Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
385/23.0 PWLSB.L1-9
Relator: ANA MARISA ARNÊDO
Descritores: MEDIDAS CAUTELARES
PRESUNÇÃO DE FLAGRANTE DELITO
BUSCA DOMICILIÁRIA
DECISÃO INSTRUTÓRIA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE DE CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGAÇÃO/IRREGULARIDADE
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. No espectro daquilo que são as medidas cautelares, aos órgãos de polícia criminal é legalmente possível (sem prévia autorização da autoridade judiciária) procederem à revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem como prova e que, de outro modo, poderiam perder-se (art.º 251º, n.º 1, al. a) do C.P.P.).
II. No caso, não é de olvidar que logo ab initio (como consignado no auto de notícia) as suspeitas policiais incidiram fundadamente sobre indivíduos pertencentes aos denominados (de acordo com a definição da ..., o que aconselha, por natureza e definição, que seja adoptado um arquétipo investigatório particularmente atento e cauteloso.
III. As arguidas foram encontradas, decorridas cerca de duas horas e quarenta minutos da prática do último furto, na posse de objectos que, à saciedade e de forma directa, correspondiam aos objectos subtraídos das residências, ou seja, sem carência no imediato de reconhecimento formal, por banda dos ofendidos.
IV. A exigência legal de que, entre os factos praticados e a posterior intercepção do seu (presumível) agente, se estabeleça uma relação de proximidade temporal que permita, ainda, interligá-lo, de forma inequívoca, à comissão daqueles factos, não se mostra comprometida quando, decorridas menos de três horas dos últimos factos, as arguidas são surpreendidas na posse de várias dezenas dos objectos subtraídos, acondicionados nos termos já descritos (sabendo-se, inclusive, o local onde, entretanto, permaneceram e a inviabilidade objectiva de ocorrência de qualquer confusão entre objectos subtraídos e outros adquiridos).
V. Ao abrigo do disposto nos art.º 177º, n.ºs 1 e 3, al. a) e 174º, n.º 5, al. c) do C.P.P., a busca domiciliária realizada, ancorada na detenção em situação de presunção de flagrante delito das arguidas, não enferma de qualquer ilegalidade, antes é, nas condições descritas, expressamente consentida.
VI. Os vícios de procedimento a que alude o art.º 410º, n.º 2 do C.P.P. são vícios próprios da sentença, inaplicáveis, pois, a outras decisões, designadamente à decisão instrutória.
VII. No despacho de não pronúncia terá, pelo menos, de constar uma síntese autónoma e sistematizada da matéria factual que se considerou indiciada e não indiciada (salvo as situações de manifesta simplicidade da factualidade em que da própria fundamentação resulte claramente, sem necessidade de indicação expressa, a factualidade indiciada e não indiciada) e, também, naturalmente, uma apreciação crítica, concisa mas completa, da prova indiciária recolhida no inquérito que surge a respaldar a triagem efectuada.
VIII. A falta ou insuficiência de fundamentação redundará em irregularidade, mas de conhecimento e declaração oficiosas pelo Tribunal ad quem, assentes os pressupostos, por um lado, de que o princípio da tipicidade/legalidade vigora no regime geral das nulidades em processo penal (art.º 118º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P.), e, por outro, que o dever de fundamentação não se queda na tutela dos interesses concretos dos sujeitos processuais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Nos presentes autos foi, pelo Ministério Público, deduzida acusação contra as arguidas AA, BB e CC imputando-lhes a prática, em co-autoria, de três crimes de furto qualificado, p. e p. pelos art.º 203.º e 204.º, n.º.2, al. e) e f), e um dos crimes igualmente pelo n. º1, al. a), todos do C.P.
2. Requerida, pelas arguidas, a abertura de instrução e precedendo debate instrutório, o Sr. Juiz de Instrução Criminal, por decisão instrutória de 15 de Novembro de 2023, declarou nula a busca domiciliária efectuada em sede de inquérito, não pronunciou as arguidas AA, BB e CC e julgou extinta a medida de coacção de prisão preventiva a que as mesmas se encontravam sujeitas.
3. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público interpôs recurso daquele despacho. Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«- Ao contrário do referido na decisão instrutória recorrida, a busca domiciliária efectuada à residência das arguidas é realizada em flagrante delito dos crimes de furto qualificado que lhes são imputados, pela intercepção na posse de artigos furtados, encontrando-se, inclusivamente as mesmas já detidas aquando do início da busca domiciliária, pelo que não é verdadeira a afirmação de que não se verificava o flagrante delito de prática dos crimes de furto que justificasse a realização da busca domiciliária, sem autorização judicial prévia; pelo que a mesma não se encontra ferida de nulidade.
- As arguidas foram detidas, em flagrante delito, após a revista efectuada pela P.S.P., da qual resultou a apreensão de peças de ouro e quantias monetárias avultadas, cuja posse não justificaram, que correspondiam as que haviam sido furtadas do interior das residências (NUIPC 385/23.0PWLSB e 586/23.1PELSB).
- Na sequência da detenção em flagrante delito das arguidas, e existindo indícios de que as mesmas ocultavam no interior da sua residência (a qual já era do conhecimento das autoridades policiais), sita na ..., artigos provenientes dos furtos nas residências, procedeu-se à busca domiciliária àquela habitação, nos termos do disposto nos art.º 177º nº3 al.a) e 1749 nº5 al. c) do C.P.Penal, tendo resultado da mesma a apreensão de vários artigos, designadamente alguns dos furtados a 8 de Maio de 2023, da residência sita na ..., em ....
- Resulta dos autos que as arguidas foram interceptadas, juntas, pela autoridade policial, quando se aproximavam da sua residência, pelas 20H05 do dia 10 de Maio de 2023, na posse de artigos furtados das residências, sendo que o último dos furtos cometidos, ocorreu na Av. ..., em …, entre as 15H30 e as 18H30.
- Entre o conhecimento por parte dos lesados do último dos furtos perpetrados e a abordagem policial das arguidas na posse de artigos furtados existe um lapso temporal de aproximadamente 42 minutos e uma distância entre o local do furto e a residência das arguidas de 17 Km, conforme fls. 76 e 77.
- A autoridade policial efectuou vigilância ao local da residência das arguidas, a fim de as interceptar à chegada a esse local, em tempo real com a monitorização dos furtos às residências efectuados, nos quais se verificava o mesmo «modus operandi».
- Concluindo-se, assim, pela existência de flagrante delito que deu lugar à detenção das arguidas, nos termos do disposto no art.º 256º nº 1 e 2 do C.P.Penal (a qual foi, aliás, validada pela Mma. J.I.C. que procedeu ao 1º interrogatório judicial das mesmas), sendo que a busca domiciliária foi efectuada em momento subsequente, deverá improceder a declaração de nulidade deste meio de obtenção de prova, pois que, ao contrário do referido no despacho recorrido, já se verificava o flagrante delito que fundamentou a realização da busca domiciliária, não tendo sido violado o disposto no art.º 174º nº 5 al. c) do C.P.Penal.
- Por a busca domiciliária à residência das arguidas ter sido realizada em flagrante delito da prática dos crimes de furto qualificado e em estrito cumprimento do preceituado nos art.º 177º nº 3 al. a) e 174º nº 5 al. c), ambos do C.P.Penal, deverá a mesma ser declarada válida.
- A decisão instrutória recorrida encontra-se ferida de erro notório na apreciação da prova (art.º 410º nº 2 al. c) do C.P.Penal), porquanto a insuficiência de indícios de que resultou a não pronúncia das arguidas pela prática dos crimes que lhes são imputados na acusação assenta num juízo indiciário erróneo, por desconsiderar factos constantes da acusação e elementos de prova carreados para os autos em sede de inquérito, e que não foram abalados nem descredibilizados em sede de instrução.
