Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2785/14.8YYLSB-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Quando uma sentença de condenação diz que, de uma dada prestação, apenas é devida a parte de capital e que não sabe qual é o valor desta e que, por isso, ela tem de ser liquidada posteriormente, essa liquidação tem de ser feita no processo declarativo e não no requerimento executivo, porque não depende de simples cálculo aritmético (arts. 704/6 e 716/4 e 5, ambos do CPC).
II- Eventual plano financeiro que discrimine as várias parcelas da prestação, que não seja referido na sentença a liquidar, não é um elemento que dela conste, pelo que tem de poder ser contestado, pelo que não se podem fazer, no requerimento executivo, cálculos aritméticos com base nele.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

No processo 808/11.1YXLSB,  L, foi, em 21/02/2012, condenado, na parte que ainda importa a este recurso, a pagar à (actualmente) C, a quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente à soma das 35 prestações vencidas referentes apenas ao capital (do contrato celebrado a 30/04/2008), com exclusão dos juros remuneratórios, imposto de selo, comissões de gestão, despesas e prémio de seguro de vida, acrescida de juros de mora à taxa anual de 27,098% desde 10/07/2010 até efectivo e integral pagamento e deduzido o valor de 1574,06, recebido pela autora.”
Transitada esta decisão, a C veio requerer a execução da mesma que disse, na parte de capital daquela condenação [contrato n.º 879897, celebrado aos 30/04/2008], ter ele o valor de “6099,62€ [correspondente à soma das 35 prestações vencidas (26.ª a 60.ª) referentes apenas ao capital em divida com exclusão dos juros remuneratórios] – vidé plano financeiro.”
O executado deduziu oposição, dizendo que a “obrigação exequenda [naquela parte] apresenta-se ilíquida em face do título executivo. Por isso, a liquidação deve ser efectuada no processo declarativo, mediante incidente. Assim, não basta o simples cálculo aritmético, é necessária a prova das prestações de capital por pagar, sem juros remuneratórios, imposto de selo e prémios de seguro. É este o entendimento do acórdão TRL 13/09/2018, proc. 20838/13.8YYLSB.L1-8.”
A C contestou os embargos, defendendo a sua improcedência.
No despacho saneador de 03/06/2020, julgou-se a oposição à execução parcialmente procedente, extinguindo-se execução quanto à quantia reclamada sob o título contrato n.º 879897, celebrado aos 30/04/2008 […].
Deram-se como assentes os factos relativos à condenação, a liquidação constante do requerimento executivo e a junção do plano financeiro, dado por reproduzido.
No despacho saneador, devidamente fundamentado, diz-se, entre o mais:
Sempre que o exequente, para fazer as contas duma liquidação, tem que acrescentar, introduzir ou alegar factos que não constam do título executivo, não estamos perante uma liquidação dependente de simples cálculo aritmético.
Por outras palavras, deve usar-se o incidente de liquidação, previsto no art. 358 do CPC, sempre que um dos elementos de que depende a liquidação da quantia exequenda não resulte dos autos, por não ter sido aí demonstrado (cfr. os acordãos do TRC de 25/06/2013, proc. 367/07.0TMCBR-D.C1, do TRL de 16/03/2011, proc. 530/09.9TTFUN.L1-4, do TRL de 10/04/2018, proc. 15382/16.4T8LSB-A.L1-7 e do TRL de 13/09/2018, proc. 20838/13.8YYLSB.L1-8).
No caso dos autos, como já se referiu, o título executivo é uma sentença e a obrigação é parcialmente ilíquida.
Com efeito, na parte relativa ao “contrato n.º 879897”, a liquidação não depende de simples cálculo aritmético, pois é necessária a realização de uma actividade probatória para apurar a soma das 35 prestações vencidas referentes apenas ao capital do contrato celebrado a 30/04/2008, com exclusão dos juros remuneratórios, imposto de selo, comissões de gestão, despesas e prémio de seguro de vida […].
