Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8058/23.8T8LRS.L1-7
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APENSAÇÃO
INSTRUMENTALIDADE
ACÇÃO DEPENDENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: RESOLVIDO
Sumário: Não se verificando uma relação de instrumentalidade e dependência entre a presente providência cautelar e a ação de processo comum instaurada pelos requeridos, não deverá aquela, ser apensada a esta última, não sendo caso de consideração do disposto no artigo 364.º, n.º 3, do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. 1) Em 17-08-2023, o requerente veio requerer procedimento cautelar comum contra os requeridos, pedindo, nomeadamente, fosse decretada a imediata restituição da posse ao requerente do prédio misto que identificou, tendo indicado para a causa o valor de € 30.000,01;
2) Decidida a tramitação dos autos com prévio contraditório dos requeridos, estes deduziram oposição na qual deduziram incidente de impugnação do valor da causa, considerando que este deveria corresponder ao do valor do imóvel, devendo ser fixado à causa o valor de € 616.309,00;
3) Proporcionado o contraditório relativamente a tal questão, o requerente, por requerimento de 08-11-2023, veio informar que “aquando da elaboração e envio da petição inicial não quantificou os prejuízos que se pretendem acautelar, sendo certo que se pretende evitar a degradação e desvalorização do imóvel, por entender não se mostrar possível apurar todo o valor em causa. O que resultou na atribuição do valor indicado no requerimento inicial.
Contudo, caso o douto Tribunal entenda que o valor do procedimento deverá ser o valor patrimonial do imóvel e se venha a considerar incompetente para decidir da causa, desde já se requer que possa este douto Tribunal remeter os presentes autos para o tribunal competente”;
4) Em 27-11-2023, o Juízo Local Cível de Loures – Juiz “X”, a quem os autos tinham sido distribuídos, proferiu despacho a julgar procedente a impugnação do valor da causa e, em consequência, atribuindo à causa o valor de € 3.739.688,45 e julgando verificada a exceção de incompetência relativa em razão do valor, determinou a remessa dos autos aos Juízos Centrais Cíveis de Loures;
5) A requerida, em 10-01-2024, apresentou requerimento nos autos onde, nomeadamente, invocou o seguinte:
“(…) 13. Como o Requerente bem sabe encontra-se pendente acção em que Requerente e Requeridos disputam a propriedade e posse do imóvel objecto destes autos – trata-se da acção que corre sob o nº de processo (…)/21.7T8LRS do Juízo Central Cível de Loures – Juiz “Y”;
14. Ora dispõe o nº 3 do Artigo 364º do CPC que, requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a ação esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quando o procedimento estiver findo ou quando os autos da ação principal baixem à 1.ª instância;
15.A acção (…)/21.7T8LRS não está pendente de recurso e estava pendente quando os presentes autos foram instaurados, pelo que, é por Apenso aquela acção que estes autos devem ser tramitados e julgados.
16.Ocorrendo, por isso, a incompetência deste Mui Douto Tribunal para os presentes autos, o que igualmente se alega para todos os efeitos legais (…)”;
6) O requerente, por requerimento de 15-01-2024, pronunciou-se no sentido de não se encontrarem reunidos os pressupostos para a apensação da presente providência cautelar à ação declarativa indicada pela requerida;
7) Em 08-02-2024, o Juízo Central Cível de Loures – Juiz “Z" proferiu o seguinte despacho: “Corre termos, ao que decorre do requerimento apresentado nos autos, no Juízo Central Cível “Y” a ação comum Nº (…)/21.7T8LRS, entre as mesmas partes e referente ao imóvel dos autos, pelo que se determina a remessa da presente providencia àquele JCC “Y”, para apensação àquele processo, nos termos do disposto no art. 364º, nº3 do C.P.C. (…)”;
8) Em 14-02-2024, o Juízo Central Cível de Loures – Juiz “Y”, no processo n.º (…)/21.7T8LRS-G, emitiu o seguinte despacho:
“”A” e mulher, “B”, intentaram acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o Banco Comercial Português, SA, a que corresponde o número de processo (…)/21.7T8LRS, pedindo:
- seja a mesma julgada procedente, por provada, sendo reconhecido aos AA o direito de propriedade do prédio misto denominado Quinta da (…), sita na localidade do (…), da actual União das Freguesias de Santo Antão e São Julião do Tojal, concelho de Loures, com a área total de 462 061 m2, inscrito na matriz rústica sob o Artigo (…) da Secção (…) (PARTE) e nas matrizes urbanas sob os Artigos (…) da referida União de Freguesias, e descrito na (…)ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o número (…) da freguesia de S. Julião do Tojal, sendo os AA declarados como proprietários do mesmo, por terem a posse correspondente a esse direito sobre o imóvel de forma pública, pacifica e de boa fé há mais de 20 anos e por conseguinte o terem adquirido por usucapião, e a consequente condenação do R a reconhecer que os AA são donos e legítimos proprietários do referido prédio.