- O despacho de não pronúncia das arguidas e sua fundamentação por falta de indícios suficientes da prática dos crimes de furto qualificado está em manifesta contradição com os elementos probatórios constantes dos autos.
- Assim, desde logo, a autoridade policial teve conhecimento, através da denúncia que deu origem ao NUIPC 380/23.0PWLSB, apenso aos autos, que a mala da marca ... furtada da residência sita na ..., em ..., a 8-5-2023, entre as 14H00 e as 20H00, tinha um dispositivo colocado na mesma e que tal sistema de localização Air Tag Apple) emitia sinal na .... Na posse de tal informação, a P.S.P. encetou diligências urgentes, com vista a localizar e identificar suspeitos do referido furto, e localizar objectos furtados, tendo apurado que numa rua contígua aquela artéria, mais precisamente na ..., naquela localidade, residiam desde o dia 6-5-2023, quatro jovens do sexo feminino que comunicavam em língua espanhola.
- Face às características fornecidas sobre as moradoras daquela habitação, que se enquadravam nas associadas ao fenómeno de furtos no interior de residências, foi montado dispositivo de vigilância ao prédio com o nº4 da referida ..., conforme relatório de vigilância junto ao NUIPC 380/23.0PWLSB, apenso a estes autos.
- Em simultâneo, foi realizada monitorização em tempo real, de denúncias efectuadas na..., atendendo ao «modus operandi» (entrada nas residências através da utilização de chave falsa, sem deixar qualquer vestígio de arrombamento nas portas de entrada), tendo-se vindo a detectar mais duas denúncias, registadas com os NUIPC 586/23.1PELSB (furto ocorrido na residência sita na ..., no dia 10-5-2023 entre as 13H00 e as 14H00) e NUIPC 385/23.0PWLSB (furto ocorrido na residência sita na ..., no dia 10-5-2023 entre as 15H30 e as 18H30).
- A autoridade policial deslocou-se aos locais das ocorrências dos furtos em residência, tendo tomado conhecimento dos artigos subtraídos e designadamente, dos artigos em ouro e dinheiro, objecto dos furtos.
- Apercebendo-se que a actividade delituosa continuava activa, diligenciou pela intercepção das autoras dos furtos e manteve a vigilância junto ao local da residência das arguidas.
- Pelas 20H05 desse mesmo dia 10-5-2023, as arguidas foram abordadas pela autoridade policial junto à sua residência, sita na referida ..., para onde se dirigiam juntas, sendo que na sequência da revista a que foram sujeitas se apurou que traziam sacos, nos quais a autoridade policial reconheceu, de entre outros, artigos em ouro, que correspondiam aos furtados do interior das residências, a que deram lugar os NUIPC 586/23.1PELSB e 385/23.0PWLSB.
- As arguidas foram detidas em flagrante delito na posse de artigos furtados nessa tarde, sendo que o furto à residência sita na Av. ...
- Nesta sequência, foi realizada busca domiciliária à residência das arguidas, da qual resultou a apreensão de artigos furtados, designadamente provenientes da residência sita na Av. …, nº …, ..., em ... (NUIPC 380/23.0PWLSB).
- Os artigos apreendidos às arguidas foram posteriormente reconhecidos pelos ofendidos.
- Na posse da arguida DD (BB) encontrava- se a chave da viatura da marca ..., com a matrícula espanhola 8719MDZ, a qual foi localizada nas traseiras do prédio onde as arguidas residiam, estacionada na ..., local onde precisamente o sistema de localização da mala ..., furtada do interior da residência sita na ... tinha dado sinal, conforme resulta da denúncia que deu origem ao NUIPC 380/23.0PWLSB, apenso aos autos.
- Do visionamento das imagens CCTV captadas no dia 10 de Maio de 2023, junto à residência sita na ..., alvo de um dos furtos qualificados, é possível observar as arguidas BB e AA, entre as 16H20 e as 17H49, junto ao local onde o mesmo ocorreu, conforme fls. 121 a 125 dos autos.
- Dos registos de geo-referenciação do veículo ... de matrícula 8719MDZ, utilizado pelas arguidas na sua deslocação de ... para ... e durante os trajectos percorridos nas datas dos registos dos furtos as residências objecto dos autos, resulta a localização e permanência da citada viatura nos locais e imediações das moradas das residências assaltadas, compatíveis com a execução dos crimes em apreço, conforme consta do relatório de análise e GPS tracking de fls. 269 a 294.
- Consta, igualmente, dos autos a fls. 116 a 118, o visionamento das arguidas AA e BB a entrarem na loja ..., pelas 18H25 do dia 10 de Maio de 2023, onde adquiriram artigos de vestuário e calçado, tendo daí saído pelas 19H02, em direcção à sua residência na ..., local onde foram interceptadas na posse de tais artigos que haviam adquirido com o dinheiro proveniente dos assaltos às residências em ...; sendo que o trajecto das arguidas do local da prática dos factos até ao local em que foram interceptadas pela P.S.P. na posse de objectos furtados e destes que haviam adquirido com tal dinheiro de que se apropriaram, se encontra confirmado pelos registos de geo-referenciação da viatura utilizada pelas mesmas, conforme fls. 269 a 294.
- Da análise conjugada e articulada de todos estes elementos probatórios resultantes dos autos, que o Tribunal «a quo» omitiu no despacho recorrido, e das regras da experiência comum e da normalidade, resulta fortemente indiciado terem sido as arguidas as autoras dos furtos qualificados constantes da acusação.
- Aliás, tal forte indiciação já resultava dos autos aquando da apresentação das arguidas a 1º interrogatório judicial, nos termos do art.º 141º do C.P. Penal, razão pela qual a Mma. J.I.C. lhes aplicou a medida de coação de prisão preventiva.
- Em sede de Instrução, nenhum elemento de prova foi trazido aos autos que tivesse abalado ou posto em crise, a forte indiciação quanto à autoria dos factos constantes da acusação, nem o juízo indiciário formulado pela Mma. J.I.C. que interrogou as arguidas e as sujeitou a prisão preventiva, nem do Ministério Público que deduziu acusação contra as mesmas, pelo que forçoso é concluir que o Tribunal «a quo» incorreu em erro notório na apreciação da prova indiciária constante dos autos ao não ter pronunciado as arguidas pelos crimes de que se encontravam acusadas.
- Assim sendo, deve a decisão instrutória em crise ser revogada e substituída por outra que declare a validade da busca domiciliária efectuada à residência das arguidas, por a mesma ser legal como meio de obtenção da prova, por ter sido realizada em obediência ao preceituado nos art.º 177º nº 3 al. a) e 174º nº5 al. c) do C.P. Penal e que pronuncie as arguidas AA, BB e CC, como co-autoras, de três crimes de furto qualificado, p. e p. pelos art.º 203º nº 1 e 204º nº 1 al. a) e f) e 2 al. e), com referência ao art.º 202º al. f), todos do C. Penal; mantendo a medida de coação de prisão preventiva, por se manterem inalterados os fundamentos de facto e de direito em que se baseou o douto despacho que a aplicou.
Pelo exposto, a decisão em crise violou o disposto nos art.º 203º nº 1 e 202 nº 1 al. a) e f) e 2 al. e), com referência ao art.º 202º al. f), todos do C.Penal, art.º 174º nº5 al. c), 1779 nº 3 al. a), 256º nºs 1 e 2, 3089 nºs 1, 2 e 3, 283º nº e 3, 202º nº1 al. a), 204º nº1 al. a) e c) e 410º nº2 al. c), todos do C.P.Penal»
4. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
5. As arguidas responderam ao recurso. Extraem da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1. O Ministério Público defende que a busca domiciliária foi realizada em flagrante delito da prática dos crimes de furto qualificado e em estrito cumprimento do preceituado nos artigos 177.9, n.º 3, alínea a) e 174.9, n.º 5, alínea c), ambos do CPP, pelo que devera a mesma ser declarada válida.
