Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
830/20.7T9FNC.L1-9
Relator: PAULA CRISTINA BIZARRO
Descritores: CRIME CONTINUADO
PLURALIDADE DE RESOLUÇÕES
DESÍGNIO ÚNICO
PROJECTO CRIMINOSO
REFORMATIO IN PEJUS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. O crime continuado tem como pressupostos:
- uma multiplicidade de acções que se subsumem objectivamente ao mesmo tipo legal de crime ou a outro tipo legal que tutele o mesmo bem jurídico;
- que essas acções sejam levadas a cabo de modo similar entre si;
- que exista um circunstancialismo fáctico exterior ao agente que facilite a repetição da conduta e que, por isso, se deva considerar acentuadamente diminuído o grau de culpa com que actuou.
II. A existência do condicionalismo externo ao agente e o seu papel decisivo na sua actuação ilícita reiterada terá de encontrar sustentação na factualidade provada.
III. Seria necessário ter-se por demonstrado que a arguida agiu das diversas vezes acima descritas, relativamente a cada um dos clientes e ofendidos, na sequência e tentada por uma específica solicitação e circunstâncias exteriores a ela, bem como factos dos quais resultasse ter a arguida agido apenas por não lhe ser possível resistir à sua prática reiterada por força dessas mesmas circunstâncias.
IV. A afirmação de uma pluralidade de resoluções pressupõe que encontre demonstrado que, a cada vez que o agente actuou, formulou um novo propósito, que renovou o seu desígnio.
V. No caso, a factualidade provada, a proximidade ou mesmo simultaneidade da prática dos sucessivos actos ilícitos, a identidade da natureza e características das condutas perpetradas, permitem concluir no sentido de que a arguida actuou na sequência de um desígnio único, no qual desenhou um concreto projecto criminoso, que depois veio a concretizar e a desenvolver ao longo dos cerca de quatro meses em que perdurou a sua actuação, sem quaisquer hiatus temporais relevantes entre as sucessivas operações que levou a cabo.
VI. A proibição de reformatio in pejus obsta a que seja aplicada à recorrente, quer no que respeita às penas parcelares, quer no que concerne à pena única, penas superiores àquelas que foram aplicadas no acórdão recorrido.
VII. Enquanto pressupostos materiais da aplicação do instituto de suspensão da execução da pena, terão de ser consideradas as exigências de prevenção geral, atendendo, nomeadamente, à gravidade dos factos praticados, bem como as exigências de prevenção especial, para o que deverão ser ponderadas a personalidade do agente, a sua inserção social, e aferir assim se é possível formar um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro.
VIII. Se dessa análise se concluir como provável que o agente sentirá a condenação como uma solene advertência, e que uma eventual reincidência será suficientemente prevenida com a simples ameaça da prisão, bem como que se mostra viável a sua socialização em liberdade, estarão reunidos os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, a menos que a tal se oponham as necessidades de prevenção geral.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão de 26-09-2023, depositado nessa mesma data, nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal colectivo com o n.º 830/20.7T9FNC, a arguida
AA, filha de BB e de CC, nascida no dia ... de ... de 1978, na freguesia do..., no concelho do ..., ..., ..., em situação de desemprego, residente na ...,
veio interpor recurso de tal decisão, na qual se decidiu condená-la nos seguintes termos (transcrição):
- pela prática de 27 (vinte e sete) crimes de falsidade informática, p.p. pelo art.º 3º, nºs 1 e 3 da Lei do Cibercrime, na pena de 1 (um) ano de prisão, por cada um dos crimes;
- pela prática de 4 (quatro) crimes de burla informática qualificada, p.p. pelo art.º 221º, nº 1 e nº 5, al. a) do C Penal, por referência ao art.º 202º al. a) do mesmo diploma, na pena de 2 anos de prisão, por cada um dos crimes;
- Em cúmulo jurídico, o Tribunal decide aplicar à arguida a pena única de 6 (seis) anos de prisão.
(...)
(fim de transcrição)
*
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões extraídas da motivação do recurso apresentada pela recorrente e que em seguida se transcrevem:
1. O Acórdão recorrido condenou a arguida AA pela prática de vinte e sete crimes de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 1º e nº 3º da Lei do Cibercrime na pena de 1 ano de prisão, por cada um dos crimes e pela prática de quatro crimes de burla informática qualificada, previsto e punido pelo artigo 221º, nº 1 e nº 5, al. a) do Código Penal, por referência ao artigo 202º, al. a) do mesmo diploma, na pena de 2 anos de prisão, por cada um dos crimes. Decidiu, ainda o D. Tribunal a quo, aplicar à arguida, em cúmulo jurídico, a pena única de seis anos de prisão.
2. Salvo o devido respeito, errou o Tribunal a quo ao afastar a aplicação do artigo 30º, nº 2 do Código Penal à situação em apreço.
3. O crime continuado pressupõe a verificação dos seguintes elementos: realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; homogeneidade da forma de execução; unidade de dolo no sentido de que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma “linha psicológica continuada”; persistência de uma situação exterior que facilita a continuação da execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
4. Escalpelizando a conduta da recorrente verificamos que esta utilizou o mesmo modo de cometimento dos factos, encontrando-se estes limitados temporalmente e sendo, também, temporalmente, sucessivos. A proximidade temporal é indiciadora da actuação segundo uma resolução inicial ou uma actuação decorrente dessa resolução inicial e não de uma nova resolução a cada facto cometido. A oportunidade, a impunidade que sentiu durante o período contínuo de cometimento dos factos permite concluir que estamos perante uma unidade de sentidos de ilicitude típica e não, uma pluralidade de ilicitudes.
5. Assim, atendendo ao comportamento global da arguida, consideramos que a mesma cometeu um crime de falsidade informática na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 1º e nº 3º da Lei do Cibercrime e um crime de burla informática qualificada na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 221º, nº 1 e nº 5, al. a) do Código Penal, por referência ao artigo 202º, al. a) do mesmo diploma, ambos por força do nº 2 do artigo 30º do Código Penal.
6. Na esteira do entendimento supra expendido, vejam-se os D. Arestos parcialmente supra transcritos (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/05/2020, proferido no Processo nº 9/17.5T9MTR.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/08/2018, proferido no Processo nº 1488/16.3PCOER.L1-3 in www.dgsi.pt).
7. Dispõe o nº 1 do artigo 40º do Código Penal que [a] aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
8. No que respeita à escolha da espécie das penas alternativas abstractas previstas para o crime em questão (alternativa da pena de prisão ou da pena de multa) o tribunal apenas pode utilizar o critério da prevenção, como determina, sob a epígrafe “Critério de escolha da pena”, o artigo 70º do mesmo diploma legal.
9. A culpa funciona como limite e não como fundamento, no momento da determinação da medida concreta da pena já escolhida.
10. Nos termos do artigo 71º, nº 1 e nº 2 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.
11. Entende-se pois, que a correcta aplicação dos artigos 40° e 70° do Código Penal conduziriam a uma necessária atenuação das penas determinadas. Sendo, desta forma entendida e considerada a personalidade da recorrente, as consequências do seu acto, o grau de ilicitude e de culpa, a confissão e o arrependimento, e acima de tudo a sua capacidade de interiorizar a pena como ressocializante e justa, e nunca repressiva e desmoralizante.
12. Deveria a recorrente ter sido condenada em pena de multa em não mais de 250 dias ou, não se entendendo, a pena de prisão nunca mais de 8 meses relativamente ao crime de falsidade informática e em pena de multa em não mais de 300 dias ou, não se entendendo, a pena de prisão nunca mais 1 ano relativamente ao crime de burla qualificada. Em cúmulo jurídico, deveria a recorrente ter sido condenada em pena de multa, nunca superior a 400 dias ou se se entender necessário às exigências de prevenção em pena de prisão nunca superior a 1 ano e 4 meses, sempre suspensa na sua execução.
13. A não ser colhido o entendimento de estarmos perante um crime na forma continuada, sempre se dirá que a medida da pena determinada pelo Tribunal recorrido foi excessiva.
Entendendo-se como necessária a aplicação de pena de prisão, consideramos que a medida concreta das penas se deve situar como supra referido, nunca mais do que em 8 meses para o crime de falsidade informática e 1 ano relativamente ao crime de burla qualificada. Em cúmulo jurídico, a recorrente não poderia ser condenada a mais de 4 anos de prisão, pena essa que teria de ser suspensa na sua execução.
14. Os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão vêm enunciados no artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal. O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos. O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
15. Sendo acolhida a pretensão da recorrente e fixada a pena abaixo dos 5 anos de prisão, encontra-se preenchido o pressuposto formal.
16. A integração da recorrente familiar, profissional e socialmente, a sua confissão, interiorização da sua conduta e arrependimento preenchem igualmente o pressuposto material.
17. Considerando que a recorrente se encontra integrada na sociedade como membro positivamente activo, está integrada num núcleo familiar com relações de apoio e proximidade, a aplicação de uma pena de prisão efectiva é desaconselhável, uma vez que a exposição ao ambiente de um estabelecimento prisional e ao seu carácter potencialmente criminógeno poderia revelar-se como contraproducente para a arguida e para o bem jurídico a tutelar.
18. Resulta a formulação de um juízo de prognose favorável que razoavelmente permite admitir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
19. O quadro factual descrito permite fundadamente admitir a elevada probabilidade, nas actuais circunstâncias, de a aplicação de uma pena de prisão efectiva, pelo afastamento do meio social e familiar em que a arguida se encontra inserida, introduzir um indesejável factor de dessocialização, que a realização da finalidade da pena deverá evitar.
20. Considera-se que, tendo em vista a efectiva realização das necessidades de prevenção especial, se deve assegurar a intervenção penal no sentido da estruturação dos percursos de vida da arguida com respeito pelo direito e pelos valores fundamentais da vida em sociedade, criminalmente protegidos.
21. Afigura-se que, face ao expendido supra e ainda aos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana, o Princípio da Sociabilização e da Igualdade, será de elementar Justiça a suspensão da execução da pena de prisão em que a arguida for condenada, se assim se entender, ainda que sujeita a regime de prova.
Em obediência ao estatuído no art.º 412º do Código de Processo Penal, cumpre indicar:
- As normas jurídicas violadas
Art.ºs 30º, 40º, 50º, 70º e 71º do Código Penal
- Os Princípios Jurídicos violados
Princípio da Legalidade, Princípio da dignidade da Pessoa humana, Princípio do Estado de Direito democrático e Social, Princípio da Igualdade.
- O sentido em que o Tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada - vide Conclusões 4. a final.
No contexto enunciado, deve ser concedido provimento ao Recurso revogando-se a decisão da primeira instância nos termos e, com os fundamentos alegados e:
1 – Ser a recorrente condenada pela prática de um crime de falsidade informática na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 1º e nº 3º da Lei do Cibercrime e um crime de burla informática qualificada na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 221º, nº 1 e nº 5, al. a) do Código Penal, por referência ao artigo 202º, al. a) do mesmo diploma, ambos por força do nº 2 do artigo 30º do Código Penal.
2 – Ser a medida concreta da pena reduzida e a recorrente condenada em pena de multa em não mais de 250 dias ou, não se entendendo, a pena de prisão nunca mais de 8 meses relativamente ao crime de falsidade informática e em pena de multa em não mais de 300 dias ou, não se entendendo, a pena de prisão nunca mais 1 ano relativamente ao crime de burla qualificada. Em cúmulo jurídico, ser a recorrente condenada em pena de multa, nunca superior a 400 dias ou, se se entender necessário às exigências de prevenção, em pena de prisão nunca superior a 1 ano e 4 meses, sempre suspensa na sua execução.
Sem conceder,
3 – A não ser colhido o entendimento de estarmos perante um crime na forma continuada, ser a medida concreta da pena reduzida e a recorrente condenada em pena de multa em não mais de 250 dias ou, não se entendendo, a pena de prisão nunca mais de 8 meses relativamente ao crime de falsidade informática e em pena de multa em não mais de 300 dias ou, não se entendendo, a pena de prisão nunca mais 1 ano relativamente ao crime de burla qualificada. Em cúmulo jurídico, ser a recorrente condenada em pena de multa, nunca superior a 600 dias ou, se se entender necessário às exigências de prevenção, em pena de prisão nunca superior a 4 anos de prisão, pena essa que teria de ser suspensa na sua execução.
