Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO MOREIRA | ||
Descritores: | NULIDADE DE SENTENÇA ESCASSA FUNDAMENTAÇÃO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO OBJECTO DO RECURSO SUBSTITUIÇÃO PELO TRIBUNAL DE RECURSO SUPRIMENTO PELO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/21/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | 1–A decisão com fundamentação escassa ou deficiente não é nula, só sendo causa de nulidade da decisão a falta total da mesma fundamentação. 2–A afirmação da ausência de preenchimento da previsão constante do preceito legal identificado, sem a indicação da realidade factual subsumível à previsão legal, a par do percurso lógico que conduz à afirmação conclusiva da falta de preenchimento de tal previsão, mais não representa que a falta de fundamentação do decidido, porque é totalmente omisso qualquer raciocínio nesse sentido, e sendo que só nessa medida se poderia observar a utilização do silogismo judiciário. 3–Verificando-se a ausência de elementos necessários ao conhecimento do objecto do recurso, que se reconduz à própria falta da fundamentação, não deve o tribunal de recurso afirmar tal fundamentação em substituição do tribunal recorrido, nos termos do nº 1 do art.º 665º do Código de Processo Civil, mas antes deve ser o tribunal recorrido a suprir a falta de fundamentação, na decisão que há-de proferir em substituição da decisão anulada. (Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados: Em 8/2/2023 C., Ld.ª, instaurou acção executiva para entrega de coisa certa contra G., tendo em vista a entrega de quatro prédios urbanos da sua propriedade, e apresentando como título executivo a escritura pública outorgada em 16/3/2022, pela qual o executado declarou vender à exequente o direito de superfície sobre os prédios urbanos, mais constando identificada nessa mesma escritura pública outra escritura pública outorgada na mesma data, pela qual a exequente adquiriu o solo de todos os prédios urbanos em questão. O executado veio deduzir oposição à execução por embargos de executado, aí concluindo pela extinção da execução por inexigibilidade da obrigação exequenda, mais requerendo a suspensão da execução “quer pela inexigibilidade arguida, quer pelas benfeitorias reclamadas” e mais invocando o disposto na al. c) do nº 1 do art.º 733º do Código de Processo Civil. Na contestação que apresentou a embargada pronunciou-se sobre a requerida suspensão da execução aí sustentando, em síntese, que:
Relativamente à requerida suspensão da execução, em sede de audiência prévia, realizada em 13/11/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor: “O Tribunal considera que não estão reunidos os pressupostos a que alude o art.º 733º do CPC para deferir a suspensão da execução, contudo, convida a parte a, querendo, e de molde a poder operar a suspensão, a juntar garantia idónea, no prazo de 30 dias. Notifique”. O embargante recorre desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem (com excepção das conclusões 1. a 5., que apenas descrevem o conjunto de actos processuais praticados, nos mesmos termos acima expostos, incluindo a reprodução da decisão recorrida): 1. (…) 2. (…) 3. (…) 4. (…) 5. (…) 6.–E é deste despacho que o Apelante recorre, na parte em que indefere a suspensão da execução por considerar que o mesmo viola o dever de fundamentação estabelecido no disposto pelo art.º 154º do CPC, preceito que é densificação do estatuído no artigo 205º, n.º 1 da CRP e que o artigo 615/1/b) do CPC comina com a nulidade, aplicável quer às sentenças, quer aos despachos conforme art.º 613º/3 do CPC. 7.–O dever de fundamentação é um princípio do Estado de Direito, uma exigência constitucional, que visa o controle da legalidade da decisão pelos seus destinatários, a eventual sindicância pelos tribunais de recurso e impedir qualquer livre-arbítrio do julgador. 8.–É o que nos ensinam os comentadores Gomes Canotilho e Vital Moreira, citados no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, relatado pela Senhora Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza: “... há-de entender-se que o dever de fundamentação é uma garantia do próprio conceito de Estado de direito democrático..., ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a decisão da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial de garantia do direito ao recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a fundamentação ou a motivação fáctica dos actos decisórios através de exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que justificam a decisão.” 9.–Este dever de fundamentação é de tal forma estruturante para o legislador ordinário que a sua violação, no processo civil, é sancionada com a nulidade da decisão quando não sejam especificados os fundamentos de facto e de direito - art.º 154º, 613º/3 e 615º/1/b) do C.P.C. 10.–O despacho recorrido é omisso na sua fundamentação e nessa medida impede, desde logo, descortinar os concretos fundamentos que o suportam. Afirmar que não estão reunidos os pressupostos a que alude o artigo 733º do CPC não permite perceber quais os pressupostos que se deveriam verificar. Todos aqueles que são enunciados pelas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do referido preceito legal? 11.