2. No nosso entender, o Ministério Público erra nos pressupostos do flagrante delito.
3. Não é possível estabelecer a indiciação prévia à realização da busca efetuada, muito menos um flagrante delito da atividade criminosa de furto imputada às arguidas.
4. Em momento prévio à abordagem,
• Não houve testemunhas que tenham visto as arguidas a sair das residências/ prédios alvos de furto;
• Não houve vigilâncias ou monitorização dos furtos, como diz o MP, por parte do OPC, pois não as viram a sair, ou nas proximidades, dos locais alvo de furto;
• As arguidas foram abordadas/detidas, pelo menos, 1 hora e 30 minutos após o conhecimento do último furto pelos ofendidos, a uma distância de 17 km do local.
5. Como refere a decisão recorrida, as arguidas não foram detidas ou abordadas em flagrante delito de furto, sendo que, mesmo quanto aos bens que detinham, apesar da sua proveniência ser dos furtos referidos na acusação, tal apenas foi verificado posteriormente à realização da busca, depois da análise e reconhecimento dos objetos, e não em momento prévio à realização da mesma.
6. Os pressupostos do flagrante delito pela prática de algum dos crimes de furto imputados às arguidas não se verificavam em momento prévio à realização da busca domiciliária, de modo a justificar a sua realização sem autorização judicial prévia.
7. Pelo que a busca domiciliária realizada é nula, nos termos do disposto no artigo 177.9, n.º 1 do CPP.
8. Entende ainda o MP que a decisão recorrida e a sua fundamentação por falta de indícios suficientes da prática dos crimes de furto qualificado está em manifesta contradição com os elementos probatórios constantes dos autos.
9. Não podemos concordar com tal entendimento, pois:
• Não existem elementos probatórios que permitam concluir que tenham sido as arguidas a praticar os furtos às residências mencionadas na acusação.
• Não há elementos de prova que indiciem que as arguidas tenham estado no interior das habitações.
• Não existem imagens das arguidas a entrar ou a sair das habitações/prédios!
• Não existem impressões digitais!
• Não existem testemunhas!
• Não lhes foram apreendidos objetos inerentes à abertura de portas ou fechaduras!
• Apenas lhes foram apreendidos objetos furtados, o que, por si só, não permite concluir pela prática dos crimes de furto pelas arguidas.
10. Tal como refere a decisão recorrida, a detenção pelas arguidas de objetos furtados também não permitira concluir outra coisa, para além de, pela sua quantidade e proximidade temporal, se poder deduzir que as arguidas poderiam saber da origem ilícita de tais bens.
11.0 MP tenta agora corrigir a acusação, sufragando que as arguidas devem ser pronunciadas, como autoras, de três crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a) e f) e 2, alínea e), com referência ao artigo 202.º, alínea f), todos do Código Penal.
12. Será de notar que a norma do art.º 204º nº 2 al. e) do CP refere que pratica um crime de furto qualificado, quem furtar coisa móvel ou animal alheios "penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas.
13. In casu, a douta acusação não refere qual o objeto utilizado pelas arguidas para abrir a porta das habitações, referindo somente de forma geral e abstrata que foi utilizado o método de chaves falsas não concretamente esclarecido.
14. Esta denominação não pode bastar para enquadrar o conceito de chaves falsas previsto na al. f) do art.º 202º do СР.
15. Posto isto, uma vez que não se encontram descritos, na acusação, factos suscetíveis de integrar a prática de outros crimes pelas arguidas, decidiu bem a decisão recorrida quando não pronunciou as arguidas pela prática dos crimes descritos na acusação.
16.A decisão a que chegou o Tribunal a quo encontra-se bem fundamentada e não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na integra.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o recurso interposto pelo MP ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos»
6. Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta é de parecer que recurso deverá ser julgado improcedente. Pondera, ademais e em síntese, nos seguintes termos:
«Na sua motivação, e pelos fundamentos densificados nas respetivas conclusões, defende a Ex.mª magistrada do Ministério Público recorrente, em suma, que se verifica a detenção em flagrante delito, pela prática dos crimes de furto qualificado e, consequentemente, mostra-se validada a busca domiciliária realizada, devendo ter sido proferido despacho de pronúncia, mantendo-se ainda a prisão preventiva das arguidas, tendo sido violadas as normas previstas nos artºs 203º, 204, nºs 1, als. a) e f) e nº 2, al. e), com referência ao 202º, al. f), todos do C. Penal e 174º, nº 5, al. c), 177º, nº 3, al. a), 256º, nºs 1 e 2, 308º, nºs 1, 2 e 3, 283º, nºs 2 e 3, 202º, nº1, al. a), 204º, nº 1, als. a) e c) e 410º, nº 2, al. c), todos do CPP. 1 - Art.º 411.º, n.º 1/b) do CPP. 2 - Art.º 401.º, n.º 1/a) do CPP. 3 - Arts. 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2/a) e 408.º, n.º 1/a), todos do CPP.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 411.º, n.º 5, do CPP, a defesa das arguidas pronunciou-se sobre as questões controvertidas, afirmando que os pressupostos de flagrante delido dos crimes de furto, imputados às mesmas, não se verificavam em momento prévio à busca, de molde a justificar a sua realização sem autorização judicial prévia, pelo que a busca é nula, devendo manter-se a decisão de não pronúncia, na íntegra, também quanto às medidas de coação.
A motivação do recorrente, diga-se, desde já, não merece a nossa adesão.
Pese embora a clareza e pertinência da argumentação ali desenvolvida, bem como dos fundamentos e elementos (nomeadamente factuais e normativos) aduzidos – entendemos que não lhe assiste razão.
A busca domiciliária em causa, de acordo com a argumentação do MP, na 1º instância e o opc que procedeu à mesma, teria sido efetuada, após uma situação de flagrante delito.
Vejamos: Os factos em análise, consubstanciadores da prática de crimes de furtos qualificados ocorreram entre os dias 8 e 10 de maio de 2023, sendo que as arguidas abandonaram a última residência, no dia 10 de maio de 2023, cerca das 17H40, deslocando-se em seguida, segundo afirmação do opc, na direção do ..., onde efetuaram compras.
Não foram seguidas pelos elementos policiais, que desde as 17H40 perderam o contacto visual com as mesmas, ou seja; existe um hiato de tempo em que as mesmas se deslocaram ao ... ou outros locais, em que não foram seguidas, de forma a apurar o que traziam, eventualmente da residência assaltada e o que adquiriram naquele local.
Existem imagens de videovigilância, mas tal não se mostra suficiente para relatar o que ocorreu nesse espaço temporal.
Por seu turno, o opc deslocou-se para junto da residência das arguidas, ali aguardando pela chegada daquelas, o que veio a ocorrer cerca das 20H05, desse mesmo dia 10 de maio de 2023.
Não se trata de um período de duas horas que está em causa para colocar em causa o flagrante, mas porque os agentes da PSP perderam o contacto visual das arguidas.
Preceitua o art.º 251º do CPP: “1 - Para além dos casos previstos no n.º 5 do artigo 174.º, os órgãos de polícia criminal podem proceder, sem prévia autorização da autoridade judiciária: a) À revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção e a buscas no lugar em que se encontrarem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se …
E o art.º 174º do CPP: … 3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.
4 - O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máxima de 30 dias, sob pena de nulidade.
5 - Ressalvam-se das exigências contidas no n.º 3 as revistas e as buscas efetuadas por órgão de polícia criminal nos casos:
a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;
b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou
c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão. …”
Verificados os pressupostos para a revista que veio a ocorrer, cerca das 20H05, junto à residência das arguidas, sita na ..., na ..., o opc procedeu a busca na residência, mais propriamente no n.º …, 1.º, no mencionado local.
