Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
329/23.0GBMFR.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: AMNISTIA
PERDÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A Lei nº 38-A/2023, de 02/08, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas) não é inconstitucional por violação do princípio constitucional da igualdade, porque a discriminação positiva introduzida pela Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto ao segmento da população cuja idade se situa entre os 16 e os 30 anos, no momento da prática do crime que estiver abrangido pela amnistia e/ou pelo perdão, se mostra justificada, segundo um critério objectivo e razoável e tal previsão ainda está dentro dos limites da função modeladora do legislador ordinário, que definiu a faixa etária abrangida pela Lei da Amnistia, por referência ao limite máximo de idade, em regra, permitido para as inscrições nas Jornadas Mundiais da Juventude.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 10 de Outubro de 2023, no Processo Abreviado nº 329/23.0GBMFR do Juízo Local Criminal de Mafra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi decidido:
a) Condenar o arguido AA, pela prática, em 14-04-2023, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 69º nº 1 al. c) e 348º nº 1 al. a) do Código Penal, com referência ao artigo 152º nº 1, al. a) e nº 3 do Código da Estrada, em pena de multa de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €12,00 (doze) euros, perfazendo a quantia total de €600,00 (seiscentos euros).
b) Condenar o arguido AA, nos termos do artigo 69º nº 1, alínea c) do Código Penal, na sanção acessória de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses.
O arguido interpôs recurso desta sentença, tendo sintetizado as razões da sua discordância, nas seguintes conclusões:
Foi proferida sentença de condenação em 10-11-2023 entre outros nos seguintes termos:
Condenar o arguido AA, pela prática, em 14-042023, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 69º nº 1, al. c) e 348º nº 1 al. a) do Código Penal, com referência ao artigo 152º nº 1, al. a) e nº 3 do Código da Estrada, em pena de multa de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €12,00 (doze) euros, perfazendo a quantia total de €600,00 (seiscentos euros).
Condenar o arguido AA, nos termos do artigo 69º nº 1, alínea c) do Código Penal, na sanção acessória de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses.
Condenar o arguido AA, nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 UC (duas unidades de conta), bem como no pagamento de encargos devidos (art.ºs 513º, nº 1 e 514º, nº 1 e 344º, nº 2 al c), do Cód. Processo Penal, e 1º, 2º, 3º, nº 1 e 8º, nº 9, estes do Regulamento das Custas Processuais)
A douta decisão prolatada aplicou, em singelo entendimento, erroneamente, regras de direito aplicáveis ao caso concreto, nomeadamente a não ponderação adequada da possibilidade de perdão da pena de acordo com artigo 2º da citada Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto, estabelece no seu artigo 1º um perdão de penas e uma amnistia de infrações.
Quanto à pena aplicada em tese geral diremos que o art.º 40º do Código Penal esclarece que com a aplicação da pena se visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
O art.º 71º do diploma estatui que a medida da pena é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa e das exigências de prevenção; na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depuserem a favor do agente ou contra ele.
Deverá o Tribunal proceder à modificação da decisão sobre a matéria de facto provada nos termos do art.º 431º alínea b) do CPP já que a prova se encontra documentada e o princípio da livre apreciação da prova vincula também esse Tribunal e, porque as provas cuja apreciação se requer impõem decisão diferente da proferida (art.º 412º nº 3, alínea b) CPP).
Termos em que, e nos melhores de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser aceite e, por conseguinte, julgado totalmente procedente, substituindo-se a sentença proferida pelo tribunal a quo por outra que:
Extinga o procedimento criminal por aplicação da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto, se assim não se entender, sempre deverá ser julgado procedente o recurso absolvendo o arguido do crime que vinha acusado.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu:
1. Os factos pelos quais o arguido foi condenado datam de dia 14/04/2023 e o arguido nasceu a 18/06/1980. Ou seja, o arguido tinha 42 anos à data da prática dos factos, estando assim, sem quaisquer outras considerações, afastada a possibilidade de aplicação da Lei n.º 38.º-A/2023, de 2/08.
