Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15189/15.6T8LSB-I.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: MUDANÇA DE RESIDÊNCIA
QUESTÕES DE PARTICULAR IMPORTÂNCIA
PROGENITOR DE REFERÊNCIA
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1-Não deve ser reapreciada a matéria de facto quando os factos concretos objecto da impugnação sejam insusceptíveis de terem relevância jurídica, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito; sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.
2- O desacordo entre os pais quanto à questão de mudança de residência de um deles para o estrangeiro, pretendendo levar consigo a menor, constitui questão de particular importância que deve ser decidida tendo em conta o critério preponderante norteador da decisão judicial em matéria de direito dos menores: o superior interesse da criança.
3- À luz desse critério deve ter-se em consideração, além do mais, o conceito de progenitor psicológico ou progenitor de referência, expressão que apela à situação de continuidade, no dia-a-dia, de interacção, companhia, acção recíproca e mútua e que preenche as necessidades psicológicas e físicas da criança e do progenitor.
4- O interesse da menor em acompanhar o progenitor de referência para passar a residir com ele na Suíça é preponderante e superior ao direito de visitas ao pai com quem não convive. E esse direito de visitas tem de ser adaptado a essa nova realidade, não podendo constituir fundamento para impedir a deslocação da menor para o estrangeiro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO.
1-CAM, instaurou incidente de resolução de diferendo entre progenitores, contra R. P., relativa a questões de particular importância, pedindo:
- Que seja autorizada que a menor B, filha de ambos, resida na companhia da mãe em Lausanne, Suíça e, a frequentar a Escola Primária e Secundária Elysées, igualmente em Lausanne.
Alega, em síntese, que se encontra desempregada e que o marido em 01.05.2019, celebrou um contrato de trabalho com a Escola P…de Lausanne na Suíça como colaborador científico, auferindo mensalmente o montante de € 7 365,00; que viajou para a Suíça em Agosto com a sua filha B para conhecer Escolas e o Conservatório de Música de Lausanne para avaliar a possibilidade de mudança com a sua filha; que escolheu em Lausanne a Escola Primária e Secundária Elysées; que a B terá aulas de francês, gratuitas; que será integrada numa turma de alunos portugueses para facilitar a sua integração; que frequentará o Conservatório de Música de Lausanne para ter aulas de piano; receberá logo que esteja a viver em Lausanne um abono de família no valor de € 184,00 e poderá utilizar os transportes públicos gratuitamente; terá um seguro de saúde; a menor B terá, pelo menos, as mesmas condições de vida que tem em Lisboa; a B deseja ir e está entusiasmada com a ideia; tem uma óptima relação com a mãe e com o padrasto; não tem relação com o pai e recusa-se a estar com o mesmo; que as aulas em Lausanne tiveram início a 26 de Agosto; deveria prestar provas na primeira semana de Outubro para ingressar no Conservatório de música de Lausanne; e que enquanto o Tribunal não decidir, a B continua a frequentar a Academia de Música de S….
2- Foi designada data para a realização da conferência a que alude o artº 35º, nº 1, aplicável ex vi do artº 44º nº 2 da Lei 141/2015, de 8 de Setembro (RGPTC).
Realizada conferência de pais e uma vez que não foi possível o acordo, opondo-se o progenitor à mudança de residência da menor B, foram ambos notificados para alegar.
3- Ambos os pais apresentaram alegações e indicaram prova nos termos do artº 39º, nº 4 da supramencionada Lei (RGPTC).
4- Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte teor decisório:
IV. Decisão
Em face do exposto, julga-se improcedente o incidente suscitado por CAM por falta de acordo dos progenitores e, em consequência, decide-se:
A) Não autorizar que a Bz se desloque para Lausanne, na Suíça, para aí residir com a sua mãe.
B) Custas pela requerente, fixando ao incidente o valor de € 30 000,01.
5- Inconformada, a requerente interpôs o presente recurso, pugnando pela revogação da decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. O Tribunal a quo não apreciou corretamente a prova feita nos autos, tanto no que diz respeito aos factos provados, como aos não provados, não contemplando, além do mais, aspetos essenciais que constam dos autos, que deveriam ter sido dados como provados, para a justa decisão do litígio, tendo valorado indevidamente, quer a prova documental, quer os depoimentos testemunhais produzidos em audiência de discussão e julgamento.
2. Nos termos do disposto nos arts. 662º n.º 1 e 640ºdo C.P.C., deverá esse Tribunal reapreciar a matéria de facto, substituindo as respostas dadas aos factos provados nos pontos 6 e 9 da fundamentação de facto e as alíneas a), b), e), f) e g) dos factos não provados, nos termos supra requeridos, e dando como provados os factos descritos no ponto 3 alíneas a) a i) da matéria de facto cuja a reapreciação se requereu supra.
3. O que resulta da matéria de facto cuja apreciação/alteração se requereu, é que: o padrasto da menor tem um contrato de trabalho que é renovável anualmente, até 2023; que a menor tem vaga na Escola Primária e Secundária de Elysées, sendo certo que, o ensino escolar na Suíça é obrigatório, pelo que a menor terá sempre vaga numa escola da área da sua residência, logo que se mude para lá.