Ora, se as arguidas se deslocaram para o ..., após os referidos assaltos, onde vieram a fazer compras, desde as 17H40 em diante, não poderiam os agentes da PSP destrinçar o que as mesmas trariam de compras ali efetuadas ou o que seria furtado nas residências.
Tal certeza, só obtiveram após a busca domiciliária, e detenção das arguidas, já na esquadra, quando puderam fazer a conferência dos artigos e comparação com as listagens dos objetos subtraídos das residências dos ofendidos.
Assim, era necessária autorização judicial para a referida busca, já que o opc não se encontrava na alegada situação de flagrante delito, em nenhuma das modalidades (nem sequer na presunção de flagrante delito), como supra se refere.
Consequentemente, mostra-se ajustada a decisão de não pronúncia, com base na nulidade da busca domiciliária, bem como relativamente às medidas de coação.
Não se mostram violadas quaisquer normas legais.
Termos em que, se emite parecer no sentido de que, a nosso ver, o recurso interposto pelo Ministério Público, deve ser declarado improcedente, mantendo-se na íntegra o despacho de não pronúncia»
7. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P., vieram as arguidas reiterar a resposta apresentada ao recurso interposto.
8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame das questões de saber se o Sr. Juiz de Instrução Criminal incorreu em erro de jure ao declarar a nulidade da busca domiciliária, se a decisão instrutória padece de erro notório na apreciação da prova, se existem indícios suficientes para a prolação de despacho de pronúncia e para a (re) aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
2. O despacho revidendo é do seguinte teor:
«I. Declaro encerrada a instrução.
II. O Ministério Público deduziu acusação contra AA, BB e CC (identificadas na acusação), imputando-lhes a prática de três crimes de furto qualificado, p.p. nos artigos 203.º e 204.º, n.º.2, als. e) e f), e um dos crimes igualmente pelo n.º 1, al. a), todos do Código Penal.
As arguidas requereram a abertura de instrução, em síntese, por entenderem que não existem indícios suficientes da prática os factos descritos na acusação, nem tais factos integram a incriminação agravada exposta.
Declarada aberta a instrução, foi realizado o debate instrutório. ---
III. O tribunal é competente.
Inexistem nulidades, quaisquer excepções e questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
IV. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286, nº 1 do Código de Processo Penal). Não se apresenta como um novo inquérito, mas consubstancia, tão-só, um momento processual de comprovação da decisão de acusar ou não (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1996, pgs. 454).
A acusação deve ser deduzida se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente (art.º 283, nº 1 do Código de Processo Penal).
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artº 283, nº2 do citado diploma).
Posto isto, o juiz procede à análise crítica da prova com vista à comprovação judicial da decisão do MºPº.
Nos presentes autos imputa-se às arguidas a prática de três crimes de furto qualificado.
A. As arguidas invocaram a nulidade da busca realizada em virtude de a mesma não ter sido acompanhada de intérprete.
No entanto, tal invocação isolada, sem qualquer outra fundamentação, não pode proceder.
Sendo a busca uma diligência de investigação à qual as arguidas apenas poderiam assistir, sem qualquer participação activa, podendo a mesmo decorrer até sem a sua presença, não se compreende o motivo exacto para a invocação pretendida, que mais não pode ser do que a criação de um obstáculo burocrático à recolha da prova.
Por isso, não se verificou qualquer ausência de intérprete a acto processual, sendo essa verificação totalmente inócua para o preenchimento do disposto no art.º 120.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal.
Por outro lado, em rigor, nada indica que as arguidas já tivessem sido constituídas nessa qualidade, aquando da realização da busca, sendo essa qualidade clara após o que lhes foi encontrado; pelo que não se compreende qual é a obrigação de tradução que as arguidas consideram violada.
B. Quanto à questão, apenas invocada em debate instrutório, da não verificação de flagrante delito, como fundamento da realização da busca domiciliária, há, efectivamente, que reconhecer não ser possível estabelecer a indiciação prévia à realização da busca efectuada, muito menos um flagrante delito da actividade criminosa de furto imputada às arguidas.
Efectivamente, por análise de informações policiais verificava-se uma possibilidade, vaga, de mero “palpite”, sem fundamento para qualquer intervenção invasiva da privacidade.
Manifestamente, as arguidas não foram detidas ou abordadas em flagrante delito de furto (nos termos previstos no art.º 256.º, n.º2, do Código de Processo Penal), sendo que, mesmo quanto aos bens que detinham, apesar da sua proveniência dos furtos referidos na acusação, tal apenas pôde ser verificado posteriormente à realização da busca, depois da análise e reconhecimento dos objectos; tudo subsequente à busca realizada.
Assim, não se verificava o flagrante delito (da prática de algum crime de furto) que justificasse a realização da busca domiciliária nos termos previstos no art.º 174.º, n.º 5, c), por remissão do art.º 177.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, sem autorização judicial prévia.
Pelo exposto, por este fundamento, a busca domiciliária realizada nos autos é nula, o que é declarado nos termos do disposto no art.º 177.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Apesar do texto do RAI não se verifica a invocação concreta de qualquer outro vício.
C. Embora não exista dúvida quanto à verificação da subtracção dos bens nos locais indicados e com a descrição apresentada pelo Ministério Público, considerando os depoimentos dos ofendidos, o reconhecimento dos bens apreendidos e as fotografias dos mesmos juntas pelo ofendido, já assim não se pode afirmar quanto à imputação de tais subtracções às arguidas.
Como resulta claro da própria acusação, não foi possível determinar qualquer vestígio da entrada das arguidas nas referidas habitações, nem sequer o modo como essa entrada se fez (a referência a chaves falsas constitui uma alegação meramente conclusiva).
A detenção pelas arguidas de objectos furtados também não permitira concluir outra coisa, para além de, pela sua quantidade e proximidade temporal, se poder deduzir que as arguidas poderiam saber da origem ilícita de tais bens.
Mas não necessariamente que foram elas que os furtaram, isto é, que se introduziram nas referidas moradas e que de lá retiraram tais bens.
No entanto, tendo sido declarada nula a busca domiciliária realizada, nem esse elemento concorre para a indiciação das arguidas.
Não se encontrando, assim, suficientemente indiciado que as arguidas, com a sua conduta, preencheram qualquer das incriminações previstas na acusação.
Por outro lado, não se encontram descritos factos que sejam susceptíveis de integrar a prática de outros crimes.
Por isso, as arguidas vão ser não pronunciadas pela prática dos crimes descritos na acusação. -
V. Pelo exposto:
Não pronuncio AA, BB e CC (identificadas na acusação), pela prática de três crimes de furto qualificado, p.p. nos artigos 203.º e 204.º, n.º 2, als. e) e f), e um dos crimes igualmente pelo n.º 1, al. a), todos do Código Penal. Notifique.
*
Atenta a não pronúncia das arguidas AA, BB e CC declaro extinta a prisão preventiva de todas as elas e determino a sua imediata libertação se não deverem ficar presas à ordem de outros processos (art.º 214.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal.)»
3. Do recurso interposto
3.1. Do invocado erro de jure na declaração de nulidade da busca domiciliária
O Ministério Público, ora recorrente, insurge-se contra a circunstância de o Sr. Juiz de Instrução ter declarado nula a busca domiciliária.