2. A determinação da medida da pena (principal e acessória), nos termos dos artigos 40.º, e 71.º, n.º 1, do Código Penal, é feita atendendo, em primeira linha, à culpa do agente, nunca a ultrapassando e tendo em vista as finalidades de prevenção.
3. A prevenção geral na sua vertente positiva implica a tutela dos bens jurídicos, no sentido de integração e reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma jurídica, ao mesmo tempo que se assegura a credibilidade do sistema penal perante a comunidade.
4. De acordo com o artigo 71º, nº2 do Código Penal, como forma de atingir estas finalidades, há que atender a todos os critérios que deponham a favor ou contra o agente, como sejam o grau de ilicitude, o modo de execução do facto e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e situação económica e a conduta anterior e posterior ao facto.
5. Da análise da sentença aqui em causa, resulta que, na determinação das penas aplicáveis, o Tribunal a quo considerou todos os factores exigidos por lei, ponderando aqueles que depunham em benefício e em desfavor do arguido, nomeadamente, o grau de ilicitude, ao modo de execução dos factos e a gravidade das consequências, bem como o seu percurso de vida.
6. Em conformidade, afigura-se-nos que a decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto à medida das penas principal e acessória é inatacável.
Por todo o exposto, entendemos dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, a Exma. Sra. Procuradora Geral da República Adjunta emitiu parecer, no sentido de que o presente recurso merece provimento.
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos art.ºs 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos art.ºs 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a decidir são as seguintes:
Saber se deve ser alterada a matéria de facto, ao abrigo do disposto no art.º 412º nº 3 e 431º al. b) do CPP;
Se o procedimento criminal deve ser julgado extinto por amnistia, ao abrigo da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto;
Se assim não se entender, sempre deverá ser julgado procedente o recurso absolvendo o arguido do crime que vinha acusado.
2. 2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença condenatória sob recurso fixou os factos e fundamentou a sua convicção, quanto à prova produzida, nos seguintes termos:
Factos Provados:
1. No dia 14.04.2023, pelas 15.55 horas, na ... na ..., o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de matrícula AG-..-OU.
2. Nesse local o arguido foi fiscalizado pelos militares da GNR BB e Guarda nº …, os quais se encontravam devidamente uniformizados e em exercício de funções.
3. Foi solicitado ao arguido que realizasse o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, tendo o mesmo recusado.
4. Perante esta recusa, os militares da GNR informaram o arguido acerca das opções que tinha para realizar o teste e das consequências da sua conduta ao não permitir a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue, mormente que incorria na prática de crime de desobediência.
5. No entanto o arguido manteve a sua recusa dizendo” não faço teste nenhum ao álcool”. 
6. O arguido compreendeu perfeitamente a ordem dos referidos agentes de autoridade, porém desrespeitou-a, recusando submeter-se a teste de pesquisa de álcool no sangue, apesar de ter sido advertido de que, não acatando a ordem, incorreria na prática de um crime de desobediência.
7. Ao não obedecer à ordem para se submeter às provas estabelecidas para deteção do estado de influenciado pelo álcool, o arguido agiu voluntária livre e conscientemente, bem sabendo que a mesma era legitima, proveniente de autoridade competente, que lhe tinha sido regularmente comunicada e que lhe devia obediência.
8. O arguido sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei.
9. O arguido não tem antecedentes criminais.
10. O arguido é empresário, auferindo um rendimento mensal de cerca de €2.000,00.
11. É casado.
12. A sua mulher trabalha na Câmara Municipal de Mafra e tem um vencimento médio mensal de €2.000,00.
13. Vivem em casa própria
14. Despendem cerca de €150,00 mensais, em consumos de água, luz e gás.
15. O arguido e sua mulher têm duas filhas menores a seu cargo.
16. Com as quais gastam cerca de €400,00, sendo €200,00 para cada uma das meninas.
17. O arguido completou o 12º ano de escolaridade
Quanto à exposição dos motivos da convicção, no que se refere aos factos que vinha descritos na acusação e dados como provados de 1. a 8., o Tribunal analisou conjugadamente o auto de notícia de fls. 4 e 5, o auto de identificação de fls. 7 e o auto de contraordenação de fls. 8, o aviso para apresentação dos documentos de fls. 9 e o print contendo elementos de informação provenientes do IMT de fls. 10 e 11.