ASSIM FAZENDO VV. EXAS. A COSTUMADA JUSTIÇA!
(fim de transcrição)
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela arguida, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1 - Nos termos do artigo 412.º, n. º1, do Código de Processo Penal, a motivação de recurso deve enunciar os fundamentos do recurso, e terminar com as conclusões, sendo certo que são estas que definem o seu âmbito.
2 - Assim, são as seguintes, em suma, as questões pertinentes que o presente recurso convoca, e sobre as quais vamos ocupar a nossa resposta:
- Considerar que não assiste razão ao recorrente relativamente à solicitada aplicação nos autos do instituto do “Crime continuado”;
- Não acompanhar o recurso da arguida, também no que concerne à questão da dosimetria da pena aplicada, porquanto se considera que a mesma é a única suscetível de cumprir as necessidades de prevenção geral e especial que se impõe, bem como conduzir à ressocialização da arguida.
3- Não assiste razão à arguida na sua pretensão em considerar como possível a configuração das circunstâncias do caso ao instituto do “Crime continuado”, pois tal instituo pressupõe, na sua essência, e como fio condutor e comum a todos os pressupostos materiais do instituto, a existência de uma situação base da qual resulte a diminuição da culpa do agente, sendo que, as circunstâncias exteriores de que depende o preenchimento dos requisitos do instituto não podem ter sido criados pelo agente do crime ou ter na sua génese a atuação daquele.
4- Foi a arguida que criou todo o cenário e mecanismo necessário que lhe permitiu praticar os crimes de que foi condenada;
5- Não se trata, pois, de uma situação em que tal cenário foi criado, exteriormente, e independentemente da vontade da arguida, que se lhe apresentou e do qual a mesma se aproveitou, tão só. Não; a situação ou condições para a prática do crime não existiam; foi a arguida que, de forma meticulosa, organizada, calculista e bem pensada a planeou, projetou e lhe deu vida.
6- Não sendo lícito nem justificável à luz do Direito que a arguida pudesse beneficiar de uma circunstância a que a mesma deu causa e “fabricou”.
7- Tal entendimento é unânime na vasta Jurisprudência e Doutrina Portuguesas.
8- Se é o próprio agente que concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal da continuação criminosa, termos em que se conclui que andou bem o Douto Tribunal “A Quo”, em não acolher tal instituto na sua decisão condenatória.
9- Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal ponderou todos os factos, em absoluto respeito e em cumprimento do estatuído no art.º 71º, do Código Penal, que manda atender, na determinação da medida da pena, à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
10- Assim, nada há a apontar à medida concretamente aplicada à ora recorrente, que se deve manter, na sua plenitude, pugnando-se pela improcedência do recurso interposto pela arguida.
11- O Tribunal “a quo” observou, na íntegra, todos os Princípios a que estava obrigado a respeitar, assim como todos os preceitos legais, e conformou a sua decisão no respeito pela legalidade, pelo que os despachos recorridos não merecem qualquer censura ou reparo.
Termos em que se conclui pela manutenção da decisão recorrida por a mesma nenhum agravo ter feito à Lei, devendo o presente recurso ser julgado improcedente, como é de toda a
JUSTIÇA.
(fim de transcrição)
*
Neste Tribunal da Relação, pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, foi emitido parecer nos termos seguintes (transcrição parcial):
(…) Acompanhamos a resposta apresentada pela magistrada do Ministério Público na primeira instância, considerando-se que o acórdão recorrido não violou nenhuma norma legal, pelo que deve o recurso apresentado ser julgado improcedente e, consequentemente, o acórdão recorrido confirmado e mantido nos seus precisos termos. Nestes termos e convocando tudo o que foi dito pela Digna Magistrada do Ministério Público, emitimos parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.
(fim de transcrição)
*
Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
*
Efectuado o exame preliminar, procedeu-se à notificação da recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 424º/3 do Código de Processo Penal, tendo a mesma se pronunciado, em síntese, nos termos seguintes (transcrição parcial):
(…) não podemos divergir do entendimento ora comunicado por esse D. Tribunal, pelo que, atendendo à factualidade provada, não nos é legítimo opor à eventual alteração da qualificação jurídico-penal.
Cumpre, no entanto, chamar à colação o disposto no nº 1 do artigo 409º do Código de Processo Penal (…).
A alteração da qualificação jurídica pelo Tribunal de recurso não permite a manipulação das sanções em desfavor do arguido recorrente.
No mais, atendendo ao acima exposto, bem como ao expendido no recurso apresentado, que mantemos, FARÃO VV. EXAS. A COSTUMADA JUSTIÇA!
(fim de transcrição)
*
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento unânime de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do mesmo Código.
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
- Se a conduta da arguida integra a prática de um só crime de falsidade informática na forma continuada, e um só crime de burla informática qualificada na forma continuada;
- Procedendo a pretensão recursiva no sentido da integração das condutas em crimes na forma continuada, se deveria a recorrente ter sido condenada em pena de multa, em cúmulo jurídico, nunca superior a 400 dias, ou, assim não se entendendo, em pena de prisão de não mais de 8 meses relativamente ao crime de falsidade informática e de 1 ano relativamente ao crime de burla qualificada e, em cúmulo jurídico, em pena de prisão nunca superior a 1 ano e 4 meses;
- A não ser acolhido o entendimento de estarmos perante um crime na forma continuada, se a recorrente deveria ser condenada em pena de multa ou, assim não se entendendo, se a medida das penas determinadas pelo Tribunal recorrido foi excessiva;
- Se a pena deverá ser suspensa na sua execução.
*
2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO
2.1. No acórdão recorrido, foram julgados provados os seguintes factos (transcrição):
1.º À data dos factos infra descritos, a arguida AA era trabalhadora do ..., desempenhando as funções de gestora de clientes no balcão … desse banco, sito à ..., no ..., nesta comarca da ....
2.º Por causa das suas funções, e somente com vista ao seu exercício, a arguida tinha acesso ao sistema informático pertencente ao banco, e por ele operado, e, por essa via, às contas bancárias domiciliadas no balcão onde trabalhava, bem como à plataforma informática, pertencente ao banco, e por ele operada, de emissão de cartões de pagamento.
3.º Também por causas das suas funções, e apenas com vista ao seu exercício, a arguida tinha acesso a cartões de débito não personalizados, disponibilizados pelo banco, por forma a permitir aos respetivos clientes a movimentação das suas contas bancária sem necessidade de os mesmos aguardarem pela emissão e o recebimento dos cartões personalizados nas moradas que para o efeito indicassem, bem como aos respetivos personal identification numbers.
4.º Para emitir um cartão de débito não personalizado era necessário aceder à plataforma informática de emissão de cartões de pagamento e associá-lo a uma conta bancária, mediante a introdução nessa plataforma dos correspondentes dados.
5.º Ciente disto, em data não concretamente determinada, mas seguramente anterior ao dia 13 de setembro de 2019, a arguida formulou o propósito de movimentar diversas contas bancárias de clientes do ..., como se os fundos nelas depositados lhe pertencessem, tendo, então, decidido aceder à plataforma informática de emissão de cartões desse banco e associar cartões de débito não personalizados a tais contas bancárias, por forma a que aquela instituição de crédito os ativasse, permitindo-lhe assim fazer suas as quantias depositadas nessas contas bancárias, em seu benefício e em prejuízo dos clientes do banco.
6.º Assim, em execução desse seu propósito, sem que para o efeito estivesse autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida obteve junto da gerência do balcão onde trabalhava diversos cartões de débito personalizados e os respetivos personal identification numbers.
7.º Posteriormente, também sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida acedeu à plataforma informática de emissão de cartões e associou os mencionados cartões de débito não personalizados às contas bancárias de clientes, mediante a introdução nessa plataforma dos dados necessários para o efeito, fazendo, em resultado disso, com que esse sistema informático gerasse automaticamente ordens eletrónicas de emissão e de ativação de tais cartões, que aquela instituição de crédito, através desse sistema, validou e satisfez imediatamente apenas por crer erradamente, em razão da confiança depositada na arguida e do uso indevido das permissões de acesso a esse sistema de que dispunha, que as mesmas haviam sido emitidas a pedido dos clientes, nos termos infra discriminados em 11.º.
8.º Sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida introduziu os aludidos cartões de débito em diversas caixas automáticas (ATM) e digitou os respetivos personal identification numbers nos teclados delas, acedendo, em resultado disso, ao sistema informático detido e operado por aquela instituição de crédito e ao da rede “Multibanco”, detido e operado pela Sociedade Interbancária de Serviços, S.A., e, por essa via, às contas bancárias dos clientes desse banco, após o que efetuou levantamentos de dinheiro depositado nessas contas bancárias, pertencente aos seus titulares, nas datas, às horas, nos locais e pelos montantes infra discriminados em 11.º, entrando imediatamente na posse desse dinheiro e incrementando o seu património em igual valor.
9.º Sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida introduziu os citados cartões de débito em diversas caixas automáticas (ATM) e digitou os respetivos personal identification numbers nos teclados delas, acedendo, em resultado disso, ao sistema informático detido e operado por aquela instituição de crédito e ao da rede “Multibanco”, detido e operado pela Sociedade Interbancária de Serviços, S.A., e, por essa via, às contas bancárias dos clientes desse banco, após o que efetuou pagamentos de serviços a favor de várias entidades com recurso a dinheiro depositado nessas contas bancárias, pertencente aos seus titulares, nas datas, às horas, nos locais e pelos montantes infra discriminados em 11.º.
10.º Sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida apresentou tais cartões nas máquinas terminais de pagamentos (POS) existentes em diversas lojas e digitou os respetivos personal identification numbers nos seus teclados e, assim, pagou o preço das compras que efetuara, com recurso a dinheiro depositado nessas contas bancárias, pertencente aos seus titulares, nas datas, às horas, nos locais e pelos montantes infra discriminados em 11.º.
11.º Concretamente, a arguida praticou os factos descritos em 6.º a 10.º, supra, nos seguintes termos:


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Levantamento...

12.º Nas circunstâncias de tempo infra indicadas, aproveitando-se das suas funções e sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, e sem o seu conhecimento, mediante a introdução das suas permissões de acesso, que não lhe haviam sido conferidas para esse fim, a arguida acedeu ao sistema informático pertencente e operado por aquele banco e, por essa via, às contas bancárias de clientes daquele, e ordenou à citada instituição de crédito a transferência eletrónica de dinheiro aí depositado para uma conta por si indicada, que esse banco executou, sempre sem o conhecimento e sem a autorização dos respetivos titulares:

NUC
Nome do cliente
Data e hora do movimento
Montante
NUC de destino / titular
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2004024FFF2020-01-10
11:41:00
1.970,00€
NUC 1917563 /AAA
1976166GGG2020-01-10
11:41:00
2.950,00€
NUC 1917563 / AAA

13.º Com as condutas descritas em 12.º, supra, a arguida acabou por repor na conta bancária titulada por Maria Conceição Silva a quantia total de 5.940€, com recurso a dinheiro que retirou das contas de EEE, FFF e GGG.
14.º Por via das condutas acima descritas, e apenas por causa delas, a arguida violou as regras de segurança inerentes ao funcionamento do sistema informático pertencente e operado pelo ..., bem como ao da rede “Multibanco”, e tomou conhecimento, sem para tanto estar autorizada, dos saldos das contas bancárias acima identificadas, dados confidenciais protegidos por lei.
15.º A arguida previu e quis atuar nos termos acima descritos, bem sabendo que, ao fazê-lo, se aproveitava das permissões de acesso à plataforma informática de cartões do ..., de que dispunha para o exercício das suas funções e apenas para isso, e da confiança que esse banco depositava em si, enquanto sua trabalhadora.
16.º A arguida previu e quis atuar nos termos descritos, com o propósito concretizado de, sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, aceder à plataforma informática detida e operada por aquele e nela associar cartões de débito não personalizados a contas bancárias dos clientes daquele, introduzindo nessa plataforma os dados necessários para o efeito, e assim produzir ordens eletrónicas de emissão e ativação desses cartões não genuínas, levando erradamente aquela instituição de crédito a tomá-las como verdadeiros pedidos de emissão e ativação de tais cartões efetuados pelos clientes e assim determiná-la a satisfazê-las e validá-las imediatamente, conforme sucedeu, tudo com a intenção de, através da posse dos referidos cartões devidamente ativados, poder movimentar as citadas contas bancárias, em prejuízo dos seus titulares.
