trabalho), como se provou versão diversa a respeito da sua dinâmica, incompatível com o enquadramento factual dado na petição inicial, o qual visava o seu enquadramento no tempo e local de trabalho. Resulta, pois, manifesto, que o autor, pelo menos, alterou a verdade de factos essenciais para a decisão da causa, tendo agido de forma intencional ou, pelo menos, com negligência grave, pois não podia ignorar que o fazia. Litigou, pois, com má fé, devendo por isso ser condenado em multa.
Nos termos do art.º 27º, n.ºs 3 e 4, do RCP, nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC, sendo o montante fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.
Considerando os critérios do art.º 27º, n.º 4, do RCP, aqui se incluindo as condições económicas do autor que se inferem dos factos provados e os reflexos do seu comportamento na regular tramitação do processo, o tribunal entende adequado e proporcional fixar a multa em montante aproximado do limite mínimo previsto na lei, embora dele se afastando, isto é, em 7 (sete) unidades de conta.
Notifique.”
Com efeito,
4º - Dispõe o artigo 613º, do C.P.C, o seguinte:
“1- Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2- É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3- O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.”
5º - A jurisprudência tem sido unânime em afirmar que a apreciação da má-fé da parte e a sua condenação em multa e indemnização, por via da actuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode o juiz relegá-las para depois da sentença, embora já não assim quanto à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na elaboração da sentença, o não habilite a determina-lo.
6º - Neste caso, não se tratando de uma conduta superveniente relativamente à sentença, com a prolação desta, que não apreciou da relevância da conduta da parte em sede de litigância de má-fé, fica esgotado o poder jurisdicional relativamente a essa matéria.
7º - Após a sentença nenhuma conduta teve o Autor que motivasse a sua condenação a título de litigante de má-fé.
8º - Nessa decorrência o despacho proferido enferma, pois, de vício de nulidade, uma vez a senhora Juiz, conheceu de questão, pós prolação de sentença e após trânsito da mesma. (art.º 613º, nº 1, do C.P.C.)
9º - A apreciação da má-fé a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença.
10º - Era nesta que devia ter decidido se o litigante procedeu de má-fé; era aí que, em caso afirmativo, o devia condenar como tal em multa.
11º - Assim, assumindo a conduta processual da parte contornos que a permitam qualificar como litigância de má-fé, tem o Juiz que o declarar e proferir a consequente decisão de condenação, na sentença.
12º - Em regra, o poder jurisdicional do julgador esgota-se com a prolação da decisão, conforme decorre do estatuído no artigo 613º, nº 1, do CPC, ao dispor que «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.”
13º - Delimitando o âmbito e a justificação do princípio da extinção do poder jurisdicional, explica o Prof. Alberto dos Reis que:O alcance é o seguinte: O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. [Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume V – reimpressão - Coimbra, Coimbra-Editora, 1984, pgs. 126-127, em anotação ao artigo 666.º do CPC/39, em tudo idêntico, na parte que agora releva, ao nº 1 do citado artigo 613º do CPC atual.
Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível.
Convém atentar nas palavras «quanto à matéria da causa». Estas palavras marcam o sentido do princípio referido. Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se.
Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida. O juiz pode e deve resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu. (...) A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional”.
14º - Como tal, revela-se evidente que o despacho que condenou o Autor como litigante de má-fé na multa de 7 UC (sete unidades de conta) não apreciou nem decidiu questão ou questões sobre que tenham incidido decisão anterior é, portanto, nulo!
15º - Em suma, não tendo conhecido da questão da litigância de má fé na sentença, a Mma. Juíza não podia conhecer dessa questão depois de ter sido a mesma proferida e já transitada em julgado, por tal lhe estar vedado pelos artigos 607º, nºs 1 e 2, 608º, nº 2 e 613º, nº 1 do Código de Processo Civil, pelo que a decisão proferida depois da sentença sobre essa questão é nula.
16º - O despacho com a referência nº 156330473, datado de 29/03/2023 enferma, pois, do vício da nulidade acima identificada, na medida em que, proferida sentença e já tendo a mesma transitado em julgado, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz. (art.º 613º, nº 1 do C.P.C.).
Nulidade que, desde já, para os devidos e legais efeitos se argui.»