–No caso concreto, apenas poderá ter lugar a aplicação do disposto no artigo 733º/1/c). E quanto a esta, maior será a exigência de fundamentação do despacho, porquanto, aí se estabelece a possibilidade de apreciação genérica por parte do Tribunal ao dizer o legislador que “o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução”. 12.–A questão que de imediato se coloca é saber que ponderação e motivos determinam a suspensão ou o seu indeferimento, para que seja possível conhecer, interpretar e até sindicar os mesmos. Perceber como pode o Executado-Embargante compreender e apreender a razão pela qual o Tribunal chegou àquele juízo e não outro, qual o raciocínio lógico que seguiu, quais os argumentos em que se baseou. 13.–É que, afinal o disposto no artigo 733/1/c) do CPC não convoca — não poderia fazê-lo — um juízo individual do titular dos autos. Convoca, isso sim, um critério normativo que exige uma apreciação e ponderação dos factos enunciados pelas partes. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2.07.2015, o qual estabelece que “o critério da justificação não é o critério individual do juiz do processo, caso em que a decisão seria discricionária, mas é verdadeiramente um critério normativo”. 14.–A tudo isto acresce a natureza jurídica do Apelante e a sua natural incapacidade para prestar caução idónea perante uma execução de dois milhões de euros! Estamos em presença de uma Associação Desportiva, a qual, por natureza, não tem qualquer lucro ou rendimento que permita, tantas vezes, suportar na integra os custos, vivendo de muitas boas vontades e de apoios diversos. 15.–Por outro lado, é esta sua natureza e o objecto social que prossegue que permite garantir à Exequente que o património que adquiriu não será dissipado, porquanto é indispensável à prática desportiva das centenas de atletas que aí recorrem. 16.–O despacho recorrido é, atento o disposto no art.º 613º e 615/1/b) do CPC, nulo por omissão do dever de fundamentação, previsto pelo artigo 154º do CPC, do qual faz errada interpretação, e do disposto no artigo 733º, n.º 1/c) do CPC. 17.–O recurso é tempestivo, interposto por quem tem legitimidade para tal e com efeito suspensivo atento o disposto pelos artigos 629º, 631º, 638º/1 in fine,644º/2/h), 647/3/c) — este último ex vio disposto pelo art.º 915º/2 e 733º, todos do CPC, pelo que deve ser atendido por ser de elementar Justiça. A embargada apresentou alegação de resposta, aí pugnando pela manutenção da decisão recorrida. *** Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende-se com a falta de fundamentação que conduz à nulidade da decisão recorrida. *** A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede. *** Segundo a al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (o que se aplica igualmente aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do disposto no nº 3 do art.º 613º do Código de Processo Civil). A necessidade de especificação dos fundamentos da decisão judicial emerge do art.º 154º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas. Como se refere no acórdão de 5/3/2015 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Bettencourt de Faria e disponível em www.dgsi.pt), “o dever de fundamentação das decisões judiciais, imposto pelo art. 205.º, n.º 1, da CRP, visa impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso desta com perfeito conhecimento da situação e colocar a instância de recurso em posição de exprimir, com maior certeza, um juízo concordante ou divergente”. E assim é porque “a falta, em termos absolutos, da fundamentação (mas já não a mediocridade, a deficiência ou o cariz erróneo desta) impede a prossecução” desses objectivos, “pelo que é ajustado considerar que a cominação da nulidade para tal omissão deriva da influência da preterição dessa formalidade na decisão final”. Do mesmo modo, e como se refere no acórdão de 2/6/2016 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt), “o dever de fundamentar as decisões (…) impõe-se por razões de ordem substancial – cabe ao juiz demonstrar que, da norma geral e abstracta, soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto – e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão a fim de, podendo, a impugnar”, mas “só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento”. Do mesmo modo, ainda, e como se refere no acórdão de 15/5/2019 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Ribeiro Cardoso e disponível em www.dgsi.pt), “para que se verifique a nulidade de falta de fundamentação prescrita no art. 615, nº 1, al, b), do CPC, não basta que a justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Do mesmo modo, e no que respeita à doutrina, Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221) ensina que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais”. E mais ensina que “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Do mesmo modo, Lebre de Freitas (Código de Processo Civil, pág. 297) ensina que só “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”. Ou seja, a decisão com fundamentação escassa ou deficiente não é nula, só sendo causa de nulidade da decisão a falta total da mesma fundamentação. Densificando o conceito de falta total ou absoluta de fundamentação, afirma-se no acórdão de 29/9/2011 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado pelo ora primeiro adjunto e disponível em www.dgsi.pt), que “não vindo, no despacho sob recurso, indicado um único facto donde se possa concluir que se mantêm os pressupostos e os requisitos da atribuição inicial