O Banco Comercial Português, SA, contestou a acção e deduziu o seguinte pedido reconvencional:
- «Seja julgado procedente, por provado, a Reconvenção deduzida pelo Réu e, consequentemente:
(i) Seja declarado que o ora Réu é o dono e legitimo proprietário do prédio misto denominado “Quinta da (…)”, com a área total de 462 061m2 sito no (…)l, na União das Freguesias de Santo Antão e S. Julião do Tojal, inscrito na matriz rústica sob o art. (…) – Secção (…) (parte) e nas matrizes urbanas sob os artigos (…), descrito na (…)ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº (…) da freguesia de S. Julião do Tojal;
(ii) Sejam os ora AA condenados a reconhecer o direito de propriedade sobre o referido prédio misto e, consequentemente, a proceder á sua entrega devoluta de pessoas e bens;
 (iii) Sejam os ora AA condenados a proceder ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) por cada mês de atraso na restituição do referido bem imóvel, a contar da data do trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida até à sua efectiva restituição.
Nos autos de procedimento cautelar ordenados remeter para apensação, o Banco Comercial Português, SA, pede:
- Seja decretada a imediata restituição da posse ao requerente do prédio misto objeto dos presentes autos; (…)
- Após decretar a providência não especificada, a dispensa da instauração da ação principal por parte do ora Requerente, nos termos do disposto no artigo 369.º do CPC.
As partes e o prédio (Quinta da (…)) coincidem.
Porém, na acção declarativa intentada pelos aqui requeridos, na sequência de procedimento cautelar que requereram e que lhe está apenso – primeiro com deferimento e decretamento da providência e posteriormente com a sua revogação -, visa-se o reconhecimento do direito de propriedade: por aquisição originária, por parte dos ali autores, contra o que enxerta o ali réu e aqui requente Banco, acção de reivindicação da propriedade, com pedido de reconhecimento de aquisição derivada do direito de propriedade.
No procedimento cautelar remetido para apensação, discute-se a posse do prédio. Pede-se a restituição da posse e a inversão do contencioso, dispensando-se a parte de intentar a acção possessória correspondente. A acção possessória não se confunde com a acção pendente em que se discute o direito de propriedade e a sua aquisição originária ou derivada – vd. arts. 1278º e 1311º, do Cód. Civil.
Inexiste conexão processual entre o procedimento cautelar – dito não especificado, mas em que se invoca o esbulho e se pede a restituição da posse – e a acção que corre termos com o nº (…)/21.7T8LRS.
Estabelece o art. 364º, nº3, do Cód. de Proc. Civil, referente à relação entre o procedimento cautelar e a acção que «Requerido no decurso da acção, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso (…)».
Mas, como enunciado, o procedimento cautelar remetido não se pode considerar requerido no decurso da acção: basta atentar que, se julgado procedente, se impõe a instauração da acção possessória correspondente.
Posto o que, não é este o tribunal competente para a apreciação e decisão do procedimento cautelar em apreço, cuja devolução, em consequência, se determina”;
9) Devolvidos os autos, em 20-02-2024, o Juízo Central Cível de Loures – Juiz “Z”, proferiu nos presentes autos, o seguinte despacho:
“Compulsados os autos de processo comum (…)/21.7T8LRS que corre termos no Juizo central cível deste tribunal constata-se que “A” e mulher, “B”, intentaram acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o Banco Comercial Português, SA, pedindo:
- seja a mesma julgada procedente, por provada, sendo reconhecido aos AA o direito de propriedade do prédio misto denominado Quinta da (…), sita na localidade do (…), da actual União das Freguesias de Santo Antão e São Julião do Tojal, concelho de Loures, com a área total de 462 061 m2, inscrito na matriz rústica sob o Artigo (…) da Secção (…) (PARTE) e nas matrizes urbanas sob os Artigos (…) da referida União de Freguesias, e descrito na (…)ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o número (…) da freguesia de S. Julião do Tojal, sendo os AA declarados como proprietários do mesmo, por terem a posse correspondente a esse direito sobre o imóvel de forma pública, pacifica e de boa fé há mais de 20 anos e por conseguinte o terem adquirido por usucapião, e a consequente condenação do R a reconhecer que os AA são donos e legítimos proprietários do referido prédio.