Também se tomou em consideração os depoimentos das testemunhas BB e CC, o primeiro militar da GNR, que foi o agente autuante e que corroborou as declarações do arguido quanto às circunstâncias anteriores ao momento em que aquele militar detectou o cheiro a álcool no hálito do arguido e lhe solicitou que se submetesse ao teste de pesquisa do álcool no sangue, precisamente, por ter visto o arguido, momentos antes, a conduzir um veículo automóvel, numa via pública, em tal estado, tendo sido nesse veículo por si conduzido que chegou ao local, onde parqueou o veículo no meio da estrada, num primeiro momento, tendo, de seguida, após alguns minutos em que esteve manusear o seu telemóvel, estacionado em frente da viatura da GNR.
A segunda que confirmou o odor a álcool do arguido e as circunstâncias em que o arguido chegou ao local a conduzir um veículo automóvel e em que lhe foi dito pelos militares da GNR que teria de se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue, bem como as advertências de que a recusa manifestada pelo arguido, de que incorreria em crime de desobediência com tal comportamento.
O arguido também acabou por reconhecer que os militares lhe deram uma ordem para que se submetesse ao teste do álcool no sangue e que foi advertido de que a recusa a tal o faria incorrer num crime de desobediência, mas entendeu que não tinha de obedecer por tal ordem lhe ter sido emitida, mais de meia hora depois de se encontrar junto daqueles militares.
No que concerne ao elemento subjectivo do tipo, em virtude de o arguido ter sido o protagonista de tais factos, ter carta de condução há vários anos, ter visto os militares da GNR fardados e a exercerem as suas funções de fiscalização de trânsito – pois que estavam a autuar uma pessoa conhecida do arguido por uma infracção ao Código da Estrada, por estacionamento de veículo automóvel em local proibido para o efeito – e, portanto, não poder ignorar, à luz das regras de senso comum, bem assim porque tal decorre directamente da lei que é do conhecimento geral dos cidadãos comuns, que devia obediência a ordens legítimas dos agentes da autoridade policial, como era o caso, na medida em que chegou ao local para ajudar a pessoa sua conhecida que estava a ser autuada, com o pagamento da coima, a conduzir um veículo automóvel, do mesmo modo que sabia que exalava um forte odor a álcool e por conseguinte, deveria ter-se sujeitado à ordem que lhe foi transmitida, por ser formal e substancialmente legítima, pois continha todos os elementos de informação necessários e pertinentes para o arguido compreender o conteúdo da ordem e as consequências da recusa, que lhe foram explicadas pelos militares da GNR envolvidos.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, descrita em 9., o certificado de registo criminal junto aos autos.
No que se refere às condições socioeconómicas do arguido descritas em 10. a 17., as declarações do próprio arguido (acta da audiência de discussão e julgamento do dia 10 de Outubro de 2023, referência Citius 146724858 e audição da gravação da sentença).
Recorrendo à audição da audiência de discussão e julgamento, na parte em que foi proferida a sentença, há a assinalar que, depois de ter feito o enquadramento jurídico penal dos factos como um crime de desobediência, a Mma. Juíza, disse, quanto à pena principal e à pena acessória que:
No que se refere à moldura penal abstracta prevista para o crime de desobediência, pena de prisão até um ano ou com pena de multa, até 120 dias, começou por optar pela aplicação de pena não privativa da liberdade, invocando a regra de que a opção por sanções privativas da liberdade deve ser reservada para as formas mais graves de cometimento dos crimes;
A prevenção geral é elevada por ser muito frequente a prática deste tipo de crimes e o desrespeito dos cidadãos às ordens legítimas das autoridades policiais;
As necessidades de prevenção especial são medianas, porque se, por um lado, o arguido não tem antecedentes criminais, por outro lado, o arguido não mostrou qualquer arrependimento em relação aos factos, não reconheceu o desvalor da sua conduta e continua a considerar que a legalidade está a seu favor, e está efectivamente, mas no caso vertente não tem razão, quando se recusou submeter ao teste do álcool invocando não haver qualquer justificação para realizar esse teste.
