Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
571/18.5T8MFR.L1-8
Relator: ISOLETA COSTA
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL
TRANSPORTE TERRESTRE
CONVENÇÃO CMR
RESPONSABILIDADE CIVIL OBRIGACIONAL
VALOR DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) Num contrato de transporte internacional de mercadoria por terra com início em Portugal e destino Espanha a legislação aplicável é a CMR, transposta para o direito interno pelo DL 46.235 de 18 de maio de 1956.
II) Nos termos do artigo 562º a 564º  do CC o valor da indemnização a atribuir, pelo dano causado pela mercadoria extraviada, mesmo sendo usada,  é o equivalente ao custo da mercadoria em nova.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes  da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

E lda, veio intentar e fazer seguir acção declarativa de condenação com processo comum, contra CTT Exp. S.P.L. S.A., ambas, com os sinais dos autos, peticionando a sua condenação no pagamento do valor 5.421,06 €, acrescido de juros de mora vincendos, contabilizados desde a citação até efectivo integral pagamento.
Para tanto, alega ter celebrado com a demandada um contrato de prestação de serviços de transporte internacional de mercadorias por estrada, que melhor identifica nos autos, mediante o qual esta obrigou-se, a sua solicitação, a realizar o transporte de um equipamento que descreve, sendo que, o referido equipamento nunca foi entregue ao destinatário, tendo desaparecido.
Sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que elenca no valor da quantia peticionada.
A  R. aceitou o extravio da mercadoria transportada e no mais contestou a ação.
A sentença declarou assentes os seguintes factos:
1. A A. é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de manutenção, reparação, assistência técnica e equipamentos industriais, entre o demais;
2. A R. é uma sociedade comercial que desenvolve a sua actividade  também no sector de transporte de mercadorias, entre outros;
3. A A. solicitou à R., a 20.02.2018, o envio de uma encomenda para Espanha, por via terrestre, entregue no posto da R. na Igreja Nova – Mafra, contra o pagamento de 22,80 €;
4. A fls. 10, encontra-se documento designado guia de transporte, constando do mesmo que o conteúdo da encomenda referida em C. era o de placas electrónicas, com o peso de 11,768 Kg, devendo ser entregue no dia seguinte na morada de Espanha aí aposta;
5. A encomenda em apreço extraviou-se durante o transporte;
6. O número telefónico 707200118, de valor acrescentado, é o da linha da R. referente a estas encomendas;
7. O volume referido em 4. e 5. continha placas electrónicas de empilhador no valor de 3.078,71 €, que a A. pagou como preço de outros que adquiriu para substituir os extraviados;
8. Por virtude do extravio da encomenda, e perante o facto de ter a A. de entregar ao Município de Mafra a máquina a que pertenciam as placas e que havia vendido a esta entidade, teve de colocar à disposição do respectivo município um empilhador;
9. Na sequência da informação que a encomenda não chegou ao destinatário, a A. telefonou mais de 15 vezes para o número referido em 6., entre os dias 23.02. e 07.03.2018, no que gastou à volta de 90,00€;
B) Com interesse para a decisão da causa, não se apurou a seguinte factualidade:
10. O empilhador referido em 8. foi alugado pela A. para o efeito pelo valor diário de 45,00 €, acrescido de IVA à taxa de 23%, durante 13 dias;
11. Na sequência da informação que a encomenda não chegou ao destinatário, a A. telefonou mais de 15 vezes para o número referido em 6., entre os dias 23.02. e 07.03.2018, no que gastou 100,00€;
12. A A. é fornecedora de empilhadores e sua reparação ao Município de Mafra, a quem tinha vendido o empilhador em apreço nos autos;
13. Na sequência do desaparecimento da encomenda dos autos, a A. viu-se obrigada a dar explicações ao seu cliente a fim de evitar que este não desse o negócio sem efeito e bem assim a proceder nos termos descritos em 8.;
14. O que gerou desconfiança no seu cliente, tendo a A. visto na contingência de apresentar a documentação de troca de mails com a R. e reclamação no Livro de Reclamações de modo a explicar toda a situação e de modo a evitar o desfecho referido em 13.?;
15. E do que resultou que o cliente ficasse com uma imagem negativa da A..
 A sentença aplicou o regime da CMR á matéria de facto e julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condenou a R. a pagar à A. a quantia de 3.168,71 € (três mil cento e sessenta e oito euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal contabilizados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Desta sentença apelou a Ré que lavrou as seguintes conclusões em síntese :
(...)