Tendo sido foi proferido o seguinte despacho (em 26/5/2023, sob a refª. 156877386 que se transcreve na íntegra):
«Requerimento de 20/04/2023
Através do requerimento em apreço, vem o autor arguir a nulidade do despacho que conheceu da questão da litigância de má fé, invocando que o mesmo foi proferido após o trânsito em julgado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e que proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz. Invoca que a jurisprudência tem sido unânime em afirmar que a apreciação da má-fé da parte e a sua condenação em multa e indemnização, por via da actuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode o juiz relegá-las para depois da sentença, embora já não assim quanto à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na elaboração da sentença, o não habilite a determiná-lo. Como não foi sancionada uma conduta superveniente à sentença, estava esgotado o poder jurisdicional do juiz, razão pela qual, conclui, o despacho em apreço enferma do vício de nulidade.
Apreciando.
É certo que, nos termos do art.º 613º, n.º 1, do Código de Processo Civil, proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sem prejuízo da apreciação das questões tratadas no n.º 2 do art.º 613º e nos artigos 614º a 616º do mesmo diploma.
Uma das causas de nulidade das sentenças e dos despachos verifica-se quando o juiz, incorrendo em excesso de pronúncia, conhece de questões de que não podia tomar conhecimento (art.º 615º, n.º 1, al. d), aplicável aos despachos ex vi art.º 613, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil).
Embora com respeito pela opinião contrária, que aliás encontra assento em alguma jurisprudência de tribunal superiores que não se ignora, como é o caso dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/09/2020, relator FONTE RAMOS, e do Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2023, relator RUI PENHA, ambos in www.dgsi.pt, o tribunal entende que o despacho em causa não padece da nulidade invocada.
Em primeiro lugar cumpre consignar que, como refere o autor, o comportamento do autor sancionado no despacho de 29/03/2023 não é posterior à sentença, mas sim anterior à mesma, e que o despacho em crise foi, efectivamente, proferido após o trânsito em julgado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
No entanto há que ponderar que, no caso em apreço, a questão da litigância de má fé não foi suscitada pelas partes, mas apenas pelo tribunal, oficiosamente, aquando da prolação da sentença, o que fez face à análise então efectuada da prova produzida. Como a questão não havia sido suscitada anteriormente, a fim de evitar decisões surpresa, em respeito ao princípio do contraditório previsto no art.º 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o tribunal entendeu conceder ao autor possibilidade de se pronunciar sobre a questão.
Interposto recurso da decisão, que incluía também a decisão sobre a matéria de facto, o tribunal não conheceu de imediato da questão, visto que o julgamento do tribunal superior poderia colocar em causa a apreciação da prova efectuada na sentença e, consequentemente, a apreciação concernente à litigância do autor.
Assim não sucedendo, sendo a sentença integralmente confirmada, após baixa dos autos foi então conhecida a questão nos termos constantes do despacho posto em crise.
A tal não obsta, no entender do tribunal, e mais uma vez salvo o devido respeito por opinião contrária, o princípio consagrado no art.º 613º, n.º 1, do Código de Processo Civil, porquanto o poder jurisdicional só se esgota relativamente à matéria da causa sobre que incidiu a decisão. Por força deste princípio o juiz não pode alterar o antes decidido, mas tal não significa que não possa conhecer de uma questão nova, incidental, não antes suscitada nos autos e que o juiz anunciou pretender conhecer na sequência da prolação da sentença.
A tanto também não obsta a circunstância de a decisão final (o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a sentença de primeira instância) se encontrar transitada em julgado à data da prolação do mencionado despacho. Isto porque a questão da extinção do poder jurisdicional não tem qualquer relação com o trânsito em julgado da decisão. Proferida a sentença, o poder jurisdicional do juiz esgota-se de imediato, mesmo antes do trânsito em julgado, sendo a partir desse momento vedado introduzir alterações no decidido, excepção feita, já se disse, às questões previstas no art.º 613º, n.º 2, 614º a 616º do Código de Processo Civil. Mas nada impede, julga-se, que conheça de questões incidentais não tratadas e que foram suscitadas oficiosamente pelo tribunal.
Neste sentido, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/05/2022, relator António Beça Pereira, processo 1665/14-1T8BRG-I.G1, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: «Se durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia. Mas, se tal questão não tiver sido colocada no decorrer da lide e se para o conhecimento da mesma for necessário já haver decisão sobre a matéria de facto, uma vez que esta só tem lugar na sentença, por respeito ao princípio do contraditório, o tribunal só se poderá pronunciar quanto a ela depois de conceder à parte visada uma oportunidade para esta expressar o seu ponto de vista sobre essa matéria; o mesmo é dizer que apenas lhe é permitido decidi-la em momento posterior ao da sentença, o que implica, necessariamente, que não há aí qualquer vício processual.»
