Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
109/22.0PFVFX.L1-9
Relator: PAULA CRISTINA BIZARRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: SENTENÇA NULA
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. A impugnação da matéria de facto apenas poderá incidir sobre os factos julgados provados ou não provados na decisão recorrida e não sobre factos estranhos à decisão de facto proferida em primeira instância.
II. A impugnação da matéria de facto e a sua reapreciação pelo tribunal de recurso sob o invocado erro de julgamento não poderá ter por objecto, nem por finalidade, a introdução na factualidade provada, de factos não incluídos na decisão recorrida.
III. As ofensas verbais reiteradas são susceptíveis de integrar o conceito de maus tratos psíquicos para preenchimento do tipo objectivo de violência doméstica, quando, no seio da relação familiar, assumam contornos de habitualidade, transformando-as num padrão de comportamento incompatível com a sã convivência familiar, porquanto, apesar de, quando isoladamente consideradas, parecerem revestir pouca gravidade, a sua repetição transforma esse comportamento numa atitude deveras humilhante e degradante para a vítima, resultando numa afectação da sua saúde psíquica e emocional.
IV. Na falta de produção dos meios probatórios necessários à formulação de um juízo seguro de condenação ou de absolvição, o tribunal a quo não esgotou os seus poderes de investigação da matéria de facto, tentando apurar o contexto e a frequência das ofensas verbais julgadas provadas, quando o podia e devia fazer, pelo que ocorreu o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, após audiência, os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
A assistente AA veio interpor recurso, quer quanto à matéria penal, quer quanto à matéria do pedido de indemnização civil, da sentença datada de 23-01-2024 e depositada nessa mesma data, proferida nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular com o n.º 109/22.0PFVFX.L1, em que é arguido BB, filho de CC e de DD, natural dos ..., nascido a ...-...-1978, casado, …, residente na ..., na qual, após comunicação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal (cfr. acta com a ref.ª 159582777), se decidiu nos seguintes termos, conforme consta no respectivo dispositivo (transcrição):
DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL:
i. Absolver o arguido BB da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), e n.º 2, al. a), do Código Penal, e das penas acessórias previstas no artigo 152.º, n.ºs 4 a 6, do Código Penal.
ii. Decretar a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de injúria, por falta de condição de procedibilidade, ao abrigo dos artigos 181.º, n.º 1, 188.º, n.º 1, e 115.º, n.º 1, do Código Penal, e 48.º e 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
iii. Condenar o arguido BB pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), no montante global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros).
(…).
DA RESPONSABILIDADE CIVIL:
v. Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por AA parcialmente procedente, por parcialmente provado, e em consequência, decide-se condenar o arguido/demandado BB no pagamento à demandante da quantia global de € 800,00 (oitocentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal (4%), desde a data da prolação da presente sentença, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se o arguido/demandado do demais peticionado pela demandante.
(...)
(fim de transcrição)
*
As razões de discordância da assistente encontram-se expressas nas conclusões extraídas da sua motivação do recurso, que em seguida se transcrevem:
§ 1. O presente recurso tem por objeto a sentença do Tribunal a quo de 23.01.2024, que, perante a acusação do Ministério Público, que imputava ao Recorrido BB a prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), e n.º 2, alínea a), 4, 5 e 6, do Código Penal, decidiu:
- Absolver o Recorrido da prática desse crime;
- Decretar a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de injúria, por falta de condição de procedibilidade, ao abrigo dos artigos 181.º, n.º 1, 188.º, n.º 1, e 115.º, n.º 1, do Código Penal, e 48.º e 50.º, n.º 1, do CPP;
- Condenar o Recorrido pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €540,00 (quinhentos e quarenta euros); e
- Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente, ora Recorrente, parcialmente procedente, por parcialmente provado, e em consequência, condenar o Recorrente ao pagamento da quantia global de €800,00 (oitocentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal.
Impugnação da matéria de facto
§ 2. Apenas os pontos 4. e 5. da matéria de facto provada se reportam às situações ocorridas em momento prévio ao da separação do casal, cujo relacionamento se iniciou em maio de 2006 e terminou em maio de 2021.
§ 3. São, pois, estes os dois concretos pontos de facto que, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP, se considera incorretamente julgados no que respeita à matéria de facto objetiva:
- Ponto de facto “4. Desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, na residência comum, por vezes na presença dos menores, o arguido, sempre que se sentia contrariado, dirigiu-se à ofendida e, com agressividade, apodou-a de estúpida, e após o casamento dizia-lhe também não vales nada”;
- Ponto de facto “5. Em algumas dessas ocasiões, achando-se exaltado, o arguido desferiu murros nas paredes da residência”.
§ 4. Pode ler-se na fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida que “a convicção do Tribunal estribou-se, em primeira linha, nas declarações da
assistente, que relatou, de forma circunstanciada, segura e coerente, a aludida factualidade no sentido em que resultou provada, secundadas pelo depoimento de EE, e pela prova documental e pericial junta aos autos”.
§ 5. Sucede, porém, que, quanto àqueles pontos de facto, foi de tal modo levada ao conhecimento do Tribunal a sua concretização, de suma importância para analisar a qualificação jurídica dos mesmos (atenta a necessidade de os enquadrar ou desenquadrar do conceito de maus tratos), que é forçoso concluir que as declarações da Assistente, conjugadas, em parte, com as declarações do Arguido, impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, por incompletude, quanto aos factos descritos nos pontos da matéria de facto provada: 4. e 5.
§ 6. Só não se defende tratar-se aqui de vício decisório de insuficiência da matéria de facto, porque tal vício não decorre do texto da própria decisão. Mas não deixa de ser um caso em que a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de Direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem. Impondo-se a sua correção pela via do recurso da matéria de facto.
§ 7. Com efeito, ao longo das suas declarações, a Assistente referiu diversos eventos que classificou como meros pormenores de um comportamento constante do Arguido, revelador de agressividade verbal e física, ao longo de todo casamento, com especial incidência após o nascimento do primeiro filho de ambos, em 2012. Embora tenha admitido que poderia haver dias em que estava mais calmo, a Assistente referiu, sem margem para quaisquer dúvidas, de modo sério, articulado e credível, que aquela agressividade era o modo habitual de convivência em casa. Senão veja-se o que declarou a Assistente a este propósito (Declarações prestadas pela Assistente AA na sessão de audiência de julgamento ocorrida a 10.12.2023, com início pelas ocorreu pelas 10:30:45 horas e termo pelas 11:46:59 horas., gravadas através do sistema integrado de gravação digital com a referência:
Diligencia_109-22.0PFVFX_2023-12-20_10-30-45), transcrevendo-se o essencial:
00:09:20 Assistente Após o nascimento do EE, aí deixou de ser só verbal. Estava com o EE bebé ao colo, estava na casa de banho, estava a medir a temperatura da água para lhe dar banho […] e o BB veio a explodir no corredor, a gritar comigo […], aproximou-se de mim, de dentes cerrados, porque ele quando lhe dá estas explosões, explode completamente, portanto, encosta a cara a mim, com olhos sem qualquer expressão, sem alma, sem nada […] e fechou o punho dele e encostou-me o punho à cara, com toda a força e com o menino ao colo, a chorar, a chorar. Eu pedia para ele ter calma. Eu tentei ter várias conversas…este foi apenas um pormenor, houve muitos outros pormenores e, inclusivamente, com as crianças a assistirem […].
00:12:18 Assistente …que tinha um feitio de merda.
[…]
00:12:18 Assistente Não, isto intensificou-se […] as coisas agravaram-se após o casamento e sobretudo após o nascimento do primeiro filho.
00:15:13 Assistente Aconteceu… aconteceram várias coisas, inclusivamente discussões que ele me empurrava para o sofá e me agarrava com força. Cheguei a ficar com nódoas negras no braço.
[…]
00:16:27 Assistente Apertava-me os braços. Agarrava-me com força. Punha-se sempre… que isto é o característico dele: encostar-se à cara das pessoas, de dentes cerrados, a sentirmos os salpicos da saliva, aqueles olhos sem, sem qualquer expressão, portanto é… são acessos de fúria, acessos de raiva, aos berros, murros na parede, bater de portas com imensa força…
00:17:03 Assistente Portanto, era esta a convivência em casa. Podia haver dias em que se mostrava mais calmo, eu acabava também por ter esperança que as coisas pudessem correr melhor.
§ 8. Acresce que o próprio Arguido, em sede de declarações complementares (Declarações prestadas pelo BB na sessão de audiência de julgamento ocorrida a 20.12.2023, com início pelas 10 horas e 13 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 44 minutos, gravadas através do
sistema integrado de gravação digital com a referência: Diligencia_109-22.0PFVFX_2023-12-20_12-02-00), acabou por confessar a ocorrência de um desses episódios. Essencialmente disse:
00:21:25 Arguido Realmente houve uma confrontação, ok?, no sofá. Não empurrei ninguém para o sofá. Estávamos a falar no sofá, é um facto. Ela tentou sair do sofá para não me responder e eu simplesmente a fiz sentar. Não empurrei ninguém. E disse: se queres que eu saia hoje, eu saio. E esta foi a situação. Ela depois, desesperada, disse para eu sair. E eu disse: vou sair amanhã de manhã porque quero me despedir dos meninos, só que, entretanto, no dia a seguir falámos abertamente e as coisas se resolveram.
Não consigo precisar quando é que isso foi. Se foi seis meses ou um ano antes da minha saída de casa.