17.º A arguida previu e quis atuar nos termos acima descritos, com o propósito concretizado de aceder ao sistema informático do ..., e ao da rede “Multibanco” e, por essa via, às contas bancárias de clientes daquela instituição de crédito, sem para tanto estar autorizada pelos respetivos donos (o ..., e a Sociedade Interbancária de Serviços, S.A.) e os seus titulares (os clientes do ..., titulares das contas movimentadas pela arguida) para o fazer nos termos em que o fez.
18.º A arguida previu e quis atuar nos termos acima descritos, bem sabendo que acedia ao sistema informático do ..., e, por essa via, às contas bancárias dos seus clientes, violando as respetivas regras de segurança e obtendo, através dos acessos efetuados, conhecimento dos saldos bancários de tais contas, dados confidenciais e protegidos por lei.
19.º A arguida previu e quis atuar nos termos acima descritos, com o propósito concretizado de fazer crer ao ..., e à Sociedade Interbancária de Serviços, S.A., que os sistemas informáticos e as contas bancárias em questão estavam a ser acedidas e movimentadas pelos respetivos titulares, levando-as, mediante a utilização dos apontados cartões bancários e a introdução dos dados informáticos necessários à realização de operações bancárias, a validar informaticamente os acessos efetuados às mesmas e a permitir- -lhe movimentá-las a débito, conforme sucedeu, apesar de bem saber que não estava autorizada para o efeito.
20.º A arguida previu e quis atuar nos termos descritos, com o propósito concretizado de utilizar o dinheiro depositado nas anteditas contas bancárias, de dispor dele como se fosse sua dona e de obter, deste modo, em cada momento, e sem que a isso tivesse qualquer direito, por tais fundos não lhe pertencerem, um incremento patrimonial correspondente às quantias supra indicadas e equivalente ao não desembolso dos seus próprios recursos financeiros para o efeito, causando, também em cada momento, um prejuízo de igual valor para o património dos titulares dessas contas bancárias, sem o conhecimento e sem a autorização destes, o que bem sabia.
21.º A arguida previu e quis atuar da forma supra descrita, bem sabendo que, em resultado das
suas condutas, causou um prejuízo patrimonial de 8.300€, de 7.590€, de 10.006,88€ e de 8.100€, respetivamente, a SS, YY, AAA e DDD.
22.º A arguida atuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, com plena capacidade de determinação segundo as legais prescrições, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
23.º A arguida causou aos clientes do ..., um prejuízo patrimonial no valor total de 91.921,29€, que o banco ressarciu.
24.º A arguida não ressarciu, nem procurou ressarcir, o ..., que, por via da atuação daquela, ficou lesado em 91.921,29€.
*
2. Das condições pessoais e sócio económicas da arguida
HHH reside com um dos irmãos, ..., ...anos de idade, que se encontra atualmente de baixa médica. O apartamento de tipologia 3, arrendado pelo irmão, localiza-se em zona citadina com acesso próximo a vários serviços, e com adequadas condições de habitabilidade. Ambos situam o início desta coabitação em meados de ..., sendo descrita uma relação familiar estável e apoiante. À data dos factos constantes na acusação a arguida vivia em apartamento próprio.
A arguida tem um filho fruto de um relacionamento terminado há vários anos, encontrando-se o mesmo no … a frequentar o sistema de ensino superior, e integra o agregado familiar da mãe aquando das férias académicas. No ano de 2020, iniciou uma outra relação afetiva que durou cerca de 2 anos, e culminou com a sua entrada em ... e a prisão do ex-companheiro, acusado do crime de homicídio na forma tentada contra a aqui arguida, a qual teve que ser sujeita a internamento hospitalar com queimaduras graves que ainda são visíveis. Tratava-se de uma relação sujeita a fatores de conflito e instabilidade psicológica de ambas as partes. A arguida possui licenciatura em ...
Na vertente profissional atualmente integra um programa de emprego, denominado ... no sector público, que iniciou em março de 2023 com termo previsto para março de 2024. Durante vários anos trabalhou numa ..., como gestora de clientes. No exercício destas funções veio a ser acusada de diferentes práticas criminais que deram origem aos presentes autos, e ao despedimento da arguida no ano de 2020. Com o desemprego, a arguida viu a sua situação económica degradar-se, tendo sido declarada insolvente no ano de 2022 e chegou a ser apoiada com o rendimento social de inserção. Ainda que tenha vendido o seu apartamento, refere que não obteve vantagens financeiras, utilizando o montante da venda para liquidar dívida do crédito habitação.
Atualmente mantém numa situação financeira pouco favorável, auferindo 322,04€ pela medida de emprego, acrescido de subsídio de alimentação e transporte, e beneficia de apoios sociais.
Mantém dependência financeira relativamente ao irmão com quem reside, o qual assegura o pagamento da habitação e de despesas decorrentes dos consumos domésticos. Ao nível de problemática aditiva, a arguida apresentou consumos nocivos de álcool que levaram ao seu internamento na ... no ano de 2016. Por quadro depressivo e ansioso grave a arguida beneficia de acompanhamento em termos psiquiátricos, com toma medicação compatível com tal sintomatologia.
Em termos sociais, a arguida mantém no momento uma rede de sociabilidades estrita, relacionando-se com familiares e amigos próximos, atribuindo tal situação aos acontecimentos de vida que têm surgido. Ainda nesta vertente, a arguida revela competências ao nível do relacionamento interpessoal e comunicação. No passado, o investimento que efetuava na sua imagem e cuidado pessoal, era interpretado como refletindo um bom nível de vida.
*
Dos antecedentes criminais da arguida
A arguida foi condenada pela prática, em 22.12.2017, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 10 meses.
*
Do pedido de indemnização civil
- A demandada era trabalhadora do ora demandante, desempenhando as funções de gestora de clientes no balcão sito na...
- Por causa das suas funções a demandada tinha acesso ao sistema informático do ora demandante e por essa via tinha acesso ás conte bancárias domiciliadas no balcão supra identificado bem como á plataforma informática daquele e por ele operada, de emissão de cartões de pagamento.
- Também tinha acesso a cartões de crédito não personalizados, disponibilizados pelo Banco ora demandante por forma aos clientes poderem movimentar as suas contas bancárias sem necessidade de aguardar pela emissão de cartões e o recebimento dos cartões personalizados nas moradas que para o efeito indicassem, bem como os respectivos PINs.
- Em data não concretamente apurada mas antes de 13.09.2018, a demandada formulou o propósito de movimentar diversas contas bancárias de clientes do ora demandante, como se os fundos nele depositados lhe pertencessem, tendo decidido aceder á plataforma informática de emissão de cartões de débito não personalizados atais contas bancárias por forma a que o ora demandante os activasse, permitindo-lhe fazer as suas as quantis depositadas nessas contas bancárias em seu benefício e em prejuízo dos clientes.
- Assim na execução desse seu propósito, sem que para o efeito estivesse autorizada pelo o ora demandante ou pelos clientes a demandada obteve junto da gerência do balcão onde trabalhava diversos cartões de débito personalizados e respectivos PINs.
- Posteriormente e sem estar autorizada quer pelo o ora demandante quer dos clientes, a demandada acedeu à plataforma informática de emissão de cartões, associou-os às contas bancárias dos clientes, mediante a introdução nessa plataforma os dados necessários fazendo com que fosse gerado automaticamente ordens electrónicas de emissão e de activação dos cartões que foram validados e satisfez imediatamente apenas por crer erradamente, em razão da confiança depositada na demandada e do uso indevido das permissões de acesso a esse sistema que dispunha que as mesmas haviam sido emitidas a pedido dos clientes.
- Sem estar autorizada pelo ora demandante ou pelos clientes a demandada introduziu os aludidos cartões de débito em, diversas ATMS e digitou os respectivos PINs acedendo ao sistema informático do ora demandante, à rede “Multibanco” e por essa via às contas bancárias dos clientes efectuando levantamentos de dinheiro depositado nas contas bancárias daqueles, pagamentos de serviço e compras conforme se encontra discriminados no art.º 11º do despacho de acusação, com a respectiva hora, dia, local e identificação dos clientes.
- Por outro lado, e conforme se encontra discriminados no art.º 12º do despacho de acusação a demandada ainda acedeu ao sistema informático do banco ora demandante e ordenou a transferência electrónica de dinheiro depositado nas contas dos clientes também aí identificados,
- Com esta conduta a demandada causou directamente um prejuízo patrimonial de €91.921,29, na medida em que o ora demandante ressarciu todos os seus clientes dos montantes ilicitamente retirados das suas contas bancárias.
(fim de transcrição)
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2.2. No acórdão recorrido, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição):
O Tribunal formou a sua convicção na análise e ponderação da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, em especial nas declarações da arguida e na prova documental, conjugada com as regras da experiência comum, valorada segundo o critério da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 127º do Cód. de Proc. Penal).
Assim, na apreciação da matéria de facto constante da acusação considerou-se, desde logo a Denúncia de fls. 2-7; a Informação de fls. 11; o Documento de fls. 12; os Documentos bancários de fls. 13-42; a Cópia do processo disciplinar de fls. 103-235; e a Declaração de fls. 241.
A arguida, prestando declarações, confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos da acusação, bem como do pedido de indemnização civil, admitindo que, no exercício da sua actividade no banco tinha acesso a todas as plataformas e a todas as contas dos clientes, sobretudo relativamente a clientes que são emigrantes na ... e na .... Referiu, ainda, a pressão a que estava sujeita para atingir determinados objectivos e para concretizar certas campanhas lançadas pelo banco. Mais referiu que no ano de 2018 sofreu uma grande depressão e esteve 10 meses de baixa médica. Embora descrevendo o tipo de despesas que efectuou (pagamento de dívidas de familiares, pagamento a dívida à sua empregada doméstica, almoços e jantares em restaurantes na companhia do seu filho de 20 anos de idade, compra de vestuário para ambos), admitiu não se ter apercebido que nos quatro meses em que efectuou as operações enunciadas na acusação movimentou a quantia de €91.921,29. Questionada pelo Tribunal, assumiu que não guardou qualquer quantia pecuniária da que movimentou, tendo gasto tudo, nem procurou ressarcir a instituição bancária do prejuízo que causou.
A matéria factual referente às condições sociais e pessoais da arguida, seu percurso de vida e sua personalidade decorreu do relatório social junto ao processo.
Por fim, para dar como provada a matéria referente aos antecedentes criminais da arguida, baseou-se o tribunal na análise do seu certificado de registo criminal.
(fim de transcrição)
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2.3. Na decisão recorrida, o afastamento de uma situação de crime continuado foi fundamentado pela forma seguinte (transcrição):
(…) como bem se pressupôs na acusação, não há aqui que proceder a uma unificação jurídica desses crimes, sob a figura do crime continuado (cfr. art.º 30º, nº 2 do Cód. Penal), pese embora estejamos perante crimes idênticos, que protegem o mesmo bem jurídico, e que ocorreram num mesmo condicionalismo exterior.
É que, como claramente ficou provado, no caso sujeito, as circunstâncias exteriores que rodearam e permitiram a prática, pela arguida, dos apontados crimes foram por ela conscientemente procuradas e criadas para concretizar a sua intenção criminosa. Como assim, não podem ser consideradas como facilitadoras da sua reiteração criminosa, mas, antes, como uma clara persistência criminosa, que afastam a diminuição da culpa, um dos requisitos essenciais à existência de crime continuado.
“Na verdade, só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê. Sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes” (cfr. o Ac. do TRL de 13/04/2011, acessível para consulta em www.dgsi.pt).
Aqui, reitera-se, as circunstâncias que permitiram a verificação do crime e a sua “repetição” foram, conscientemente, procuradas e criadas pela arguida. Foi ela própria a determinar o cenário, e actuou aperfeiçoando a realidade exterior aos seus desígnios e propósitos sendo ela a dominá-la, e não esta a dominá-lo. Não há uma circunstância exterior, mas sim uma sua predisposição anterior em a criar e manter.