Citando o texto do acórdão, pela pertinência para a questão em apreço e porque reflecte o entendimento do tribunal sobre esta matéria:
«A Meritíssima Juiz não conheceu da questão da litigância de má-fé, por parte do autor, na sentença, por considerar que quanto a essa matéria impunha-se observar previamente o contraditório (14). Nessa medida, concedeu ao autor uma oportunidade para este tomar posição sobre o assunto e só depois é que proferiu o despacho de 18-2-2022, em que o condenou como litigante de má-fé.
Perante este cenário processual o autor sustenta que "não é consentido ao juiz, salvo casos excecionais (…), relegar tal decisão quanto à litigância de má-fé para momento posterior à sentença, por a tanto se oporem os limites do seu poder jurisdicional, que cessa com a prolação da mesma." Com a prolação da sentença "o poder jurisdicional do tribunal quanto a essa matéria mostra-se esgotado, não sendo lícito reabrir a instância para tal fim. [E] o despacho proferido, após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz do processo, à luz do disposto no art.º 615.º, n.º 1 al. d) do CPC. e de acordo com a sua interpretação extensiva, é nulo por excesso de pronúncia." (15)
Vejamos.
O n.º 2 do artigo 608.º estabelece que na sentença "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras." Significa isso que as questões aqui previstas "reportam-se aos fático-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, (…) às concretas controvérsias centrais a dirimir." (16)
Portanto, se durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença (17), sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia (18).
Mas, se tal questão não tiver sido colocada no decorrer da lide (19) e se para o conhecimento da mesma for necessário já haver decisão sobre a matéria de facto (20), uma vez que esta só tem lugar na sentença (21), por respeito ao princípio do contraditório, o tribunal só se poderá pronunciar quanto a ela depois de conceder à parte visada uma oportunidade para esta expressar o seu ponto de vista sobre esse tema (22); o mesmo é dizer que apenas lhe é permitido decidi-la em momento posterior ao da sentença, o que implica, necessariamente, que não há aí qualquer vício processual, nomeadamente a nulidade a que se reporta o artigo 615.º n.º 1 d).
No caso dos autos, a Meritíssima Juiz fundou-se na circunstância de da "factualidade provada e respetiva motivação resulta[r] que o A, apesar de saber, desde 1994, que as construções existentes no "Campo do ..." são ilegais, em 2011/2012 levou a cabo obras de adaptação da construção existente e procedeu à construção de um edifício novo para oficina, sabendo tratar-se de obras ilegais, não legalizáveis e, como tal, sem qualquer valor», para concluir que o autor «deduziu assim pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar (pois sabia, pelo menos, desde 1994 da ilegalidade das construções implantadas no "Campo Do ...", relativamente às quais nunca foi emitida licença por o prédio se encontrar, em grande parte (zona poente) em Reserva "Agrícola Nacional") e, dessa forma, fez um uso manifestamente reprovável do processo.»
Quer isso dizer que antes de estarem assentes os factos provados não era possível afirmar, com a imprescindível segurança, que o autor "deduziu (…) pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar". Para além disso, note-se que até à prolação da sentença não foi levantada a questão da litigância de má-fé do autor.
Por outro lado, o poder judicial do juiz que, nos termos do artigo 613.º n.º 1, fica esgotado depois de proferida a sentença é o relativo "à matéria da causa" sobre a qual ele se pronunciou nessa peça processual (23).
Com efeito, o princípio da intangibilidade da decisão judicial, enunciado no n.º 1 do artigo 613.º, significa que, uma vez proferida decisão sobre uma determinada questão, o juiz já não a pode alterar, nem tão pouco modificar os fundamentos em que a mesma radica (24); "na verdade, o juiz da causa não pode, a partir desse momento, modificá-la quanto a eventuais erros do julgamento propriamente ditos, que haja detetado: ainda que ele admita que errou, tais erros de julgamento (quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito) somente podem ser corrigidos em sede de recurso. E nem pode corrigir os seus fundamentos." (25)
Neste contexto, não há qualquer vício processual decorrente de a condenação do autor como litigante de má-fé ser posterior à sentença (26). Aliás, o conhecimento da mesma na sentença é que teria originado uma nulidade processual, decorrente do desrespeito pelo princípio do contraditório. E o poder jurisdicional da Meritíssima Juiz sobre tal matéria não se encontrava esgotado quando ela a decidiu já depois de ter proferido a sentença.»