[…]
00:22:50 Juíza Então fazer sentar é ter dito senta-te? É isso?
00:22:55 Arguido Sim, sentámo-nos ao mesmo tempo. Posso ter forçado.
Forçar é pegar na pessoa e fazê-la sentar, não é empurrar, não é violento, não é deixar marcas, essa é a questão.
§ 9. Pelo que, onde se pode ler: “4. Desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, na residência comum, por vezes na presença dos menores, o arguido, sempre que se sentia contrariado, dirigiu-se à ofendida e, com agressividade, apodou-a de estúpida, e após o casamento dizia-lhe também não vales nada”. Deve passar a constar como ponto de facto provado: “4. Desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, especialmente após o nascimento do primeiro filho, na residência comum, por vezes na presença dos menores, o arguido, sempre que se sentia contrariado, dirigiu-se à ofendida e, com agressividade, aos berros, apodou-a de estúpida, e após o casamento dizia-lhe também não vales nada e tens um feitio de merda”.
§ 10. Assim como, onde se pode ler: “5. Em algumas dessas ocasiões, achando-se exaltado, o arguido desferiu murros nas paredes da residência”. Deve passar a constar como ponto de facto provado: “5. Em algumas dessas ocasiões, inclusivamente, com as crianças a assistirem, achando-se exaltado, o arguido, de dentes cerrados, encostou a sua cara ou o seu punho cerrado na cara da Assistente com toda a força, agarrou-a com força, apertou-lhe os braços, empurrou-a para o sofá, desferiu murros nas paredes da residência e bateu as portas com imensa força”.
§ 11. Por outro lado, considerou-se não provada a seguinte factualidade:
e) Ao agir nos termos descritos, o arguido sabia que as expressões que usava e as condutas que adoptou eram idóneas a provocar na ofendida um sentimento de medo e de inquietação permanentes, intimidá-la e humilhá-la, mostrar como esta lhe era vulnerável e sujeita ao seu poder, querendo e logrando maltratá-la física e psiquicamente, afectando-a na sua saúde e dignidade humana, o que representou e quis.
f) O arguido sabia que ao praticar os descritos factos no domicílio comum e da ofendida e na presença dos menores, que a sujeitava a uma situação de maior fragilidade, retirando-lhe o último espaço de tranquilidade e de sossego e que esta se absteria de se defender para os não colocar em perigo.
§ 12. Desta feita, o Tribunal a quo fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
No que respeita à factualidade vertida nas alíneas e) a f) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua ausência de demonstração suficiente, considerando as condutas objectivas que resultaram demonstradas, as quais não atingiram contornos de intensidade e gravidade tais, de modo a considerar verificados os elementos volitivos e os efeitos descritos nas alíneas e) a f) da matéria de facto não provada.
§ 13. Ora, a fundamentação apresentada ─ para a inclusão dos pontos de facto e) a f) na matéria de facto não provada ─ é tão-somente a consideração de que as condutas objetivas não atingiram contornos de intensidade e gravidade tais, de modo a considerar tais elementos volitivos verificados. Sucede, porém, que, alterada a matéria de facto objetiva nos termos que se impõem e conforme se demonstrou no capítulo procedente, tal argumento cai por terra.
§ 14. Ou seja, a alteração da matéria de facto provada quanto aos pontos 4. e 5., nos termos expostos, implica necessariamente a alteração dos pontos de facto e) a f) da matéria de facto não provada, que devem passar a considerar-se factos provados.
§ 15. Para tanto, militam ainda os seguintes meios de prova:
a. Os impressionantes vídeos constantes do CD de fls. 96, gravados no dia 25 de abril de 2022 e reproduzidos em sede de audiência de julgamento (na sessão de audiência de julgamento ocorrida a 10.12.2023, com início pelas 11:46:59 horas), donde decorre que o Recorrido não tinha como ignorar que infligia à Assistente, na frente e perante o pânico e desespero dos filhos de ambos, um sentimento de medo e de inquietação permanentes, apto a intimidá-la e humilhá-la, bem como a mostrar como esta lhe era vulnerável e sujeita ao seu poder, querendo e logrando maltratá-la física e psiquicamente, afectando-a na sua saúde e dignidade humana (!), tal como não tinha como ignorar que, ao fazê-lo na presença dos menores, sujeitava a mãe destes, ora Assistente, a uma situação de maior fragilidade, e que esta se absteria de se defender para não colocar em perigo as crianças.
b. As declarações da Assistente na sua globalidade, mas em particular, a parte que se transcreve:
00:35:50 Assistente Eu tentei manter toda a calma naquele momento, mas não foi por mim, foi pelos meninos.
[…]
00:51:30 Juíza E agora estes episódios que referiu, pergunto-lhe como é que a fez sentir.
00:51:38 Assistente Fez-me sentir muito mal. Muito pequenina, não é? Todas as situações fizeram-me sentir impotente, fizeram-me passar por várias fases ao longo do processo […]
00:52:04 Assistente E fez-me sentir mal, com vergonha, com vergonha de falar disto às pessoas, com medo…
§ 16. São, pois, estes os dois concretos pontos de facto que, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP, se considera incorretamente julgados no que respeita à matéria de facto subjetiva: e) a f), que devem ser incluídos na matéria de facto provada.
§ 17. Sendo certo que é, antes de mais, a alteração da matéria objetiva a operar nos termos supra expostos que, desde logo e por si só, impõe decisão diversa da recorrida, sendo por isso, em primeira linha, os meios de prova aí indicados que, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, determinam que os factos aqui em causa se passem a considerar provados.
Recurso sobre a matéria de Direito
§ 18. Em matéria de Direito, o Tribunal a quo começou por decidir a absolvição do Arguido pela prática do crime de violência doméstica por que vinha acusado, fundando essa absolvição no entendimento que se transcreve:
Na verdade, não se apurou a concreta frequência com que o arguido apodou a assistente de estúpida, e lhe dirigiu a expressão não vales nada, nem o concreto circunstancialismo em que o arguido proferiu tais expressões, de modo a permitir concluir que tal conduta revestiu gravidade suficiente para configurar maus tratos psíquicos.
§ 19. No caso concreto, para afirmar que o Recorrente praticou o crime por que vinha acusado, previsto no artigo 152.º, do Código Penal, era preciso demonstrar que: (i) Infligiu maus-tratos físicos ou psíquicos; (i) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (iii) Na presença de menor ou no domicílio comum; e (iv) Com dolo e consciência da sua censurabilidade.
§ 20. O conceito de maus-tratos, físicos ou psíquicos, não vem definido na lei, que antes se limita a considerar como tal os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais, que manifestamente não têm cabimento no caso que nos ocupa.
§ 21. A qualificação de uma concreta conduta como mau-trato não depende da sua aptidão para preencher um determinado tipo de ilícito, designadamente, uma ofensa à integridade física, da mesma forma que a aptidão de determinada ação para preencher este tipo legal não significa, per se, a verificação do crime de violência doméstica, tudo dependendo da “respetiva situação ambiente e da imagem global do facto”.
§ 22. Tem sido habitual, neste Tribunal da Relação de Lisboa, considerar-se ─ devidamente, é certo, mas sem deixar de merecer uma vénia, tendo em conta que nem sempre assim foi e ainda não o é em outras Relações ─, por exemplo, que “[d]irigir, com frequência não apurada, as expressões “porca de merda” e “atrasada mental” à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b) do CP” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (JOÃO ABRUNHOSA), de 23.04.2015, proferido no âmbito do processo n.º 469/13.3PBAMD.L1-9, disponível em www.dgsi.pt.) (realce e sublinhado nossos), como foi considerado, corria ainda o ano de 2015.
§ 23. No mesmo sentido e de modo particularmente cuidado e impressivo, vai um outro acórdão mais recente proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (João Abrunhosa), de 28.10.2021, proferido no âmbito do processo n.º 394/20.1PBVFX.L1-9, disponível em www.dgsi.pt), cujo sumário vale a pena transcrever:
I– Tem sido entendido pela jurisprudência que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é complexo ou multi-facetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvo de tutela penal, como sejam as ofensas à integridade física, difamação ou injúrias, simples ou qualificadas, ameaça simples ou agravada, coação simples, etc.
II– Porém, o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, uma vez que o legislador quis tutelar algo mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, devendo entender-se que o bem jurídico a proteger terá de estar relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico.
III– Na redação do atual art.º 152º do CP, para o preenchimento do tipo, não se exige o requisito «intensidade» da ofensa, que constava da Proposta de Lei nº 109/X, que esteve na base da reforma de 2007 do Código Penal, mas que não foi a que vingou na sua redação final.
IV– O bem jurídico a proteger terá de conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, só serão subsumíveis ao art.º 152º condutas de pouca gravidade, quando as mesmas comprometerem a pacífica convivência familiar ou doméstica; então, nesta linha de pensamento, o tipo penal em causa é assim constituído, a título principal, pela saúde da vítima e, ainda, de forma secundária ou reflexa, pela pacífica convivência familiar ou doméstica.
V– Daí que, uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico, como sejam uma simples bofetada ou soco, ou injúrias/insultos e críticas, no caso, dirigidas pelo agente no domicílio comum à companheira ou à filha menor desta, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não doméstico, pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
[…]
V– Concorrem para esta conceção do bem jurídico (pluriofensivo ) protegido, a natureza pública do crime de violência doméstica, o agravamento da incriminação quando o crime é praticado no domicílio comum, a consagração das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, o afastamento da residência desta e a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, o que demonstra que o legislador na redação da hipótese e da estatuição desta norma, vislumbra uma perspetiva de futuro que vai muito para além da expetativa de proteção individual, da vítima em concreto, para assumir um escopo protetor da própria família, ou da comunidade doméstica, enquanto tal, desde que a conduta típica em concreto, haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica (realce e sublinhado nossos).