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, a arguida revelou um «dolo empedernido» no crime e não uma culpa reduzida (cfr. Comentário do Código Penal, pág. 161).
Deste modo, estando o «núcleo duro» da continuação criminosa na diminuição considerável da culpa, a ela aqui recorrer redundaria num seu absoluto desvirtuar: não se pode ter como uma circunstância facilitadora do crime aquela que, afinal, foi o próprio agente a criar (neste sentido, ainda o Ac. do TRE de 18/04/2012 e o Ac. do STJ de 08/01/2014, disponíveis no mesmo sítio).
(fim de transcrição)
2.3. Na decisão recorrida, a escolha e medida das penas aplicadas mostra-se fundamentada nos termos que de seguida se transcrevem:
A medida concreta da pena, nos termos do art.º 71.º do CP, é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, estabelecendo o art.º 40.º do mesmo diploma que as penas visam satisfazer as exigências comunitárias de repressão do crime, sem prejuízo dos interesses da reintegração social.
Dentro desses parâmetros gerais, a pena terá de fixar-se de acordo com os factores indicados no n.º 2 do referido art.º 71.º do CP, que podem ser classificados em três grupos:
- referentes à execução do facto – als. a), b) e c): grau de ilicitude do facto, modo de execução do crime, grau de violação das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade do dolo ou da negligência, sentimentos manifestados na execução do crime e fins ou motivação do mesmo;
- relativamente à personalidade do agente – als. d) e f): condições pessoais do agente e situação económica, falta de preparação para manter conduta lícita; e, finalmente,
- factores relativos à conduta anterior ou posterior ao crime – al. e).
O art.º 70º do Código Penal preceitua que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Entendemos ser de afastar a aplicação de pena de multa. Com efeito, no caso dos autos, o grau de ilicitude do facto e a intensidade do dolo são elevados. Por outro lado, há que considerar as exigências de prevenção geral que são particularmente relevantes no caso concreto. Efectivamente, este tipo de criminalidade é especialmente censurável e gera um sentimento generalizado de insegurança, que cabe ao direito combater, salvaguardando o interesse comunitário na punição do crime. Não podemos olvidar que a arguida, aproveitando-se do cargo que desempenhava na instituição bancária e, portanto, aproveitando-se da confiança em si depositada pelos clientes dessa mesma instituição, criou os cartões e os respectivos pins`s e com eles se apropriou, no espaço de quatro meses, da quantia de € 91.921,29, quantia que gastou e que não restituiu.
Por outro lado, as necessidades de prevenção especial, são médias e a ausência de antecedentes criminais neste tipo de crimes milita, a favor da arguida, bem como os seus hábitos de trabalho.
Dentro da moldura da pena correspondente ao crime de burla informática qualificada (de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias), a pena de 2 anos de prisão, a cada um dos quatro crimes, afigura-se ajustada às necessidades preventivas, gerais e especiais, não se afigurando, como se disse já, que a aplicação de uma pena de multa à arguida realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O mesmo se diga em relação ao crime de falsidade de informática, afigurando-se adequado aplicar à arguida uma pena de 1 ano de prisão por cada crime.
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Do cúmulo jurídico.
De acordo com o disposto no art.º 77º, n.º 1 do C. Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.
A pena do concurso terá de ser fixada em função das exigências gerais da culpa e da prevenção, contendo o art.º 77º, n.º 1, segunda parte do C. Penal um critério especial (para além dos gerais constantes do art.º 71º, n.º 1 do mesmo diploma legal), isto é, haverá que atender, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente. “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.” Figueiredo Dias, ob. cit., citação contida no Ac. STJ de 6-03-2008, CJ (STJ) 2008, I, 249.
No âmbito dessa análise impõe-se aferir se o conjunto dos factos revela uma tendência (uma «carreira») criminosa ou se configura antes uma pluriocasionalidade que não assenta na personalidade, antes em circunstâncias específicas de um determinado hiato temporal.
Há ainda que ter presente o disposto no art.º 77º, n.ºs 2 e 3 do C. Penal, de tal modo que “a pena aplicável ao concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
A moldura abstracta do cúmulo jurídico tem como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares que o integram – 2 anos de prisão – e como limite máximo a soma de todas as penas – 25 anos, por imperativo legal.
Para a determinação da medida concreta da pena relevarão: a gravidade dos factos, o período temporal em que estes tiveram lugar, a personalidade da arguida e o seu percurso de vida.
Há que atender ainda à natureza dos crimes praticados e à respectiva ilicitude.
Com tais fundamentos, acordam os Juízes que constituem este Tribunal Colectivo em:
- condenar a arguida na pena única de 6 anos de prisão.
(fim de transcrição)
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III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.1. Questão prévia
Não obstante não suscitada no âmbito do recurso, da análise da decisão recorrida constata-se a existência de uma contradição ao nível da factualidade provada.
Com efeito, sob o ponto 5. dos Factos Provados, julgou-se como provado que:
5. (…) em data não concretamente determinada, mas seguramente anterior ao dia 13 de setembro de 2019, a arguida formulou o propósito de movimentar diversas contas bancárias de clientes do ..., como se os fundos nelas depositados lhe pertencessem, tendo, então, decidido aceder à plataforma informática de emissão de cartões desse banco e associar cartões de débito não personalizados a tais contas bancárias, por forma a que aquela instituição de crédito os ativasse, permitindo-lhe assim fazer suas as quantias depositadas nessas contas bancárias, em seu benefício e em prejuízo dos clientes do banco. (negrito e sublinhado nossos)
Porém, no parágrafo 4º dos factos provados referentes ao pedido de indemnização civil, a fls. 398 verso, julgou-se como provado na mesma decisão que:
- Em data não concretamente apurada mas antes de 13.09.2018, a demandada formulou o propósito de movimentar diversas contas bancárias de clientes do ora demandante, como se os fundos nele depositados lhe pertencessem, tendo decidido aceder á plataforma informática de emissão de cartões de débito não personalizados atais contas bancárias por forma a que o ora demandante os activasse, permitindo-lhe fazer as suas as quantis depositadas nessas contas bancárias em seu benefício e em prejuízo dos clientes. (negrito e sublinhado nossos)
Este último ponto de facto provado corresponde na íntegra ao que foi alegado pela demandante no ponto 4. do seu pedido de indemnização civil, deduzido em 18-11-2022 (ref.ª citius 4974194).
Por seu turno, o ponto 5. da matéria de facto julgada provada atrás transcrito corresponde ipsis verbis ao ponto 5. da acusação deduzida pelo Ministério Público em 30-10-2022 (ref.ª citius 52383072).
Como consta da motivação da decisão da matéria de facto acima transcrita, a arguida, prestando declarações, confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos da acusação, bem como do pedido de indemnização civil, pelo que se afigura inequívoco que na decisão recorrida, perante essa confissão, se transcreveu para os factos julgados provados o que se mostrava vertido, quer na acusação, quer no pedido cível.
Contudo, se atentarmos no que consta neste pedido de indemnização, bem como no que consta provado sob o ponto 11. da decisão recorrida, que corresponde ao constante do ponto 11. da acusação, logo se alcança que a referência ao ano de 2018 se traduziu num lapso da demandante, no qual o tribunal recorrido, na transcrição que fez, igualmente incorreu.
Com efeito, sob o ponto 7. do pedido cível, alegou a demandante que:
7
Sem estar autorizada pelo ora demandante ou pelos clientes a demandada introduziu os aludidos cartões de débito em, diversas ATMS e digitou os respectivos PlNs acedendo ao sistema informático do ora demandante, á rede "Multibanco" e por essa via ás contas bancárias dos clientes efectuando levantamentos de dinheiro depositado nas contas bancárias daqueles, pagamentos de serviço e compras conforme se encontra discriminados no art.º 11º do despacho de acusação, com a respectiva hora, dia, local e identificação dos clientes.
Ora, o que vem alegado no ponto 4. do pedido cível resulta de lapso manifesto, como demonstra o conteúdo do mapa de operações descrito sob o ponto 11. dos factos provados, o qual evidencia que a primeira operação levada a cabo pela arguida ocorreu no dia 13-09-2019.
É, pois, evidente que o propósito da arguida teria de ser anterior a esta data de 13-09-2019, pelo que era esta concreta data que se queria alegar.
Aliás, o pedido cível reproduz a generalidade dos factos vertidos na acusação no que concerne à conduta levada a cabo pela arguida/demandada, pelo que a referência no ponto 4. do pedido cível ao ano de 2018 constitui um lapso manifesto e ostensivo, conduzindo a que o tribunal a quo incorresse em idêntico lapso.
Ora, preceitua o art.º 380.º do Código de Processo Penal que:
Correcção da sentença
1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º
Cumpre, pois, proceder à correcção do lapso manifesto contido no citado ponto dos factos provados referentes ao pedido de indemnização, devendo onde aí consta referido o ano de “2018” passar a constar o ano “2019”.
Assim, o parágrafo 4º dos factos provados referentes ao pedido de indemnização civil, a fls. 398 verso, passará a ter a seguinte redacção:
- Em data não concretamente apurada mas antes de 13.09.2019, a demandada formulou o propósito de movimentar diversas contas bancárias de clientes do ora demandante, como se os fundos nele depositados lhe pertencessem, tendo decidido aceder á plataforma informática de emissão de cartões de débito não personalizados atais contas bancárias por forma a que o ora demandante os activasse, permitindo-lhe fazer as suas as quantis depositadas nessas contas bancárias em seu benefício e em prejuízo dos clientes.
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Cumpre agora apreciar as questões colocadas pela recorrente.
3.2. Se a conduta da arguida integra a prática de um só crime de falsidade informática na forma continuada, e um só crime de burla informática qualificada na forma continuada
Dispõe o art.º 30º/2 do Código Penal que:
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Assim, de tal normativo resulta que o crime continuado tem como pressupostos:
- uma multiplicidade de acções que se subsumem objectivamente ao mesmo tipo legal de crime ou a outro tipo legal que tutele o mesmo bem jurídico;
- que essas acções sejam levadas a cabo de modo similar entre si;
- que exista um circunstancialismo fáctico exterior ao agente que facilite a repetição da conduta e que, por isso, se deva considerar acentuadamente diminuído o grau de culpa com que actuou.
É, pois, necessária a afirmação de que esse circunstancialismo fáctico exterior seja apto a fazer o agente reincidir e a sucumbir na reiteração do mesmo facto ilícito típico, justificando um acentuadamente menor nível de censura em termos de culpa.
Aproxima-se de uma situação de quase inexigibilidade de outro comportamento: a situação externa é de tal ordem facilitadora da repetição do acto ilícito típico que dificilmente será possível ao agente resistir à sua prática e comportar-se de outro modo, em conformidade com o Direito.
Por isso, como parece ser uma evidência, não é qualquer tipo de condicionalismo externo que é capaz de determinar a acentuada diminuição da culpa.
Alega a recorrente para fundamentar a sua pretensão recursiva, nesta parte, essencialmente o seguinte:
- A sua conduta preenche o tipo de crimes idênticos, que protegem o mesmo bem jurídico, e que ocorreram num mesmo condicionalismo exterior;
- Sob a égide de um fracasso psíquico, que atingiu a recorrente, fragilizando o grau de inibição, em termos de afirmar um «dolo continuado», rotineiro, constatamos que os factos praticados são uma “explosão” da resolução inicial;
- Utilizou o mesmo modo de cometimento dos factos, encontrando-se estes limitados temporalmente e sendo, também, temporalmente, sucessivos;
- A proximidade temporal é indiciadora da actuação segundo uma resolução inicial ou uma actuação decorrente dessa resolução inicial e não de uma nova resolução a cada facto cometido. A oportunidade, a impunidade que sentiu durante o período contínuo de cometimento dos factos permite concluir que estamos perante uma unidade de sentidos de ilicitude típica e não, uma pluralidade de ilicitudes;
- A conduta da arguida se traduz numa repetição de acções acompanhadas de uma também repetição ou permanência de uma solicitação exterior à ora recorrente que facilita o crime e que, de alguma forma, a incita a continuar a cometê-lo;
- A proximidade temporal e sucessiva dessas acções é indiciadora da repetição ou permanência dessa primeira resolução de cometimento dos factos.