Aduz, em síntese, que:
«As arguidas foram detidas, em flagrante delito, após a revista efectuada pela P.S.P., da qual resultou a apreensão de peças de ouro e quantias monetárias avultadas, cuja posse não justificaram, que correspondiam as que haviam sido furtadas do interior das residências (NUIPC 385/23.0PWLSB e 586/23.1PELSB);
Na sequência da detenção em flagrante delito das arguidas, e existindo indícios de que as mesmas ocultavam no interior da sua residência (a qual já era do conhecimento das autoridades policiais), sita na ..., artigos provenientes dos furtos nas residências, procedeu-se à busca domiciliária àquela habitação, nos termos do disposto nos art.º 177º nº 3 al. a) e 1749 nº 5 al. c) do C.P.Penal, tendo resultado da mesma a apreensão de vários artigos, designadamente alguns dos furtados a 8 de Maio de 2023, da residência sita na ..., em ...;
Entre o conhecimento por parte dos lesados do último dos furtos perpetrados e a abordagem policial das arguidas na posse de artigos furtados existe um lapso temporal de aproximadamente 42 minutos e uma distância entre o local do furto e a residência das arguidas de 17 Km, conforme fls. 76 e 77;
Concluindo-se, assim, pela existência de flagrante delito que deu lugar à detenção das arguidas, nos termos do disposto no art.º 256º nº 1 e 2 do C.P.Penal (a qual foi, aliás, validada pela Mma. J.I.C. que procedeu ao 1º interrogatório judicial das mesmas), sendo que a busca domiciliária foi efectuada em momento subsequente, deverá improceder a declaração de nulidade deste meio de obtenção de prova, pois que, ao contrário do referido no despacho recorrido, já se verificava o flagrante delito que fundamentou a realização da busca domiciliária, não tendo sido violado o disposto no art.º 174º nº 5 al. c) do C.P.Penal»
Preliminarmente, com vista à decisão deste segmento recursivo, urge consignar que, como decorre pacificamente dos autos (fls. 2 a 150):
- Na sequência da denúncia referente ao furto ocorrido no dia 8 de Maio de 2023, entre as 14h e as 20h, no interior da residência sita na ... (que deu origem ao NUIPC 380/23.0PWLSB apenso aos autos principais), chegou ao conhecimento do O.P.C. que um dos objectos daquela subtraídos - concretamente uma mala de marca ... - tinha um dispositivo de localização, Air Tag Apple, que emitia sinal na ..., na ...;
- Em seguimento, o O.P.C. veio a apurar que numa rua contígua àquela, na ..., residiam desde o dia 6 de Maio de 2023, quatro jovens do sexo feminino que comunicavam em língua espanhola, pelo que montou dispositivo de vigilância ao referido prédio;
- Concomitantemente, procedeu à monitorização em tempo real de outras denúncias efectuadas na ..., com modus operandi idêntico (furtos em residências, com entrada nas mesmas sem vestígio de arrombamento de portas), tendo sido detectadas duas outras, correspondentes aos NUIPC 586/23.1PELSB (furto ocorrido na residência sita na ..., no dia 10 de Maio de 2023 entre as 13h e as 14h) e 385/23.0PWLSB (furto ocorrido na residência sita na Av. ..., no dia 10 de Maio de 2023 entre as 15h30 e as 18h30);
- O O.P.C. deslocou-se, ainda, às residências objecto dos referidos furtos e colheu informação sobre os objectos subtraídos – essencialmente objectos em ouro e dinheiro;
- No (mesmo) dia 10 de Maio de 2023, pelas 20h05, as arguidas foram abordadas pela P.S.P. junto à sua residência, na referida ..., para onde se dirigiam juntas e, na sequência da revista a que foram sujeitas, veio a verificar-se que traziam consigo, em sacos, designadamente, várias dezenas de artigos em ouro, embrulhados em máscara cirúrgica e acondicionados em papel celofane, que correspondiam a objectos subtraídos, nesse mesmo dia, do interior das residências, cujas denúncias deram origem aos NUIPC 586/23.1PELSB e 385/23.0PWLSB;
- Seguidamente as arguidas foram detidas e, após, foi realizada busca domiciliária à residência das mesmas, da qual resultou a apreensão de artigos furtados, designadamente, da residência sita na Av. …, n.º …, ..., em ... (NUIPC 380/23.0PWLSB);
- Do visionamento das imagens CCTV, captadas no dia 10 de Maio de 2023, junto à residência sita na Av. ..., alvo do último dos furtos, é possível observar as arguidas BB e AA, entre as 16h20 e as 17h49, junto ao local onde o mesmo ocorreu;
- Outrossim, do visionamento de imagens captadas, resulta que as arguidas AA e BB entraram na loja Primark do ..., pelas 18h25, do dia 10 de Maio de 2023, onde adquiriram artigos de vestuário e calçado, tendo daí saído pelas 19h02.
Decorre, pois, do exposto, para além do mais, que o O.P.C. procedeu, em primeiro lugar, à revista das arguidas, que foi na sequência da apreensão dos objectos que as mesmas tinham em posse que ocorreu a detenção das mesmas e que (só) posteriormente foi realizada a busca domiciliária.
Efectuada o atinente sumário cronológico, vejamos então.
É sabido que, para além das situações excepcionais a que alude o art.º 174º, n.º 5 do C.P.P., no espectro daquilo que são as medidas cautelares, aos órgãos de polícia criminal é legalmente possível (sem prévia autorização da autoridade judiciária) procederem à revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem como prova e que, de outro modo, poderiam perder-se (art.º 251º, n.º 1, al. a) do C.P.P.)
No caso, como já se deixou sumariado, à revista, detenção e busca domiciliária realizadas antecedeu investigação (a decorrer desde o dia 8 de Maio de 2023) e a P.S.P. tinha, de permeio, efectuado diligências cujo resultado amparava a suspeição que recaia sobre as arguidas.
Acresce que, no dia - 10 de Maio de 2023 - assoma a notícia da ocorrência, no período da tarde, de dois outros furtos no interior de residências com modus operandi em tudo idêntico ao do primeiro furto denunciado.
É, pois, nestas circunstâncias que a P.S.P. (depois de se terem deslocado às residências objecto dos furtos e recolhido informações quanto aos bens subtraídos) se desloca para junto da residência das arguidas, onde aguardaram a chegada das mesmas, que ocorreu às 20h05.
Vale por dizer que, indiscutivelmente, existiam razões fundadas para crer que as arguidas estavam na posse de objectos relacionados com os crimes (em particular com aqueles dois ocorridos no dia 10 de Maio, no período da tarde), o que, aliás, se veio a confirmar.
No que respeita ao requisito legal da fuga eminente, como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10 de Dezembro de 2009, processo n.º 27/09.7PBPTM-A.E1, in www.dgsi.ptFuga é, outrossim, o suspeito sumir-se, evaporar-se, escapar.
Se o polícia, com fundada razão para crer que naquele cidadão se ocultam objectos relacionados com um crime, susceptíveis de servirem a prova, não aproveita aquele exacto momento para revistar o suspeito, ele vai sumir-se, desaparecer, escapar – nunca mais o verá, pelo menos com os objectos relacionados com o crime que naquela altura aparentava estar. É o polícia que no metro de uma cidade vê o cidadão com sangue na roupa e o que parece ser o volume de uma pistola por debaixo da t-shirt; se não aproveitar esse momento para o revistar, uns segundos depois o suspeito terá desaparecido naturalmente por entre a multidão, nunca mais o há-de voltar a ver. O suspeito, ao ver o polícia, não correu, não fugiu, esfumar-se-á apenas no meio da multidão – isto também é um caso de fuga iminente na previsão do art.º 251.º, n.º 1 al.ª a)»
Ora, no caso, não é de olvidar que logo ab initio (como consignado no auto de notícia) as suspeitas policiais incidiram fundadamente sobre indivíduos pertencentes aos denominados (de acordo com a definição da ..., o que aconselha, por natureza e definição, que seja adoptado um arquétipo investigatório particularmente atento e cauteloso. Ademais, resulta do inquérito e constitui dado objectivo, que as arguidas - todas muito jovens, cidadãs estrangeiras e sem qualquer ligação familiar, afectiva ou profissional ao território nacional - no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, prestaram, inclusive, falsas declarações quanto à sua própria identidade.