A ausência de antecedentes criminais associada à sua idade permite considerar que este crime foi um acto isolado na sua, vida, pelo menos, até ao momento, sendo este o seu primeiro contacto com a justiça penal.
Tendo em consideração o grau de ilicitude que é elevada, em face da insistência na recusa em acatar a ordem de se submeter ao teste de despiste do álcool no sangue, mesmo depois de ter sido cabalmente esclarecido na obrigatoriedade de o fazer e das consequências da recusa, assim como o dolo que também é elevado, na modalidade de dolo directo, que militam a seu favor a ausência de antecedentes criminais e o facto de estar familiar, social e laboralmente inserido, julgou adequada a opção pela pena de multa e a sua graduação em 50 dias, por considerar que o arguido reúne condições para manter uma conduta lícita.
Quanto ao quantitativo diário da pena de multa em face dos limites mínimo e máximo fixados no art.º 47º entre €5 e €500,00 e os rendimentos e despesas globais do arguido, tal como resultam da matéria de facto provada, considerou ajustado e exequível o valor diário de €12,00.
Por fim, no que se refere à sanção acessória de inibição de conduzir veículos automóveis, dentro dos limites fixados no art.º 69º nº 1 al. c) do CP, entre três meses e três anos, que não é passível de suspensão na respectiva execução, nem pode ser substituída por qualquer outra, tendo em consideração tudo quanto foi dito acerca dos critérios de ponderados em sede de dosimetria concreta da pena principal, entendeu proporcional à gravidade dos factos, a fixação desta pena acessória em quatro meses.
O arguido AA nasceu em 18 de Junho de 1980 (certificado de registo criminal com a referência Citius 143849897).
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
O direito de clemência inclui a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual, que, por sua vez, inclui o indulto e a comutação de penas.
A amnistia e o perdão genérico são da competência da Assembleia da República (artigo 161º alínea f) da CRP) e o indulto e a comutação de penas são actos próprios da competência do Presidente da República (art.º 134º al. f) da CRP).
A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos, como da medida de segurança (cfr. art.º 128º nº 1 do Código Penal).
O perdão genérico só extingue a pena, no todo ou em parte (cfr. art.º 128º nº 3 do C.P.). A amnistia é uma medida de clemência, objectiva, de carácter geral e abstracto, cujo critério de aplicação é o tipo de crime a que será aplicável, segundo a descrição constante da norma incriminadora e seja qual for a pena aplicada a um agente concretamente determinado.
A amnistia em sentido próprio, é a que se aplica antes da condenação, refere-se ao próprio crime e faz extinguir o procedimento criminal.
Já a amnistia em sentido impróprio acontece depois da condenação e tem um efeito impeditivo ou modificativo do cumprimento da pena aplicada, fazendo cessar total ou parcialmente a execução da pena principal, bem como das penas acessórias.
A amnistia aniquila os factos já ocorridos como objecto da incriminação, «de sorte que aos olhos da justiça, por uma ficção legal, considera-se como se nunca tivessem existido, salvos os direitos de terceiro com relação à acção civil para a reparação do dano» (Acórdão de Fixação de Jurisprudência, datado de 25.10.2001, processo n.º P00P3209, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Luís Osório, Notas, 2ª edª., pág. 425, Maia Gonçalves, «As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão», in RPCC, ano 4, fasc. 1, p. 13; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, p. 295; Ac. do Tribunal Constitucional nº 510/98, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
«O direito de graça só pode ter a ver, em qualquer dos casos, com a consequência jurídica, não com o facto ou o crime praticados», pelo que «o que distingue os vários institutos abrangidos por aquela realidade é o carácter geral da amnistia (dirigida a grupos de factos ou agentes, na qual se inclui o perdão genérico, que deve ser considerado, para todos os efeitos, uma verdadeira amnistia) em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)» (Figueiredo Dias (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 689).