É fora de dúvidas que esta liquidação obriga à realização de cálculos aritméticos. A questão é que essa liquidação não se resume apenas a cálculos aritméticos, pois nem todos os elementos de que depende o seu apuramento se encontram fixados na sentença ou decorrem da lei: falta desde logo a determinação do valor das prestações de capital.
Falta, pois, apurar este facto, do qual depende a liquidação da quantia exequenda, o qual não está fixado na sentença nem pode ser determinado através de elementos objectivos e incontroversos, como quando se trata de achar uma taxa de juro indexada ou um câmbio monetário, dados que decorrem de publicações oficiais.
Para determinar o valor das prestações de capital a exequente indicou um “plano financeiro”, que mais não é do que um documento particular elaborado pela própria exequente, que não foi objecto de contraditório ou de prova, muito menos reconhecido pela sentença condenatória, pelo que não se pode dar o mesmo por automaticamente provado, para o efeito de estabelecer os cálculos de que depende a liquidação da quantia exequenda.
Como se refere no ac. do TRL de 02/10/2012, proc. 25540/11.2YYLSB.L1-1, que apreciou situação idêntica à dos presentes autos, «tendo o recurso ao art. 661/2 do CPC sido devido à impossibilidade, reconhecida na sentença que serve de título executivo, de, por mero cálculo aritmético, se poder liquidar a totalidade da quantia devida pelo executado ao exequente, é aplicável, nessa parte, o incidente de liquidação a suscitar na respectiva acção declarativa».
 […]
Importa, pois, concluir que a sentença dada à execução não constitui título executivo na parte relativa ao “contrato n.º 879897”.
A exequente recorre deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que julgue os embargos improcedentes -, concluindo que:
A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 703/1-a, 716/1-2-5 e 358 a 361, do CPC.
O executado contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
*
Questão que importa decidir: se a liquidação podia ser feita no requerimento executivo.
Os factos que importam a esta decisão são os que constam do relatório supra.
*
Decidindo:
Antes de mais diga-se que dizer que uma decisão viola normas legais não é dar cumprimento, mínimo que seja, ao disposto no art. 639/1 do CPC.
Tal como invocar uma mão cheia de acórdãos e nada dizer, no essencial, contra a doutrina e acórdãos invocados na decisão recorrida, não tem valor.
Mas, sendo evidente que a exequente não tem razão e encontrando-se a questão amplamente debatida, entende-se que não se deve perder tempo com a ausência de fundamentos do recurso nas conclusões.
*
Posto isto,
A agora exequente quis a condenação do agora executado a pagar-lhe uma série de prestações em dívida, sendo elas compostas de várias parcelas a vários títulos, só uma delas sendo de capital. O tribunal que deu origem ao título executivo decidiu que apenas a parte de capital de cada uma dessas prestações era devida e, como não sabia qual o valor dessa parte, condenou no que se viesse liquidar.
A exequente veio agora requerer a execução daquele título e quer impor, sem possibilidade de discussão, o facto de que a parte daquela prestação que corresponde ao capital é de x€ com base naquilo que consta de um plano financeiro a que não é feito qualquer referência na sentença.
Assim sendo, a liquidação feita pela exequente não é o resultado de um simples cálculo aritmético – como teria que ser para que a liquidação pudesse ser feita no requerimento executivo (art. 704/6 e 716/4 e 5 do CPC) - que opere com factos que estejam abrangidos pela segurança do título executivo, ou sejam notórios ou de conhecimento oficioso, mas antes com base num facto que pode ser contestado e que, por isso, tem de poder ser apreciado num incidente declarativo.
E tanto basta para confirmar a decisão recorrida.
No mesmo sentido, vejam-se os seguintes acórdãos, para além dos 5 já referidos no saneador sentença e na oposição à execução: do TRP de 20/10/2014, proc. 692/11.5TTMAI-C.P1 (a que Marco Carvalho Gonçalves adere na nota 431, pág. 144, das Lições de processo civil executivo, 2016, Almedina); do TRP de 16/12/2015, proc. 870/10.4TTMTS-E.P1; do TRL de 20/04/2016, proc. 2226/08.0TTLSB-B.L1-4; do TRL de 06/07/2017, proc. 19412/13.3YYLSB-A.L1 (em que o actual relator foi 2.º adjunto; não publicado); e do TRL de 06/12/2018, proc. 19092/16.4T8LSB (do ora relator).