Face a todo o exposto, o tribunal entende que o despacho em questão não padece da nulidade invocada que, deste modo, se julga improcedente.
Notifique.
Custas pelo incidente a cargo do autor, com taxa de justiça que se fixa em 1 UC (art.º 7º, n.º 4, do RCP, e tabela II anexa)
Inconformado, o autor/sinistrado interpôs recurso (em 16/6/2023 sob a refª. 45879669), tendo terminado as respectivas alegações com as seguintes conclusões e respectivo pedido (transcrição):
«I Após a Sentença que julgou improcedente a ação intentada pelo Recorrente transitar em julgado veio o Tribunal a quo condenar o Recorrente como litigante de má fé.
II A jurisprudência tem sido unânime em afirmar que a apreciação da má-fé da parte e a sua condenação em multa e indemnização, por via da actuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode o juiz relegá-las para depois da sentença, embora já não assim quanto à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na elaboração da sentença, o não habilite a determina-lo.
III Neste caso, não se tratando de uma conduta superveniente relativamente à sentença, com a prolação desta, que não apreciou da relevância da conduta da parte em sede de litigância de má-fé, fica esgotado o poder jurisdicional relativamente a essa matéria.
IV Após a sentença nenhuma conduta teve o Autor que motivasse a sua condenação a título de litigante de má-fé.
V Nessa decorrência o despacho proferido enferma, pois, de vício de nulidade, uma vez a senhora Juiz, conheceu de questão, pós prolação de sentença e após trânsito da mesma. (art.º 613º, nº 1, do C.P.C.)
VI O despacho com a referência nº 156330473, datado de 29/03/2023 enferma, pois, do vício da nulidade acima identificada, na medida em que, proferida sentença e já tendo a mesma transitado em julgado, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz. (art.º 613º, nº 1 do C.P.C.).
VII Nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d), do C.P.C. é nula a Sentença quando o juiz conheça de questões que não podia tomar conhecimento. Nulidade que foi atempadamente invocada. Mas mais,
VIII O Recorrente, apenas exerceu um direito que lhe assiste e isso não pode ser entendido como litigância de má-fé.
IX Na presente ação o Recorrente não fez do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou alterar a verdade dos factos;
X O próprio Tribunal a quo ficou a aguardar a decisão do Venerando Tribunal da Relação para proferir a decisão que proferiu. Ou seja, o próprio Tribunal a quo não tinha a certeza que o Recorrente agiu de má fé e, por isso, aguardou a decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
XI Pelo que, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 542º do C.P.C. e 27 do RCP.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão deve o presente Recurso obter provimento e, em consequência deve o despacho que condenou o Recorrente como litigante de má fé ser declarado Nulo, com as legais consequências.
Caso assim não se considere então sempre deverá o referido despacho ser revogado porquanto o Recorrente não litigou em má fé.
Assim decidindo farão B. Exas. a esperada JUSTIÇA!»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Só foi admitido recurso relativamente ao despacho de 26/5/2023 (já supra-transcrito nas págs. 1 a 4).
Recebidos os autos nesta Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso (em suma): por considerar que a posição perfilhada pelo Tribunal recorrido é permitida pela letra da lei, com respeito de todas as garantias e ritos processuais, mais concretamente, por não atrasar a tomada de decisão de mérito ao conhecer mais à frente tal questão incidental, esta ainda não instruída na totalidade, que só na elaboração da sentença o juiz tomou suficiente conhecimento, e por respeitar o princípio do contraditório para evitar decisões surpresa. Também considerando que, mais do que litigar temerariamente, o apelante litigou de má fé.
O recorrente respondeu ao parecer do Ministério Público, reiterando o já alegado com vista ao provimento do recurso.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
Objecto do recurso
A lei consigna que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente [conforme os artigos 635.º, n.º 4, 637º, nº 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante com a abreviatura CPC), aplicáveis “ex vi” do art.º 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (doravante com a abreviatura CPT)] – sem prejuízo do conhecimento oficioso de outras [conforme o art.º 608º, n.º 2, parte final, aplicável “ex vi” do art.º 663º, n.º 2, parte final, do CPC aplicáveis “ex vi” do art.º 87.º, n.º 1, do CPT ].
No caso em apreço, como só fora admitido recurso relativamente ao despacho (de 26/5/2023 já supra transcrito no nosso relatório, a págs. 1 a 4) de indeferimento de invocada nulidade, só podem ser atendidas as conclusões recursivas nesta parte.