D. Não se pode a Recorrente conformar com a sentença proferida pelo Tribunal a quo.
E. Vem o Tribunal a quo dar como provado, no ponto 7, que a mercadoria extraviada continha “placas eletrónicas de empilhador no valor de 3.078,71, que a A. pagou como preço de outros que adquiriu para substituir os extraviados”, o que não se pode conceber.
F. As peças enviadas e extraviadas eram peças usadas para arranjo, que se desconhece se efetivamente tinham concerto.
G. Sendo que as peças que a A. alegadamente adquiriu e cuja factura juntou aos autos eram peças novas.
H. Pelo que não pode o Tribunal a quo afirmar e dar como provado que o valor da mercadoria extraviada era de 3.078,71€, como o fez.
I. De igual forma, no ponto 9 dos factos provados, deu o Tribunal a quo como provado que a “A. telefonou mais de 15 vezes para o número referido em 6., entre os dias 23.02 e 07.03.2018, no que gastou à volta de 90,00€.
J. Fundamentando tal decisão nas declarações da única testemunha apresentada pela A.
K. Tais factos são provados através de documentos, nomeadamente de extractos das facturas de telecomunicações,
L. O que a A. não fez, não tendo juntado qualquer documento que ateste ter tido de despender qualquer quantia com chamadas telefónicas.
M. O Tribunal a quo não apreciou a prova testemunhal apresentada pela R.
N. A Ré arrolou três testemunhas que prestaram depoimento, alegando ter sido desenvolvidos pela Ré todos os esforços de localização da encomenda com os seus parceiros em Espanha.
O. E que a encomenda após ter sido assumido o extravio foi localizada, tendo a A. optado por não a levantar,
P. O que foi inclusivamente frisado em sede de alegações finais.
Q. Pelo que ficou demonstrado que a R. tudo fez para localizar a encomenda extraviada e que o seu extravio pode ter sido resultado do descolamento da guia de transporte.
R. Não poderá o Tribunal a quo vir dar como fundamento do afastamento dos limites indemnizatórios constantes do artigo 23.º e ss da Convenção CMR o facto da R. não ter demonstrado qualquer factualidade que a desobrigasse da responsabilidade emergente do incumprimento contratual em que incorreu.
S. Menos ainda que o extravio foi resultado de um elevado grau de incúria no cumprimento da prestação de serviços e que não logrou a R. uma explicação para o sucedido.
T. E que o mesmo possa ser qualificável como culpa grave e, como tal, equiparável ao dolo,
U. E, como tal, ser causa de afastamento das limitações indemnizatórias previstas na Convenção CMR.
V. Assim, a Recorrente alegou factos que se encontram controvertidos e que não foram apreciados, apesar de serem relevantes para a decisão da causa.
W. Ora, o art.º 615º, n.º 1, d), do C. P. Civil, dispõe que a sentença é nula quando deixe de apreciar sobre questões que devesse apreciar vício de que sofre a sentença.
A recorrida respondeu a sustentar o  acerto da sentença.
Objecto do recurso:
São as conclusões que delimitam o âmbito da matéria a conhecer sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
 O recurso coloca como questões a decidir
a- Impugnação da matéria de facto referente aos pontos 7 e 9 da sentença.
b- Nulidade da sentença por omissão
c- Regime legal aplicável aos fundamentos da causa.