É certo que as primeiras operações, designadamente, os levantamentos e pagamentos levados a cabo pela arguida, descritos em 11. dos factos provados, ocorreram a partir de 2019-09-13, bem como que várias operações foram repetidas por vezes mais do que uma vez no mesmo dia, e prolongaram-se até pelo menos até 23-01-2020, ou seja, durante um período temporal de pouco mais de 4 meses, mais precisamente cerca de 4 meses e 10 dias.
É igualmente certo que a arguida actuou de todas essas vezes de forma similar, utilizando os mesmos meios para a execução dos factos e ofendeu invariavelmente os mesmos bens jurídicos.
Contudo, a existência do condicionalismo externo ao agente e o seu papel decisivo na sua actuação ilícita reiterada terá de encontrar sustentação na factualidade provada.
Neste sentido se decidiu no Ac. do STJ de 15-05-1991, proferido no processo n.º 041291 (Relator: Tavares Santos), cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt (assim como os demais arestos infra citados): I - Para que a conduta do arguido se reconduza a existência dum crime continuado não basta uma pluralidade de acções violadoras dos mesmos preceitos legais, ainda que praticados dentro de um período limitado de tempo, sendo ainda necessário que o agente tenha sido influenciado por circunstâncias exteriores que facilitem a repetição dos actos criminosos, sendo este último condicionalismo que concorre para diminuir o grau de culpa, tornando menos exigível comportamento diverso. II - Não há crime continuado se dos autos não resulta provada a existência de qualquer elemento subjectivo que pudesse estabelecer a ligação entre os vários factos, por forma a concluir-se que faziam parte da mesma resolução criminosa.
Pronunciou-se ainda nesse sentido o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 7-06-2023, proferido no processo n.º 220/19.4T9ACB.C1: Deve constar do elenco de factos provados a prova da circunstância exterior que, nos termos do artigo 30º do CP, poderia diminuir consideravelmente a culpa do arguido, invocando a existência de um crime continuado.
Ora, da factualidade provada não consta elencada qualquer circunstância factual que tenha determinado a actuação repetida da ora recorrente, de forma a que se possa concluir que o grau de culpa com que actuou se encontra sensivelmente diminuído.
Com efeito, seria necessário ter-se por demonstrado que a arguida agiu das diversas vezes acima descritas, relativamente a cada um dos clientes e ofendidos, na sequência e tentada por uma específica solicitação e circunstâncias exteriores a ela, bem como factos dos quais resultasse ter a arguida agido apenas por não lhe ser possível resistir à sua prática reiterada por força dessas mesmas circunstâncias e, bem assim, no caso, atentos os montantes apropriados e despendidos em dias e momentos quase sucessivos, com actos separados por um ou alguns minutos apenas entre eles, a sua específica motivação para tal tipo de actuação.
Ora, nenhum facto provado se mostra elencado nesse sentido.
Por outro lado, invoca ainda a arguida o seguinte:
- Existe a ocorrência de circunstâncias exteriores à arguida que diminuíram sensivelmente a culpa, ou seja, a ocasião, exterior àquela, facilita, atraindo-a à prática do crime;
- São tais circunstâncias a oportunidade favorável, ou seja a aquiescência posterior do ofendido após o primeiro acto de cometimento, a presença do objecto da acção, da disponibilidade dos meios de execução e seus auxiliares, das vantagens do tempo e lugar, enfim a todo o acervo de circunstâncias que tornam a execução do crime sem perigo, assegurando o sucesso e a impunidade, a sucumbência ao crime largamente tolerável, à luz do direito.
Não esclarece a arguida quais sejam as concretas circunstâncias exteriores que a atraíram à prática do crime.
Nem se vislumbra nos factos provados uma qualquer aquiescência posterior do ofendido após o primeiro acto de cometimento.
Como resulta da factualidade provada, é inequívoco que os meios de execução dos crimes em questão se encontravam na disponibilidade da arguida, no exercício das suas funções no Banco.
No entanto, contrariamente ao alegado, é precisamente essa a circunstância que agrava, não só a ilicitude, mas também o seu grau de culpa.
Não se vê como a conduta descrita nos factos provados demonstre que a sua reiteração se apresente como largamente tolerável à luz do Direito: é que a arguida aproveitou-se da confiança em si depositada enquanto trabalhadora e dos meios que tinha por esse motivo à sua disposição no seu local de trabalho, para empreender por um número de vezes deveras impressionante as condutas acima descritas.
A alegada eventual impunidade sentida, natural enquanto o agente de vários crimes sucessivos da mesma índole não é descoberto, é comum em todas as situações de prática reiterada e sucessiva de actos ilícitos.
Não é essa a circunstância exterior ao agente a que se reporta o citado art.º 30º/2, necessária à afirmação do crime continuado.
Por outro lado, parece-nos que o entendimento defendido pela recorrente na sua motivação de recurso assenta parcialmente num equívoco.
Com efeito, como atrás se transcreveu, reporta-se a recorrente a uma actuação segundo uma resolução inicial ou uma actuação decorrente dessa resolução inicial e não de uma nova resolução a cada facto cometido.
Porém, à afirmação de uma situação de um crime continuado é imprescindível a existência, precisamente, de uma nova resolução a cada facto cometido.
O crime continuado constitui uma construção jurídica na qual, numa situação em que o agente pratica de forma sucessiva vários factos ilícitos típicos similares, violando de forma persistente e continuada essencialmente o mesmo bem jurídico, tais factos, à partida, integrariam uma situação de concurso real de crimes, mas em que tais condutas são aglutinadas, passando a integrar um só crime sob a forma continuada, em função da mencionada situação exterior ao agente que lhe diminui de forma acentuada o grau de culpa, podendo nela perspectivar-se um dolo continuado, que vai cada vez mais diminuindo no seu grau de intensidade, atenuando gradativamente o grau de culpa na actuação reiterada.
Como se explanou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2023, (in Diário da República, 1.ª série, de 21 de setembro de 2023): O crime continuado propõe-se, assim, tratar no quadro de uma única realização criminosa o preenchimento plúrimo pelo mesmo agente do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam essencialmente os mesmos bens jurídicos, presidido por distintas resoluções criminosas, verificados os requisitos da homogeneidade de execução, da proximidade temporal das condutas e da existência de uma envolvente externa que, propiciando e facilitando as sucessivas repetições, diminui a exigibilidade do comportamento conforme ao direito e justifica a aglutinação e punição de tudo como se de uma só infracção se tratasse. O que, em boas contas, significa que o crime continuado não traduz uma modalidade própria da realização do crime estritamente único, antes uma forma especial de punição de um concurso de crimes derrogatória dos artigos 30.º n.º 1 e 77.º do CP, um tertium genus relativamente ao crime simples e ao concurso de crimes, uma «unificação jurídica de um concurso efectivo de crimes». (destacados nossos)
Como se esclarece no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de19-04-2023, proferido no Processo n.º 2837/19.8T9AVR.P1: a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido a resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a atuação não obedecer à mesma resolução criminosa, mas as várias resoluções criminosas estiverem interligadas por um factor externo que arrasta o agente para a reiteração de condutas; e c) um concurso de infrações, se não se verificar qualquer dos casos anteriores. A unidade natural de ação revela-se pela realização reiterada do mesmo tipo penal, em sucessão ininterrupta, acompanhada por uma decisão unitária de vontade. (...) Enquanto a realização plúrima do mesmo tipo de crime, para constituir uma única infração, deverá corresponder a uma única resolução inicial (que não se renova), o crime continuado pressupõe uma pluralidade de resoluções tomadas, sendo tratado como um só crime por ocorrer uma considerável diminuição da culpa do agente em virtude de uma situação exógena que facilita a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito. (...) O crime continuado, integra uma unidade jurídica, construída por sobre uma pluralidade efetiva de crimes. Ou seja, perante uma repetição de factos e de resoluções criminosas de significado penal equivalente, com um nexo de continuidade, a ordem jurídica estipula a consideração dessa continuação de delitos como um único facto, no sentido jurídico-penal, ou seja, como uma unidade jurídica de ação, a sancionar da mesma forma que o concurso ideal. (...) o crime continuado não integra um recorte ou pedaço de vida unificado, mas sim uma pluralidade de recortes ou pedaços de vida distintos, ainda dotados de homogeneidade, punidos unitariamente e com regras distintas em obediência a considerações de menor exigibilidade. (destacados nossos)
Assim, uma actuação segundo uma resolução inicial ou uma actuação decorrente dessa resolução inicial e não de uma nova resolução a cada facto cometido, como afirma a recorrente, afastaria por si só a possibilidade de enquadramento da situação em análise no crime continuado, como por ela pugnado no presente recurso.
Em função do exposto, não se verificam os pressupostos do enquadramento das condutas em questão como crimes continuados, nos termos defendidos pela recorrente.
Improcede, assim, neste segmento o recurso, ficando em consequência prejudicada a segunda questão acima enunciada, referente à aplicação da pena de multa e a reapreciação da medida das penas aplicadas com base no enquadramento das suas condutas na figura do crime continuado.
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Sucede que, analisada a factualidade julgada provada e definitivamente fixada, porquanto não foi impugnada nem se vislumbra a verificação de qualquer dos vícios decisórios elencados no art.º 410º do Código de Processo Penal, não se detecta nas condutas descritas uma multiplicidade de resoluções criminosas.
Como exemplarmente se esclarece no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 22-05-2019, proferido no processo n.º 1771/15.5GLSNT.L1-3: A multiplicidade de vezes que tipo objectivo do crime é preenchido, conduz em regra, à multiplicidade de crimes da respectiva natureza (artigo 30º, nº 1 do cód. penal), mas tal multiplicidade deixa de ter tal efeito, não só nos casos em que se deva configurar um crime continuado (artigo 30º, nº 2 do cód. penal), como naqueles em que a unidade de resolução – tipo subjectivo do crime – e a inexistência de violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, aliados à continuidade temporal das condutas, fazem com que a multiplicidade formal de violações do tipo criminal deva ser tratada como correspondente à comissão de um só crime. Se se tratar de uma decisão pensada uma única vez e a partir de tal decisão não houver qualquer necessidade de renovar o processo de motivação, realiza-se um único tipo legal de crime. Estamos verdadeiramente perante aquilo que Yescheck designava por “unidade jurídica de acção” que pressupõe que as condutas parcelares respondam a um só desígnio criminoso (unidade subjectiva) e realizem um único tipo legal de crime (unidade objectiva).
Igualmente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2022, proferido no processo n.º 10/20.1PAENT.S1 (Relator: Cid Geraldo): Para se afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação. A resolução criminosa antecede a execução da respectiva acção ilícita. (…) O que conta para a unificação da conduta criminosa do arguido, quando a mesma se desdobra em várias acções subsumíveis, cada uma delas, ao respectivo tipo legal (…), é a decisão de cometer determinado crime em concreto, em determinadas circunstâncias que pelo arguido foram concretamente ponderadas e analisadas e lhe permitiram passar à respectiva execução.
Recorrendo ao decidido no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2023: Unidade resolutiva que, ainda assim, nem sempre significou o mesmo para todos, que, para uns, sendo coisa diferente da resolução criminosa única, consiste, antes, num conjunto de resoluções criminosas, em que «o dolo do agente engloba ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar», representando cada um deles uma fracção daquele todo, ocorrendo apenas um descarga dessa resolução criminosa inicial sem necessidade da sua renovação, e sendo a homogeneidade resolutiva que preside ao comportamento que o torna uno; e que, já para outros, equivalerá a mesma resolução criminosa, parecendo querer-se significar que se trata de uma única resolução que, persistindo e norteando todo o comportamento, produz apenas um crime.
Analisada a factualidade provada, apenas se poderá afirmar com segurança uma única resolução criminosa dirigida à prática dos crimes de falsidade informática e de burla informática qualificada.
Assim, atente-se novamente nos seguintes factos julgados como provados:
5.º Ciente disto, em data não concretamente determinada, mas seguramente anterior ao dia 13 de setembro de 2019, a arguida formulou o propósito de movimentar diversas contas bancárias de clientes do ..., como se os fundos nelas depositados lhe pertencessem, tendo, então, decidido aceder à plataforma informática de emissão de cartões desse banco e associar cartões de débito não personalizados a tais contas bancárias, por forma a que aquela instituição de crédito os ativasse, permitindo-lhe assim fazer suas as quantias depositadas nessas contas bancárias, em seu benefício e em prejuízo dos clientes do banco.