Por isso, a única questão solvenda é saber se: devia ter sido deferida a nulidade em apreço no despacho recorrido?
Porém, afigura-se-nos que há uma questão prévia de conhecimento oficioso que é: a existência de caso julgado já formado nos autos face à rejeição do recurso relativamente à decisão de condenação como litigante de má-fé.
Fundamentação
Destes autos consta:
- A sentença absolutória proferida (em 10/7/2022, sob a refª. 152805962 aqui dada por reproduzida) e após a sua parte decisória constam os seguintes dizeres: «O tribunal pondera apreciar da litigância de má fé do autor, face ao disposto no art.º 542º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil. Previamente, notifique o autor para se pronunciar, querendo, em 10 dias
- O acórdão a confirmar aquela sentença (em 15/2/2023 e aqui dado por reproduzido o seu teor digitalizado);
- O despacho a condenar o autor como litigante de má-fé (em 29/3/2023, sob a refª. 156330473 aqui dada por reproduzida);
- A arguição de nulidade deste despacho, por parte do autor (em 20/4/2023 e aqui dado por reproduzido o seu teor digitalizado);
- O despacho a indeferir esta arguição (em 26/5/2023 sob a refª. 156877386 e aqui dada por reproduzida e que é o despacho recorrido);
- A interposição de recurso pelo autor (em 16/6/2023 sob a refª. 45879669 e aqui dada por reproduzida);
- O despacho de admissão do recurso, apenas na parte relativa ao despacho de 26/5/2023, rejeitando o recurso na parte referente ao despacho de 29/3/2023 por extemporâneo (nos termos constantes do despacho de 26/9/2023 sob a refª. 158146083).
Apreciação
Questão prévia de conhecimento oficioso: Já há caso julgado formado nos autos (face à rejeição do recurso) relativamente à decisão de condenação como litigante de má-fé.
Fazendo uma breve síntese do já exposto no relatório e na cronologia antecedentes:
Aquando da prolação da sentença absolutória (em 10/7/2022), o Tribunal de 1ª instância havia suscitado, oficiosamente, a questão da eventual litigância de má-fé do autor, determinando o respectivo contraditório – não tendo havido qualquer impugnação desse despacho por parte do autor;
Após o trânsito em julgado daquela sentença, o Tribunal de 1ª instância veio (em 29/3/2023) proferir decisão de condenação do autor como litigante de má-fé – não tendo havido impugnação desta decisão, tempestivamente (só vindo a ocorrer em 16/6/2023);
Tal impugnação tardia foi alvo de despacho de rejeição, pelo Tribunal de 1ª instância, dessa parte do recurso – não tendo havido qualquer impugnação desse despacho por parte do autor.
Daqui resulta patente que a decisão do Tribunal da 1ª instância a condenar o autor como litigante de má-fé, indiscutivelmente, já transitou em julgado.
E, como sabemos, a figura jurídica do caso julgado destina-se a garantir a coerência das decisões judiciais, a estabilidade e certeza das relações jurídicas e o prestígio das instituições judiciárias – conforme os ensinamentos de Manuel de Andrade (em “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 305-306), de Vaz Serra (na RLJ Ano 110º, pág. 232) e de Miguel Teixeira de Sousa (em “O objecto da sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325º, págs. 49 e segs.).
Pois, uma vez proferida uma decisão judicial sobre determinada matéria e depois de decorrido o respectivo prazo de recurso ordinário ou de reclamação, sem que a mesma tenha sido impugnada, considera-se transitada em julgado (cfr. o art.º 628º do CPC) – sem prejuízo da sua revogação ou modificação por meio de recursos extraordinários de revisão (cfr. o art.º 696º do CPC) ou nos casos em que o caso julgado se forme em circunstâncias patológicas ou anormais.
A partir de então (seguindo os ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa, pág. 569 da obra citada e de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora em “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora 1985, págs. 703-704), há formação de caso julgado da decisão:
se a decisão disser respeito a questões de carácter processual/formal, forma-se o caso julgado formal ou interno (previsto no art.º 620º, nº 1, do CPC), impedindo o juiz de, na mesma acção, alterar a decisão proferida sobre tal questão;
se a decisão disser respeito ao mérito da causa, isto é, à concreta relação material controvertida sob litígio, forma-se o caso julgado material ou externo (previsto no art.º 619º, nº 1, do CPC), impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, dentro do processo e fora do processo, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada.