Por seu turno, o Banco ali Ré, deduziu reconvenção na qual peticionou:
- «Seja julgado procedente, por provado, a Reconvenção deduzida pelo Réu e, consequentemente:
(i) Seja declarado que o ora Réu é o dono e legitimo proprietário do prédio misto denominado “Quinta da (…)”, com a área total de 462 061m2 sito no (…), na União das Freguesias de Santo Antão e S. Julião do Tojal, inscrito na matriz rústica sob o art. (…) – Secção (…) (parte) e nas matrizes urbanas sob os artigos (…), descrito na (…)ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº (…) da freguesia de S. Julião do Tojal;
(ii) Sejam os ora AA condenados a reconhecer o direito de propriedade sobre o referido prédio misto e, consequentemente, a proceder á sua entrega devoluta de pessoas e bens;
(iii) Sejam os ora AA condenados a proceder ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) por cada mês de atraso na restituição do referido bem imóvel, a contar da data do trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida até à sua efectiva restituição.
Nos presentes autos de procedimento cautelar ordenados remeter para apensação, o Banco Comercial Português, SA, pede:
- Seja decretada a imediata restituição da posse ao requerente do prédio misto objeto dos presentes autos; (…)
- Após decretar a providência não especificada, a dispensa da instauração da ação principal por parte do ora Requerente, nos termos do disposto no artigo 369.º do CPC.
As partes e o prédio (Quinta da (…)) coincidem sendo certo que, a posse do Banco que serve de fundamento à providência cautelar funda-se, precisamente, na aquisição originária do direito de propriedade isto porque, o Banco ( apesar de proprietário registado e inscrito) não está na posse de facto do imóvel porque “os possuidores” (AA no processo acima mencionado) se recusam a entregar o imóvel.
No procedimento cautelar remetido para apensação, discute-se não apenas a posse do prédio”tout court” mas a posse que resulta presumida do direito de propriedade.
E se é certo que a acção possessória não se confunde com a acção pendente em que se discute o direito de propriedade, a verdade é que o fundamento da posse é a sua aquisição originária ou derivada – vd. arts. 1278º e 1311º, do Cód. Civil e que irá precisamente ser apreciada pelo Juiz do processo (…)/21.7T8LRS.
Estabelece o art. 364º, nº3, do Cód. de Proc. Civil, referente à relação entre o procedimento cautelar e a acção que «Requerido no decurso da acção, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso (…)». Sendo evidente que, o espírito do legislador é o de evitar a duplicação de apreciações jurisdicionais ( com o risco da contradição de julgados) sobre os mesmos factos materiais e quando estão em causa pretensões semelhantes. Na verdade, a ação de reivindicação tem um duplo escopo: o reconhecimento do direito de propriedade a entrega do bem ( pelo que, consome o pretendido pela ação de mera restituição da posse).
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Razão pela qual se determina a remessa à procedência para apensação, reiterando-se o despacho já proferido anteriormente.”;
10) Por despacho de 21-03-2024, foi suscitada a resolução do conflito negativo de competência.
11) Os autos foram continuados com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que, por promoção de 07-04-2024, formulou entendimento de que “existe uma conexão de processos e como tal verificam os pressupostos da apensação de processos… dado que “a ação de reivindicação tem um duplo escopo: o reconhecimento do direito de propriedade e a entrega do bem (pelo que, consome o pretendido pela ação de mera restituição da posse)”, concluindo que, o juiz “Y” do Juízo Central Cível de Loures é o competente para tramitar e conhecer da providência cautelar n.º (…)/23.8T8LRS.
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II. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC).
Por seu turno, o artigo 205.º, n.º 2, do CPC estabelece que, as divergências resultantes da distribuição que se suscitem entre juízes da mesma comarca sobre a designação do juiz em que o processo há de correr, são resolvidas pelo presidente do tribunal de comarca, observando-se processo semelhante ao estabelecido nos artigos 111.º e ss. do CPC.