As várias decisões que a exequente invocou não tentam sequer demonstrar que se pode ter como certo o valor do capital de cada prestação que se tenta executar, nem que isso resulte da sentença exequenda. E no caso dos autos é evidente que assim não acontece.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras) pela exequente, por ter perdido o recurso.
Lisboa, 10/09/2020
Pedro Martins
Inês Moura
Nelson Borges Carneiro - com o seguinte voto de vencido:
O tribunal a quo entendeu, no entanto, ser “necessária a realização de uma atividade probatória para apurar a soma das 35 prestações vencidas, pois nem todos os elementos de que depende o seu apuramento se encontram fixados na sentença ou decorrem da lei: falta desde logo a determinação do valor das prestações de capital”.
Para apurar o valor correspondente à soma das 35 prestações vencidas, o mesmo obtém-se por consulta do plano financeiro elaborado pela apelante/exequente, e cuja exatidão pode ser imediatamente verificada e, eventualmente contraditada, caso padeça de algum erro, não sendo necessária a realização de qualquer atividade probatória.
E, foi, nesses termos, que a apelante/exequente procedeu à liquidação (Capital inicial - € 6099,62 [correspondente à soma das 35 prestações vencidas (26.ª a 60.ª) referentes apenas ao capital em divida com exclusão dos juros remuneratórios]), não havendo, por isso, necessidade de realização de qualquer atividade probatória para apurar a soma das 35 prestações vencidas, podendo ser feita, como o foi, no requerimento executivo com a junção do respetivo plano financeiro.
Que a liquidação feita por simples cálculo aritmético é aquela que assenta em números que possam ser retirados, porque direta e imediatamente escrutináveis, de documentos juntos com o requerimento inicial, maioritariamente, tem decidido, nesse sentido, a jurisprudência dos nossos tribunais 1, 2, 3, 4 (a que acresce a jurisprudência citada pela apelante nas suas alegações de recurso).
Notas:
1. A sentença que, em face de um contrato de mútuo cujas prestações se venceram antecipadamente nos termos do artigo 781º do Cód. Civ., condena no pagamento dos montantes de capital incorporados nas prestações assim vencidas, permite ao credor o recurso imediato à via executiva, se com o requerimento for junto documento que evidencie cada uma das prestações do mútuo e as decomponha nas suas parcelas constitutivas – Ac. Tribunal da Relação de Évora de 2019-05-02, Relatora: MARIA DA GRAÇA ARAÚJO, http://www. dgsi.pt/jtre.
2. A liquidação feita por simples cálculo aritmético é aquela que assenta em factos que ou estão abrangidos pela segurança do título executivo ou são factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal e agente de execução (que são, nos termos gerais, os factos notórios, de conhecimento resultante do exercício das suas funções ou cujo próprio regime permita esse conhecimento), e ainda a que assenta em números que possam ser retirados, porque direta e imediatamente escrutináveis, de documentos juntos com o requerimento inicial –  Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2019-03-19, Relator: RIJO FERREIRA, http://www.dgsi.pt/jtrl.
3. A liquidação do montante condenatório quando do que se trata, essencialmente, é destrinçar a parte do capital de cada uma das prestações relativamente à parte de juros incorporada, deverá ser feita no requerimento executivo –  Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2018-02-27, Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO, http://www.dgsi.pt/jtrl.
4. Estando formalizado no título contratual o montante do crédito, o modo fracionado do seu pagamento e o montante de cada prestação mensal, a liquidação da obrigação não depende senão de um simples cálculo aritmético  –  Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2015-10-15, Relator: SACARRÃO MARTINS, http://www.dgsi.pt/jtrl.