Ora, retornando ao processo em apreço, já se havia formado caso julgado material relativamente ao mérito da questão incidental da litigância de má-fé do autor, tornando-a inimpugnável (salvo, através de eventual recurso extraordinário de revisão que não está aqui em causa).
Assim sendo, está prejudicada a apreciação da questão recursiva a que se reporta esta apelação, na medida em que já não se pode questionar a validade ou invalidade daquela decisão já transitada em julgado.
Sendo essa, precisamente, a razão de ser do instituto do caso julgado, evitar que, dentro do mesmo processo ou fora dele, pelo mesmo tribunal ou outro tribunal, venham a ser proferidas decisões contraditórias sobre uma mesma questão.
Também, precisamente, por isso é que o art.º 615º, nº 4, do CPC consigna, expressamente, que (salvo no tocante à falta de assinatura do juiz prevista na alínea a) do seu nº 1) as causa de nulidade da sentença previstas nas alíneas b) a e) do seu nº 1 [b) por falta de fundamentação de facto e/ou de direito justificativa da decisão, c) por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão ou a decisão ser ininteligível por ambígua ou obscura, d) por omissão ou excesso de pronúncia do juiz ou e) por condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido] só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário e no caso contrário é no recurso da sentença que pode ser arguida como fundamento recursivo.
E sendo este preceito legal aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força da remissão contida no art.º 613º, nº 3, do CPC.
Ora, retornando ao caso em apreço, como a decisão incidental de condenação do autor como litigante de má-fé era susceptível de recurso ordinário (conforme prevê o art.º 542º, nº 3, do CPC) através do recurso desta é que o autor podia ter suscitado qualquer destas nulidades.
Mas, apesar de o autor poder tê-lo feito, não o fez tempestivamente – originando a rejeição dessa parte do recurso.
Nesta conformidade, ficou vedada a possibilidade de se questionar (directa ou indirectamente) a validade daquela decisão incidental.
E, consequentemente, ficando vedada a possibilidade de se questionar a validade de quaisquer actos ou despachos que antecederam a prolação daquela mesma decisão (tais como, a invocação oficiosa de eventual litigância de má-fé e o cumprimento do contraditório - relativamente aos quais, o autor nem sequer suscitara qualquer nulidade destes actos).
E, consequentemente, também ficando vedada possibilidade de se questionar a validade de actos ou despachos subsequentes à prolação daquela decisão incidental e relativos àquela mesma decisão (tais como, o indeferimento da nulidade suscitada, em requerimento autónomo do autor, relativamente àquela mesma decisão – nulidade essa que (apesar da veste que lhe fora dada pelo autor sob a invocação genérica da regra geral sobre a nulidade dos actos, contida no art.º 195º do CPC) não podia deixar de ter sido arguida através de recurso relativamente àquela mesma decisão (nos termos impostos pelos já referidos art.º 615º, nº 4, “ex vi” do nº 3 do art.º 613º, ambos do CPC).
Em suma, nos autos em apreço, já tendo havido decisão transitada em julgado relativamente à condenação do autor como litigante de má-fé, esta formação de caso julgado constitui uma excepção dilatória (prevista no art.º 577º, al. i), do CPC) que este Tribunal deve, oficiosamente, suscitar/conhecer (nos termos previstos pelo art.º 578º do CPC), conforme se faz nos termos acabados de explanar.
E esta questão prévia obsta (nos termos previstos pelo art.º 576º, nº 2, do CPC) a que este Tribunal conheça do mérito/desmérito da questão recursiva suscitada pelo autor/recorrente – que veio questionar, no recurso em apreço, o poder jurisdicional do Tribunal recorrido para a prolação daquela decisão que o condenara como litigante de má-fé.
Sendo de salientar, como nota final, que sempre improcederia o recurso em apreço.
No nosso sistema jurídico vigora o princípio geral consagrado no art.º 613º do CPC, segundo o qual, uma vez proferida a sentença fica esgotado, imediatamente, o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Este princípio geral (conforme referem os ensinamentos de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa em “Código de Processo Civil Anotado”, edição 2018, Vol. I, págs. 734-735) tem dois efeitos imediatos:
efeito positivo por vincular o tribunal à decisão/ao despacho proferido;
efeito negativo por impedir o tribunal de modificar ou revogar a decisão/o despacho que proferiu (dar o dito por não dito) – salvo, tratando-se da correção de eventuais omissões, erros materiais e/ou do suprimento de eventuais nulidades que sejam arguidas e que poderão justificar eventual rectificação e/ou suprimento e/ou reforma da decisão/do despacho (nos termos previstos pelos arts. 614º a 617º “ex vi” dos nºs 2 e 3 do art.º 613º, todos do CPC).