4. Se é certo que a menor não tem vaga no Conservatório de Música de Lausanne, pois, em primeiro lugar, terá de prestar provas para aferir das suas aptidões musicais e do seu nível de conhecimento, em Portugal a menor também não frequenta o Conservatório, muito embora a Academia de S… tenha ensino de música integrado, tal como a Escola Primária e Secundária de Elysées, motivo pelo qual a mãe, ora Recorrente, escolheu esta escola em Lausanne.
5. Pelo que, falecem as premissas que levaram o Tribunal a quo a considerar prejudicial ao crescimento da criança retirá-la do seu meio escolar, para um local que não é o seu meio sociocultural, por um curto espaço de tempo e sem saber quais as escolas em que a menor tem vaga.
6. Além do mais, referindo a sentença recorrida, na motivação da decisão, que estando a guarda da menor confiada à sua progenitora, que vem promovendo o seu desenvolvimento físico, intelectual e moral, e inexistindo nos autos elementos que abalem a capacidade da progenitora de continuar o processo educacional da menor e estando também demonstrado que a mesma tem competências parentais, não faria sentido, sendo até contraditório, que aquela quisesse levar a menor para a Suíça sem se ter certificado da qualidade da escola escolhida por si.
7. Aliás, está provado que a ora Recorrente viajou para a Suíça em agosto de 2019 com a sua filha e demonstra-se pelas suas declarações e pelas declarações da menor, que a mesma visitou a escola, falou com os responsáveis, que lhe garantiram que a menor teria vaga, e que a sua filha gostou da escola e quer ir para a Suíça com a mãe.
8. Pelo que, não se compreende em que medida é que esta mudança para a Suíça possa ser prejudicial ao seu crescimento.
9. Aliás, tal como resulta do relatório elaborado pela Academia de Música de S, a menor, que em setembro de 2017, quando iniciou o seu percurso académico na Academia, vinda do Colégio de Santa M (onde completou o 1º e o 2º ano de escolaridade), era uma criança muito tímida, insegura e triste e que raramente sorria, fez uma grande evolução até junho de 2018 e no final do ano estava completamente integrada na turma.
10. Uma criança com estas características e com a vontade que tem de ir para a Suíça, facilmente se integrará na nova escola, inexistindo quaisquer motivos que possam indiciar que a sua mudança para a Suíça possa ser prejudicial para o seu crescimento.
11. Por outro lado, resulta também da matéria de facto cuja apreciação/alteração se requereu, que: pai foi condenado por crime de violência doméstica praticado contra a mãe da menor numa pena de dois anos e seis meses de prisão, pena essa suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e condicionada a regras de conduta, nomeadamente a obrigação de manter o acompanhamento psicológico e a proibição de contactos com a ofendida por qualquer meio, com exceção dos contactos estritamente necessários ao cumprimento do regime das responsabilidades parentais; a B tem uma má relação com o pai e não quer estar com o mesmo; a B foi levada pelo pai, do Colégio de Santa M, contra a vontade daquela.
12. Acresce que, a informação sobre a Audição Técnica Especializada é clara ao referir que: “… no que respeita aos convívios paterno-filiais estes a ocorrerem deverão ser sob supervisão.
Em primeiro lugar, e caso o pai venha a conseguir aceitar a proposta da psicóloga da escola que a filha frequenta, os convívios deveriam ser supervisionados pela mesma, porque num ambiente afável para a criança. Caso tal não seja possível, por motivos laborais do próprio pai, somos de parecer que se deverá recorrer a uma entidade competente externa em matéria de supervisão de convívios que deverá estabelecer um plano de avaliação continuada durante um período de tempo previamente definido, com vista a se poder perceber de facto se a relação pai-filha se encontra deveras danificada ou se é ainda possível recuperá-la, sendo certo que a criança manifestará oposição e resistência a tal possibilidade e será com sofrimento pessoal, e eventualmente danos colaterais para a criança, que se procederá a tal período experimental de convívios supervisionados (Ponto de encontro familiar).”
13. Resulta também provado que o regime de visita estabelecido no ponto 4 dos factos provados (visitas supervisionadas, em regime a definir após avaliação da equipa técnica) não está a ser levado a cabo, porque o “MDV Projeto Família” informou o Tribunal da sua impossibilidade de intervenção por falta de agenda e o Tribunal ainda não designou outra entidade para o efeito.
14. Aliás, a mãe pretende que a menor crie laços com o pai, sendo inicialmente as visitas acompanhadas, tal como recomendado pela informação da Audição Técnica Especializada.
15. Por outro lado, a sentença recorrida não podia deixar de tomar em linha de conta, que o pai foi condenado por crime de violência doméstica praticado contra a mãe, tal como não podia deixar de considerar que a B não quer estar com o pai.
16. Do mesmo modo, a sentença recorrida também não podia ignorar a informação sobre a Audição Técnica Especializada, não mencionando sequer a mesma, bem como o facto de não se realizarem visitas desde junho de 2018 por não existir equipe técnica nomeada pelo Tribunal para fazer a avaliação e o acompanhamento das visitas da menor ao pai.
17. O Tribunal, ao ignorar estes factos, não os mencionando sequer na sentença, subverte a realidade e faz crer que as visitas da menor ao pai não ocorrem por culpa da mãe, o que não corresponde à verdade.