«O perdão, ao contrário do que sucede com a amnistia, não extingue a infração.
«A amnistia é a abolição da incriminação de certos factos passados, objecto de incriminação (…), enquanto que o perdão é uma abolição da execução da pena no todo ou em parte. O perdão difere da amnistia em que aquele pressupõe a culpabilidade e esta aplica-se às infrações, com abstração dos seus agentes» (Ac. da Relação do Porto de 21.11.2012, proc. 83/95.3TBPFR-E.P1. in http://www.dgsi.pt).
A Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções, a entrar em vigor no dia 1 de Setembro de 2023, a propósito da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal e em honra da visita de Sua Santidade o Papa Francisco o nosso país, tal como previsto nos art.ºs 1º e 15º da referida Lei.
Quanto à amnistia, a Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto concede-a às infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa, desde que praticadas até às 00h00 horas de 19 de Junho de 2023, por jovens, que tenham entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática dos factos integradores do crime (tal como resulta das disposições conjugadas do art.º 2º nº 2 alínea a e do art.º 5º, o regime da amnistia também incluí as sanções acessórias, relativas a contraordenações praticadas até às 00h00 horas de 19 de Junho de 2023, cujo limite máximo de coima aplicável não exceda os €1.000,00).
As leis de amnistia, sendo providências de ocasião e de excepção, interpretam-se e aplicam-se nos seus precisos termos sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas (neste sentido podem citar-se os Acs. do STJ de 23.11.1917, na Rev. de Justiça, 3, página 420, de 30.06.1976, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138, de 11.06.1987, Tribuna de Justiça, n. 31, página 30, de 13.10.1999, proc. 99P984, in http://www.dgsi.pt).
«As leis de amnistia devem interpretar-se como qualquer outra lei, não podendo ser consideradas como leis de interpretação restrita, nem aplicadas por analogia a factos não previstos, pois não se compreende que haja neles lacunas e, suspendendo leis incriminadoras, não restringem, mas ampliam a liberdade do indivíduo» (Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, volume 1, 2ª edição, página 425; Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 9ª. edição, página 513).
«São insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo » (Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência, de 25.10.2001, Processo n.º P00P3209, in www.dgsi.pt).
Estes princípios defendidos relativamente às leis de amnistia deverão de igual modo aplicar-se ao perdão genérico, dada a mesma natureza de providência de ocasião e de excepção.
No que se refere à delimitação subjectiva do âmbito de aplicação desta lei apenas às pessoas com idades compreendidas entre os dezasseis e os trinta anos de idade, contrariamente ao pretendido pelo arguido recorrente, não existe qualquer afronta ao princípio constitucional da igualdade, consagrado no art.º 13º da CRP.
A Constituição da República Portuguesa prescreve, no seu artigo 13.º, sistematicamente incluído no grupo de preceitos que enunciam os princípios ordenadores do exercício dos direitos fundamentais, que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei» (n.º 1) e que (n.º 2) «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual»
O conteúdo princípio da igualdade, genericamente consagrado no art.º 13º da CRP é tridimensional: na vertente liberal, envolve a acepção de que todas as pessoas são iguais perante a lei, todos beneficiam dos mesmos direitos e todos estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente do seu nascimento ou das suas condições subjectivas; na perspectiva democrática, exige a proibição expressa de descriminação, positiva ou negativa, de qualquer tipo, à participação política na vida colectiva, no acesso a cargos públicos e a funções políticas e, por fim, na perspectiva social, exige a eliminação das desigualdades de facto a nível económico, social, cultural, visando alcançar a igualdade real ou material ao nível económico, social e cultural.