Nesta conformidade, não nos assolam dúvidas de que, in casu, estavam efectivamente reunidos todos os requisitos legais para que o O.P.C. procedesse à revista das arguidas, nos termos e ao abrigo do art.º 251º, n.º 1, al. a) do C.P.P., tal qual ocorreu.
Em sentido idêntico, entre outros, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de 21 de Janeiro de 2015, processo n.º 27/14.5PEVNG-A.P1, in www.dgsi.pt. que: «(…) as diligências de revista (…) levadas a cabo pelo OPC, sem mandado prévio da autoridade judiciária competente, são enquadráveis nas medidas cautelares urgentes admitidas no artigo 251.º, n.º 1, alínea a) do Código Processo Penal, que permite a realização de revistas de suspeitos (…), mesmo antes da abertura do inquérito, sem estarem autorizadas ou ordenadas pela autoridade competente, quando seja iminente a fuga e haja fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime ou susceptíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se».
Prosseguindo, e como atrás referido, na sequência das revistas foram apreendidos na posse das arguidas, em sacos, várias dezenas de artigos em ouro, embrulhados em máscara cirúrgica e acondicionados em papel celofane, que correspondiam a objectos subtraídos, nesse mesmo dia, do interior das residências, cujas denúncias deram origem aos NUIPC 586/23.1PELSB e 385/23.0PWLSB, o que culminou com a detenção das arguidas.
Aqui chegados, impõe-se (pois que se trata da controvérsia central, atento o teor do despacho recorrido e o recurso interposto) discernir se a detenção das arguidas ocorreu em situação subsumível ao conceito de flagrante delito, em alguma das modalidades, nos termos prevenidos nos art.º 255º e 256º do C.P.P.
Atentemos, antes de mais, nos citados normativos.
O art.º 255º do C.P.P., para o que ora releva, dispõe que:
«1. Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão:
a) Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção»
Por seu turno, o art.º 256º do C.P.P. determina que:
«1. É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.
2. Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar»
Ou seja, como tem sido entendido unanimemente na doutrina e na jurisprudência, existem três distintas situações que o legislador subsume ao conceito de flagrante delito: o flagrante delito em sentido estrito (o crime que se está cometendo); o quase flagrante delito (o crime que se acabou de cometer) e a presunção legal de flagrante delito (que se reporta à situação em que o agente é perseguido ou, mesmo não sendo perseguido, é encontrado, fora local do crime, na posse de objectos ou sinais daquele).
«Flagrante delito é a actualidade do crime (…) o que importa é surpreender o crime na sua execução. O flagrante delito consiste assim na actualidade aparente, visível, do crime, em razão da qual se autoriza legalmente a imediata captura do infrator. (…) Ao flagrante delito, no seu sentido mais restrito, se equipara o quase flagrante delito, ou seja, o facto punível que se acabou de cometer. (…) No primeiro caso é surpreendido durante a execução do crime, no segundo é surpreendido logo no momento em que findou a execução, mas sempre ainda no local da infração em momento no qual a evidência da infração e do seu autor deriva diretamente da própria surpresa»1
«Reputa-se flagrante delito em primeiro lugar o caso em que o infractor é, logo após a infração, perseguido por qualquer pessoa e em segundo lugar o caso em que foi encontrado a seguir à infração com objetos ou sinais que mostrem claramente que a cometeu ou nela participou (…) Na presunção de flagrante delito, o infractor é surpreendido e capturado fora desse local, desde que tenha sido imediatamente após o crime perseguido por qualquer pessoa ou encontrado, embora sem perseguição, também logo a seguir à infração, com objetos ou sinais evidentes da autoria do crime.
(…) À figura do flagrante delito é, pois, essencial
a atualidade aparente, visível do crime»2
Volvendo ao caso, constatamos (como supra elencado) que as arguidas foram encontradas, decorridas cerca de duas horas e quarenta minutos da prática do último furto, na posse de objectos que, à saciedade e de forma directa, correspondiam aos objectos subtraídos das residências, conforme informações obtidas anteriormente pela P.S.P. (note-se que estava em causa um elevado número de peças em ouro, acondicionadas de modo muito particular), ou seja, sem carência no imediato, para os efeitos que ora importa, de reconhecimento formal por banda dos ofendidos.
E assim sendo, afigura-se que, sem esforço subsuntivo, se terá de concluir que as arguidas foram encontradas pelo O.P.C. com objetos ou sinais que mostravam, claramente, que acabaram de cometer o crime ou nele participar (art.º 256.º, n.º 2, 2.ª alternativa, do C.P.P.).
Ademais, não se vislumbra que, no concreto, o período de tempo transcorrido entre a prática dos (últimos) factos e a intercepção das arguidas, sabido, ademais, onde, no intermeio, as mesmas permaneceram (no ...), coarte a evidência probatória que resulta das apreensões efectuadas na sequência das revistas e no descrito contexto investigatório.
Muito pelo contrário, parece-nos evidente, no real circunstancialismo, que a revista e as detenções não podiam ter sido levadas a cabo antes e que toda a logística investigatória se desenrolou em tempo recorde, como a situação impunha, obviando a que, pelo menos naquela fase, as arguidas, irremediavelmente, se pudessem eximir à acção da justiça.
Na verdade, a exigência legal de que, entre os factos praticados e a posterior intercepção do seu (presumível) agente, se estabeleça uma relação de proximidade temporal que permita, ainda, interligá-lo, de forma inequívoca, à comissão daqueles factos, não se mostra comprometida quando, decorridas menos de três horas dos últimos factos, as arguidas são surpreendidas na posse de várias dezenas dos objectos subtraídos, acondicionados nos termos já descritos (sabendo-se, inclusive, o local onde, entretanto, permaneceram e a inviabilidade objectiva de ocorrência de qualquer confusão entre objectos subtraídos e outros adquiridos).
Termos em que se conclui que as arguidas foram detidas em situação subsumível à modalidade de presunção de flagrante delito, em conformidade com o art.º 256.º, n.º 2, 2.ª alternativa, do C.P.P.
E assim, ao invés do decidido pelo Sr. Juiz de Instrução, ao abrigo do disposto nos art.177º, n.º 1 e 3, al. a) e 174º, n.º 5, al. c) do C.P.P., ter-se-á, em consequência, de concluir que a busca domiciliária realizada, ancorada na detenção em situação de presunção de flagrante delito das arguidas, não enferma de qualquer ilegalidade, antes é, nas condições descritas, expressamente consentida.
Acrescenta-se ainda que, como anota o Ministério Público na motivação recursiva e decorre claramente dos autos, as detenções e apreensões efectuadas - via revista e busca domiciliária - foram dadas a conhecer, no prazo legal de quarenta e oito horas, à Sra. Juíza de Instrução que procedeu ao primeiro interrogatório judicial das arguidas detidas, tendo sido, então, integralmente validadas3.
Pelos motivos expostos, procedendo o recurso neste segmento, impõe-se a revogação do despacho recorrido, na parte em que julgou nula a busca domiciliária efectuada.
3.2. Do erro notório na apreciação da prova
Neste conspecto, o recorrente Ministério Público invoca que a decisão instrutória, de não pronúncia, enferma de erro notório na apreciação da prova, conforme art.º 410º, n.º 2, al. c) do C.P.P.
Em síntese, insurge-se quanto à apreciação que foi efectuada da prova indiciária pelo Sr. Juiz de Instrução.