§ 24. Ora, no caso concreto ⸻ ainda que permaneça intocada a matéria de facto, o que não se concede (!) ⸻, jamais se poderá considerar que o Recorrente não infligiu maus tratos à Assistente numa perspetiva de ameaça de prejuízo sério e irreversível para a sua paz e o bem-estar espirituais, de tal modo que revelou um desprezo pela sua dignidade, que agravou a ilicitude material dos factos que praticou. Numa palavra, é evidente que o grau de antijuridicidade transcende a mera ofensa à integridade física, a mera injúria e a mera ameaça.
§ 25. O conjunto das condutas do Arguido pode, à primeira vista, parecer materialmente não grave. O ponto é que tais condutas foram perpetradas no âmbito familiar e doméstico, encerrando, assim, uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não doméstico, pois semeou o medo, a desconfiança, a insegurança ─ sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
§ 26. É impossível olhar para a factualidade dada como provada, como um todo, e não concluir que a conduta do agente, pelo seu carácter agressivo e pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima, de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, e que, por isso mesmo, é uma conduta que deve ser classificada como “maus-tratos”.
§ 27. Pelo que deverá o Recorrido ser condenado pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), e n.º 2, alínea a), 4, 5 e 6, do Código Penal, tal como vinha acusado.
§ 28. Se, ainda assim, não se entender que o Arguido deve ser condenado pelo crime de violência doméstica ─ como deve ser ─ o Recorrido deverá ser condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p.e p. nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do crime de ameaça, p.e p. nos termos do artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, em concurso real efetivo.
§ 29. No primeiro caso, porque a especial censurabilidade do seu comportamento é manifestamente evidente e resulta de ter agredido a mãe dos seus filhos, diante deles, por motivo torpe: de atraso na entrega de um disco externo.
§ 30. No segundo caso, porque, apesar de não explicitar exatamente qual o bem jurídico que a ameaça visa afetar, é evidente que quando o Arguido disse, no contexto em que o fez, que “vai haver merda” e que a Assistente “ainda não sabe o que é ser violento”, fez uma ameaça velada à liberdade e à integridade física desta.
Uma palavra sobre a pena e a condenação no pedido de indemnização civil
§ 31. Alterada a matéria de facto provada e, bem assim, a qualificação jurídica dos factos, não se poderá deixar de alterar, em conformidade a pena aplicada e a indemnização em que o Recorrido foi condenado.
§ 32. Ora, a ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial e, correspondentemente, do valor da sua reparação deve ocorrer sob o signo do princípio regulativo da proporcionalidade – de harmonia com o qual a danos mais graves deve corresponder uma indemnização mais generosa – e numa perspetiva de uniformidade: a indemnização deve ser fixada tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais geralmente adotados para casos análogos (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil).
§ 33. No presente caso, mesmo que se considerasse tratar-se aqui de uma ofensa à integridade física simples ─ o que em caso algum se admite ─, atentas as circunstâncias em que o crime foi praticado e tudo quanto se expôs acerca da sua gravidade, a condenação na quantia de €800,00 (oitocentos euros) peca, necessariamente, por defeito, devendo o Recorrido ser condenado, no mínimo, ao pagamento da quantia de €2.000,00 (dois mil euros).
TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO, DEVERÃO V.EX.AS:
a) PROCEDER À ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA NA SENTENÇA RECORRIDA, NOS TERMOS ALEGADOS NO CAPÍTULO IIDO PRESENTE RECURSO, COM AS DEVIDAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS;
b) EM QUALQUER CASO, REVOGAR A SENTENÇA RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE CONDENE O ARGUIDO PELA PRÁTICA DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, OU SUBSIDIARIAMENTE, PELA PRÁTICA DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA, EM CONCURSO REAL EFETIVO COM O CRIME DE AMEAÇA, E QUE, BEM ASSIM, ALTERE EM CONFORMIDADE A PENA APLICADA, BEM COMO A CONDENAÇÃO NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL EM QUE FOI CONDENADO, PARA MONTANTE NÃO INFERIOR A €2.000,00 (DOIS MIL EUROS).
POR ASSIM SER DE JUSTIÇA!
(fim de transcrição)
*
O arguido respondeu ao recurso interposto, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1. A versão dos factos assentou quase exclusivamente no relato da recorrente.
2. Não obstante, terem sido asseguradas todas as garantias processuais, a recorrente apenas apresentou como prova testemunhal o seu filho menor, EE, uma sua irmã e a sua mãe.
3. Nas declarações para memória futura prestadas pelo filho EE, escutadas novamente em audiência de discussão e julgamento, este não assistiu a situações de violência física ou psicológica do pai para com a mãe, lembrando-se de ouvir à noite algumas discussões que não sabe dizer qual o teor e de ouvir só uma vez o pai chamar estúpida à mãe.
4. O EE unicamente presenciou o incidente ocorrido no dia 25 de Abril, aliás, visionado na audiência, em que pode, com clareza, observar-se que o recorrido se dirigiu de forma educada à recorrente, apenas se tendo exaltado quando a mesma novamente recusou, pela enésima vez, a entregar o disco rígido e começou a filmá-lo com o telemóvel.
5. Viu-se claramente nas imagens qual era apenas e só o único propósito do arguido: retirar o telemóvel da mão da ofendida;
6. Destarte se demonstrando não só que o recorrido agiu sob forte provocação da recorrente, como que a sua intenção foi tão somente fazer cair o telemóvel da mão desta e acabar com a recolha de imagens.
7. As nódoas negras no braço da recorrente não foram provocadas pelo recorrido, nem tal logrou demonstrar-se.
8. A mãe e a irmã da recorrente nada viram, nunca tendo presenciado cenas de violência, a nada tendo assistido em desabono do recorrido e o pouco que relataram disseram ter ouvido da sua filha e irmã, respectivamente.
9. Agiu bem o Tribunal “a quo” ao não imputar ao recorrido o crime de violência doméstica, pois como se alcança da factualidade supra descrita, não estão preenchidos os pressupostos objectivo e subjectivo deste ilícito penal.
10. A atitude pontual, saliente-se, do recorrido, que foi devidamente visualizada em audiência de julgamento, de modo algum configura violência doméstica.
11. Igualmente não consente a previsão normativa do nº 1 do art. 153º do Código Penal que, simples afirmações vagas e inespecíficas, produzidas em estado de exaltação, provocado pela própria recorrente, nela se possam subsumir, não existindo crime de ameaça.
12. Tal como foi equilibrada a decisão de dar provimento parcial ao pedido cível formulado pela recorrente.
13. Face à prova produzida, a pena aplicada revela-se, por conseguinte, justa, adequada e proporcional.
14. Concluindo, dir-se-á, pois, que o recurso da ofendida não merece provimento em qualquer das suas vertentes.
V/ Excias. farão, como sempre,
JUSTIÇA
(fim de transcrição)
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Igualmente, o Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto, concluindo pela forma seguinte (transcrição):
Nestes termos, deverá ser integralmente mantida a douta sentença recorrida, julgando-se como manifestamente improcedente o recurso interposto pela Recorrente.
Fazendo assim, Vossas Excelências, JUSTIÇA!
(fim de transcrição)
*
Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apôs o seu Visto e, em sede de audiência, pediu Justiça.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do mesmo Código.
No caso concreto, da motivação de recurso consta além do mais o seguinte:
82. Alterada a matéria de facto provada e, bem assim, a qualificação jurídica dos factos, não se poderá deixar de alterar, em conformidade a pena aplicada e a indemnização em que o Recorrido foi condenado.
83. Não se pode, contudo, deixar de salientar a total desadequação da condenação levada a cabo pela sentença recorrida. A saber:
- Condenação na pena de multa de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €540,00 (quinhentos e quarenta euros); e
- Condenação ao pagamento do pedido de indemnização civil no valor global de €800,00 (oitocentos euros).
Parece, assim, pretender a recorrente questionar a medida da pena aplicada ao arguido pela prática do crime pelo qual foi condenado em primeira instância.
Contudo, tal questão mostra-se ausente das conclusões do recurso, sendo que nestas apenas vem contemplada a alteração da pena como consequência necessária da também pretendida alteração da qualificação jurídica dos factos (cfr. conclusão § 31).
Ora, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-02-2024, proferido no Processo n.º 105/18.1PAACB.S1 (disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais citados): é através das conclusões que o recorrente resume as razões do seu pedido, sendo, por conseguinte, através delas que se delimita o objecto do recurso, isolando-se as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de19.10.2021, proc. 3657/18.2T8LRS.L1.S1). (...) Não constando das conclusões do recurso apresentado pelo arguido AA a sobredita matéria invocada na motivação, tal significa que o recorrente, para efeitos de delimitação do objecto do recurso não a considerou, pelo que não será tal matéria conhecida por este tribunal. (Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.10.2023, proc. n.º 309/22.2GDLLE.S1 e Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 6.ª Edição 2007, pág. 103, “…se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal superior só conhecerá das que constam das conclusões.” (no mesmo sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2023, proferido no Processo n.º 309/22.2GDLLE.S1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-02-2012, no Processo n.º 188/10.2TASRE.C1; e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-03-2017, proferido no Processo n.º 160/16.9 GAVRS.E1).