O princípio da igualdade assume uma vertente negativa, que proíbe quaisquer privilégios e discriminações, e uma vertente positiva, que abrange cinco dimensões: o tratamento igual de situações iguais, o tratamento desigual de situações substancial e objetivamente desiguais, o tratamento das situações relativamente iguais ou desiguais de acordo com o princípio da proporcionalidade, o tratamento das situações não apenas como existem mas como devem existir e, finalmente, a consideração do princípio da igualdade na sua relação com os valores e padrões materiais da Constituição.
O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, impede que uma dada solução normativa confira tratamento substancialmente diferente a situações no essencial semelhantes. No plano formal, a igualdade impõe um princípio de acção segundo o qual as situações pertencentes à mesma categoria essencial devem ser tratadas da mesma maneira. No plano substancial, a igualdade traduz-se na especificação dos elementos constitutivos de cada categoria essencial. A igualdade só proíbe, pois, diferenciações destituídas de fundamentação racional, à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais, ou seja, não poderá ser arbitrária, materialmente infundada nem irrazoável (cfr. entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), pp. 233 e ss., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respetivamente, acórdão nº 42/95, Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1995, a propósito da exclusão de certas infracções do âmbito do perdão de penas concedido pela Lei nº 15/94; v. também os acórdãos 152/95, Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995. No mesmo sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss).
Sobre o alcance do princípio geral da igualdade enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, «o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio» (acórdão do Tribunal Constitucional nº 409/99. No mesmo sentido, Ac. do TC nº 195/2017 in www.tribunalconstitucional.pt).
E à proibição de arbítrio veio a associar-se com a evolução da jurisprudência do TC ao longo dos anos e para certas categorias de situações, uma vinculação mais estrita associada a uma ideia de proporcionalidade ou de equilíbrio no tratamento desigual, afirmando que o tratamento normativo desigual de situações essencialmente iguais tem que ter um fundamento que prossiga um fim legítimo, seja adequado e necessário para realizar tal fim e mantenha uma relação de adequação equitativa com o valor que subjaz ao fim visado ( Acórdão n.º 330/93, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25.º vol., 1993, págs. 421- 436, 431, Acórdão n.º 336/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., 1995, págs. 547-568; Acórdão n.º 173/2002, in www.tribunalconstitucional.pt; Acórdão n.º 175/2002, in www.tribunalconstitucional.pt n.º 232/2003, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º vol., 2003, págs. 7-51, Acórdão n.º 639/2005, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 63.º vol., 2005, págs. 405-432, Acórdão n.º 594/2012, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 85.º vol., 2012, págs. 305- 316 e ainda Acs. nºs 488/2008, 157/2018 e 565/2018, todos in www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, constitui hoje jurisprudência firme e constante do Tribunal Constitucional, que desde que observado o limite da proibição de arbítrio e que a desigualdade de tratamento se mostre alicerçada no princípio da proporcionalidade, tal como consagrado no artigo 18º nº 2 da CRP, é possível de forma válida, eficaz e sem afronta a direitos fundamentais ou a princípios gerais da ordem jurídica constitucional, introduzir tratamento normativo desigual para situações essencialmente iguais. Imperioso, é que essa desigualdade tenha um fundamento que prossiga um fim legítimo, que seja adequado e necessário para realizar tal fim e mantenha uma relação de adequação equitativa com o valor que subjaz ao fim visado.
Pese embora o termo juventude, corresponda a um conceito vago e indeterminado, sem uma definição jurídica precisa com diversos conteúdos consoante os fins visados (v.g., jovens para efeitos penais, são as pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 21 anos, conforme o D.L. 401/82 de 23 de Setembro; a ONU considera jovens todas as pessoas com idades iguais ou inferiores a 24 anos, na sua Resolução n.º 36/28 de 1981), o legislador definiu a faixa etária abrangida pela Lei da Amnistia, por referência ao limite máximo de idade, em regra, permitido para as inscrições nas Jornadas Mundiais da Juventude, tal como expressamente assumido na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, nos seguintes termos:
«Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
«Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina».
(https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095).
