Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3061/21.5T9LSB-A.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: BURLA
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
EDP COMERCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - Face à denúncia criminal apresentada, apenas o património da EDP Comercial é directamente prejudicado pela conduta dos denunciados, só ela sendo a titular do bem que a lei quis especialmente proteger ao tipificar o crime de burla.
- A lei protege o património da EDP Comercial, na medida em que os denunciados terão utilizado indevidamente o seu nome, com o intuito de enganar os seus clientes, sendo a sua ação idónea a levar tais clientes a, inadvertidamente, indicarem os seus dados pessoais e de faturação e, assim, autorizarem (embora não conscientemente) a alteração de comercializador de energia, com o inerente prejuízo patrimonial da EDP Comercial.
- Já assim não é com a EDP, SA e o seu interesse é reflexo, mediato, não é o seu património que é directamente prejudicado pelo crime denunciado e levado ao extremo a sua argumentação, qualquer seu accionista poderia vir a constituir-se assistente, já que os respectivos patrimónios também são reflexamente atingidos pelo prejuízo da EDP Comercial, o que manifestamente extravasa a intenção do legislador ao consagrar que apenas o titular do bem jurídico especialmente protegido pelo ilícito típico se pode constituir assistente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi proferido, em 11.05.2021, o seguinte despacho:
“ Por ter legitimidade, terem procedido ao pagamento da devida taxa de justiça, estarem devidamente patrocinadas e estarem em tempo, admito EDP S.A. e EDP Comercial-Comercialização de Energia, S.A., a intervir nos presentes autos como assistentes apenas no que se refere ao denunciado crime de violação de direitos de nome e de insígnia, previsto e punido pelo artigo 322º do Código da Propriedade Industrial; quanto aos demais ilícitos denunciados – acesso indevido a dados pessoais e burla, porventura na forma tentada – não se vislumbra que sejam titulares dos bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas incriminatórias, pelo que não é admitida a sua constituição como assistente nessa medida – cfr. Artºs 68, nº1, 70, nº1 e 519, nº1 do Código de Processo Penal.
Notifique”.
E, em 27.05.2021, o seguinte:
Informe a assistente que o despacho de fls. 74 é o que se mantém; é específico, foi o primeiro proferido e nada tem de contraditório.
Por forma a que não existem dúvidas, notifique com cópia novamente do despacho em vigor de fls. 74.”.
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Inconformadas, a EDP S.A. e EDP Comercial-Comercialização de Energia, S.A., interpuseram recurso, concluindo do seguinte modo:
“A. O presente recurso vem interposto do despacho do Mm.º JIC que, entre o mais, indeferiu a constituição das Denunciantes (constituídas Assistentes em relação a outro ilícito) como assistentes em relação ao crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1 do CP, por si também denunciado, com base na ideia de que aquelas carecem de legitimidade para tal.
B. As Assistentes requereram a sua constituição como assistentes em tempo, estando devidamente representadas por advogado e mediante o pagamento da taxa de justiça devida, nos termos dos artigos 68.º, n.º 3, 70.º, n.º 1 e 519.º, n.º 1, todos do CPP, estando assim verificada a respetiva legitimidade processual para se constituírem como Assistentes, também, quanto ao crime de burla.
C. A legitimidade material para a constituição como assistente, de acordo com o disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP, pertence aos ofendidos pelo crime em causa, isto é, "[a]os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
D. O bem jurídico protegido pelo crime de burla é o património, globalmente considerado.
E. Conforme o exposto na denúncia criminal, os Denunciados utilizaram indevidamente o nome da EDP / EDP Comercial, com o intuito de enganar os clientes da EDP Comercial, sendo a sua ação idónea a levar tais clientes a, inadvertidamente, indicarem os seus dados pessoais e de faturação e, assim, autorizarem (embora não conscientemente) a alteração de comercializador de energia, com o inerente prejuízo patrimonial da EDP Comercial e da EDP Energias, que detém a primeira a 100%.
F. De acordo com a jurisprudência maioritária, no crime de burla, o ofendido é o titular do património afetado, indiferentemente de este coincidir, ou não, com a pessoa enganada pelo agente.
G. Os factos denunciados pelas Assistentes são suscetíveis de prejudicar o património destas, pelo que as mesmas devem ser consideradas ofendidas do crime de burla denunciado, tendo, por isso, legitimidade (material) para se constituírem como assistentes em relação a este crime.
H. O Despacho Recorrido deve, por conseguinte, ser revogado e substituído por outro que defira a constituição das Assistentes em relação ao crime de burla por estas denunciado”.
O Ministério Público veio apresentar resposta, sem apresentar conclusões, sustentando a parcial procedência do recurso, devendo admitir-se a EDP Comercial a intervir como assistente no que ao denunciado crime de burla diz respeito, confirmando-se no mais o despacho recorrido.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da parcial procedência do recurso.
Foi cumprido disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
É o seguinte o fundamento do recurso: (i) O despacho recorrido deve, por conseguinte, ser revogado e substituído por outro que defira a constituição das Assistentes em relação ao crime de burla por estas denunciado.