18. Se é certo que algumas das visitas não se realizaram, nomeadamente, no Colégio de Santa M, por a mãe ir buscar a menor mais cedo ou à hora de almoço, nos dias de visita do pai, tal deveu-se à circunstância de a menor ficar muito perturbada com a presença do pai, sobretudo depois de ter sido levada à força por aquele, como a mesma, aliás, relatou ao Tribunal.
19. Não respeitar os sentimentos de uma criança é negar-lhe os seus direitos enquanto ser humano e é desrespeitar os mais elementares deveres de cuidado, por tal colocar em causa os seus sentimentos de segurança e confiança nos adultos.
20. Negar a ida da menor para a Suíça porque a mesma não quer ter contactos com o pai e imputar tal facto à responsabilidade da mãe, quando efetivamente as vistas supervisionadas não se realizam porque o Tribunal ainda não nomeou equipa técnica para supervisionar e avaliar as ditas visitas, é manifestamente injusto e infundado, sobretudo quando a mãe manifestou a sua disponibilidade para acompanhar a menor a Lisboa para que tais visitas ocorram.
21. Não se compreende porque é que a sentença recorrida refere que tais visitas ficarão condenadas ao fracasso se a menor for para a Suíça, pois bastará que fique estipulado pelo Tribunal que a mesma virá a Lisboa, nas férias escolares, de acordo com o calendário que consta do doc. 9 junto com as alegações da ora Recorrente, para que a referida avaliação se faça e tais visitas ocorram.
22. Na verdade, se existe algum fracasso na realização das visitas, tal deve-se à inércia do Tribunal que até à presente data não nomeou qualquer equipa técnica, sendo certo que, nem a menor, nem a mãe, podem ser penalizadas por esse facto.
23. A decisão recorrida, para além de injusta, é incompreensível, pois, por um lado considera que a menor tem na sua mãe a sua figura de suporte e segurança, o que justifica que a mesma permaneça na sua companhia, afirmando que é a mesma que vem promovendo o seu desenvolvimento físico, intelectual e moral, afirmando expressamente que inexistem nos autos elementos que de forma consistente abalem a capacidade da progenitora de continuar o processo educacional da menor, mas, por outro lado, esquece por completo que a mãe está desempregada, que o Colégio tem um custo mensal de € 383,00 e só a renda de casa que habita em Lisboa tem um custo mensal de € 1.250,00, sendo certo que a pensão de alimentos que o pai paga é de € 200,00 por mês.
24. Pelo que, sempre se terá de perguntar, como é que a mãe poderá permanecer em Lisboa e garantir o desenvolvimento físico, intelectual e moral da filha, estando desempregada e longe do seu marido, o qual é atualmente o único garante da sobrevivência económica da família.
25. O Tribunal não equacionou como devia, nem os superiores interesses da menor, nem os direitos fundamentais da mãe, nomeadamente o seu direito de deslocação e de reunião da sua família.
26. A sentença recorrida violou, pois, os art.s 85º n.º 1, 1887º, 1906º e 1918º, todos do Código Civil, e os arts. 18º e 44º da Constituição da República Portuguesa (CRP), tendo ido contra o que é um entendimento pacífico da Jurisprudência e da Doutrina que considera que: o menor deve ser confiado à guarda e cuidado da pessoa que dele trate no seu dia-a-dia, a sua figura primária de referência, que, no presente caso é a mãe, e que entende que não deve ser limitado o direito de mudar de residência, incluindo para outro país, do progenitor e do menor cuja guarda lhe esteja confiada, a não ser que exista uma grave razão de saúde, de segurança ou outra de relevância excecional equivalente.
27. Ora, não resulta da sentença recorrida qualquer facto de onde se demonstre a existência de uma situação de excecional relevância que justifique que a menor não se possa deslocar para Lausanne, na Suíça, com a mãe.
28. A sentença recorrida desconsiderou por completo o direito da mãe mudar de residência, para se reunir ao seu marido e para procurar trabalho, violando de forma grosseira os art.s 44º e 58º da CRP.
29. Em face do exposto, não se vislumbram quaisquer motivos para impedir que a menor desloque a sua residência para a Suíça juntamente com a sua mãe, não sendo razoável, nem justo que tal deslocação seja impedida por atualmente não existirem visitas da menor ao pai, se tais visitas não se realizam por inércia do Tribunal e não a por causa de qualquer comportamento da mãe.
30. Além do mais, não existe nenhum obstáculo para que as visitas supervisionadas, tal como se encontram provisoriamente estabelecidas (e aconselhadas pela informação da Audição Técnica Especializada), não se venham a realizar, bastando para tanto que o Tribunal nomeie a Equipa Técnica que deverá fazer a avaliação e o acompanhamento de tais visitas.
31. A mudança da menor para a Suíça não só é necessária, como é adequada ao seu contexto familiar, pois não é viável a mãe ficar a residir em Portugal quando cá não tem trabalho, não lhe sendo exigível ficar longe do seu marido e ter de suportar os custos inerentes à sua residência em Portugal, não tendo meios para se sustentar.
32. O superior interesse da criança também passa por a mesma ter uma mãe feliz e equilibrada, capaz de suprir as suas necessidades e as necessidades da sua filha.
33. A mãe não pode ser privada da sua liberdade de ação e realização pessoal, profissional ou outra, para ficar refém de uma residência que nem sequer pode pagar, sendo certo que nada impede o Tribunal de estabelecer visitas, sendo as mesmas realizadas nas férias escolares da menor.