Na medida em que se mostra justificada, segundo um critério objectivo e razoável, a discriminação positiva introduzida pela Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto ao segmento da população cuja idade se situa entre os 16 e os 30 anos, no momento da prática do crime que estiver abrangido pela amnistia e/ou pelo perdão, a mesma não viola o princípio constitucional da igualdade.
Isto, porque essa segmentação do universo de pessoas que podem beneficiar da amnistia e do perdão seguiu um critério adoptado dentro dos limites da função modeladora atribuída ao legislador ordinário e em sintonia com os limites da proibição de arbítrio e da proporcionalidade, de que resulta o reconhecimento de alguma margem de liberdade de conformação ao legislador, na consagração de soluções legislativas que podem estabelecer diferenciações de tratamento que, no caso, são razoável, racional e objectivamente fundadas.
A Lei nº 38-A/2023, de 02/08, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas) não é inconstitucional por violação do princípio constitucional da igualdade.
«A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas);
«ii. Essa diferenciação surge ancorada, de modo razoável e materialmente fundado, na intenção de favorecer os cidadãos da faixa etária dos destinatários das Jornadas Mundiais da Juventude com as medidas que, sem o evento a eles especialmente dedicado, não seriam decretadas;
«iii. Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a categoria geral de pessoas abrangida pelas medidas de clemência e, fazendo-o em função de critérios objetivos, que determinam a aplicação das mesmas regras nas situações objetivamente iguais, não ocorre qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da igualdade e da proibição da discriminação;
«iv. O artigo 2.º, nº 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, (…) não viola quer o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, quer o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia» (Ac. da Relação de Évora de 18.12.2023, proc. 401/12.1TAFAR-E.E1. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Évora de 09.01.2024, proc. 47/20.0YREVR-E.E1, in http://www.dgsi.pt).
Ora, no presente processo, a Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto não foi aplicada, nem poderia sê-lo.
Não porque o crime de desobediência não esteja abrangido pela amnistia, pois que, de acordo com o art.º 348º do CP as sanções aplicáveis ao crime são pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, estando, pois, incluído no universo de crimes amnistiados nos termos do art.º 4º da referida Lei 38-A/2023, já que foi cometido em 14 de Abril de 2023, portanto, dentro do limite temporal daquela Lei, mas porque, tendo nascido em 18 de Junho de 1980, o arguido AA tinha já 42 anos, no momento da prática do crime.
E sendo assim, nesta parte o recurso improcede.
Nas conclusões do recurso, o arguido veio ainda invocar a necessidade de alteração da matéria de facto ao abrigo do disposto no art.º 412º nº 3 do CPP, por considerar que «as provas cuja apreciação se requer impõem decisão diferente da proferida».
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado é o da impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, a qual envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante, mas com limites, porque, além de não se traduzir num novo julgamento, está subordinada ao cumprimento de um dever muito específico de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3 do art.º 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Por sua vez, a especificação das concretas provas, «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art.º 412º., pág. 1144).
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado.
Essa modificação será, ainda, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art.º 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série, nº 77 de 18 de abril de 2012).
Caso se limite a indicar a totalidade de um documento ou de uma perícia, ou de uma escuta telefónica, por reporte a um determinado período, ou as declarações prestadas por um certo número de testemunhas, na sua globalidade, não pode considerar-se cumprido o ónus, nem viabilizada a possibilidade de reapreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de recurso.
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório da audiência de discussão e julgamento, que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso como um remédio jurídico e não como um outro julgamento (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
Nesta parte, o recurso está manifestamente votado ao insucesso.
Desde logo, porque na indicação dos factos que considera erradamente julgados, o recorrente afirmou impugnar «em concreto os factos dados como provados 108º, 128º, 129º, 130º, 134º, 135º, 246º, 302º, 306º, 308º, 311º, 343º, 687º,693º e 694º, da matéria de facto dada como provada, cuja prova ou a ausência dela impõe decisão diversa é toda aquela que se irá descrever ao longo da motivação., nos termos do art.º 412º do CPP», sendo certo que provenientes da acusação são apenas oito os factos provados e os restantes referem-se aos antecedentes criminais do arguido, o ponto 9 e às suas condições sociais, pessoais e económicas, num total de apenas dezassete factos.