Conhecendo:
Fundamentação de facto:
Dá-se aqui por reproduzida a factualidade supra.
Fundamentação de direito:
Do recurso da Impugnação da matéria de facto:
No que respeita ao ponto 7º da matéria de facto a recorrente não, impugna propriamente a factualidade assente, já que não discute que a Autora tenha adquirido uma mercadoria para substituir a anterior extraviada no valor fixado na sentença.
A redacção dada pelo tribunal ao facto, explicita o valor da mercadoria transportada por referência ao valor da mercadoria nova- prejuízo- sendo certo que no mais, isto é, saber se tal prejuízo é em concreto indemnizável é uma valoração jurídica e prende-se com os critérios da indemnização, constantes do artigo 562º e ss do CC.
Não se trata aqui de uma verdadeira impugnação da matéria de facto, atento a que (e talvez por isso) a apelante, nem cumpriu aqui o ónus processual de dizer qual a decisão que deve ser proferida em substituição da impugnada (artigo 640 nº 1 c) do CPC 
Pelo que carece de razão a apelante.
Quanto ao ponto 9º da sentença, vem a apelante sustentar que se trata de facto a provar através das facturas telefónicas
Ora bem,
No processo civil, este facto é de livre apreciação, não estando sujeito a prova especial, pelo que o juiz decide sobre o mesmo de acordo com o artigo 607º nº 5 do CPC, sendo que a fatura é um documento contabilístico, não essencial para efeitos de prova do facto a que respeita. Cabe ao Tribunal decidir na sua falta se a prova efectuada é suficiente para declarar o facto provado.
A apelante não diz quais concretamente os depoimentos testemunhais apresentados por si que não foram valorados, e em que é que não foram valorados e porque deveriam ser valorados e em que sentido, também aqui incumprindo o disposto no artigo 640 nº1 b) do CPC
Vai por isso desatendido este segmento da apelação
Da nulidade da sentença, por omissão:
Sustenta a apelante que a encomenda após ter sido assumido o extravio foi localizada tendo a A optado por não a levantar, o que foi declarado pelas testemunhas em julgamento e frisado nas alegações, sendo que tal constitui violação do artigo 615 d) do CPC
Carece de absoluta falta de razão.
O tribunal conhece dos factos do processo que lhe são presentes através dos meios processuais próprios –articulados, artigos 546º e 552º e 573º nº 1 todos do CPC (salvo nas circunstancias próprias os factos instrumentais).
Nem as alegações nem os depoimentos das testemunhas constituem essa forma de aquisição processual,   sendo que estes últimos são meros meios de prova.
Sendo um facto novo não instrumental – nunca poderia ser valorado ou atendido, pelo tribunal nos termos em que é requerido, pois. –vde o artigo 573º do CPC
Não se identifica por isso qualquer omissão de pronuncia in casu.
Por isso improcede naturalmente a apelação também aqui.
Quanto à impugnação de direito
Do regime legal aplicável ao caso dos autos:
A recorrente vem sustentar, de forma incongruente, a inaplicabilidade do regime da CMR transposta para o direito interno pelo DL 46.235 de 18 de maio de 1956,  ao caso dos autos, para depois alegar que em face dos factos provados seria de aplicar os limites estabelecidos na convenção uma vez que deve entender-se que a ré agiu sem culpa grave.
Com prejuízo da incongruência, também aqui e no que respeita à não aplicação da CMR, discordamos da apelante.
A Ré é uma empresa de prestação de serviço de transporte de mercadorias conforme consta do documento contratual constante do site ctt ponto 1º ctt/pt/transversais/condições-gerais-transporte-encomendas-expresso.
Nas palavras de Cunha Gonçalves Comentário ao Código Comercial Português 2º vol. 594 contrato de transporte é o que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir uma pessoa “ou as suas cousas” de um lugar para outro e aquele que por um determinado preço, se encarrega dessa condução. E na Rev. Dos Trib ano 87-147 vem este mesmo contrato definido como “aquele que tem por objeto característico a obrigação do transportador,  que consiste em deslocar, com segurança e exactidão, pessoas, animais, bagagens e mercadorias”.    