34. A decisão recorrida não só faz uma errada aplicação do direito, como viola os art.s 85º n.º 1, 1887º, 1906º e 1918º, todos do Código Civil, e os arts. 18º, 44º e 58º da Constituição da República Portuguesa, sendo por isso nula.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, nos termos dos arts. 662º n.º 1 e 640º do CPC, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra que autorize a deslocação da menor para Lausanne, na Suíça, para aí residir com a sua mãe, convertendo em definitivo o regime de visitas acompanhadas, estabelecido por acordo na conferência de pais de 19.06.2018 (realizada no âmbito do apenso C), nas férias escolares da menor: uma semana no Natal, uma semana na Páscoa e 15 dias no Verão, mediante plano a elaborar por Equipa Técnica a nomear pelo Tribunal.
6- O requerido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, referindo também, que a apelante não cumpriu os ónus que o artº 640º do CPC lhe impõe quanto à impugnação da matéria de facto.
7- O Ministério Público, contra-alegou, pugnando pela procedência do recurso, defendendo que deve autorizar-se que a menor se desloque para a Suíça para aí residir com a sua mãe.
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II-FUNDAMENTAÇÃO.
1-Objecto do Recurso.
É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC/13) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC/13) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC/13) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC/13) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- A Impugnação da Matéria de Facto;
b)- A revogação da sentença, com a concessão de autorização de a menor se deslocar para a Suíça para aí residir com a sua mãe.
Vejamos estas questões.
Previamente, importa ter presente a factualidade decidida pela 1ª instância.
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2- Factualidade decidida pela 1ª instância.
É do seguinte teor a matéria de facto constante da sentença:
-Factos Provados.
1. Por sentença de 14 de Abril de 2016, foi homologado o acordo celebrado entre a requerente e o requerido quanto à regulação das responsabilidades parentais da filha menor de ambos, B.
2. Nesse acordo ficou estabelecido que:
a) A menor B fica a residir à guarda e cuidados da mãe, CAM.
b) As responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância para a vida da menor serão exercidas em comum por ambos os progenitores definindo-se como questões de particular importância:
A alteração de residência para fora da área metropolitana de Lisboa ou para o estrangeiro;
Os tratamentos e intervenções médicas que possam causar perigo para a vida ou integridade física, ressalvadas as situações urgentes em que cada um dos progenitores pode agir singularmente e comunicar ao outro logo que possível;
A opção entre ensino público ou privado;
As saídas para o estrangeiro.
c) As questões da vida corrente serão decididas individualmente por cada um dos progenitores, com a menor se encontrar nesse momento.
d) Considerando a necessidade de haver uma aproximação gradual entre o progenitor e a menor e uma vez que é do interesse que as visitas e os contactos ocorram num ambiente tranquilo e familiar e que promova o estabelecimento de vínculos afetivos seguros, as partes acordam no seguinte regime progressivo de visitas;
d.1) Nos próximos dois meses (Maio e Junho), o pai pode ver e estar com a menor todos os Sábados num dos seguinte períodos alternados (período da manhã das 10h00 às 14h00 e período da tarde das 15h às 18h00), sendo as recolhas e as entregas da menor efectuadas em casa da progenitora.
d.2) Nos dois meses subsequentes (meados de Junho a meados de Agosto) e mantendo-se o período de convívio referido em d.1), o pai pode ver e estar com a menor todas as terças-feiras e quintas-feiras, entre as 18h30 e as 21h30 sendo as recolhas e as entregas da menor efectuadas em casa da progenitora.
d.3) Nos dois meses subsequentes (meados de Agosto a final de Outubro) e mantendo-se o período de convívios referido em d.2), o pai pode ver e estar com a menor um dia inteiro de fim de semana (alternando a cada visita o dia de Sábado e Domingo), entre as 10h00 e as 21h00 sendo as recolhas e as entregas da menor efectuadas em casa da progenitora; quando estas visitas semanais ocorram em período escolar, as recolhas da menor serão efectuadas pelo pai no final das actividades escolares, sendo as entregas da menor efectuadas em casa da progenitora até às 21horas.
d.4) Decorrido este período transitório e adaptativo, o pai terá consigo a menor em fins-de-semana alternados, desde o final das actividades escolares de sexta-feira, sendo as entregas da menor efectuadas em casa da progenitora até às 21horas de Domingo.
d.5) Simultaneamente ao início dos períodos de convívio referido em d.4), o pai pode ver e estar com a menor todas as terças-feiras, recolhendo-a no estabelecimento de ensino no final das actividades escolares, aí a entregando no dia seguinte (quartas - feiras) no início das actividades escolares.
e) Os pais comprometem-se a autorizar as deslocações da menor para o estrangeiro na companhia do outro progenitor, comunicando com antecedência os períodos da deslocação, destino e meios de contacto.
f) A título de pensão de alimentos para a menor, o pai contribuirá com o montante de € 200,00 (duzentos euros) mensais, através de depósito ou transferência bancária para a conta da progenitora, até ao dia 8 de cada mês, sem qualquer encargo para esta.
g) A quantia atrás referida será actualizada anualmente, de acordo com a taxa de inflação a publicar pelo Instituto Nacional de Estatística, por referência ao ano anterior.
h) As despesas da menor com a aquisição da farda escolar, bem como as despesas médicas e medicamentosas e despesas escolares, serão suportadas em partes iguais por cada um dos progenitores, mediante a apresentação de documento comprovativo pelo progenitor que a suportou, comprometendo-se o progenitor suportar a sua quota parte nestas despesas com o pagamento da pensão de alimentos que se vencer no mês seguinte à sua apresentação.
i) Os progenitores comprometem-se reciprocamente a não denegrir a imagem um do outro, perante a menor, comprometendo-se, ainda a progenitora a colaborar no melhoramento da relação e dos convívios da B com o pai”.