Consequentemente, porque omitida nas conclusões, independentemente da qualificação jurídica dos factos, bem como da questão da legitimidade da assistente para recorrer quanto à medida da pena fixada na decisão recorrida, que assim fica prejudicada, mostra-se vedado a este tribunal de recurso o seu conhecimento, o que se decide.
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Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões a decidir são as seguintes (sem prejuízo de ficar prejudicada a apreciação de alguma(s) em função do que se venha a decidir sobre outras):
a) erro de julgamento quanto aos pontos 4. e 5. da matéria de facto provada nas alíneas e) e f) da matéria de facto não provada;
b) subsunção dos factos ao tipo legal de crime de violência doméstica;
c) subsidiariamente, subsunção dos factos ao tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada;
d) subsidiariamente, subsunção dos factos ao tipo legal de crime de ameaça;
e) na procedência das questões anteriores, alteração da pena;
f) se deverá ser alterada a sentença recorrida quanto ao montante da indemnização por danos não patrimoniais.
*
2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na sentença recorrida, foram julgados provados e não provados os seguintes factos (transcrição):
2.1. Matéria de Facto Provada
Realizada a audiência de julgamento, encontram-se provados, com relevância para a boa decisão da causa, os factos seguintes:
1. Em … de 2006, o arguido e a ofendida AA iniciaram uma relação de namoro.
2. Em .../.../2008, o arguido e a ofendida casaram, fixando residência na ....
3. Fruto dessa relação nasceram, em .../.../2012, EE, e em .../.../2016, FF.
4. Desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, na residência comum, por vezes na presença dos menores, o arguido, sempre que se sentia contrariado, dirigiu-se à ofendida e, com agressividade, apodou-a de estúpida, e após o casamento dizia-lhe também não vales nada.
5. Em algumas dessas ocasiões, achando-se exaltado, o arguido desferiu murros nas paredes da residência.
6. Em Maio de 2021, o arguido e a ofendida colocaram termo à relação, tendo o arguido saído da residência comum.
7. No dia 25 de Abril de 2022, cerca das 18:30 horas, na entrada do prédio da residência da ofendida, em ..., quando entregava os menores após um período de convívio consigo, o arguido dirigiu-se à ofendida e, exaltado, disse-lhe, a respeito de desentendimentos relacionados com a posse de um disco rígido: na próxima entro lá em casa, ou está na minha mão esta semana ou na próxima entro lá em casa, tás avisada, acabou a brincadeira, não gozas mais com a minha cara, a partir de hoje vais ver quem sou eu, quero o disco esta semana se não vai haver merda, vai haver merda se o disco não estiver na minha mão esta semana, não gozes mais com a minha cara, não gozes mais com a minha cara, o disco é na minha mão esta semana se não vou lá buscá-lo a casa, estamos entendidos, não mando mail nenhum.
8. De seguida, sempre na presença dos menores e tendo-se apercebido que a ofendida estava a filmar o ocorrido, o arguido dirigiu-se-lhe, agarrou-lhe um braço e desferiu-lhe palmadas nas mãos, e disse-lhe: eu vou-te arrancar essa porcaria da mão, vou-te arrancar isso da mão, queres que eu te tire isso da mão.
9. Como consequência directa e necessária da supra descrita agressão, AA sofreu, para além de dores: no membro superior esquerdo: duas equimoses verde-amareladas, ovóides de maiores eixos oblíquos, localizadas no 1/3 inferior da face posterior e bordo lateral do braço.
10. Tais lesões determinaram-lhe, como causa directa e necessária, um período de 8 dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral (2 dias).
11. Em data não concretamente apurada de Maio de 2022, aquando da entrega dos menores à ofendida, o arguido dirigiu-se-lhe dizendo: ainda não sabes o que é ser violento.
12. Ao agir nos termos descritos, o arguido quis ofender a honra e bom nome da ofendida, molestá-la fisicamente, provocar-lhe receio, compeli-la a agir de acordo com a sua vontade, sabendo perfeitamente que as expressões que usava e as condutas que adoptou eram idóneas a provocar nela um sentimento de medo, agindo com indiferença à relação que tinham mantido, ciente do dever de respeito que daí emergia e ao facto de terem filhos em comum, o que representou e quis.
13. O arguido sabia que ao praticava os descritos factos no domicílio comum e da ofendida e na presença dos menores.
14. O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
15. Em consequência directa e necessária das descritas condutas do arguido, a assistente sofreu as lesões físicas supra descritas, sentiu dores e sentiu medo.
16. O arguido e a assistente trabalham para a mesma empresa.
17. À data de 25/04/2022 a assistente tinha na sua posse um disco rígido do arguido.
18. Em datas e ocasiões não concretamente apuradas, anteriores a 25/04/2022, o arguido interpelou a ofendida para que esta lhe entregasse o disco rígido.
19. No dia 25/04/2022, o arguido interpelou a ofendida para que esta lhe entregasse o disco rígido, tendo-se exaltado, e tendo a assistente filmado e gravado no telemóvel esse momento de exaltação.
20. Ao ser alvo de recolha de imagens e gravação não autorizadas o arguido tentou tirar o telemóvel da mão da ofendida, tentando fazer cair o telemóvel desta e acabar com as filmagens.
Mais se apurou que:
21. Não se encontram averbadas quaisquer condenações no Certificado do Registo Criminal do arguido.
22. O arguido exerce actividade laboral enquanto …, auferindo mensalmente quantia variável, em média, cerca de € 1.300,00 líquidos.
23. Vive em casa própria, suportando a título de prestação para amortização do empréstimo contraído para aquisição da habitação o montante mensal de € 750.
24. Vive com a companheira e com a filha desta, de 15 anos de idade.
25. Suporta mensalmente a título de pensão de alimentos para os filhos o valor global de € 200, a que acresce metade do valor da mensalidade do colégio dos menores, no valor de cerca de € 560.
26. É licenciado em ....
27. A socialização de BB decorreu num contexto familiar com uma dinâmica familiar harmoniosa entre os progenitores e uma irmã mais velha.
28. BB reconhece que o presente processo tem tido um impacto significativo na sua vida, por revelar as consequências que o mesmo tem provocado no relacionamento com os filhos e a percepção com que os mesmos possam ficar de si no futuro.
*
2.2. Matéria de Facto Não Provada
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) Nas circunstâncias descritas em 4., o arguido disse à ofendida és uma merda, e parto esta merda toda.
b) Nas circunstâncias descritas em 4., o arguido disse à ofendida, ainda durante a relação de namoro, não vales nada.
c) Nas circunstâncias descritas em 5., o arguido desferiu murros nas portas da residência e pontapés nas portas e paredes da residência.
d) Nas circunstâncias descritas em 8., o arguido agarrou os dois braços da assistente.
e) Ao agir nos termos descritos, o arguido sabia que as expressões que usava e as condutas que adoptou eram idóneas a provocar na ofendida um sentimento de medo e de inquietação permanentes, intimidá-la e humilhá-la, mostrar como esta lhe era vulnerável e sujeita ao seu poder, querendo e logrando maltratá-la física e psiquicamente, afectando-a na sua saúde e dignidade humana, o que representou e quis.
f) O arguido sabia que ao praticar os descritos factos no domicílio comum e da ofendida e na presença dos menores, que a sujeitava a uma situação de maior fragilidade, retirando-lhe o último espaço de tranquilidade e de sossego e que esta se absteria de se defender para os não colocar em perigo.
g) Em consequência directa e necessária das descritas condutas do arguido, a assistente ficou assustada ou em pânico quando tem de se encontrar com o arguido.
h) O arguido e a ofendida têm de partilhar amiúde o mesmo espaço, nomeadamente para reuniões, o que origina inseguranças no trabalho, baixa autoestima, ansiedade e uma instabilidade muito grande cada vez que está à prova a nível profissional quando o arguido está presente.
i) Não querendo aceitar a alteração do regime de visitas aos filhos pretendida pelo arguido, no sentido de este pretender estar mais tempo com os filhos, a assistente urdiu um plano para provocar o arguido, retendo na sua posse um disco rígido pertencente ao arguido e recusando-se a entregar-lho.
*
No mais, inexistem factos não provados, não tendo sido considerada a matéria de Direito, conclusiva, meramente negatória, ou sem relevância para a boa decisão da causa.
(fim de transcrição).
*
2.2. Na sentença recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição):
Relativamente à matéria da acusação, o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido, da assistente, do filho de ambos EE (tomadas para memória futura, ao abrigo dos artigos 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, conforme resulta de fls. 134 a 135, e reproduzidas em audiência de julgamento, nos termos do artigo 356.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal), e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, conjugados com a prova documental e pericial junta aos autos, tendo tal prova sido concatenada entre si e apreciada segundo as regras da experiência e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Foram inquiridos:
- AA, assistente;
- GG, irmã da assistente;
- HH, mãe da assistente;
- II, amigo do arguido;
- JJ, amiga do arguido.
Mais concretamente, no que concerne à factualidade vertida nos pontos 1 a 3 e 6 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se no teor do assento de casamento de fls. 105, dos assentos de nascimento de fls. 48 a 49 verso, e nas declarações do arguido e da ofendida, que se revelaram concordantes quanto a esta matéria.
No que respeita à factualidade constante dos pontos 4, 5, e 7 a 11 da matéria de facto provada, a convicção do Tribunal estribou-se, em primeira linha, nas declarações da assistente, que relatou, de forma circunstanciada, segura e coerente, a aludida factualidade no sentido em que resultou provada, secundadas pelo depoimento de EE, e pela prova documental e pericial junta aos autos.