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III. Cumpre, antes de mais, salientar que, perante o declarado em 14-02-2024 e em 21-03-2024, uma vez que, dois juízes declinaram competência para a tramitação do processo, estando ambas as decisões passadas em julgado, afigura-se, em consequência, existir conflito de competência que carece de ser dirimido.
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IV. Para a resolução do presente conflito, mostram-se pertinentes os seguintes factos:
1) Nos presentes autos de procedimento cautelar, instaurados em 17-08-2023, pede o requerente:
“a) Seja decretada a imediata restituição da posse ao requerente do prédio misto objeto dos presentes autos; (…)
c) Após decretar a providência não especificada, a dispensa da instauração da ação principal por parte do ora Requerente, nos termos do disposto no artigo 369.º do CPC”.
2) Os ora requeridos intentaram ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra o ora requerente, a que corresponde o número de processo (…)/21.7T8LRS, pedindo:
- O reconhecimento aos ali autores do direito de propriedade do prédio misto (aquele a que se referem os presentes autos) e declarados como proprietários do mesmo, por terem a posse correspondente a esse direito sobre o imóvel de forma pública, pacifica e de boa fé há mais de 20 anos e por conseguinte o terem adquirido por usucapião, e a consequente condenação do R a reconhecer que os AA são donos e legítimos proprietários do referido prédio.
3) No mencionado processo n.º (…)/21.7T8LRS, o ali réu (ora requerente) contestou a ação e deduziu o seguinte pedido reconvencional:
“Seja julgado procedente, por provado, a Reconvenção deduzida pelo Réu e, consequentemente:
(i) Seja declarado que o ora Réu é o dono e legitimo proprietário do prédio misto denominado “Quinta da (…)”, com a área total de 462 061m2 sito no (…), na União das Freguesias de Santo Antão e S. Julião do Tojal, inscrito na matriz rústica sob o art. (…) – Secção (…) (parte) e nas matrizes urbanas sob os artigos (…), descrito na (…)ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº (…) da freguesia de S. Julião do Tojal;
(ii) Sejam os ora AA condenados a reconhecer o direito de propriedade sobre o referido prédio misto e, consequentemente, a proceder á sua entrega devoluta de pessoas e bens;
 (iii) Sejam os ora AA condenados a proceder ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) por cada mês de atraso na restituição do referido bem imóvel, a contar da data do trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida até à sua efectiva restituição”.
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V. Conhecendo.
Está em questão saber se o presente procedimento cautelar comum deve, ou não, ser objeto de apensação a ação declarativa, de processo comum, instaurada pelos ora requeridos.
“Os procedimentos cautelares representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumária (summaria cognitio) da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito (fumus boni iuris) e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afetado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (periculum in mora). Constituem meios jurisdicionalizados, expeditos e eficazes que permitem assegurar os resultados práticos da ação, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização do direito” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 457).
Assim, requerida que seja uma providência cautelar comum, “o julgador terá de efectuar o seguinte percurso: 1) Identificar o direito que o requerente da providência pretende acautelar; 2) Determinar se a demora - inevitável - na resolução definitiva do litígio comporta algum perigo para o direito do requerente; 3) Em caso de resposta afirmativa, determinar se esse perigo, a concretizar-se, é de caracterizar, em relação ao direito, como lesão grave e de difícil reparação” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-07-2019, P.º 1234/18.7T8CVL.C1, rel. EMÍDIO SANTOS).
Os procedimentos cautelares apresentam, em regra, um caráter instrumental e dependente (ou subordinado) relativamente à ação destinada a tutelar, em definitivo, o direito invocado pelo requerente (cfr., Marco Filipe Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, Almedina, 3.ª ed., 2017, p. 117).
Assim, exceto se for decretada a inversão do contencioso (cfr. artigo 369.º do CPC), os procedimentos cautelares estão na dependência de uma ação (declarativa ou executiva), em que o autor pretende fazer valer o seu direito ou interesse tutelado.
Nesse sentido, sobre a relação entre “o procedimento cautelar e a ação principal”, dispõem os n.ºs. 1 a 3 do artigo 364.º do CPC que:
“1 - Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
2 - Requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a ação seja instaurada e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa.
3 - Requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a ação esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quando o procedimento estiver findo ou quando os autos da ação principal baixem à 1.ª instância (…)”.