3. Por sentença de 15 de Fevereiro de 2018, foi homologado um aditamento ao acordo celebrado entre a requerente e o requerido quanto à regulação das responsabilidades parentais da filha menor de ambos, B nos seguintes termos:
“O progenitor que viajar com a menor para o estrangeiro compromete-se a informar o outro com a antecedência de um mês sobre as datas de partida e de regresso e o destino da viagem; o outro progenitor compromete-se a responder ao pedido no prazo máximo de 5 dias.
Após a autorização da viagem, aquele que viajar com a menor compromete-se a informar o outro progenitor, no prazo de 5 dias, sobre o número de voo, local de alojamento e forma de contacto com a menor”.
4. Em 19.06.2018 os progenitores acordaram em fixar com regime provisório, por forma a implementar um regime de visitas de forma gradual e a criação de vínculos afectivos seguros entre a menor e o seu progenitor, que a menor pode ver e estar com o progenitor mediante visitas supervisionadas, em regime a definir após avaliação da equipa técnica.
5. Por sentença de 14 de Dezembro de 2018, foi homologado um aditamento ao acordo celebrado entre a requerente e o requerido quanto à regulação das responsabilidades parentais da filha menor de ambos, B nos seguintes termos:
“O pai pode ver e estar com a menor B no próximo Domingo dia 23/12/2018, entre as 12h00 e as 17h00, nos Jardins da Gulbenkian em Lisboa, na presença dos avós e tio paternos, podendo a progenitora indicar pessoa de confiança da menor para acompanhar a visita em condições de privacidade.
A mãe compromete-se a identificar esta terceira pessoa até ao final da presente data.
A mãe entrega a menor B ao pai, junto da entrada para a bilheteira da Gulbenkian e aí a recolhendo no final da visita.
O pai autoriza a filha B a viajar na companhia da mãe para Espanha, entre os dias 16 e 22 de Dezembro de 2018, data em que a menor regressará a Portugal”.
6. Os regimes de visitas estabelecidos não se verificaram, apesar do progenitor fazer todos os esforços para conseguir conviver com a sua filha B.
7. Algumas das visitas, nomeadamente, no Colégio de Santa M foram impedidas pela mãe da menor, que a ia buscar mais cedo ou à hora de almoço, nos dias de visita do pai.
8. O progenitor não tem conseguido conviver com a sua filha B, continuando a desejar fazê-lo.
9. O progenitor é um pai carinhoso e preocupado.
10. A B tinha boa relação com a família paterna.
11. A progenitora da B encontra-se desempregada.
12. O marido, padrasto da B celebrou com a Escola P de Lausanne na Suíça, contrato de trabalho em 01.05.2019, pelo prazo de um ano, com término em 30.04.2020, como colaborador científico.
13. Aufere mensalmente o montante de € 7 365,00.
14. A mãe da B viajou para a Suíça em Agosto de 2019 com a sua filha.
15. A B encontra-se a frequentar a Academia de Música de S no 5.º ano.
16. Está completamente integrada, é uma excelente aluna e toca piano.
17. Quer ir para a Suíça com a mãe e tem boa relação com o padrasto.
18. Em 24 de Junho de 2016 o progenitor deduziu um incidente de incumprimento, que aguarda os relatórios periciais a realizar aos progenitores.
19. Em 29 de Setembro de 2016 a progenitora requereu uma alteração das responsabilidades parentais, cujo pedido é alteração do regime de visitas e depois, requereu que a menor fosse residir consigo para a Roménia e que passasse esta a exercer em exclusivo as responsabilidades parentais. Aguarda a realização de relatórios periciais a realizar aos progenitores.
Matéria de facto não provada
Com relevância para a decisão da causa não se provou que:
a) O contrato de trabalho do padrasto da menor é renovável até 2023;
b) A menor tem vaga na Escola Primária e Secundária Elysées ou noutra;
c) Tem vaga no Conservatório de Música de Lausanne para ter aulas de piano;
d) A requerente dispõe de emprego ou propostas de trabalho em Lausanne, na Suíça;
e) A B, por integrar o agregado familiar do seu padrasto, RM, logo que vá residir para Lausanne, beneficiará de um Abono de Família pago pelo Estado Suíço, no valor de € 184,00 e de outro Abono, pago pela entidade patronal do RM, no valor de € 160,00.
f) A B, vivendo na Suíça, terá direito um seguro de saúde, o que terá um custo mensal de € 136,00.
g) A Requerente pretende que a relação do progenitor com a menor se faça de todas as formas.
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3- As Questões Enunciadas.
3.1- A Impugnação da Decisão Sobre a Matéria de Facto.