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III – Fundamentação
“As pessoas que se podem constituir assistentes no processo penal são os ofendidos, que a lei define como os titulares do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, isto é, de um interesse específico, particularmente qualificado, que intercede na relação entre o bem jurídico e o sujeito afectado; para este efeito, só será ofendido quem for titular de um interesse legítimo, tutelado pela lei, concretizado e inserido de modo funcionalmente relevante na relação teleológico-funcional entre o bem jurídico e o sujeito afectado” – CPP Comentado, 2014, António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, p. 239, em anotação ao art.º 68.º.
“Importa, no entanto, reter que deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa considerar, para este efeito, ofendido; não se integram no âmbito do conceito de ofendido, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta (…); havendo, assim, na integração conceptual uma marcada diferenciação qualitativa entre interesses directa e indirectamente (ou reflexamente) afectados pela incriminação, como conditio da legitimidade do ofendido para exercer o direito de queixa” – Ob. citada, p. 183, anotação ao art.º 49.º.
Assistente é, assim, o titular do bem jurídico especialmente protegido pelo ilícito típico.
Indo ao caso concreto, a EDP S.A. e EDP Comercial-Comercialização de Energia, S.A., vieram requerer a sua constituição como assistentes em relação ao crime de burla.
O despacho recorrido é lacónico, se não mesmo sem fundamentação, limitando-se a referir que “não se vislumbra que sejam titulares dos bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas incriminatórias”. Não há, sequer, qualquer referência ao bem jurídico protegido no crime de burla.
Dizem os recorrentes que os denunciados utilizaram indevidamente o nome da EDP / EDP Comercial, com o intuito de enganar os clientes da EDP Comercial, sendo a sua ação idónea a levar tais clientes a, inadvertidamente, indicarem os seus dados pessoais e de faturação e, assim, autorizarem (embora não conscientemente) a alteração de comercializador de energia, com o inerente prejuízo patrimonial da EDP Comercial e da EDP Energias, que detém a primeira a 100%.
O bem jurídico protegido no crime de burla é o património, globalmente considerado – Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo II, p.275, em comentário ao crime de burla.
Por conseguinte, é manifesto que a recorrente EDP Comercial-Comercialização de Energia, S.A., tem razão. A conduta dos denunciados afecta directamente o seu património e, como tal, tem direito a constituir-se assistente, o que, aliás, tem a concordância do Ministério Público.
Quanto à recorrente EDP S.A., o fundamento invocado é deter 100% das acções da EDP Comercial-Comercialização de Energia, S.A. O seu património só é afectado na medida em que for prejudicado o património da EDP Comercial.
E aqui cumpre citar o acórdão do TRG de 02.03.2009, processo n.º 2644/08.2, dgsi.pt: “ Para que alguém possa considerar-se ofendido, no sentido restrito consagrado nos artigos 68.°, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e 113.°, n.º 1, do Código Penal, é necessário demonstrar-se que é da sua titularidade o bem ou património, directamente visado e atingido pelas condutas delituosas, não bastando que os prejuízos sofridos, em virtude das mesmas condutas, se apresentem como um resultado indirecto, mediato e reflexo”.
Aresto que cita Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, Coimbra, 1984, p. 505, no seguinte excerto: “A lei processual consagra um conceito estrito, imediato e típico de ofendido na determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervirem como assistentes em processo penal”.
Tudo visto, e face à denúncia criminal apresentada, apenas o património da EDP Comercial é directamente prejudicado pela conduta dos denunciados. Só ela é a titular do bem que a lei quis especialmente proteger ao tipificar o crime de burla.
Já assim não é com a EDP, SA. O seu interesse é reflexo, mediato, não é o seu património que é directamente prejudicado pelo crime denunciado.
A lei protege o património da EDP Comercial, na medida em que os denunciados terão utilizado indevidamente o seu nome, com o intuito de enganar os seus clientes, sendo a sua ação idónea a levar tais clientes a, inadvertidamente, indicarem os seus dados pessoais e de faturação e, assim, autorizarem (embora não conscientemente) a alteração de comercializador de energia, com o inerente prejuízo patrimonial da EDP Comercial. Mas não protege especialmente o património da EDP, SA. Só por via reflexa é prejudicado.
Levado ao extremo e sendo concedida razão à EDP, SA, qualquer seu accionista (accionistas destes e por aí fora) poderia vir a constituir-se assistente, porque os respectivos patrimónios também são reflexamente atingidos pelo prejuízo da EDP Comercial, o que manifestamente extravasa a intenção do legislador ao consagrar que apenas o titular do bem jurídico especialmente protegido pelo ilícito típico se pode constituir assistente.
E assim decai a pretensão da EDP, SA.
Pelo exposto, procede parcialmente o recurso, e, em sequência, revoga-se o despacho recorrido na parte relativa à EDP Comercial-Comercialização de Energia, S.A., devendo ser substituído por outro a admitir esta sociedade comercial como assistente nos autos.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso e, em sequência, em revogar o despacho recorrido na parte relativa à EDP Comercial-Comercialização de Energia, S.A., devendo ser substituído por outro a admitir esta sociedade comercial como assistente nos autos.
Sem custas.

Lisboa, 28 de Junho de 2022
Paulo Barreto
Alda Tomé Casimiro