da prestação social a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menor, em substituição do pai devedor do menor carecido de alimentos, ocorre falta absoluta de motivação de facto (e também de direito), o que tanto basta para concluir pela nulidade do despacho sob recurso”. Do mesmo modo, afirma-se no acórdão de 21/5/2015 do Tribunal da Relação de Guimarães (relatado por Ana Cristina Duarte e disponível em www.dgsi.pt) que “é nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido”. Do mesmo modo, afirma-se no acórdão de 5/12/2019 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Ana de Azeredo Coelho e disponível em www.dgsi.pt) que “à falta absoluta assimila-se a fundamentação que não permita descortinar as razões de decidir”. Tal como aí se refere, em citação do acórdão 147/2000 de 21 de Março do Tribunal Constitucional (relatado por Artur Maurício e disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “o que a fundamentação visa (…) é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir às partes (…) o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos”. Do mesmo modo, ainda, afirma-se no acórdão de 7/12/2021 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Ana Rodrigues da Silva e disponível em www.dgsi.pt) que “quando exista uma ausência da fundamentação de facto, por falta de especificação de factos provados e não provados, bem como por omissão de qualquer apreciação crítica da prova produzida, e sua subsunção ao direito aplicado, impedindo, assim, a sua sindicância, estamos perante uma situação de falta de fundamentação, o que determina a nulidade da sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do art. 615º, nº 1, al. b) do CPC”, e sendo que “esta nulidade apenas pode ser colmatada pelo tribunal que proferiu a sentença, porquanto a apreciação da prova produzida pelo tribunal de recurso significaria a diminuição de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto”. Reconduzindo todas estas considerações ao caso concreto dos autos, constata-se desde logo que no despacho recorrido apenas consta a conclusão de “que não estão reunidos os pressupostos a que alude o art.º 733º do CPC para deferir a suspensão da execução”, o que mais não representa que a mera afirmação da decisão de indeferimento da pretensão do embargante, sem a apresentação de qualquer motivação ou conjunto de juízos conducentes a tal decisão. Com efeito, a afirmação da ausência de preenchimento da previsão constante do preceito legal identificado, sem a indicação da realidade factual subsumível à previsão legal, a par do percurso lógico que conduz à afirmação conclusiva da falta de preenchimento de tal previsão, mais não representa que a falta de fundamentação do decidido, porque é totalmente omisso qualquer raciocínio nesse sentido, e sendo que só nessa medida se poderia observar a utilização do silogismo judiciário. Dito de outra forma, no caso concreto não se trata de uma deficiência de fundamentação (mesmo que grave), por ter sido identificada a previsão legal mas não ter sido indicado de forma perceptível porque é o tribunal recorrido considerou que a mesma previsão legal não se tinha por preenchida, mas antes trata-se de uma total e absoluta falta de fundamentação, porque não é possível apreender qualquer linha de raciocínio que levasse à consideração conclusiva expressa na decisão recorrida. E se é certo que o disposto no art.º 665º, nº 1, do Código de Processo Civil prevê que o tribunal de recurso se substitua ao tribunal recorrido e possa conhecer do mérito da questão que constitui o objecto da decisão recorrida (no caso concreto, a suspensão da execução), quando declare nula a mesma, tal regra da substituição só deve actuar quando o tribunal de recurso disponha dos elementos necessários para tal conhecimento. Com efeito, e como refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 381), “a anulação da decisão (…) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objecto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários. Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo”. Isso mesmo resulta igualmente dos acórdãos acima referidos, de 29/9/2011 e de 7/12/2021, deste Tribunal da Relação de Lisboa, pois que verifica-se que a ausência de elementos necessários ao conhecimento do objecto do recurso reconduz-se à própria falta da fundamentação, e não devendo o tribunal de recurso afirmar tal fundamentação em substituição do tribunal recorrido, sob pena de se suprimir um grau de jurisdição. Ou seja, no caso concreto dos autos é ao tribunal recorrido que cabe suprir a falta de fundamentação da decisão recorrida, e não a este tribunal de recurso. Em suma, na procedência das conclusões do recurso do embargante é de anular a decisão recorrida, mais devendo o tribunal recorrido suprir a nulidade em questão fundamentando de facto e de direito a decisão a proferir em substituição da ora anulada. *** DECISÃO Em face do exposto julga-se procedente o recurso e anula-se a decisão recorrida, mais se determinando que o tribunal recorrido supra a nulidade verificada, proferindo nova decisão em substituição da ora anulada, fundamentada de facto e de direito nos termos e para os efeitos do art.º 154º do Código de Processo Civil. Custas pela embargada. 21 de Março de 2024 António Moreira (assinatura electrónica) Vaz Gomes (assinatura electrónica) Rute Sobral (assinatura electrónica) |