3.1.1- Incumprimento dos ónus relativos à impugnação da matéria de facto.
A apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto, mencionando no ponto 2 das suas Conclusões:
Nos termos do disposto nos arts. 662º n.º 1 e 640ºdo C.P.C., deverá esse Tribunal reapreciar a matéria de facto, substituindo as respostas dadas aos factos provados nos pontos 6 e 9 da fundamentação de facto e as alíneas a), b), e), f) e g) dos factos não provados, nos termos supra requeridos, e dando como provados os factos descritos no ponto 3 alíneas a) a i) da matéria de facto cuja a reapreciação se requereu supra.”
Nas contra-alegações, o apelado defende que a apelante incumpriu os ónus que o artº 640º do CPC lhe impõe relativamente à impugnação da matéria de facto.
Vejamos.
Importa ter presente que o artº 640º impõe ónus, a cargo do recorrente, quando pretenda impugnar a decisão relativa à matéria de facto.
Com efeito, estabelece esse preceito:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
Pois bem, do preceito decorre que o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve:
- Indicar os pontos concretos de facto que considera incorrectamente julgados, enunciando-os na alegação e sintetizando-os nas conclusões;
- Fundando-se a impugnação em meios de prova registados no processo, deve o recorrente especificar, na alegação, quais os meios de prova que, em seu entender determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- E, se a impugnação se funda, total ou parcialmente, em prova gravada, deve indicar, com exactidão, na alegação, as passagens da gravação relevantes e, facultativamente, proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;
- Indicar o sentido da decisão que, em seu entender, os pontos de factos devem ser decididos.
Lançando mão da lição de Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Processo Civil, 2016, 3ª edição) “A rejeição, total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a)- Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b)- Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c)- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
d)- Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e)- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” (pág. 142).
Aliás, é pacífico o entendimento jurisprudencial das Relações e do STJ no sentido de, nas conclusões de recurso, quando está em causa a impugnação da matéria de facto, deverem conter, sob pena de rejeição, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste, necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende (vejam-se, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/02/2010 (Fonseca Ramos); de 04/03/2015, (Leones Dantas); de 19/02/2015 (Tomé Gomes); de 12/05/2016, (Ana Luísa Geraldes); de 27/10/2016 (Ribeiro Cardoso); de 03/11/2016 (Gonçalves Rocha), todos em www.dgsi.pt).
Explicitando-se, no acórdão do STJ, de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes) que “…o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação.”
Ora, no caso dos autos, a apelante especifica, nas conclusões, os pontos de facto que pretende ver alterados e, especifica, na alegação, o sentido que, em seu entender, deve ser dado a esses pontos de facto e, especifica, na alegação, os meios de prova que, segundo ela, são aptos a suportar a decisão que sugere, indicando ainda os concretos pontos da prova gravada que pretende ver apreciados.
Assim, não nos aprece que ocorra motivo para rejeitar a impugnação da matéria de facto.
3.1.2- A desnecessidade da apreciação de toda a modificação da matéria de facto.
Apesar de, como vimos, não haver motivo para rejeitar o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, coloca-se a questão de saber se se justifica que sejam reapreciados todos os pontos de facto que a apelante pretender ver modificados. Pois bem, como bem se esclarece no acórdão da Relação de Guimarães (de 11/07/2017, Maria João Matos) “…por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavra, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10)” (Cf. ainda, entre outros o acórdão desta Relação, de 26/09/2019, Carlos Castelo Branco, www.dgsi.pt).
No caso dos autos, nem toda a factualidade que a apelante impugna tem relevância para a decisão jurídica da questão em apreço.
Assim, oportunamente, analisaremos os factos relevantes que foram impugnados, descorando a apreciação dos que não se mostram relevantes. Concretamente, como veremos, serão alterados os pontos a) e b) dos factos não provados.
***
3.2- A revogação da sentença com a concessão de autorização de a menor se deslocar para a Suíça para aí residir com a sua mãe.
A apelante pretende que seja autorizada a deslocação da menor para Lausanne, Suíça, para aí residir consigo.
O tribunal recorrido, indeferiu a pretensão, argumentando, em síntese, que a deslocação da menor para a Suíça, para aí residir com a mãe, não ser a solução que melhor salvaguarda os interesses da criança, por não ter ficado demonstrado que a mãe/apelante asseguraria todos os contactos da menor com o progenitor como, diz, tem sucedido em Portugal. Nem ter ficado demonstrado que o contrato de trabalho do marido da apelante, na Suíça, é renovável, nem que a menor tem vaga na escola ou no Conservatório de Música de Lausanne.
Vejamos então.
Como é sabido, a Lei 61/2008, de 31/10, introduziu alterações ao regime das responsabilidades parentais, estabelecendo, além do mais, como regra, a partilha por ambos os progenitores dos poderes decisórios relativos às questões cruciais da vida da criança tidas como de particular importância. Porém, não foi definido qualquer conceito do que sejam questões de particular importância nem indicados casos que permitam fazer luz sobre quais sejam essas questões de particular importância. Aliás, na Exposição de Motivos do Projecto de Lei 509/X, que esteve na base da Lei 61/2008, é dito que o exercício conjunto “…refere-se apenas aos actos de particular importância, a responsabilidade pelos actos da vida quotidiana cabe exclusivamente ao progenitor com quem o filho se encontra. Caberá à jurisprudência e à doutrina definir este âmbito…”.