6.º Assim, em execução desse seu propósito, sem que para o efeito estivesse autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida obteve junto da gerência do balcão onde trabalhava diversos cartões de débito personalizados e os respetivos personal identification numbers.
7.º Posteriormente, também sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida acedeu à plataforma informática de emissão de cartões e associou os mencionados cartões de débito não personalizados às contas bancárias de clientes, mediante a introdução nessa plataforma dos dados necessários para o efeito, fazendo, em resultado disso, com que esse sistema informático gerasse automaticamente ordens eletrónicas de emissão e de ativação de tais cartões, que aquela instituição de crédito, através desse sistema, validou e satisfez imediatamente apenas por crer erradamente, em razão da confiança depositada na arguida e do uso indevido das permissões de acesso a esse sistema de que dispunha, que as mesmas haviam sido emitidas a pedido dos clientes, nos termos infra discriminados em 11.º.
8.º Sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida introduziu os aludidos cartões de débito em diversas caixas automáticas (ATM) e digitou os respetivos personal identification numbers nos teclados delas, acedendo, em resultado disso, ao sistema informático detido e operado por aquela instituição de crédito e ao da rede “Multibanco”, detido e operado pela Sociedade Interbancária de Serviços, S.A., e, por essa via, às contas bancárias dos clientes desse banco, após o que efetuou levantamentos de dinheiro depositado nessas contas bancárias, pertencente aos seus titulares, nas datas, às horas, nos locais e pelos montantes infra discriminados em 11.º, entrando imediatamente na posse desse dinheiro e incrementando o seu património em igual valor.
9.º Sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida introduziu os citados cartões de débito em diversas caixas automáticas (ATM) e digitou os respetivos personal identification numbers nos teclados delas, acedendo, em resultado disso, ao sistema informático detido e operado por aquela instituição de crédito e ao da rede “Multibanco”, detido e operado pela Sociedade Interbancária de Serviços, S.A., e, por essa via, às contas bancárias dos clientes desse banco, após o que efetuou pagamentos de serviços a favor de várias entidades com recurso a dinheiro depositado nessas contas bancárias, pertencente aos seus titulares, nas datas, às horas, nos locais e pelos montantes infra discriminados em 11.º.
10.º Sem para tanto estar autorizada pelo ..., ou pelos clientes deste, a arguida apresentou tais cartões nas máquinas terminais de pagamentos (POS) existentes em diversas lojas e digitou os respetivos personal identification numbers nos seus teclados e, assim, pagou o preço das compras que efetuara, com recurso a dinheiro depositado nessas contas bancárias, pertencente aos seus titulares, nas datas, às horas, nos locais e pelos montantes infra discriminados em 11.º.
11.º Concretamente, a arguida praticou os factos descritos em 6.º a 10.º, supra, nos seguintes termos: (…) (destacado e sublinhado nossos)
Ou seja, como decorre deste último ponto da matéria de facto provada, as condutas no mesmo descritas de forma concretizada, foram perpetradas na execução do propósito provado sob o ponto 6. (e 5.).
E como se descreve no ponto 5. dos Factos Provados citado, o propósito da arguida então formulado abrangia:
- a movimentação de diversas contas bancárias de clientes do ..., como se os fundos nelas depositados lhe pertencessem,
- a decisão de aceder à plataforma informática de emissão de cartões desse banco,
- a associação de cartões de débito não personalizados a tais contas bancárias, por forma a que aquela instituição de crédito os ativasse,
- fazer suas as quantias depositadas nessas contas bancárias, em seu benefício e em prejuízo dos clientes do banco.
A decisão recorrida é omissa (tal como era a acusação) no que respeita à data, ou datas, em que a arguida acedeu à plataforma informática de emissão de cartões do Banco, bem como à data, ou datas, em que procedeu à associação de cartões de débito não personalizados a tais contas bancárias.
No entanto, se atentarmos em pormenor nas operações descritas sob o ponto 11., a título de exemplo, verifica-se que no dia 16-09-2019, em operações separadas por escassos minutos entre elas, a arguida movimentou por essa forma as contas de KK às17:39:30, de LL às 17:29:31 e às 17:30:13, de MM às 17:26:59 e 17:27:31, e de NN às 17:25:41 e às 17:26:15.
A conclusão óbvia que se retira de tal factualidade é que, nessa data, a arguida já tinha acedido à plataforma informática do Banco, bem como já tinha associado os cartões por esta emitidos às contas bancárias daqueles clientes.
No acórdão recorrido concluiu-se pela existência de tantos crimes de falsidade informática quantos os clientes alvo, e tantos crimes de burla informática qualificada quantos os ofendidos que foram vítimas destes crimes.
No entanto, perante aquela factualidade, não se encontra fundamento sustentado factualmente para tal conclusão: se a arguida no mesmo momento já dispunha de todos aqueles cartões e assim os utilizou na mesma ocasião temporal, não é possível inferir de forma segura e afirmar que tomou uma decisão distinta por cada um dos cartões emitidos e associados, porquanto é igualmente plausível que o tenha feito em execução do mesmo desígnio a que se reporta o ponto 5. dos Factos Provados.
Idêntica conclusão se retira no que respeita aos crimes de burla informática de que foram vítimas os ofendidos SS, YY, AAA e DDD.
Assim, encontra-se provado sob o ponto 21.º que:
A arguida previu e quis atuar da forma supra descrita, bem sabendo que, em resultado das suas condutas, causou um prejuízo patrimonial de 8.300 €, de 7.590 €, de 10.006,88 € e de 8.100 €, respetivamente, a SS, YY, AAA e DDD.
As operações concretamente realizadas pela arguida relativamente às respectivas contas bancárias foram mais precisamente as seguintes:
Quanto ao ofendido SS:
2019-12-13
08:14:00 – 5.000,00€ Levantamento ... 04-12-2019
2020-01-03
08:06:44 - 500,00€ Levantamento ...
2020-01-03
08:07:27 - 500,00€ Levantamento ...
2020-01-06
08:10:04 - 500,00€ Levantamento ...
2020-01-06
08:10:41 - 500,00€ Levantamento ...
2020-01-08
08:04:35 - 500,00€ Levantamento ...
2020-01-08
08:05:19 - 500,00€ Levantamento ...
2020-01-11
12:47:20 - 300,00€ Levantamento ...
- Quanto ao ofendido YY:
2019-12-13
14:10:00 – 2.000,00€ Levantamento ... 04-12-2019
2019-12-17
08:11:55 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-17
08:12:34 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-27
14:35:07 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-27
14:35:43 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-03
08:08:15 - 500,00 € Levantamento ...- ...
2020-01-03
08:08:52 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-06
08:11:21 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-06
08:11:57 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-08
08:03:03 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-08
08:03:44 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-11
12:42:58 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-11
12:46:22 - 90,00€ Levantamento ...- ...
- Quanto à ofendida AAA:
2019-11-08
17:10:38 - 200,00€ Levantamento ... ... 04-11-2019
2019-11-08
17:11:19 - 200,00€ Levantamento ... ...
2019-11-09
11:12:05 - 200,00€ Levantamento ...
2019-11-09
11:12:47 - 200,00€ Levantamento ...
2019-11-09
12:36:21 - 296,63€ Compra …
2019-11-09
13:51:46 - 227,84€ Compra …
2019-11-09
15:58:24 - 2 081,91€ Compra …
2019-11-23
15:08:45 - 200,00€ Levantamento ... ...
2019-11-23
15:09:26 - 200,00€ Levantamento ... ...
2019-12-05
18:11:20 - 200,00€ Levantamento ... ...
2019-12-05
18:12:00 - 200,00€ Levantamento ... ...
2019-12-06
19:04:44 - 70,00€ Levantamento ... 2019-12-10
19:49:58 - 40,50€ Compra ...
2019-12-11
19:49:06 - 200,00€ Levantamento ... ...
2019-12-11
19:49:46 - 200,00€ Levantamento ... ...
2019-12-15
08:43:59 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-15
08:44:47 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-17
08:10:24 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-17
08:11:04 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-18
17:08:31 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-18
17:09:22 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-19
08:07:57 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-19
08:08:38 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-27
14:33:30 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2019-12-27
14:34:07 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-11
12:48:30 - 490,00€ Levantamento ...- ...
- Quanto ao ofendido DDD:
2019-12-13
08:16:00 – 2.000,00€ Levantamento ...
2019-12-19
08:24:00 – 5.000,00€ Levantamento ...
2020-01-11
12:44:31 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-11
12:45:10 - 500,00€ Levantamento ...- ...
2020-01-23
16:38:18 - 100,00€ Levantamento....
Da análise das operações conclui-se que:
No dia 13-12-2019 a arguida efectuou operações que atingiram as contas dos ofendidos SS, YY e DDD.
E a essa data já tinha realizado operações que atingiram a conta da AAA, as quais se iniciaram em 8-11-2019.
No dia 17-12-2019 a arguida lesou as contas dos ofendidos YY e AAA.
No dia 19-12-2019 lesou as contas dos ofendidos AAA e DDD.
No dia 11-01-2020 lesou as contas dos ofendidos SS, YY e DDD.
Ora, não se encontra provada uma pluralidade de resoluções criminosas por parte da arguida por cada vez que assim actuou, ou por cada vez que realizou operações bancárias lesivas de clientes distintos.
É que a afirmação de uma pluralidade de resoluções pressupõe que encontre demonstrado que, a cada vez que o agente actuou, formulou um novo propósito, que renovou o seu desígnio.
No caso, a factualidade provada, a proximidade ou mesmo simultaneidade da prática dos sucessivos actos ilícitos, a identidade da natureza e características das condutas perpetradas, permitem concluir no sentido de que a arguida actuou na sequência de um desígnio único, no qual desenhou um concreto projecto criminoso, que depois veio a concretizar e a desenvolver ao longo dos cerca de quatro meses em que perdurou a sua actuação, sem quaisquer hiatos temporais relevantes entre as sucessivas operações que levou a cabo.
De qualquer modo, a factualidade provada impede que se conclua pela existência de uma pluralidade de resoluções criminosas tal como se concluiu na decisão sob escrutínio.
Parafraseando o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de12-05-2011, proferido no processo n.º 14125/08.0TDPRT.P1.S1 (Relator: ISABEL PAIS MARTINS): Atendo-nos aos factos que foram dados por provados, como decorrência da “técnica” seguida na construção da acusação e da pronúncia, na falta de factos que permitam alicerçar um juízo seguro, objectiva e subjectivamente sustentado, sobre esses factos conformarem um concurso efectivo de crimes (também ele prévio à consideração da unificação normativa das condutas), impõe-se-nos, como solução jurídica, a subsunção da actividade criminosa do recorrente a um único crime (…). (destacado e sublinhado nossos)
Numa situação similar à presente, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-02-2019, proferido no processo n.º 71/15.5JDLSB.S1 (Relator: Maia Costa) o seguinte: A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes (tantos quantos os tipos de crime violados); a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime. Neste último caso, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e, portanto, existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e, portanto, de infrações. A unidade de infrações pressupõe, porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas. É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art.º 30º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia. (…) III - Analisados os factos dos autos, conclui-se pela unidade criminosa, ou seja, pela prática de um só crime de burla qualificada e de um único crime de falsificação, dada a unidade de resolução que presidiu a todo o comportamento do arguido desde o início até ao final. Com efeito, ele agiu aproveitando-se das facilidades concedidas pelas funções de “tesoureiro de facto” da assistente e da confiança que nele depositava a administração da mesma, situação que se manteve ao longo de toda a atividade criminosa, atividade que o arguido desenvolveu sem interrupções temporais significativas, tudo isto revelando uma única vontade, que perdurou desde a resolução inicial até ao termo do comportamento ilícito. Este quadro fáctico aponta indubitavelmente para a unidade de resolução e consequentemente para a unidade de crimes.
Nestes termos, não consentindo a factualidade provada que se conclua pela existência de uma multiplicidade de resoluções criminosas, por cada vez que foram emitidos e associados os cartões bancários, e por cada um dos ofendidos atingidos, importa concluir que as condutas que a arguida levou a cabo terão se ser subsumidas à prática de um único crime de falsidade informática, em concurso real com a prática de um único crime de burla informática qualificada.