“O carácter instrumental do procedimento cautelar (face à ação principal de que depende) significa que este é um instrumento ao serviço da ação judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respetiva decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2020, Pº 5977/14.6T8VNF-C.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES).
Ou seja: Atenta a sua natureza instrumental relativamente ao processo principal, os procedimentos cautelares não se propõem realizar, de forma direta e principal, o direito material, mas apenas conseguir que o processo principal atinja o seu objetivo, qual seja, o de regular, de forma eficaz e definitiva, o litígio (cfr., Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. I, 2ª ed., Almedina, p. 203).
Corolário da função instrumental dos procedimentos cautelares é, pois, a dependência dos mesmos relativamente à ação principal de que dependam, pelo que, em princípio, existe uma relação de interconexão ou de dependência entre o procedimento cautelar e a ação principal, que se estende aos próprios efeitos (sendo que, conforme decorre do disposto no artigo 373.º do CPC, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca, nos casos em que não seja obtido um resultado favorável no processo principal, na falta de propositura da ação principal, na improcedência desta ou devido à própria extinção do direito que se pretendia fazer valer).
O nascimento, a vida e a morte da providência cautelar estão, pois, dependentes do processo do qual são preliminar/incidente, na medida em que é nele que encontram a razão da sua existência, refletindo-se nelas as vicissitudes da tutela a encontrar no “processo-mãe” e, também, como consequência da sua função instrumental, as providências cautelares são meramente provisórias, tendo uma duração, apesar de incerta, limitada no tempo (cfr., João Cura Mariano, A Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória, 2ª ed., Almedina, p. 24 e ss.).
Assim, à tutela provisória ou transitória, por natureza, há-de corresponder uma tutela definitiva do direito de que o requerente se arroga, sendo, pois, em face da respetiva contraposição que se alcança a relação de instrumentalidade entre ambos os meios processuais.
Assim, dependência e provisoriedade são caraterísticas imperativas da função instrumental da providência cautelar.
Os requisitos da instrumentalidade são subjetivos e objetivos. Subjetivamente, exige-se que exista identidade de parte sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. Objetivamente, exige-se, em primeiro lugar, que a ação principal tenha por fundamento o direito acautelado.
“Ou seja, através da acção principal deve procurar-se tutela para o mesmo direito que se pretendeu preservar via cautelar” (assim, Rita Lynce de Faria; A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, 2003, p. 97).
Importa ainda sublinhar que, a apensação a que alude o artigo 364.º do CPC “constitui uma apensação vinculada, no sentido de que não depende de qualquer requerimento ou critério de oportunidade, mas que resulta de a lei só conferir competência ao juiz que for titular da causa principal, quando esta já se encontra pendente.
“Portanto, constatada a pendência da causa que regula a tutela definitiva do direito, impõe-se ao juiz da providência que com aquela coincida, que a remeta ao primeiro para apensação.
De resto, tal apensação só pode ser recusada pelo magistrado da lide definitiva com fundamento na não verificação da correspondência entre a tutela definitiva do direito e a que se pretende com a da providência cautelar” (assim, decisão da Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-05-2020, Pº 622/19.6T8BRG-C.G1, consultada em: https://www.trg.pt/gallery/622%2019.6T8BRG-C.G1-Embarg%20Obra-Reivindic-%2028-5-2020.pdf).
No caso, a presente providência cautelar foi requerida quando já pendia entre as partes a ação comum com o n.º 885.
Todavia, o Juiz “Y” e o Juiz “Z” do Juízo Central Cível de Loures divergem sobre se a providência cautelar é instrumental (dependente) daquela ação.
Assim, o Juiz “Y” considera que, na ação declarativa intentada pelos ora requeridos visa-se o reconhecimento do direito de propriedade, por aquisição originária, por parte dos ali autores (enxertando o ali réu e ora requerente, acção de reivindicação da propriedade, com pedido de reconhecimento de aquisição derivada do direito de propriedade) enquanto que, no presente procedimento cautelar, discute-se a posse do prédio, pedindo-se a restituição da posse e a inversão do contencioso, com dispensa de instauração da ação possessória correspondente, concluindo inexistir conexão processual entre o procedimento cautelar e a ação nº (…)/21.7T8LRS.