Trata-se, pois, de conceito indeterminado.
A doutrina tem vindo a avançar com critérios delimitadores do que sejam questões de particular importância.
Assim, Helena Melo e outros (Poder Paternal e Responsabilidades Parentais, Quid Juris, 2009, pág. 136 e segs) referem que, as questões de particular importância correspondem ao “…conjunto dos actos de fundo que constituem traves mestras da vida da criança ou do adolescente e que compõem o núcleo essencial dos seus direitos…”.
Tomé Ramião (Divórcio e Questões Conexas, Quid Juris, 2009, pág. 147 e seg.) defende que as questões de particular importância deverão “…relacionar-se com questões existenciais graves, centrais e fundamentais para o seu desenvolvimento, segurança, saúde e formação da criança, todos os actos que se relacionem com o seu futuro, a avaliar em concreto e em função das circunstâncias….”. E aponta alguns exemplos, de entre eles, a saída do menor para o estrangeiro sem ser em viagem de turismo e quando acompanhado com um dos progenitores.
Helena Bolieiro/Paulo Guerra (A Criança e a Família – Uma Questão de Direito(s); Visão Prática dos Principais Institutos do Direito da Família e das Crianças e Jovens, Coimbra Editora, pág. 175 e seg.) mencionam, igualmente, como exemplo de questão de particular importância, a “…saída do filho para o estrangeiro, não em turismo mas em mudança de residência, com algum carácter duradouro…”.
Pensamos – aliás o legislador não o fez – que não é fácil dar uma definição de “questões de particular importância”. Parafraseando Erasmo (Adagiorum Chiliades) “Omnis definitio in iure periculosa est” (Em direito, toda a definição é perigosa).
O que seja uma questão de particular importância deve ser decidida atendendo ao caso concreto ponderando às necessidades particulares, características próprias, meio em que se insere, vivência e socialização por que tem passado a criança ou adolescente. No fundo, questões de particular importância são todas as situações com potencial para causarem impacto forte na vida da criança analisada sob o ponto de vista das diversas vertentes que a compõem: saúde física e psicológica, formação e socialização.
Pois bem, por natureza, à partida, a mudança de residência da criança para o estrangeiro, implica, em regra, repercussões para a vida da criança relacionadas com as dificuldades inerentes à aprendizagem de nova língua, à necessidade de fazer novos amigos, adaptação a nova escola em que se falará língua que pode ser desconhecida, com a consequente dificuldade a nível da aprendizagem e capacidade de acompanhar matérias leccionadas.
Mas essas dificuldades quanto à língua, adaptação à escola e ao meio geográfico e social tanto ocorrem se a mudança para o estrangeiro acontece na companhia de ambos os pais, como se for apenas acompanhando um deles. A diferença está em a mudança de residência para fora do país acontecer quando o menor acompanha apenas um dos progenitores e o outro não dá o seu acordo a essa mudança. Nessa situação de desacordo dos pais, a questão de mudança de residência para o estrangeiro torna-se questão de particular importância que importa resolver.
Note-se que no caso dos autos, os pais desavindos, na regulamentação das responsabilidades parentais que estabeleceram em 14/04/2016 elegeram como questão de particular importância “…a alteração de residência para o estrangeiro;”.
E como decidir?
Ora bem, havendo desacordo entre os progenitores acerca dessa questão de particular importância – a mudança de residência do menor para o estrangeiro acompanhando somente um dos progenitores – a decisão deve ser tomada tendo em conta o critério preponderante norteador da decisão judicial: o superior interesse da criança.
Trata-se de conceito jurídico indeterminado que tem um dupla funcionalidade: critério de controlo e critério de decisão.
Como critério de controlo, o superior interesse da criança permite vigiar o exercício das responsabilidades parentais, estabelecendo parâmetros da mínima intervenção do Estado em relação à família, legitimando-a apenas em casos de grave perigo para a saúde física e psíquica da criança como decorre, desde logo, dos artºs 36º nºs 5 e 6 e 69º nº 1 da CRP.
Como critério de decisão, usado em casos de conflitualidade, delimita a análise objectiva que orienta do juiz sobre qual a solução que, em cada caso e em cada momento, mais convém ao menor.
A análise, ponderação e decisão de qual seja, objectivamente, em cada caso, o interesse superior da criança, não pode passar por uma apreciação de todos os aspectos da vida desta e dos pais no sentido de tentar maximizar a sua felicidade. Essa análise da totalidade dos aspectos da vida do menor seria demasiado ampla, correndo o risco de desvirtuar o caso concreto e ser objectivamente e humanamente impossível. Dificilmente há situações ideais.
Ora bem, como critério de decisão, em caso de desacordo e conflitualidade dos pais, o superior interesse da criança deve fazer apelo ao conceito de progenitor psicológico, expressão que apela à situação de continuidade, no dia-a-dia, de interacção, companhia, acção recíproca e mútua e que preenche as necessidades psicológicas e físicas da criança e do progenitor (Clara Sottomayor, Exercício do Poder Paternal, 2003, pág. 78, nota 59, apud Joana Salazar Gomes, O Superior Interesse da Criança e as Novas Formas de Guarda, 2017, pág. 61, nota 173).