Dessa forma e salvo estas excepções, sendo a decisão judicial intangível para o juiz, imediatamente (como expressamente o diz o nº 1 do supra transcrito preceito), o nosso legislador pretende assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional e a inerente segurança jurídica.
Assim se obstando à desordem, à confusão e à incerteza que seria se o juiz pudesse (sempre e no mesmo processo judicial) dar o dito por não dito.
Mas, também, conforme salienta (expressamente) o nº 1 do supra transcrito art.º 613º: após a prolação de uma sentença/um despacho, o poder jurisdicional do juiz fica esgotado relativamente à matéria da causa sobre a qual ele se pronunciou nessa peça processual.
Quanto ao mais, pode e deve o juiz continuar a exercer o seu poder/dever jurisdicional, proferindo despachos e/ou decisões no mesmo processo e/ou seus apensos – para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão/o despacho proferido e independentemente de se tratar de matéria/questão/incidente anterior, contemporâneo ou posterior à decisão/ao despacho proferido.
Caso contrário, afigura-se-nos que estaria encontrada a fórmula de bloquear o ulterior prosseguimento do respectivo processo judicial e que atentaria contra o princípio constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (previsto no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, doravante com a abreviatura CRP, e, também, consignado no art.º 2º do CPC).
No caso particular da questão da má-fé/litigância de má-fé de alguma das partes, a sede natural da sua apreciação e decisão é aquando da sentença – conforme decorre, implicitamente, do nº 3 do art.º 543º do CPC (ao prever que, apenas, se relegue para momento posterior a fixação do valor da indemnização peticionada pela parte contrária) e, também, conforme referem os ensinamentos doutrinais de Alberto dos Reis (em “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, 3ª edição reimpressa, pág. 281) que supõem ter havido já anterior discussão dessa questão.
Compreende-se que seja essa a sede natural, como corolário lógico de uma norma basilar do nosso sistema jurídico, a propósito da sentença, que é o art.º 608º do CPC cujo nº 2 estipula: «2 – O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras
Devendo a sentença pronunciar-se sobre as questões a resolver, sob pena de poder incorrer em nulidade por omissão de pronúncia (nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d), do CPC).
Caso alguma das partes tenha suscitado, no respectivo processo, a questão da litigância de má-fé (substancial nos termos das als. a) e b) do nº 2 do art.º 542º do CPC e /ou instrumental/processual nos termos das als. c) e d) do nº 2 do mesmo preceito) deve, sempre, a sentença pronunciar-se sobre a mesma.
Caso nenhuma das partes o tenha feito, pode o tribunal, oficiosamente, suscitar a questão da eventual litigância de má-fé.
Então, neste último caso, o tribunal tem, sempre, de anunciar isso mesmo às partes e permitir-lhes o exercício do contraditório (conforme doutrina e jurisprudência pacíficas, salientando-se o acórdão do STJ de 28/2/2002 do relator Garcia Marques em dgsi.pt e António Menezes Cordeiro em “Litigância de Má-Fé Abuso do Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, edição 2016, págs.67-68).
Assim, dando cumprimento a um princípio estruturante do nosso processo civil que é o princípio do contraditório (previsto no art.º 3º do CPC), destinado:
por um lado, a evitar que sejam tomadas decisões à revelia de qualquer das partes e decisões-surpresa/inesperadas, perante a ausência de qualquer discussão prévia entre as partes; e
por outro lado, a propiciar ao juiz melhores condições para uma ponderação serena dos respectivos argumentos que, porventura, sejam apresentados por cada uma das partes (conforme explicitam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa nas págs. 15-21 da obra já citada).
Aliás, a figura jurídica da litigância de má-fé (prevista nos arts. 542º e 543º do CPC) criada para tutelar o bem jurídico do sistema de justiça processual, tem especificidades quanto à conduta sancionada, quanto à culpa e quanto às consequências. Tendo inerente um desmerecimento por parte do juiz, relativamente à litigância de qualquer uma das partes num determinado processo (conotada com elevada carga pejorativa), exige-se ao julgador especiais cautelas, prudência e cuidado (aquando deste policiamento do processo por parte do juiz, por forma a não colidir com o já referido princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (previsto no art.º 20º da CRP) – conforme explicita António Menezes Cordeiro e a jurisprudência por este citada nas págs. 67-68 da obra já supra identificada.