Ora, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência, Acórdão n.º 4/95 de 07-06-1995 (Diário da República, I-série, de 6-07-1995), foi fixada jurisprudência nos termos seguintes: O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus.
No caso concreto, procedeu-se à notificação da recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 424º/3 do Código de Processo Penal.
Consequentemente, importa proceder à convolação jurídica dos factos nos termos sobreditos.
No que respeita ao crime de burla informática qualificada, em consequência da soma dos valores dos prejuízos sofridos pelos vários ofendidos no seu conjunto, o montante global ultrapassa o valor consideravelmente elevado a que se reporta o art.º 202º-b) do Código de Processo Penal (Valor consideravelmente elevado - aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto), ou seja, 20.400 euros.
Consequentemente, o crime de burla informática previsto no art.º 221º do Código Penal cometido pela arguida, é agravado, sendo punido pela alínea b) do seu n.º 5, o qual preceitua que:
5. Se o prejuízo for:
(…)
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
Em conformidade, importa revogar o acórdão recorrido, na parte em que condenou a recorrente pela prática de 27 crimes de falsidade informática previstos e punidos pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 3 da Lei do Cibercrime, e 4 crimes de burla informática, previstos e punidos pela alínea a) do n.º 5 do citado art.º 221º, procedendo-se à convolação jurídica dos factos nos termos expostos.
Em conclusão: com as suas condutas, a arguida constitui-se autora, em concurso real e na forma consumada, de um crime de falsidade informática previsto e punido pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 3 da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro), e de um crime de burla informática previsto e punido pelo art.º 221º, n.ºs 1 e 5-alínea a), do Código Penal.
O enquadramento jurídico-penal dos factos ora decidido, importa necessariamente a alteração das penas parcelares e única aplicadas em primeira instância, pelo que cumpre agora analisar as demais questões colocadas pela recorrente, tendo por base esse novo enquadramento.
*
3.2. Se recorrente deveria ser condenada em pena de multa ou, assim não se entendendo, se a medida das penas determinadas pelo Tribunal recorrido foi excessiva
Importa agora determinar a medida das penas parcelares e única a aplicar à recorrente, analisando as questões a esse propósito por ela colocadas no presente recurso.
Contudo, no caso concreto, importa atentar no disposto no art.º 409º do Código de Processo Penal:
Proibição de reformatio in pejus
1 - Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
2 - A proibição estabelecida no número anterior não se aplica à agravação da quantia fixada para cada dia de multa, se a situação económica e financeira do arguido tiver entretanto melhorado de forma sensível.
Tal proibição obsta a que seja aplicada à recorrente, quer no que respeita às penas parcelares, quer no que concerne à pena única, penas superiores àquelas que foram aplicadas no acórdão recorrido, ou seja, a pena parcelar não poderá exceder um ano de prisão pela prática do crime de falsidade informática, nem poderá exceder dois anos de prisão pela prática do crime de burla informática agravada.
Neste sentido, o atrás citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-05-2011, proferido no Processo n.º 14125/08.0TDPRT.P1.S1 (Relator: ISABEL PAIS MARTINS): A proibição da reformatio in pejus, inscrita no artigo 409.º do CPP, é uma medida protectora do direito de recurso em favor do arguido, visando garantir ao arguido recorrente ou ao Ministério Público quando recorre no exclusivo interesse do arguido que o arguido não será punido com sanções mais graves pelo tribunal superior competente para conhecer do recurso. A alteração da qualificação jurídica pelo tribunal de recurso não permite a manipulação das sanções em desfavor do arguido recorrente. E, em caso de concurso de crimes, a proibição da reformatio in pejus vale não apenas para o agravamento da pena conjunta, mas também para cada uma das penas parcelares.
No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-01-2024, proferido no Processo n.º 899/22.0JAFUN.L1.S1 (Relator: VASQUES OSÓRIO), numa decisão em que se convolou uma situação de dois crimes para um único crime, decidiu: a proibição em causa é aplicável quer às penas parcelares, quer à pena conjunta, uma vez que, por força da unidade normativa resultante da qualificação jurídica operada pelo presente recurso, só podemos atender à pena parcelar mais elevada fixada no acórdão recorrido.
No mesmo sentido ainda, o Acórdão n.º 394/2022 do Tribunal Constitucional, proferido no Processo n.º 243/2022 (Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa, disponível em www.tribunalconstitucional.pt ): a proibição de reformatio in pejus não tem na Constituição o alcance que lhe atribui o recorrente: isto é, tal proibição não se opõe à alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal a quo, designadamente através da convocação de norma agravante não aplicada na decisão recorrida, mas apenas ao agravamento da pena concretamente aplicada ao arguido, único recorrente, que dessa alteração possa resultar. Isto é, não veda a operação (correta aplicação do direito aos factos), mas apenas um dos seus possíveis resultados (modificação in pejus das respetivas consequências jurídicas). Tal como evidencia a composição de elementos que integra a norma sindicada, a modificação da qualificação jurídico-penal dos factos levada a cabo pela Relação, apesar de se ter traduzido também na convocação inovatória de uma norma de agravação da pena abstratamente cabida ao tipo de crime imputado, não conduziu, no caso sub judice, a um agravamento da espécie ou medida das penas, parcelar e ou única, concretamente aplicadas ao arguido recorrente.
Pronunciou-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-12-2016, proferido no processo n.º 2038/15.4T8CTB.C1 nesse mesmo sentido: “o tribunal superior não está impedido de ter opinião diversa quanto à qualificação dos factos provados, já que o conhecimento do direito é officio do tribunal. Porém, (…) a nova qualificação tida por correcta, não poderá nunca prejudicar a pena já aplicada ou ter outros efeitos que eventualmente assistam o arguido. Quer dizer, em tal circunstância, a nova qualificação garante apenas a preocupação rigor jurídico da decisão, mas é inconsequente quanto ao mais”. Em suma: em casos como o dos autos, a requalificação jurídica dos factos, porque mais gravosa para a recorrente, apenas tem como efeito o rigor jurídico da decisão, sendo inócua quanto a todos os demais efeitos que lhe sejam prejudiciais.
Tecidas tais considerações, passemos a analisar o caso em concreto.
Pugna a recorrente que deveria ter sido condenada em pena de multa relativamente a cada um dos crimes
Por força da convolação jurídica atrás decidida, apenas o crime de falsidade informática prevê em alternativa a pena de multa, pelo que fica prejudicada a apreciação da aplicação da multa ao crime de burla informática agravado.
Dispõe o art.º 70º do Código Penal que: Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Preceitua, por outro lado, o art.º 40º/1 e 2 do Código Penal que:
Finalidades das penas e das medidas de segurança
1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Consequentemente, a opção pela pena não privativa da liberdade será privilegiada sempre que com ela se satisfaçam de forma eficiente as exigências de prevenção geral e especial que no caso se façam sentir.
A tutela dos bens jurídicos violados com a incriminação terá de funcionar sempre como limite a tal opção.
Ora, no caso em apreço, basta atentar no grau de ilicitude dos factos praticados, que atinge um patamar significativamente elevado, pelo número de cartões emitidos, associados e utilizados pela arguida, para concluir que as exigências de prevenção geral, no sentido de revalidação da norma violada, são intensas e impõem a opção pela pena de prisão, porquanto apenas esta assegura devidamente a defesa do ordenamento jurídico.
Há que aplicar, por isso, a pena de prisão, não nos merecendo quanto a esse aspecto qualquer censura a opção tomada pelo tribunal a quo.
Improcede assim, quanto a tal questão a argumentação da recorrente.
*
Argumenta ainda a recorrente que, entendendo-se como necessária a aplicação de pena de prisão, as penas aplicadas no acórdão recorrido se mostram excessivas.
Relativamente à medida da pena, importa considerar o que dispõe o art.º 71º/1 e 2 do Código Penal:
Determinação da medida da pena
1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
De tal normativo, conjugado com o que preceitua o citado art.º 40º do Código Penal, resulta que a medida da culpa constituirá o limite máximo da medida da pena concreta, funcionando as exigências de prevenção geral como seu limite mínimo, dentro da moldura abstracta aplicável ao tipo de crime, limite mínimo este tido por necessário à revalidação da norma jurídico-penal violada.
Assim, como se elucida no Ac. do STJ de 6-04-2022, proferido no processo n.º 192/19.5JAPDL.S1 (disponível em www.dgsi.pt): a culpa, segundo a função que lhe é político-criminalmente determinada, constitui condição necessária de aplicação da pena e limite inultrapassável da sua medida. Dentro do limite máximo permitido pela culpa, a pena deve ser determinada no interior de uma moldura de prevenção geral positiva, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral positiva, a medida da pena será encontrada em função de exigências de prevenção especial, maxime, de socialização.
No que concerne às exigências de prevenção geral e especial, explicitou-se no Ac. do STJ de 23-09-2010, proferido no processo n.º 1687/04.0GDLLE.E1.S1 que: As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Na concretização dos critérios enunciados no citado art.º 71º, os mesmos poderão ser perspectivados como:
- aqueles atinentes ao grau de ilicitude e que contendem com as referidas exigências de prevenção geral (como sejam o grau de violação ou perigo de violação do interesse ofendido; o número de interesses ofendidos e suas consequências, a eficácia dos meios de agressão utilizados),
- aqueles reportados ao grau de culpa (designadamente, o grau de violação dos deveres impostos ao agente; o grau de intensidade da vontade criminosa; os sentimentos manifestados no cometimento do crime; os fins ou motivos determinantes; a conduta anterior e posterior; a personalidade do agente),
- e ainda aqueles que se referem à influência da aplicação da pena sobre a pessoa do agente, ou seja, às exigências de prevenção especial, mormente, as condições pessoais do agente e a sua situação económica (v. sobre esta questão, Manuel José Carilho de Simas Santos e Pedro Freitas, Dosimetria da Pena: Fundamentos, Critérios e Limites, disponível em https://ciencia.ucp.pt/ws/portalfiles/portal/32291767/eb_DecisaoPenal_69_105.pdf, pág.s 84 e 85).
Já no que respeita à determinação da pena unitária nas situações de concurso de crimes, importa atentar no preceituado no art.º 77º do Código Penal, no que aqui releva, o qual dispõe que:
Regras da punição do concurso
1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
(…)
Determinada a moldura penal abstracta do concurso nos termos do n.º 2 de tal dispositivo legal, será fixada a pena única, para o que deverão ser ponderados os critérios de determinação da penas estabelecidos no art.º 71º do Código Penal e os fins das penas a que se reporta o art.º 40º do mesmo Código, em função, designadamente, da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerando ainda, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, nos termos previstos naquele art.º 77º/1.
Deverá, em conformidade, ser considerada a “gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421, pág. 291).
Na avaliação da personalidade - unitária - do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluri-ocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta (in Ac. do STJ de 6-10-2010, proferido no processo n.º 107/08.6GTBRG.S1).
Exige-se, deste modo, uma ponderação conjunta relativamente à conexão entre os factos e a sua interligação com personalidade do agente.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 16-05-2019, proferido no processo n.º 790/10.2JAPRT.S1: A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art.º 71.º, do CP); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua, agora reavaliada à luz do conhecimento superveniente dos novos factos (citado art.º 77.º, n.º 1, do CP). Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente, neles revelada.
Cumpre agora analisar as questões em concreto colocadas.
Invoca a recorrente, em síntese, o seguinte:
- as necessidades de prevenção especial são, in casu, diminutas;
- a recorrente tem um filho que se encontra a estudar no sistema de ensino superior e que integra o agregado da mãe nos períodos de férias escolares. Está, assim, a recorrente bem inserida familiarmente;
- fruto de uma relação amorosa tóxica, a recorrente foi vítima de tentativa de homicídio, sendo visíveis as sequelas (queimaduras graves);
- a arguida é licenciada em gestão de empresas;
- ao nível social a arguida mantém uma rede de sociabilidade restrita, com familiares e amigos próximos. A restrição da sociabilidade é indiciadora da vergonha e interiorização das suas condutas;
- revela competências ao nível do relacionamento interpessoal e comunicação, pelo que poderemos afirmar que também é adequada a sua integração social.
- milita ainda a favor da arguida a ausência de antecedentes criminais pelo mesmo tipo de crimes, os hábitos de trabalho, que mantém;
- encontra-se integrada também ao nível profissional.