No caso dos autos, facilmente se depreende que a mãe, requerente, é o progenitor psicológico da menor: sempre viveu com ela, mesmo depois da separação dos progenitores, tendo sido a ela quem foi confiada a guarda da criança. Esta circunstância é, como se referiu relevante, enquanto elemento/critério de decisão, quanto à determinação do que constitui, no caso concreto, o que seja o superior interesse da criança: sem dúvida, que é do interesse superior da criança viver/residir com a mãe. Isso, não se discute nos autos.
Por outro lado, não há qualquer dúvida que este tribunal não pode impedir/dificultar a deslocação da mãe para a Suíça para se juntar ao seu actual companheiro. Uma decisão nesse sentido violaria o princípio da liberdade de deslocação e emigração estabelecido no artº 44º da CRP.
Portanto, e em jeito de 1ª conclusão: a mãe/requerente pode deslocar-se para a Suíça e ali estabelecer residência.
E o tribunal pode/deve autorizar que a menor acompanhe a mãe?
Vimos que a mãe é o progenitor psicológico da menor e concluímos (2ª conclusão) que é do seu superior interesse viver/residir com a mãe.
É evidente que a deslocação da menor para a Suíça constituirá factor de dificuldade ou perturbação no direito de visitas ao pai. Mas essas dificuldades ou perturbações não podem servir de fundamento para não autorizar a deslocação da menor para a Suíça. Como se referiu, definir o que é melhor para os interesses de uma criança não pode significar uma análise de todos os aspectos da vida desta e dos pais. E, no caso, apenas tem de ser ponderado e analisado o que é melhor para o interesse superior da criança: se permitir que acompanhe a sua mãe, progenitor de referência, para a Suíça ou proibir essa deslocação a pretexto de dificuldades no regime de visitas ao pai não guardião.
Como é evidente, a resposta passa por perceber que a problemática do regime de visitas, enquanto direito do pai, não é incompatível com a deslocação da menor para o estrangeiro: o regime de visitas terá de ser revisto e adaptado em função dessa mudança de residência da menor para outro país. Aliás, estão pendentes processos de modificação/alteração e de incumprimento do regime de visitas.
Em jeito de 3ª conclusão: o interesse da menor em acompanhar o progenitor de referência para passar a residir com ele na Suíça é preponderante e superior ao interesse de direito de visita ao pai com que não convive. Esse direito de visitas tem de ser adaptado a essa nova realidade.
Ora bem, como refere Clara Sottomayor (Exercício das Responsabilidades Parentais nos casos de Divórcio, 6ª edição, pág. 320, apud Clara Emanuel Coelho Silva Fernandes, O Exercício das Responsabilidades Parentais Quanto às Questões de Particular Importância, dissertação de mestrado, Coimbra 2019, edição online, pág. 47) “…em caso de desacordo do progenitor não residente, só poderá impugnar a decisão desde que prove que a deslocação provoca um perigo para a segurança, saúde, desenvolvimento ou educação da criança nos termos do artº 3º da LPCJP e do artº 1918º do CC.
No caso dos autos, não resulta provado que a deslocação da menor para o estrangeiro a fim de aí passar a residir com a sua mãe, progenitor de referência, acarreta perigo para o desenvolvimento, segurança e saúde da criança.
Apesar de o tribunal recorrido ter considerado como não provado que o contrato de trabalho do padrasto da menor é renovável até 2023, entendemos que esse facto deve ser considerado como provado face ao teor do documento 2 (com tradução a fls 17 verso) ao depoimento do padrasto da menor, RM e ainda conjugado com o documento junto com as alegações, do qual decorre que já aconteceu a primeira renovação do contrato até 30 de Abril de 2021. Esses meios de prova apreciados à luz das regras da experiência e da normalidade das coisas são de modo a permitir dar como provado o ponto a) dos factos não provados: O RM tem contrato renovável anualmente até 2023.
Quanto aos ponto b) dos factos não provados.
Igualmente face aos depoimentos de RM e da mãe da menor e ainda ao teor do documento junto com o requerimento inicial, resulta que no Cantão de Vaud a escola é obrigatória para as crianças, o que implica que tenha vaga na escola com direito a ter aulas de francês (folhas 22 a 35, mormente fls 26).
Por conseguinte, dá-se como provado que : A criança tem vaga em escola da Suíça e direito a aprender francês.
Toda a restante factualidade afigura-se-nos irrelevante para a decisão deste incidente. Poderá ser relevante para efeitos de alteração do direito de visitas, o que deve ser ponderado e decidido nos incidentes já instaurados em apensos já existentes para o efeito e no âmbito dos quais já se procedeu a diversas averiguações e produção de prova.
Como é evidente, a mãe terá de comunicar ao pai e informar nos competentes processos relativos à regulação das responsabilidades parentais qual a morada completa onde irá fixar a sua residência e informar a escola em que a menor se matricular.
Em suma: procede o recurso e autoriza-se que a menor acompanhe a sua mãe a residir na Suíça.
***
III-DECISÃO.
Em face do exposto, acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, autorizando a menor, B, a deslocar-se com a mãe para a Suíça e ali residir na companhia da mãe e a frequentar a Escola Primária e Secundária nesse país.
Custas: pelo recorrido.

Lisboa, 10/09/2020
Adeodato Brotas
Octávia Viegas
Maria de Deus Correia