Não foram dados como não provados quaisquer factos.
Neste contexto, importa concluir que o recorrente não indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e constando tal omissão ou deficiência, quer na motivação quer nas conclusões, não há lugar ao convite para aperfeiçoamento, a que alude o nº 3 do art.º 417º do CPP
Depois, para que o Tribunal de recurso pudesse exercer a sua actividade de sindicância acerca das provas e do modo como foram valoradas a analisadas pelo Tribunal do julgamento, era condição essencial que o recorrente tivesse feito a descriminação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificadas por referência às passagens de cada um dos depoimentos e declarações em que, de acordo com os registos áudio consignados na acta da audiência de discussão e julgamento, foram prestados.
Porém, tal indicação não se mostra feita em excerto algum do recurso, seja nas motivações, seja nas conclusões.
A falta de indicação concreta, nas motivações e nas conclusões, dos excertos ou segmentos dos depoimentos e das declarações nos termos previstos no nº 3 al. b) e no nº 4 do art.º 412º do CPP, que seriam aptos a demonstrar a incorrecção do julgamento do factos, conduz necessariamente à improcedência da impugnação ampla da matéria de facto, porque essa omissão ultrapassa a mera deficiência relativa apenas à formulação das conclusões, antes constituindo uma falta que afecta o próprio conteúdo daquelas, o que inviabiliza, desde logo, a possibilidade de aperfeiçoamento dessas conclusões (cfr. Acs. do TC nºs 374/2000, 259/2002 e 140/2004, in www.tribunalconstitucional.pt; Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 3/2012, de 8 de Março de 2012, publicado no D.R 1ª série, nº77, de 18 de Abril de 2012, Acs. da Relação de Évora de 08.01.2013, proc. 10/13.6ZCLSB-B.E1, da Relação de Lisboa de 8.10.2015, proc. 220/15.3PBAMD.L1-9; da Relação de Guimarães de 15.04.2020, proc. 621/19.8T9VNF.G1, in http://www.dgsi.pt).
E impossibilita a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto, já que a inobservância do tríplice ónus de impugnação especificada imposto pelo art.º 412º afasta a aplicabilidade da norma contida no art.º 431º al. b) do CPP.
Em face do que fica exposto, a impugnação ampla da matéria de facto tem de ser julgada improcedente e a apreciação deste Tribunal tem de ficar restringida à verificação dos vícios decisórios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que são de conhecimento oficioso.
O art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal, por seu turno, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
Todavia, ouvido o julgamento e a partir da súmula da sentença feita na fundamentação de facto do presente acórdão, o que se impõe concluir é que não resulta que se tenha retirado de qualquer dos factos uma conclusão inaceitável, à luz da lógica ou de critérios de razoabilidade, nem que tenha sido considerado provado algum facto de verificação notoriamente impossível, ou sido dado como não provado algo que resulta evidente que aconteceu, nem qualquer ambiguidade, ou contradição entre os factos ou entre os factos e a motivação ou entre algum destes itens e a fundamentação de direito e a decisão, do mesmo modo que não se detecta a falta de realização de alguma das diligências probatórias tidas por necessárias para o apuramento da verdade dos factos constantes da acusação, ainda possíveis mas pura e simplesmente omitidas.
Em suma, a sentença não padece de vício algum, estando alicerçada em prova directa, analisada de forma lógica e concordante com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do CPP, devendo pelo seu acerto, quer na decisão de facto, quer no enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido como crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º do CP, quer na escolha e determinação concreta da pena principal e da pena acessória, ser inteiramente confirmada.
III – DECISÃO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, que se fixam em 4 UCs – art.º 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Meritíssimos Juízes Adjuntos.
Tribunal da Relação de Lisboa, 20 de Março de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Carlos Alexandre
Francisco Henriques