Ora, o diferendo em apreço estava, precisamente, em saber se a questão da má-fé [oficiosamente suscitada pelo juiz e relativamente a litigância antecedente à fase processual da sentença] podia ser anunciada pelo juiz até à prolação da sentença, relegando o contraditório, a sua apreciação e a sua decisão para momento ulterior ou se não podia, por sempre ter de haver prévio anúncio e prévio exercício do contraditório antes da prolação da sentença, por forma a que a decisão de tal questão seja tomada até ou aquando da prolação da sentença.
A este propósito a jurisprudência não tem sido pacífica – conforme já salientara quer o despacho recorrido, quer o Ministério Público junto deste Tribunal (nos termos constantes dos autos, já sintetizados no nosso relatório e aqui dados por reproduzidos):
- Uma parte da jurisprudência [à qual adere o recorrente] considera que tal decisão não pode ser relegada para depois da sentença, só sendo permitido relegar eventual fixação do montante de indemnização – cfr. entre outros o acórdão do TRG de 24/3/2022 relatado por Margarida Almeida Fernandes, o acórdão do TRC de 8/9/2020 relatado por Fonte Ramos e os acórdãos do TRP de 27/2/2023 relatado por Rui Penha e de 27/6/2023 relatado por Artur Dionísio Oliveira, todos em dgsi.pt;
- Outra parte da jurisprudência [à qual aderiu o despacho recorrido, bem como o parecer Ministério Público junto deste Tribunal e, também, este Tribunal adere] considera que pode ser relegada para depois da sentença, desde que, tenha sido anunciada aquando da prolação desta – cfr. entre outros o acórdão do TRL de 12/7/2012 relatado por Ezagüy Martins e os acórdão do TRG de 10/5/2018 relatado por Alcides Rodrigues, de 31/10/2019 relatado por Paulo Reis, de 11/5/2022 relatado por António Beça Pereira e de 11/5/2023 relatado por Antero Veiga, todos em dgsi.pt.
Quer isto dizer que, quando suscitada pelo juiz – oficiosamente e relativamente à litigância até à sentença – não é obrigatório concentrar a respectiva decisão daquela nesta.
É admissível que aquela questão incidental não seja decidida pelo juiz aquando da sentença, podendo relegá-la para momento subsequente, desde que, aquela questão incidental – porque reportada à litigância na lide até então – seja abordada/anunciada pelo juiz, oficiosamente, aquando da sentença.
Nesta sede, ainda podendo suscitar tal questão incidental, em face da litigância até então e, até então, podendo abrir-se o respectivo incidente, para o qual o juiz tem poder jurisdicional.
Não estando precludido o respectivo poder jurisdicional do juiz para a ulterior tramitação dessa questão incidental e sua decisão, na medida em que essa questão incidental não contende com a sentença.
Assim, não retardando a prolação da sentença.
Assim, possibilitando, após o anúncio (oficioso e nesta) dessa questão incidental (relativa ao pretérito comportamento processual de alguma das partes até esta fase processual) que haja discussão entre as partes sobre essa questão e que haja uma completa e serena ponderação aquando da respectiva decisão por parte do juiz – conforme foi o que sucedeu no caso em apreço e através de decisão já transitada em julgado.
E, conforme começamos por assinalar, prévia e oficiosamente, assim terminamos, dizendo que a excepção de caso julgado já formado relativamente à condenação do autor como litigante de má-fé é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso por parte deste Tribunal da Relação e que obsta à decisão do mérito deste recurso (cfr. os arts. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. i), 578º, 608º, n.º 2, parte final, aplicável “ex vi” do art.º 663º, n.º 2, parte final, do CPC).
Nesta conformidade, ficando a custas do recurso a cargo do recorrente que deu causa ao mesmo (cfr. o art.º 527º, nº 1, do CPC).
Decisão
Em face do exposto, oficiosamente, declara-se a existência da excepção dilatória de caso julgado já formado nos autos (relativamente à, já transitada em julgado, condenação do autor como litigante de má-fé), ficando obstada a decisão sobre o mérito do recurso.
Custas a cargo do recorrente.
Notifique.
(Texto elaborado pela relatora, revisto pelas signatárias e com assinatura digital de todas)

Lisboa, 20 de Março de 2024
Paula de Sousa Novais Penha
Maria José Costa Pinto
Alda Martins