Por seu turno, o Juiz “Z” entende que a posse do Banco que serve de fundamento à providência cautelar se funda na aquisição originária do direito de propriedade e nele discute-se a posse que resulta presumida do direito de propriedade, sendo que, se é certo que a ação possessória não se confunde com a ação pendente em que se discute o direito de propriedade, a verdade é que o fundamento da posse é a sua aquisição originária ou derivada e que irá precisamente ser apreciada pelo Juiz do processo (…)/21.7T8LRS, entendendo que a providência deverá ser apensada a tal ação.
Ora, parece-nos inequívoco que a presente providência – embora requerida em momento temporal em que já pendia, entre as mesmas partes, a ação com o n.º (…)/21.7T8LRS – de natureza possessória, não se inscreve no mesmo objeto de tutela – real - pretendida no mencionado processo comum n.º (…)/21.7T8LRS.
De facto, a ação de reconhecimento do direito de propriedade por usucapião, intentada pelos ora requeridos, não se inscreve no âmbito da tutela possessória (provisória) visada com a presente providência cautelar, por implicar o conhecimento sobre a existência da aquisição originária do direito de propriedade, pela usucapião invocada.
Conforme se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2008 (Pº 2792/06.4TBVIS.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA), “nas acções de reivindicação e nas acções de restituição de posse as respectivas causas de pedir e os respectivos pedidos não são (rigorosamente) coincidentes, muito embora possam, por vezes, na prática, confundir-se, nomeadamente quando na acção de reivindicação se invoca a posse conducente à aquisição originária do direito de propriedade (cujo reconhecimento é ali reclamado) por via do titulo da usucapião, e quando nas acções de restituição de posse se pede, a final, a efectiva entrega do bem de cuja posse se foi esbulhado ou privado, entrega ou restituição essa que constitui precisamente um dos pedidos que integram e caracterizam as acções de reivindicação”.
É certo que, nos presentes autos de providência cautelar, tendo sido requerida pelo ora requerente a inversão do contencioso, importará apreciar, oportunamente, se deve dispensar-se o requerente do ónus de propositura da ação principal, ou seja, deverá o Tribunal aquilatar se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito (possessório) pretendido acautelar e se a natureza da providência decretada é adequada a realizar a composição definitiva do litígio (cfr. artigo 369.º, n.º 1, do CPC), mas, tal aferição, não transmuta o âmbito da tutela possessória visada pelo requerente, nem altera a circunstância de, no âmbito da ação com o n.º 885, o ora requerente – e ali reconvinte – ter pedido o reconhecimento de propriedade sobre o prédio e a condenação dos aí autores a reconhecerem tal direito e a procederem à sua entrega.
A tutela visada pelo requerente da presente providência nos presentes autos, embora se refira ao mesmo objeto material – o prédio misto em questão em ambos os meios processuais - não corresponde à tutela definitiva visada pelos autores do processo n.º º (…)/21.7T8LRS, mesmo considerando a pretensão reconvencional aí deduzida, não se podendo considerar que existe uma relação de instrumentalidade e dependência entre a providência cautelar e a ação comum com o n.º º (…)/21.7T8LRS.
De facto, como se disse, as providências cautelares estão necessariamente dependentes de uma ação já pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva, finalidade que, considerando o diverso objeto da presente providência e o da lide em causa na ação de processo n.º (…)/21.7T8LRS, não se verifica entre ambos os processos.
Poderá ter lugar, é certo, porventura, a consideração de uma relação de prejudicialidade (que ocorre quando, “entre duas ações (…) a decisão ou julgamento de uma ação – a dependente – é atacada ou afetada pela decisão ou julgamento noutra – a prejudicial” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-07-2022, Pº 803/21.2T8CSC-A.L1-2, rel. JORGE LEAL) entre as causas, mas tal, é questão diversa da verificação dos pressupostos que justificam a apensação.
Ou seja: Não se verificando uma relação de instrumentalidade e dependência entre a presente providência cautelar e a ação de processo comum com o n.º (…)/21.7T8LRS, não deverá aquela, ser apensada a esta última, não sendo caso de consideração do disposto no artigo 364.º, n.º 3, do CPC.
Assim, a competência para a apreciação da presente providência cautelar radica no Juízo Central Cível de Loures – Juiz “Z”, onde deverá prosseguir os seus termos.
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VI. Pelo exposto, decido este conflito, declarando competente para a tramitação do presente procedimento cautelar, o Juízo Central Cível de Loures – Juiz “Z”.
Notifique, nos termos do disposto no nº. 3 do artigo 113.º do CPC.
Sem custas.
Baixem os autos.

Lisboa, 09-04-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).