No que respeita às condições pessoais e antecedentes criminais da arguida, resultou provado, além do mais, o seguinte:
HHH reside com um dos irmãos, enfermeiro, 50 anos de idade, que se encontra atualmente de baixa médica. O apartamento de tipologia 3, arrendado pelo irmão, localiza-se em zona citadina com acesso próximo a vários serviços, e com adequadas condições de habitabilidade. Ambos situam o início desta coabitação em meados de ..., sendo descrita uma relação familiar estável e apoiante. À data dos factos constantes na acusação a arguida vivia em apartamento próprio.
A arguida tem um filho fruto de um relacionamento terminado há vários anos, encontrando-se o mesmo no Continente Português a frequentar o sistema de ensino superior, e integra o agregado familiar da mãe aquando das férias académicas. No ano de 2020, iniciou uma outra relação afetiva que durou cerca de 2 anos, e culminou com a sua entrada em ... e a prisão do ex-companheiro, acusado do crime de homicídio na forma tentada contra a aqui arguida, a qual teve que ser sujeita a internamento hospitalar com queimaduras graves que ainda são visíveis. Tratava-se de uma relação sujeita a fatores de conflito e instabilidade psicológica de ambas as partes. A arguida possui licenciatura em gestão de empresas.
Na vertente profissional atualmente integra um programa de emprego, denominado “Medida de Apoio à Integração de Subsidiados”, no sector público, que iniciou em março de 2023 com termo previsto para março de 2024. Durante vários anos trabalhou numa agência bancária, como gestora de clientes. No exercício destas funções veio a ser acusada de diferentes práticas criminais que deram origem aos presentes autos, e ao despedimento da arguida no ano de 2020. Com o desemprego, a arguida viu a sua situação económica degradar-se, tendo sido declarada insolvente no ano de 2022 e chegou a ser apoiada com o rendimento social de inserção. Ainda que tenha vendido o seu apartamento, refere que não obteve vantagens financeiras, utilizando o montante da venda para liquidar dívida do crédito habitação.
Atualmente mantém numa situação financeira pouco favorável, auferindo 322,04€ pela medida de emprego, acrescido de subsídio de alimentação e transporte, e beneficia de apoios sociais.
Mantém dependência financeira relativamente ao irmão com quem reside, o qual assegura o pagamento da habitação e de despesas decorrentes dos consumos domésticos. Ao nível de problemática aditiva, a arguida apresentou consumos nocivos de álcool que levaram ao seu internamento na ... no ano de 2016. Por quadro depressivo e ansioso grave a arguida beneficia de acompanhamento em termos psiquiátricos, com toma medicação compatível com tal sintomatologia.
Em termos sociais, a arguida mantém no momento uma rede de sociabilidades estrita, relacionando-se com familiares e amigos próximos, atribuindo tal situação aos acontecimentos de vida que têm surgido. Ainda nesta vertente, a arguida revela competências ao nível do relacionamento interpessoal e comunicação. No passado, o investimento que efetuava na sua imagem e cuidado pessoal, era interpretado como refletindo um bom nível de vida.
A arguida foi condenada pela prática, em 22.12.2017, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 10 meses.
Perante tal factualidade, as exigências de prevenção especial não se afiguram expressivas, sendo de afirmar que a arguida se encontra familiar e socialmente inserida e revela hábitos de trabalho, pese embora a sua situação seja agora precária, fruto do seu despedimento.
Os seus antecedentes criminais reportam-se a factos distintos dos agora em causa.
Por outro lado, como consta da decisão recorrida, a arguida confessou integralmente os factos de que vinha acusada, bem como confessou o pedido de indemnização civil contra si deduzido.
Sucede que a arguida violou com a sua conduta de forma intensa os deveres que lhe eram impostos enquanto trabalhadora do Banco lesado, actuou de forma reiterada e sucessiva, o que permite concluir por um grau de culpa acentuado.
Acresce que, como atrás se referiu já, as exigências de prevenção geral assumem uma intensidade muito significativa relativamente a ambos os crimes cometidos, quando considerados o número de cartões emitidos e usados (quanto ao crime de falsidade informática), e os valores dos prejuízos causados aos ofendidos (quanto ao crime de burla informática agravada).
Assim, ponderando o conjunto dos factos pertinentes a cada um dos crimes em causa, os critérios de determinação da medida da pena legalmente estatuídos, bem como o grau das exigências de prevenção geral e especial atrás enunciadas, afigura-se ser necessária e proporcional a aplicação da pena de um ano de prisão pela prática do crime de falsidade informática e a pena de dois anos de prisão pela prática do crime de burla informática agravado, tal como decidido em primeira instância por cada um dos crimes considerados no acórdão recorrido.
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Relativamente à pena única, em face do ora decidido, a mesma terá necessariamente de ser reformulada.
A moldura abstracta do concurso é de dois anos de prisão a três anos de prisão (cfr. art.º 77º/2 do Código Penal).
Nos termos já atrás expostos, na determinação da pena única haverá que ponderar em conjuntos os factos praticados e considerar a personalidade demonstrada pelo agente.
Concretamente, os crimes foram cometidos num curto período temporal, encontrando-se estreitamente conexionados entre si.
Por outro lado, importa considerar que do conjunto dos factos perpetrados pela arguida, resultou um prejuízo patrimonial no valor total de 91.921,29€.
Considerando a moldura abstracta do concurso, o circunstancialismo dos factos praticados apreciados no seu conjunto, a personalidade neles demostrada pela arguida, considera-se necessária e adequada a fixação da pena única em três anos de prisão, a qual se mostra proporcional à culpa da recorrente, e se mostra necessária à eficiente satisfação das citadas exigências de prevenção geral e especial.
Assim, procede neste segmento parcialmente o recurso interposto, embora com fundamentos não inteiramente coincidentes com os invocados.
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3.4. Se a pena deverá ser suspensa na sua execução
Preceitua o art.º 50º do Código Penal que: o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
De tal normativo legal resulta que pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos.
Do mesmo normativo decorre com clareza que o pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, e que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim, enquanto pressupostos materiais da aplicação do instituto de suspensão da execução da pena, terão de ser consideradas as exigências de prevenção geral, atendendo, nomeadamente, à gravidade dos factos praticados, bem como as exigências de prevenção especial, para o que deverão ser ponderadas a personalidade do agente, a sua inserção social, e aferir assim se é possível formar um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro.
Esse juízo de prognose pressupõe uma análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida do agente, a sua conduta anterior e posterior aos factos, e a personalidade neles revelada.
Se dessa análise se concluir como provável que o agente sentirá a condenação como uma solene advertência, e que uma eventual reincidência será suficientemente prevenida com a simples ameaça da prisão, bem como que se mostra viável a sua socialização em liberdade, estarão reunidos os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, a menos que a tal se oponham as necessidades de prevenção geral.
Como se decidiu no Ac. Relação de Coimbra de 29-11-2017, proferido no processo nº 202/16.8PBCVL.C1, quanto à suspensão da execução da pena de prisão: No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir).
Por outro lado, como ensina o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág.s 343 e 344): a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime; estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa.
A aplicação do instituto de suspensão da execução da pena envolve necessariamente um risco, que deverá ser assumido de forma prudente, devendo por isso ser afastado quando existam dúvidas sobre a capacidade de o agente compreender a ameaça da pena como efeito suficientemente dissuasor da reincidência na prática de ilícitos penais.
Tendo presentes tais considerações, analisemos no caso concreto a pretensão da arguida.
A recorrente argumenta em abono da sua pretensão resumidamente o seguinte:
- Considerando que a recorrente se encontra integrada na sociedade como membro positivamente activo, está integrada num núcleo familiar com relações de apoio e proximidade, a aplicação de uma pena de prisão efectiva é desaconselhável, uma vez que a exposição ao ambiente de um estabelecimento prisional e ao seu carácter potencialmente criminógeno poderia revelar-se como contraproducente para a arguida e para o bem jurídico a tutelar;
- Resulta a formulação de um juízo de prognose favorável que razoavelmente permite admitir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Da factualidade provada resulta uma inequívoca inserção familiar e social da arguida.
Os factos em causa circunscrevem-se a um período muito limitado da sua vida, de pouco mais de quatro meses, sendo a condenação anterior que sofreu respeitante a um crime de natureza diversa, ao qual é alheia a protecção do património de terceiros.
O circunstancialismo de facto em que as condutas foram perpetradas, no quadro da sua relação laboral com o Banco lesado, serão dificilmente repetíveis no futuro.
Não há notícia que desde a prática dos factos em causa a arguida tenha cometido qualquer outro facto ilícito criminal.
Os pressupostos da suspensão da execução da pena terão de ser ponderados à data em que a decisão é proferida e não à data em que os factos foram cometidos.
O facto de não serem conhecidos outros comportamentos ilícitos posteriores aos factos e a sua inserção social legitimam um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro da recorrente, na medida em que da análise dos factos apurados é possível concluir estarem reunidos os pressupostos da ressocialização em liberdade.
Por outro lado, não obstante a gravidade dos factos cometidos e o grau de ilicitude acentuado constatado, as exigências de prevenção geral não impõem o cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
Conclui-se, assim, que a simples ameaça da pena é susceptível de afastar a recorrente da prática de futuros crimes, promovendo a sua ressocialização, e satisfaz em concreto de forma suficiente as exigências de prevenção.
Em conformidade, cumpre determinar a suspensão da execução da pena de prisão em que a recorrente vai condenada, pelo período de três anos, com submissão a regime de prova assente em plano de reinserção social executado pelos Serviços competentes de Reinserção Social, nos termos dos art.ºs 50º/1 e 2, 53º/1 e 2, e art.º 54º, todos do Código Penal.
Assim, o recurso interposto procede neste segmento.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
4.1. Ao abrigo do art.º 380º, n.º 1-b) e nº 2, do Código de Processo Penal, proceder à correcção do lapso (quanto ao ano aí mencionado), constante o parágrafo 4º dos factos provados referentes ao pedido de indemnização civil, a fls. 398 verso, passando tal parágrafo a ter a seguinte redacção:
- Em data não concretamente apurada mas antes de 13.09.2019, a demandada formulou o propósito de movimentar diversas contas bancárias de clientes do ora demandante, como se os fundos nele depositados lhe pertencessem, tendo decidido aceder á plataforma informática de emissão de cartões de débito não personalizados atais contas bancárias por forma a que o ora demandante os activasse, permitindo-lhe fazer as suas as quantis depositadas nessas contas bancárias em seu benefício e em prejuízo dos clientes.
4.2. Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida e, em consequência:
4.2.1. Revogam o acórdão recorrido, na parte em que condenou a recorrente pela prática de vinte e sete crimes de falsidade informática previstos e punidos pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 3 da Lei do Cibercrime, e quatro crimes de burla informática previstos e punidos pela alínea a) do n.º 5 do art.º 221º do Código Penal e, em cúmulo jurídico, na pena única de seis anos de prisão;
4.2.2. Operando a convolação jurídica dos factos nos termos atrás explanados:
4.2.2.1. Condenam a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 3 da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro), na pena de 1 (um) ano de prisão;
4.2.2.2. Condenam a arguida AA, pela prática, em autoria material, de um crime de burla informática qualificada, previsto e punido pelo art.º 221º, n.º 1 e n.º 5, al. b), do Código Penal, por referência ao art.º 202º, al. b), do mesmo diploma, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
4.2.2.3. Em cúmulo jurídico das penas supra fixadas em 4.2.2.1. e 4.2.2.2., condenam a arguida AA na pena única de 3 (três) anos de prisão, cuja execução se suspende por igual período, sujeita a regime de prova nos termos a definir pelo tribunal recorrido, nos termos dos art.s 50º/1 e 2, 53º/1 e 2, e art.º 54º, todos do Código Penal.
4.3. Confirmam no mais a decisão recorrida.
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Não são devidas custas, atento o vencimento parcial (art.º 513º/1 do Código de Processo Penal).
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Anote-se a correcção ordenada sob o ponto 4.1. supra no local próprio.

Lisboa, 11 de Abril de 2024
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º 2 do C. P. Penal)
Paula Cristina Bizarro
Amélia Carolina Marques Dias Teixeira
Jorge Rosas de Castro