Todavia, como tem sido maioritariamente entendido na jurisprudência, os vícios de procedimento a que alude o art.º 410º, n.º 2 do C.P.P. são vícios próprios da sentença, inaplicáveis, pois, a outras decisões, designadamente à decisão instrutória. 4
Com efeito, como vem sendo referido, não obstante a inserção do art.º 410º do C.P.P. no capítulo atinente à “Tramitação unitária do recurso”, as referências expressas no n.º 2 à apreciação da prova e à matéria de facto provada só são compagináveis com a sentença, já que, no âmbito de uma qualquer decisão instrutória, a factualidade reconduz-se sempre, atenta a própria natureza da fase de instrução, àquela que se mostra indiciada e não indiciada.
De igual modo, a inerente exigência de que o conhecimento de tais vícios assente única e exclusivamente no texto da decisão recorrida, sem possibilidade de amparo em elementos exteriores à decisão, é incompatível com a apreciação do recurso da decisão instrutória, que reclama, invariavelmente, a apreciação de toda a prova indiciária recolhida, o que, aliás, é também, no caso, peticionado pelo recorrente.
Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 3 de Julho de 2012, in www.dgsi.pt. «(…) no recurso da decisão instrutória de não pronúncia do que se trata é precisamente de sindicar o juízo sobre as provas (indiciárias) efectuado pelo juiz de instrução, ou seja, de julgar o texto em confronto com ou em conjunto com os todos os indícios recolhidos na fase instrutória do processo (em sentido amplo de inquérito e instrução). E não, que se julgue o texto separado das provas. Assim, mais do que uma proibição de aplicação do art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal à decisão instrutória, do que se trata é de uma ausência de sentido útil e de coerência histórica e sistémica na convocação dos mecanismos nele previstos».
Por fim, como tem sido apontado, na procedência dos vícios de procedimento do art.º 410º, n.º 2 do C.P.P., a consequência a que aludem os art.º 426º e 426º A do mesmo diploma, é, outrossim, inconciliável com a fase de instrução.
Tanto basta, pois, para se concluir pela improcedência do recurso nesta parte.
3.3. Da falta de fundamentação da decisão instrutória
Ao tribunal de recurso incumbe proferir decisão a respeito de todas as questões de conhecimento oficioso que obstem à apreciação do mérito do recurso.
Por assim ser, urge, agora, numa lógica de cronologia preclusiva, tomar conhecimento oficioso de questão que surge substantivamente suscitada pelo recorrente, mas diluída no petitório de sindicância da prova indiciária.
Na verdade, o Ministério Público invoca, nomeadamente, que:
«Na posse da arguida BB encontrava- se a chave da viatura da marca ..., com a matrícula espanhola …MDZ, a qual foi localizada nas traseiras do prédio onde as arguidas residiam, estacionada na ..., local onde precisamente o sistema de localização da mala ..., furtada do interior da residência sita na ... tinha dado sinal, conforme resulta da denúncia que deu origem ao NUIPC 380/23.0PWLSB, apenso aos autos.
Do visionamento das imagens CCTV captadas no dia 10 de Maio de 2023, junto à residência sita na ..., alvo de um dos furtos qualificados, é possível observar as arguidas BB e AA, entre as 16H20 e as 17H49, junto ao local onde o mesmo ocorreu, conforme fls. 121 a 125 dos autos.
Dos registos de geo-referenciação do veículo ... de matrícula 8719MDZ, utilizado pelas arguidas na sua deslocação de ... para ... e durante os trajectos percorridos nas datas dos registos dos furtos as residências objecto dos autos, resulta a localização e permanência da citada viatura nos locais e imediações das moradas das residências assaltadas, compatíveis com a execução dos crimes em apreço, conforme consta do relatório de análise e GPS tracking de fls. 269 a 294.
Consta, igualmente, dos autos a fls. 116 a 118, o visionamento das arguidas AA e BB a entrarem na loja ..., pelas 18H25 do dia 10 de Maio de 2023, onde adquiriram artigos de vestuário e calçado, tendo daí saído pelas 19H02, em direcção à sua residência na ..., local onde foram interceptadas na posse de tais artigos que haviam adquirido com o dinheiro proveniente dos assaltos às residências em ...; sendo que o trajecto das arguidas do local da prática dos factos até ao local em que foram interceptadas pela P.S.P. na posse de objectos furtados e destes que haviam adquirido com tal dinheiro de que se apropriaram, se encontra confirmado pelos registos de geo-referenciação da viatura utilizada pelas mesmas, conforme fls. 269 a 294.
Da análise conjugada e articulada de todos estes elementos probatórios resultantes dos autos, que o Tribunal «a quo» omitiu no despacho recorrido, e das regras da experiência comum e da normalidade, resulta fortemente indiciado terem sido as arguidas as autoras dos furtos qualificados constantes da acusação5»
E, indubitavelmente - é pacífico e decorre do texto da decisão instrutória proferida - o Sr. Juiz de Instrução não fez, sequer, alusão (e muito menos apreciação crítica) à prova indiciária recolhida e devidamente elencada e discriminada na acusação, quedando-se pelas considerações a respeito das apreensões efectuadas e, mesmo nesta temática, sem distinguir os objectos provenientes da revista e aqueles outros resultantes da busca domiciliária realizadas.
Acresce que, o Sr. Juiz de Instrução também não procedeu à especificação, nem sequer sumária, dos factos indiciados e dos não indiciados, sendo certo que a acusação deduzida apresenta já alguma densidade factual, como se constata de fls. 597/617.
A questão coloca-se, pois, previamente à dissensão indiciária.
Isto é, singelamente, cumpre indagar se a decisão instrutória proferida e objecto do presente recurso se encontra suficientemente fundamentada e se é (ou não) válida.
Na verdade, num Estado de Direito, os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão6.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva o objectivo de tal dever de fundamentação, imposto pelos sistemas democráticos, é permitir «a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina
Como referia Alberto dos Reis, uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas.7
No âmbito da fundamentação exigida às decisões instrutórias, em particular nos despachos de não pronúncia, no que concerne à enumeração dos factos suficientemente indiciados e dos não indiciados, como no que respeita à motivação, a jurisprudência não é uniforme.
Tal como referido no Acórdão deste Tribunal da Relação de ... de 9/11/2023, processo n.º 6339/21.4T9LSB.L1-9, in www.dgsi.pt. «Há quem considere que basta uma narração de forma sintética dos factos indiciados e não indiciados, outros que se exige uma enumeração de cada um dos factos indiciados e não indiciados, outros ainda que não se justifica a exigência de uma narração completa dos factos suficientemente indiciados e não indiciados quando a decisão instrutória de pronúncia é proferida em instrução requerida pelo arguido, e há também quem entenda que não se exige a narração dos factos indiciados e não indiciados ou que não se exige a descrição de quaisquer factos, mas apenas a fundamentação prevista no n.º 4 do artigo 97º do CPP.
Quanto às consequências da “deficiência” de “motivação/fundamentação” de facto do despacho de não pronúncia, também existem divergentes posições na jurisprudência, sendo várias as soluções jurídicas apontadas: nulidade insanável de conhecimento oficioso, nulidade sanável dependente de arguição perante o tribunal a quo, irregularidade de conhecimento oficioso do artigo 123º, n.º 2 do Código de Processo Penal, mera irregularidade»
Quanto a nós, estamos convictos que no despacho de não pronúncia terá, pelo menos, de constar uma síntese autónoma e sistematizada da matéria factual que se considerou indiciada e não indiciada (salvo as situações de manifesta simplicidade da factualidade em que da própria fundamentação resulte claramente, sem necessidade de indicação expressa, a factualidade indiciada e não indiciada) e, também, naturalmente, uma apreciação crítica, concisa mas completa, da prova indiciária recolhida no inquérito que surge a respaldar a triagem efectuada.