O arguido prestou declarações, tendo negado a prática dos factos tal qual lhe são imputados na acusação.
Com efeito, o arguido negou a prática dos factos descritos nos pontos 4, 5 e 11 da matéria de facto provada.
No que respeita à situação ocorrida a 25/04/2022, o arguido confirmou que se deslocou à entrada do prédio onde habita a assistente para entregar os filhos, e que solicitou à assistente um disco rígido que lhe pertencia.
Reconheceu que se exaltou, sobretudo quando se apercebeu que a assistente o filmava com o telemóvel, e que deu uma palmada no telemóvel da assistente com o intuito de fazer com que esta cessasse a gravação.
Referiu não ter atingido as mãos da assistente ao desferir tal palmada, e negou ter agarrado a assistente nos braços, referindo desconhecer a origem das nódoas negras descritas na acusação.
Mais declarou que a situação ocorrida foi provocada pela assistente, que intencionalmente o colocou numa situação que a mesma sabia que o arguido perderia a paciência, tendo-se negado, após várias interpelações do arguido, a devolver-lhe um disco rígido que lhe pertencia e que o arguido lhe havia cedido temporariamente.
Referiu também encontrar-se pendente processo de regulação das responsabilidades parentais, pretendendo o arguido passar mais tempo com os filhos, o que a assistente não aceita.
Pese embora a negação das condutas que lhe são imputadas, as declarações da assistente revelaram-se seguras e coerentes, tendo relatado de forma circunstanciada e contextualizada as situações que vivenciou e as condutas do arguido de que foi alvo (descritas na matéria de facto provada).
Acresce que as declarações da ofendida mostraram-se secundadas pelo depoimento de EE, filho do arguido e da assistente, o qual confirmou, em particular, ter ouvido o arguido apodar a ofendida de “estúpida” (“há muito tempo”, em data e circunstâncias que não logrou concretizar), e bem assim, ter presenciado o ocorrido no dia 25/04/2022, referindo que o arguido “pegou” no braço da mãe (sic) e levou-a para dentro do prédio e que o arguido bateu na mão da mãe para que o telemóvel caísse, descrevendo os actos praticados pelo arguido e o seu contexto em moldes, no essencial, coincidentes com o relato efectuado pela assistente.
Pese embora a tenra idade do menor, não foram notadas no seu depoimento quaisquer circunstâncias que denotassem um empolamento ou adulteração da realidade observada pelo mesmo, de modo a beneficiar ou a proteger a ofendida (e/ou com o intuito de prejudicar o arguido), pelo que o depoimento de EE mereceu credibilidade.
No que tange ao episódio ocorrido a 25/04/2022, as declarações da assistente mostraram-se ainda corroboradas, quanto às dores e lesões físicas determinadas, pelo teor do relatório pericial médico legal de fls. 84 a 86, no qual se conclui que as lesões observadas a 27/04/2022 são compatíveis com a informação de agressão com apertão nos membros superiores, e se admite o nexo de causalidade entre a agressão e as lesões.
Quanto ao sucedido em 25/04/2022 as declarações da ofendida mostraram-se ainda secundadas pelos depoimentos de GG e HH, irmã e mãe da assistente, respectivamente, as quais confirmaram que no próprio dia dos factos receberam um telefonema da assistente a relatar o sucedido, mais tendo HH se deslocado ao encontro da assistente no próprio dia.
Por outro lado, as declarações da assistente mostraram-se secundadas pelo depoimento de HH quanto à circunstância de a assistente não apresentar lesões/marcas visíveis na data dos factos, referindo que apenas as constatou posteriormente, sendo que os seus depoimentos revelaram-se consentâneos com as máximas da experiência comum e com as regras do normal acontecer, sendo do conhecimento geral que as lesões comummente designadas por “nódoas negras” não surgem imediatamente após uma acção de força física contra o corpo.
No que respeita às concretas expressões dirigidas à assistente no dia 25/04/2022, teve-se ainda em consideração o teor dos vídeos constantes do CD de fls. 96, reproduzidos em audiência de julgamento.
Ora, as declarações do arguido mostraram-se contrariadas pelos meios de prova produzidos e não lograram suscitar dúvida sobre a veracidade das declarações da assistente.
Desde logo, no que respeita às expressões dirigidas à assistente e aos actos de força física infligidos contra objectos no seio de discussões (pontos 4, 5 e 11 da matéria de facto provada), o arguido apresentou uma versão meramente negatória dos factos.
Por outro lado, no respeita ao episódio ocorrido a 25/04/2022, o próprio arguido confirmou o circunstancialismo em que se verificou a interacção entre o arguido e a assistente, sendo que não se encontra qualquer explicação, na sua versão dos acontecimentos, para as lesões físicas ostentadas pela ofendida dois dias após os factos, no exame médico legal, sendo que não só a descrição dos acontecimentos relatada pela ofendida é secundada pelo filho, que presenciou os factos, como o relatório pericial médico legal admite o nexo de causalidade entre a agressão e as lesões observadas.
Por outro lado, ainda que pudesse assistir razão ao arguido no que respeita à reivindicação do disco rígido, a prova produzida não permitiu concluir que a interacção ocorrida entre o arguido e a assistente tenha sido intencionalmente provocada pela assistente, sendo que a própria reconheceu que ficou na posse do mesmo durante um lapso temporal superior ao acordado com o arguido, explicando com elevado detalhe o sucedido, em moldes que não nos suscitaram dúvida sobre a sua plausibilidade à luz das máximas da experiência comum.
As testemunhas II e JJ, amigos do arguido, não revelaram conhecimento esclarecido sobre os factos em apreço, tendo, no essencial, relatado a interacção entre o casal que observaram em determinadas ocasiões, tendo ainda II atestado, de modo vago e subjectivo, os comportamentos e reacções da assistente e do arguido após a separação, pelo que os seus depoimentos não se revelaram determinantes para a formação da convicção do Tribunal.
Ora, a assistente descreveu de forma segura, coerente, esclarecedora, contextualizada e circunstanciada os actos de que foi alvo, e as situações que enunciou, tendo efectuado um relato que se manteve consistente ao longo do seu depoimento, não tendo sido notadas incongruências ou quaisquer outras circunstâncias que fizessem suscitar dúvida sobre a veracidade das suas declarações, tendo apresentado uma versão lógica e congruente dos acontecimentos, e, como tal, plausível e verosímil.
As declarações da ofendida mostraram-se ainda secundadas pela referida prova testemunhal, pericial e registos vídeo, sem que as declarações do arguido as tenham logrado infirmar, nos termos sobreditos, pelo que as declarações da ofendida mereceram credibilidade e revelaram-se suficientemente seguras e consistentes para fundar a convicção do Tribunal.
Assim, tudo visto e ponderado, afigura-se-nos que o referido conjunto probatório se revelou suficientemente sólido e consistente para fundar a convicção do Tribunal, tendo permitido considerar suficientemente demonstrada a aludida factualidade.
Relativamente aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido (pontos 12 a 14 da matéria de facto provada), para além do que já foi sendo adiantado supra, a convicção do Tribunal resultou de uma apreciação da factualidade objectiva apurada à luz das máximas da experiência comum e das regras do normal acontecer, tendo-se considerado que aqueles elementos decorriam de forma segura, por inferência e com apoio nas regras de normalidade, das descritas condutas do arguido e do circunstancialismo subjacente às mesmas.
Com efeito, atentos os actos praticados contra a ofendida (agarrão no braço e palmadas na mão) não podia o arguido deixar de querer atingir a ofendida na sua integridade física, conforme atingiu, ainda que visasse com tais actos que a assistente largasse o telemóvel e cessasse a filmagem.
No que respeita às dores, lesões, e sentimentos experienciados pela ofendida em consequência das descritas condutas do arguido (designadamente, ponto 15 da matéria de facto assente), para além do já exposto supra, teve-se em consideração as declarações da ofendida, as quais se afiguraram consentâneas com as máximas da experiência comum, atenta a idoneidade das condutas encetadas a suscitarem tais consequências e sentimentos, pelo que mereceram credibilidade.
No que concerne à factualidade vertida nos pontos 16 a 18 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido e da assistente, as quais se revelaram concordantes quanto a esta matéria.
No que concerne à factualidade vertida nos pontos 19 a 20 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido, da assistente, de EE e no teor dos vídeos constantes do CD de fls. 96.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido, teve-se em consideração o teor do Certificado do Registo Criminal de fls. 201.
No que concerne às condições pessoais e económicas do arguido, atendeu-se às suas declarações, complementadas pelo teor do relatório social de fls. 196 a 198.
No que concerne à factualidade constante das alíneas a) a d) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua total ausência de prova, não tendo as declarações da assistente ou qualquer outro meio de prova permitido sustentar tal factualidade,
No que respeita à factualidade vertida nas alíneas e) a f) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua ausência de demonstração suficiente, considerando as condutas objectivas que resultaram demonstradas, as quais não atingiram contornos de intensidade e gravidade tais, de modo a considerar verificados os elementos volitivos e os efeitos descritos nas alíneas e) a f) da matéria de facto não provada.
No que tange à factualidade constante das alíneas g) e h) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua ausência de demonstração, não tendo as declarações da assistente ou qualquer outro meio de prova permitido sustentar tal factualidade (sendo de notar que não se encontra sequer alegado que a factualidade vertida na alínea h) decorra, enquanto consequência directa e necessária, das condutas imputadas ao arguido nos presentes autos).