De resto, tanto as partes como o Tribunal recorrido, estão de acordo com a classificação jurídica do contrato dos autos.
O que a apelante discorda é da aplicação do regime legal da CMR.. Não diz todavia qual o regime aplicável.
Ora, os factos dos autos constantes dos pontos 1 a 4 permitem efectivamente qualificar o contrato sub iudice como de transporte internacional de mercadorias por estrada a legislação aplicável é precisamente a CMR,  já que o transporte da mercadoria, foi contratado por terra com início em Portugal e destinou-se a Espanha .Na verdade, destinando-se o objecto dos autos a Espanha, trata-se de um transporte internacional e expressamente previsto e regulamentado na sua  execução no referido diploma.
Discorda ainda da imputação da responsabilidade a titulo de culpa grave, para efeitos de afastamento dos limites indemnizatórios constantes do artigo 23º nº3 e 29º nº1 da Convenção, como feito na sentença.
Diz que alegou factos que afastam essa previsão.
Não diz quais os factos alegados.
Por outro lado a sentença fundamenta, no que secundamos, o afastamento dos limites indemnizatórios, como vai citado : Ora, encontra-se demonstrado nos autos, nomeadamente da conjugação de 3. e 5. do julgamento de facto, que, pese embora por si recolhido, o volume a transportar pela R. desapareceu in itinere. Quais as concretas circunstâncias em que tal extravio ocorreu são integralmente desconhecidas; mas a verdade é que é de custódia o primeiro dever de qualquer transportador, razão pela qual afigura-se a este Tribunal que a circunstância apurada de que o extravio revela um elevado grau de incúria no cumprimento desse dever que se inscreve na esfera jurídica de entidades que se dispõem profissionalmente a realizar a deslocação geográfica de bens. Na verdade, não se consegue perceber não só como tal extravio aconteceu, e muito menos que não logre a própria R. aventar uma explicação para o sucedido; ou que não se tenha rodeado das medidas necessárias a que, salvo motivo de força maior e imponderável, tal não se verificasse.
E apesar de não poder ser a falta considerada dolosa por ausência nos autos factualidade na qual se possa respaldar a intencionalidade que inere a este título de imputação, não se pode deixar de qualificar como grave. (…)A culpa grave, sabemo-lo, é, em princípio, equiparável ao dolo ou má-fé. É-o no sentido de que, se a lei na sua letra só der relevância ao dolo ou à má-fé, a sua estatuição deverá considerar-se extensiva à culpa grave, salvo sem em relação a determinado preceito legal houver razões ponderosas para entendimento contrário.
Portanto, também aqui, carece de razão a apelante.
Finalmente no que respeita ao valor da indemnização.
Teve este em conta o direito ressarcitório que vem estipulado no artigo 562º do CC ou seja, a reconstituição da situação em que a A se encontrava não fosse a lesão, o que equivale ao montante necessário para adquirir equipamento equivalente e bem assim ao montante das despesas efectuadas, por causa dos factos.
Nada a censurar, pois.
Segue deliberação:
Improcede a apelação, mantém-se a sentença apelada.
Custas pela apelante.
Sumário: Num contrato de transporte internacional de mercadoria por terra com início em Portugal e destino Espanha a legislação aplicável é  a CMR, transposta para o direito interno pelo DL 46.235 de 18 de maio de 1956.
Nos termos do artigo 562º a 564º  do CC o valor da indemnização a atribuir, pelo dano causado pela mercadoria extraviada, mesmo sendo usada,  é o equivalente ao custo da mercadoria em nova.

Lisboa, 10 de Setembro de 2020.
Isoleta de Almeida Costa
Carla Mendes
Rui da Ponte Gomes