No caso, deduzida que foi a acusação, o objecto do processo passou a ser definido pela factualidade que naquela foi narrada, o que determina, em sede de decisão instrutória, designadamente em caso de despacho de não pronúncia, que a delimitação da matéria fáctica suficientemente indiciada e da não indiciada assume, outrossim, particular relevância na aferição dos efeitos do caso julgado.8
No que respeita às consequências da falta ou insuficiência de fundamentação, no âmbito do despacho de não pronúncia, estamos em crer que, redundará em (mera) irregularidade, mas de conhecimento e declaração oficiosas pelo Tribunal ad quem, assentes os pressupostos, por um lado, de que o princípio da tipicidade/legalidade vigora no regime geral das nulidades em processo penal (art.º 118º, n.º 1 e 2, do C.P.P.), e, por outro, que o dever de fundamentação não se queda na tutela dos interesses concretos dos sujeitos processuais.9
Volvendo, de novo, ao caso em apreço, e como já antes se disse, o Sr. Juiz de Instrução (com excepção das apreensões efectuadas e mesmo neste âmbito sem distinguir, com clareza, aquelas que resultaram das revistas e as demais decorrentes da busca) não aludiu e muito menos procedeu à apreciação crítica da prova indiciária recolhida e devidamente elencada e discriminada na acusação e também não procedeu à especificação, nem sequer sumária, dos factos indiciados e dos não indiciados, sendo certo que a acusação deduzida, com quarenta e um pontos e vinte páginas, apresenta já alguma densidade factual.
Vale tudo por dizer que, o despacho de não pronúncia em causa se mostra insuficientemente fundamentado o que, para além do mais, impossibilita a sindicância que se reclama ao Tribunal ad quem, e constitui irregularidade de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 123º, n.º 2 do C.P.P.
Termos em que se conclui que se impõe a prolação de nova decisão instrutória pelo Sr. Juiz de Instrução, na qual sejam supridas as apontadas omissões de fundamentação, ficando, pois, prejudicado o conhecimento da terceira questão suscitada no recurso, isto é, a de se saber se existem indícios suficientes para a prolação de despacho de pronúncia e para a (re) aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a. Revogar o despacho recorrido na parte em que julgou nula a busca domiciliária efectuada;
b. Julgar verificada a irregularidade do art.º 123º, n.º 1 do Código de Processo Penal e, em consequência, declarar inválida a decisão instrutória e todos os actos posteriores dela dependentes;
c. Determinar que seja proferida nova decisão instrutória, na qual, para além de se valorar a prova recolhida na sequência da revista e busca domiciliária efectuadas, sejam supridas as omissões atinentes, por um lado, à enunciação dos factos indiciados e não indiciados, por referência à acusação, e, por outro, à análise crítica dos meios de prova produzidos no inquérito e indicados na acusação deduzida.
Comunique de imediato à primeira instância e notifique.

Lisboa, 11 de Abril de 2024
Ana Marisa Arnêdo
José Castro (junta Declaração de Voto)
Micaela Pires Rodrigues

DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei favoravelmente o acórdão por concordar com o respetivo dispositivo, mas não me revejo inteiramente na argumentação expendida quanto à questão do conhecimento oficioso da irregularidade por falta de fundamentação do despacho recorrido.
A falta de fundamentação do despacho recorrido constitui mera irregularidade, conforme expresso na fundamentação deste acórdão, com o qual, nesse segmento, estamos inteiramente de acordo.
Todavia, não tendo sido a mesma tempestivamente arguida pelo interessado, ter-se-á de considerar sanada, insuscetível assim de reparação oficiosa nos termos do nº 2 do art.º 123º do CPP, cuja norma dirige-se, aliás, primordialmente ao tribunal a quo e não ao tribunal ad quem.
A sanação da irregularidade, pela falta de arguição pelo interessado no prazo legalmente previsto no nº 1 do artº 123º do CPP, tem como consequência a produção dos efeitos do ato irregular no processo.
Com efeito, conforme sustenta Manuel Lopes Maia Gonçalves in Código de Processo Anotado, 6ª ed. Revista e Actualizada, Almedina, Coimbra 1994, pág. 243, em anotação ao artº 123º do CPP, «Para que o acto viciado de irregularidade seja válido e produza efeitos não é necessária confirmação ou aquiescência. A sua invalidade é que depende de prévia arguição, no prazo estabelecido neste artigo, e de declaração por parte do juiz, o qual pode até ordenar a reparação do vício nos termos do n.º 2.»
De todo o modo, «Apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que não se exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais» (ob cit., pág. 243).
É seguramente o caso da falta de fundamentação de despachos decisórios (cujo dever de fundamentação é imposto pelo art.º 205º, nº 1, da CRP, e na lei ordinária processual penal pelo art.º 97º, nº 5, do CPP), visto que essa irregularidade torna insindicável ou dificilmente sindicável a decisão, o que se traduz, ao fim ao cabo, numa falta de equidade no procedimento pelo relevante prejuízo que traz ao efetivo exercício do direito ao recurso por banda dos sujeitos processuais.
Nessa conformidade, neste caso, não se encontrando na lei ordinária forma de se poder conhecer oficiosamente do vício vindo de referir (atento o regime geral do conhecimento das irregularidades), todavia, o seu conhecimento oficioso é imposto pelos artigos 18º, nº 1 (aplicabilidade direta das normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias, sem necessidade de norma ordinária concretizadora), 20º, nº 4 (equidade do procedimento) e 32º, nº 1 (garantias de defesa no processo criminal e efetivo direito ao recurso).
José Castro
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1. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal II, Reimpressão da Universidade católica, ..., 1981, p. 388 e 389.
2. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 2014, processo n.º 41/11.2 PEVR.E1, in www.dgsi.pt.
3. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/2007, DR II Série de 20/6/2007, julgou conforme a interpretação do n.º 5 do art.º 174º e da parte final do n.º 2 do art.º 177º do C.P.P. no sentido de que efectuada busca domiciliária por órgão de polícia criminal, sem precedência de autorização judicial, é de quarenta e oito horas o prazo para a comunicação ao juiz de instrução da efectivação da busca e a decisão judicial da sua validação pode resultar, de forma implícita, desde que inequívoca, da decisão de validação da detenção do arguido e de fixação da medida de coacção de prisão preventiva.
4. Neste sentido, entre outros, os acórdãos dos Tribunais da Relação de ... de 12/5/2015, de 31/10/2017, de 24/11/2020, de 8/6/2021 e de 13/1/2021; da Relação do Porto de 26/5/2021; da Relação de Évora de 3/7/2012, de 18/4/2017, de 13/7/2021 e de 9/1/2024, todos in www.dgsi.pt.
5. Negrito e sublinhado nossos.
6. O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que: «A fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão» cf. Acórdãos n.º 55/85, 135/99 e 408/2007.
7. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/3/2015, processo n.º 863/11.4GAFAF.G1, in www.dgsi.pt.
8. A propósito, refere o Acórdão do T.R.P. de 22/9/2021, in www.dgsi.pt., que «(…) o despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito que tem força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre os factos a que é relativo. Para se definir o alcance desse caso julgado, é óbvio que deverão ser descritos os factos que não se consideram suficientemente indiciados (porque é em relação a eles que não poderá ser reaberta tal discussão)»
9. Neste sentido, entre muitos outros, para além do Acórdão do Tribunal da Relação de ... de 9/11/2023, processo n.º 6339/21.4T9LSB.L1-9 (acima citado), os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra de 22/11/2023, processo n.º 3397/20.2T9LRA.C1, da Relação de Guimarães de 27/5/2019, processo n.º 134/17.2T9TMC.G1 e da Relação do Porto de 23/10/2017, processo n.º 781/14.4GBGMR), todos in www.dgsi.pt.