No que concerne à factualidade constante da alínea i) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal decorreu da motivação dos pontos 4, 5 e 7 a 11 da matéria de facto provada, supra exarada.
(fim de transcrição).
*
2.3. Na sentença recorrida, o enquadramento jurídico-penal dos factos encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):
Estabelece o artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 57/2021, de 16/08, que “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a),
b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Acrescenta o n.º 2, al. a), do citado preceito que “se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima” é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Por seu turno, estabelece o n.º 4 do citado normativo que “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”.
A presente incriminação visa a tutela da saúde enquanto bem jurídico complexo, que abrange a integridade corporal, saúde física e psíquica, a honra e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação (cfr. MIGUEZ GARCIA / CASTELA RIO, Código Penal Parte Geral e Especial, 2.ª ed., Almedina, 2015, p. 648 e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., UCE, 2015, p. 591).
O tipo objectivo pressupõe, assim, uma especial relação, conjugal, análoga, ou de natureza familiar, entre agente e vítima, configurando-se por isso como um crime específico.
Relevará, por conseguinte, um certo grau de proximidade e uma estreita comunidade de vida que instituem certas normas de conduta, cuja violação fundamenta ou agrava a ilicitude do acto.
As condutas que integram o tipo objectivo do aludido crime podem revestir diversa natureza, como maus-tratos físicos (ofensas corporais simples), maus-tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, injúrias), privações de liberdade, tratamentos cruéis ou desumanos (por exemplo, reiterada omissão de fornecimento de alimentos ou medicamentos), ou ainda ofensas sexuais, assumindo relevância típica quer sejam praticadas de modo reiterado ou não.
De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um outro tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente. Com efeito, este tipo de crime visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias, ou ameaças, com os quais se verifica um concurso aparente, por se encontrar relativamente aos mesmos, em relação de especialidade (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, p. 594 e MIGUEZ GARCIA /CASTELA RIO, Código Penal…, p. 651). Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que assim perturba a vida daquele concreto ser humano.
Quando o tipo de ilícito seja preenchido mediante a execução plúrima de condutas típicas, estas deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma, sendo valoradas globalmente, como integrando um só comportamento repetido ou prolongado, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social. Trata-se, assim, de um crime único, de execução reiterada, ocorrendo a respectiva consumação com a prática do último acto de execução, pelo que deve ser aplicada a lei vigente a essa data (cfr. acórdãos da Relação do Porto de 27/11/2013, proc. 98/09.6TAPNF.P1, e da Relação de Coimbra de 15/12/2010, proc. 512/09.0PBAVR.C1, disponíveis em www.dgsi.pt).
De salientar que não é toda e qualquer conduta (de injúria, ameaça, ofensa à integridade física) que se reconduz ao crime de violência doméstica, sendo necessário que tais actos revistam gravidade tal, que se possam considerar atentatórios da dignidade e da liberdade do visado pela conduta, com afectação da sua saúde física e psíquica.
No que respeita ao tipo subjectivo, estamos perante um tipo de ilícito doloso, podendo verificar-se em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. O dolo deverá abranger todos os elementos objectivos do tipo, sendo necessário que o agente saiba que está a infligir maus-tratos físicos ou psíquicos a terceiro com o qual mantém uma relação de proximidade, e que o queira fazer.
No que respeita à agravação do limite mínimo da moldura penal consagrado no n.º 2 da norma incriminadora, em virtude de os factos serem praticados dentro do “domicílio comum” ou do “domicílio da vítima”, cumpre referir que o propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas (cfr. TERESA PIZARRO BELEZA, “Violência Doméstica”, in Revista do CEJ, n.º 9, p. 289, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, p. 593 e MIGUEZ GARCIA / CASTELA RIO, Código Penal…, p. 651).
Por “domicílio comum” entende-se o local da coabitação (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, p. 593 e AA.VV., Violência Doméstica, implicações sociológicas, psicológicas, e jurídicas do fenómeno, CEJ, Abril de 2016, p. 2401).
No caso vertente, resulta da factualidade apurada que em Maio de 2006 o arguido e a ofendida AA iniciaram uma relação de namoro, tendo casado em .../.../2008.
Fruto dessa relação nasceram, em .../.../2012, EE, e em .../.../2016, FF.
Ficou demonstrado que desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, na residência comum, por vezes na presença dos menores, o arguido, sempre que se sentia contrariado, dirigiu-se à ofendida e, com agressividade, apodou-a de estúpida, e após o casamento dizia-lhe também não vales nada.
Em algumas dessas ocasiões, achando-se exaltado, o arguido desferiu murros nas paredes da residência.
Em Maio de 2021, o arguido e a ofendida colocaram termo à relação, tendo o arguido saído da residência comum.
No dia 25 de Abril de 2022, cerca das 18:30 horas, na entrada do prédio da residência da ofendida, em ..., quando entregava os menores após um período de convívio consigo, o arguido dirigiu-se à ofendida e, exaltado, disse-lhe, a respeito de desentendimentos relacionados com a posse de um disco rígido: na próxima entro lá em casa, ou está na minha mão esta semana ou na próxima entro lá em casa, tás avisada, acabou a brincadeira, não gozas mais com a minha cara, a partir de hoje vais ver quem sou eu, quero o disco esta semana se não vai haver merda, vai haver merda se o disco não estiver na minha mão esta semana, não gozes mais com a minha cara, não gozes mais com a minha cara, o disco é na minha mão esta semana se não vou lá buscá-lo a casa, estamos entendidos, não mando mail nenhum.
De seguida, na presença dos menores e tendo-se apercebido que a ofendida estava a filmar o ocorrido, o arguido dirigiu-se-lhe, agarrou-lhe um braço, e desferiu-lhe palmadas nas mãos, e disse-lhe: eu vou-te arrancar essa porcaria da mão, vou-te arrancar isso da mão, queres que eu te tire isso da mão.
Como consequência directa e necessária da supra descrita agressão, AA sofreu, para além de dores, no membro superior esquerdo: duas equimoses verde-amareladas, ovóides de maiores eixos oblíquos, localizadas no 1/3 inferior da face posterior e bordo lateral do braço.
Tais lesões determinaram-lhe, como causa directa e necessária, um período de 8 dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral (2 dias).
Mais ficou demonstrado que em data não concretamente apurada de Maio de 2022, aquando da entrega dos menores à ofendida, o arguido dirigiu-se-lhe dizendo: ainda não sabes o que é ser violento.
Resultou ainda demonstrado que ao actuar do modo descrito, o arguido quis ofender a honra e bom nome da ofendida, molestá-la fisicamente, provocar-lhe receio, compeli-la a agir de acordo com a sua vontade, sabendo perfeitamente que as expressões que usava e as condutas que adoptou eram idóneas a provocar nela um sentimento de medo, agindo com indiferença à relação que mantinham e tinham mantido, ciente do dever de respeito que daí emergia e ao facto de terem filhos em comum, o que representou e quis.
Porém, não resultou demonstrado que ao actuar do modo descrito, o arguido quisesse provocar na ofendida um sentimento de medo e de inquietação permanentes, intimidá-la e humilhá-la, mostrar como esta lhe era vulnerável e sujeita ao seu poder, querendo e logrando maltratá-la física e psiquicamente, afectando-a na sua saúde e dignidade humana, o que representou e quis.
Ora, pese embora a incriminação em apreço não exija a reiteração das condutas para o preenchimento do respectivo tipo objectivo, as condutas demonstradas, ainda que vistas no seu conjunto, não assumem uma intensidade e desvalor tais que se possa concluir que ofenderam a saúde física e psíquica da ofendida, atingindo-a na sua dignidade humana, conforme exige o preenchimento do tipo.
Na verdade, não se apurou a concreta frequência com que o arguido apodou a assistente de estúpida, e lhe dirigiu a expressão não vales nada, nem o concreto circunstancialismo em que o arguido proferiu tais expressões, de modo a permitir concluir que tal conduta revestiu gravidade suficiente para configurar maus tratos psíquicos.
Por outro lado, os actos de agressão física perpetrados em 25/04/2022 (agarrão de um braço e palmadas na mão) configuram actos de reduzida gravidade, ocorreram numa ocasião isolada, já muito após a separação do casal, e num contexto específico (desavença relativa à posse de um disco rígido e encontrando-se a ofendida a encetar uma gravação vídeo), sendo que todas as expressões dirigidas à assistente nesta ocasião aludiam à referida desavença, sem que se tenha apurado terem sido proferidas expressões de cariz ofensivo ou de anúncio de mal futuro à integridade física ou vida da ofendida.
Acresce que as demais condutas apuradas, em particular, a expressão ainda não sabes o que é ser violento, ainda que possam traduzir comportamentos desadequados, susceptíveis de revelar uma intenção de intimidar ou amedrontar a ofendida, não assumem uma gravidade e desvalor tais de modo a consubstanciar maus tratos psicológicos, com afectação da dignidade da ofendida.
Deste modo, afigura-se-nos que as condutas apuradas, ainda que vistas no seu conjunto, não assumem uma gravidade e desvalor tais de modo a consubstanciar maus tratos físicos e psíquicos, com afectação da saúde e da dignidade da ofendida.
Assim, entendemos que a conduta do arguido não integra a prática do crime de violência doméstica, razão pela qual se impõe a absolvição do arguido quanto a este tipo de crime.
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Preceitua o artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
A presente incriminação visa a tutela da honra, salvaguardada no artigo 26.º da
Constituição da República Portuguesa, pretendendo-se tutelar, primordialmente, a chamada honra subjectiva, ou seja, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal (acórdão da Relação de Coimbra de 23/05/2012, proc. 241/10.2GAANS.C1, disponível em www.dgsi.pt).
O elemento objectivo do tipo consiste na injúria perpetrada através de uma imputação de factos ou da formulação de um juízo, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivos da honra e consideração de determinada pessoa.
A acção típica do crime contra a honra consiste numa manifestação de menosprezo que seja idónea para afectar tal bem jurídico nas circunstâncias concretas em que é utilizada.
A adequação das expressões para atingir o bem jurídico protegido deverá aferir-se de acordo com a dignidade do indivíduo médio, não relevando a susceptibilidade pessoal do visado.
No que respeita ao tipo subjectivo, estamos perante um tipo de ilícito que apenas assume relevância típica quando cometido a título doloso, podendo verificar-se em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Não se exige para o preenchimento do elemento subjectivo que o agente queira atingir a honra e consideração da pessoa visada,
bastando que tenha consciência de que os factos são ofensivos da honra e consideração da mesma e que a sua actuação é proibida por lei.
Resulta da factualidade apurada que desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, o arguido dirigiu-se à ofendida e apodou-a de estúpida, e já após o casamento, dizia-lhe também não vales nada.
Ora, as referidas expressões têm um significado ofensivo evidente, sendo consideradas ofensivas pelo cidadão comum.
Verifica-se, assim, que a conduta do arguido poderia comprometê-lo com a prática do crime de injúria.
O crime de injúria reveste natureza particular, nos termos dos artigos 181.º, n.º 1, e 188.º, n.º 1, do Código Penal.
Estatui o artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”.
Nos termos do artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, “o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores”.
Compulsados os autos, verifica-se que a ofendida apresentou queixa contra o arguido em 25/04/2022 (fls. 3 a 9), sendo que não se apurou que o arguido tenha dirigido à ofendida qualquer das expressões descritas no período de seis meses que antecedeu a apresentação da queixa.
Verifica-se, assim, que o direito de queixa não foi exercido tempestivamente, pelo que se extinguiu tal direito, carecendo a assistente de legitimidade para o prosseguimento da acção penal.
Assim, não estando reunidos os pressupostos necessários para o exercício da acção penal, importa decretar a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de injúria, por falta de condição de procedibilidade, ao abrigo dos artigos 113.º, n.º 1, 115.º, n.º 1, 181.º, n.º 1, e 188.º, n.º 1, do Código Penal e 48.º e 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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Por seu turno, preceitua o artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O tipo do crime de ofensa à integridade física simples consubstancia o tipo fundamental do crime de ofensas corporais dolosas, cujo bem jurídico tutelado consiste na integridade física da pessoa humana, dotado de protecção constitucional (artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), constituindo uma das concretizações na lei ordinária da salvaguarda do carácter inviolável da integridade moral e física das pessoas.
O tipo de ofensas à integridade física simples tem como elemento objectivo a perpetração de uma ofensa, a qual pode assumir uma de duas modalidades – a ofensa ao corpo e a ofensa à saúde – sendo certo que, frequentemente, a primeira importa a segunda.
Densificando estes dois conceitos, referem MIGUEZ GARCIA E CASTELA RIO: “A ofensa do corpo associa-se a um ataque à integridade corporal, que tanto pode consistir no prejuízo ou perda da substância corporal, como (na opinião de alguns) o corte ou arranque do cabelo ou da barba que não seja insignificante. Com frequência, a ofensa corporal constituirá uma lesão, mas pode não se chegar a infligir dor ou sofrimento. [...] A lesão da saúde consiste em criar ou intensificar uma situação patológica, enquanto desvio das funções corporais normais. É a perturbação do equilíbrio fisiológico ou psicológico da vítima.” (ob. cit., p. 598, destacados nossos).
Assim, o preenchimento do tipo de crime de ofensa à integridade física depende apenas da existência de uma ofensa no corpo, não se exigindo que se produza, cumulativamente, uma ofensa à saúde, constituindo ofensa “toda a acção que prejudique o bem estar físico da vítima”, independentemente de provocar ou não dor (acórdão da Relação de Coimbra de 09/05/2012, proc. n.º 79/10.7SBGVA.C1, disponível em www.dgsi.pt).
No que respeita ao tipo subjectivo, estamos perante um tipo de ilícito doloso, podendo verificar-se em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Dispõe o artigo 145.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, que se as ofensas à integridade física forem produzidas em situações que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este será punido com pena de prisão até 4 anos, no caso do artigo 143.º (ofensa à integridade física simples), acrescentando o n.º 2 daquele normativo que são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º.
A configuração típica do crime de ofensa à integridade física qualificada (por remissão para a configuração típica do crime de homicídio qualificado) serve-se da técnica habitualmente designada por “exemplos-padrão”. Consiste essa técnica na combinação, para efeito de qualificação dos crimes em questão, de uma cláusula geral (nestes casos, que as circunstâncias da prática do crime sejam reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade) com uma enumeração de casos exemplificativos de concretização da aplicação dessa cláusula. Embora, como regra, a verificação de algum desses exemplos seja sintoma de verificação da cláusula geral, não o será necessariamente (afirma-se que esses exemplos “são susceptíveis de revelar especial censurabilidade e perversidade”).
Por outro lado, a enumeração das circunstâncias exemplificativas não é taxativa (é acompanhada da expressão “entre outras”); para além dos exemplos indicados, poderá haver outras situações que se enquadrem na cláusula geral.
No entanto, não pode recorrer-se à cláusula geral sem passar pelo “crivo”, dos exemplos padrão, como se estes não existissem. Alguma situação não directamente enquadrável nos exemplos-padrão há-de equiparar-se, no plano da estrutura valorativa e gravidade, a algum do exemplos-padrão (cfr. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 25-29).
Prevê a alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente “Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau”.
No que respeita ao tipo subjectivo, estamos perante um tipo de ilícito doloso, podendo verificar-se em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
No caso em apreço, resultou demonstrado que no dia 25 de Abril de 2022, o arguido dirigiu-se à assistente, agarrou-lhe um braço e desferiu-lhe palmadas nas mãos.
Como consequência directa e necessária da supra descrita agressão, AA sofreu, para além de dores: no membro superior esquerdo: duas equimoses verde-amareladas, ovóides de maiores eixos oblíquos, localizadas no 1/3 inferior da face posterior e bordo lateral do braço.
Tais lesões determinaram-lhe, como causa directa necessária, um período de 8 dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral (2 dias).
Ora, atendendo à conduta tipificada pela incriminação em apreço, afigura-se indubitável que os factos praticados pelo arguido preenchem o respectivo tipo objectivo.
Com efeito, o agarrão no braço e as palmadas na mão desferidos pelo arguido na ofendida traduziram exercícios de força física contra a ofendida e constituíram forma de atingir e molestar a integridade física da mesma, de tal modo que lhe causaram as referidas lesões e dores no corpo.
Ficou também demonstrado que o arguido agiu na presença dos dois filhos menores que tem em comum com a ofendida, com indiferença à relação que tinha mantido com a mesma, ciente do dever de respeito que daí emergia e ao facto de terem filhos em comum.
Porém, a referida conduta, ainda que apreciada no contexto em que foi praticada, não é reveladora de especial perversidade e censurabilidade.
Com efeito, os actos de agressão perpetrados, que se cingiram a um agarrão no braço e a palmadas na mão, configuram actos de gravidade diminuta, e ocorreram numa ocasião isolada, já muito após a separação do casal, num contexto de desavença relativa à posse de um disco rígido e encontrando-se a ofendida a filmar a conduta do arguido, sendo que, quer o acto em si, quer o circunstancialismo em que o mesmo ocorreu, quer as lesões daí derivadas, não revelam uma particular gravidade e desvalor da conduta do arguido.
Trata-se, pois, de uma forma de cometimento do acto que, reportando-nos especificamente à qualificativa em causa, não é, por si só, especialmente desvaliosa e que também não revela qualidade especialmente desvaliosa da personalidade do arguido.
Assim, conclui-se não estar preenchida a aludida qualificativa, razão pela qual a conduta do arguido apenas o pode comprometer com a prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
Resultou também demonstrado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar a ofendida na sua integridade física, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, o que nos permite concluir que o arguido actuou com dolo directo e com consciência da ilicitude (artigos 14.º, n.º 1, e 17.º do Código Penal).
Encontram-se, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço, pelo que, não tendo sido apurada factualidade susceptível de consubstanciar qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, conclui-se que o arguido cometeu, em autoria material, sob a forma consumada, um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
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A demais factualidade apurada não é susceptível de ser subsumida à prática de qualquer outro ilícito criminal.
(fim de transcrição)
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III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Questão prévia:
3.1. Da rejeição parcial do recurso interposto pela assistente quanto ao erro de julgamento invocado
Como resulta das conclusões apresentadas pela assistente, designadamente das conclusões § 2 a § 10, a sua pretensão recursiva em sede do erro de julgamento invocado incide, entre o mais, sob os pontos 4. e 5. da matéria de facto provada
Invoca a assistente na motivação de recurso a esse propósito, em síntese, que:
- quanto àqueles pontos de facto, foi de tal modo levada ao conhecimento do Tribunal a sua concretização (de suma importância para analisar a qualificação jurídica dos factos atenta a necessidade de os enquadrar ou desenquadrar do conceito de maus tratos), que é forçoso concluir que as declarações da Assistente, conjugadas em parte com as declarações do Arguido, impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, por incompletude, quanto aos factos descritos nos pontos da matéria de facto provada: 4. e 5.;
- ao longo das suas declarações, a Assistente referiu diversos eventos que classificou como meros pormenores de um comportamento constante do Arguido, revelador de agressividade verbal e física, ao longo de todo casamento, com especial incidência após o nascimento do primeiro filho de ambos, em 2012 (…).
Dispõe o art.º 412º, nºs 1 a 3, do Código de Processo Penal que:
Motivação do recurso e conclusões
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…)
É sabido que a impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição do vício previsto no art.º 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, norma que prevê o reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo Código.
No primeiro caso, a divergência consubstancia a invocação de um vício da decisão, sendo este recurso considerado como sendo ainda recurso da matéria de direito; no segundo caso, o recorrente vale-se de provas produzidas em audiência, que deverá especificar.
Assim, nos termos do n.º 3 do citado art.º 412º, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente terá de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida na decisão recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.
Por outro lado, por força do disposto no n.º 4 do mesmo dispositivo legal, essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Na hipótese de ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08/03/2012 (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012 publicado no D.R. n.º 77/2012, Série I, de 2012-04-18), visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas.
O incumprimento das formalidades exigidas no citado art.º 412º/ 3 e 4, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla.
No caso, a assistente indica os pontos de facto, as provas que no seu entender impõem decisão diversa, assim como indica o sentido que os pontos de facto em causa deverão assumir.
Porém, a factualidade que a assistente pretende que seja considerada como provada e introduzida nos pontos 4. e 5. da matéria de facto provada, não consta da acusação deduzida pelo Ministério Público, nem se encontra vertida na sentença recorrida como provada ou como não provada.
Como reconhece a assistente na sua motivação de recurso, trata-se de factualidade que, no seu entender, resultou da discussão da causa, designadamente das suas próprias declarações, mas que foi desconsiderada pelo tribunal a quo.
Sucede que a impugnação da matéria de facto apenas poderá incidir sobre os factos julgados provados ou não provados na decisão recorrida e não sobre factos estranhos à decisão de facto proferida em primeira instância.
Ou seja, a impugnação da matéria de facto e a sua reapreciação pelo tribunal de recurso sob o invocado erro de julgamento não poderá ter por objecto, nem por finalidade, a introdução na factualidade provada, de factos não incluídos na decisão recorrida [v. neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-05-2018, no Processo n.º 134/16.0GAVF.G1 (Relator: JORGE BISPO); e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-04-2016, no Processo n.º 371/14.1TATVR.E1 (Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO)].
A este propósito consignou-se no Acórdão n.º 312/2012 do Tribunal Constitucional, no Processo n.º 268/12 (Relator: Conselheiro João Cura Mariano), disponível no respectivo site, o seguinte:
(…) o direito do arguido recorrer da sentença condenatória, na parte em que decidiu a matéria de facto, possa não contemplar a possibilidade do tribunal de recurso considerar provados determinados factos que, no entendimento do recorrente, hajam resultado da discussão da causa, mas que não constam da lista de factos prova­dos e não provados da sentença recorrida. É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correção do julgamento da instância inferior que não incluiu tais factos, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso da prova produzida na primeira instância.
Isto não quer dizer que a falta de consideração pela sentença recorrida de factos abordados na discussão da causa, não fazendo recair sobre eles um juízo de prova, não deva ser passível de reação pelo arguido, de forma a assegurar na plenitude os seus direitos de defesa (vide sobre a importância do tribunal incluir na lista dos factos provados e não provados os factos relevantes para a decisão da causa, mesmo que apenas tenham sido referidos em julgamento, SÉRGIO POÇAS, em “Da Sentença Penal – fundamentação de facto”, na Revista Julgar, Setembro-Dezembro 2007, págs. 24-25).
Mas o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento pelo tribunal de 1.ª instância.
Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não conte­nha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º).
Ora, o critério sindicado se não admite que possa ser fundamento do recurso da decisão sobre a matéria de facto a pretensão do Recorrente de que sejam considera­dos provados factos que na sua opinião resultaram da discussão da causa, mas que não foram contemplados na lista dos factos provados e não provados constantes do Acórdão proferido na 1.ª instância, não impede que essa omissão seja qualificada como uma nulidade invocável pelo arguido perante o tribunal superior.
Nem se considera tão pouco que a omissão da pronúncia sobre matéria de facto alegadamente omitida, ora em análise, integre o vício decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada para a decisão de direito, previsto no art.º 410º/1-a) do Código de Processo Penal, nos termos que a recorrente igualmente coloca na motivação de recurso, embora reconhecendo que tal vício não se verifica por não resultar do texto da decisão ao afirmar que: Só não se defende tratar-se aqui de vício decisório de insuficiência da matéria de facto, porque tal vício não decorre do texto da própria decisão.
Como explicita o Ac. da Relação de Lisboa de 29-03-2011, proferido no processo n.º 288/09.1GBMTJ.L1-5: este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal.
Como se elucida no Ac. do STJ de 18-02-2021, proferido no processo n.º 87/11.0GBSXL.L2.S2 (Relatora: Margarida Blasco): O vício previsto pela al. a), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, ocorre quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, quando o Tribunal podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante.
Ora, a decisão recorrida, tendo por base a factualidade vertida na acusação deduzida nos autos, pronunciou-se sobre todos os factos nesta imputados, no sentido de provados ou não provados, pelo que não ocorre omissão de pronúncia com tal fundamento.
Do mesmo modo, e pelos mesmos fundamentos, a factualidade alegadamente omitida não se mostra de tal modo relevante para a decisão da causa que integre o vício de omissão de pronúncia.
Saber se a factualidade provada se subsume ou não ao crime imputado na acusação, constitui questão que versa já sobre um eventual erro de direito, não contendendo com a questão da correcção ou incorrecção do julgamento sobre a matéria de facto.
Assim, por incidir sobre factualidade não constante do elenco dos factos provados e não provados na parte em que versa sobre os pontos 4. e 5. dos Factos Provados, a impugnação da matéria de facto com base em erro de julgamento invocado pela recorrente mostra-se legalmente inadmissível.
Em conformidade, rejeita-se o recurso interposto pela assistente quanto à questão do erro de julgamento invocado, no que respeita aos pontos 4. e 5. da matéria de facto provada na sentença recorrida.
*
3.2. Cumpre agora apreciar no mais o recurso interposto.
Sucede que, não obstante não tenha sido invocado pela recorrente nas suas conclusões de recurso, mas sendo o mesmo de conhecimento oficioso, entende este tribunal ad quem que a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.º 410º/2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Com efeito, dispõe o art.º 152º do Código Penal, para o que aqui releva, que:
Violência doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
b) (…);
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
O crime de violência doméstica protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente a integridade física, a saúde física, psíquica e psicológica, a dignidade do ser humano.
No entanto, como decorre dos elementos objectivos do tipo legal descritos naquele normativo, a distinção entre o crime de violência doméstica e outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, reside no conceito de maus tratos físicos ou psíquicos.
Maus tratos reconduzem-se a comportamentos, por acção ou omissão, que importem a sujeição da vítima a violência física ou psíquica, a abusos de qualquer natureza, incluindo psicológica, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, colocando em risco ou atingindo de modo efectivo a sua saúde.
Este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação (in Ac. da Relação de Guimarães de 2-11-2015, proferido no processo n.º 77/14.1TAAVV.G1).
Por esse motivo, como explanado no Ac. da Relação de Évora de 11-07-2019, proferido no processo n.º 627/17.1GDSTB.E1: não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os actos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é, quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.
No Ac. da Relação de Coimbra de 18-05-2022, proferido no processo n.º 924/19.1PBLRA.C1 decidiu-se que: Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão o tipo legal de crime de violência doméstica se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem um quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2021, proferido no Processo n.º 75/20.6JAFAR.S1 (Relatora: Margarida Blasco) explicita-se o seguinte: a ratio do preceito deriva da especial relação entre o agente e o ofendido e não está, pois somente na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional, mas sim e também na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (...) Inclui, além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (coagindo a vítima a praticar actos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de acção, de movimentação, etc.), que, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.
No caso concreto, encontra-se provado que em … de 2006, o arguido e a ofendida AA iniciaram uma relação de namoro, bem como que em .../.../2008, o arguido e a ofendida casaram, fixando residência na ..., o que preenche a previsão da alínea b) do n.º 1 do art. 152º citado.
Encontra-se ainda provado que:
4. Desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, na residência comum, por vezes na presença dos menores, o arguido, sempre que se sentia contrariado, dirigiu-se à ofendida e, com agressividade, apodou-a de estúpida, e após o casamento dizia-lhe também não vales nada.
5. Em algumas dessas ocasiões, achando-se exaltado, o arguido desferiu murros nas paredes da residência.
6. Em Maio de 2021, o arguido e a ofendida colocaram termo à relação, tendo o arguido saído da residência comum.
No que a estes pontos da factualidade apurada respeita, consignou-se na sentença recorrida o seguinte:
Resulta da factualidade apurada que desde o início do namoro e ao longo de toda a relação de casamento, o arguido dirigiu-se à ofendida e apodou-a de estúpida, e já após o casamento, dizia-lhe também não vales nada.
Ora, as referidas expressões têm um significado ofensivo evidente, sendo consideradas ofensivas pelo cidadão comum (sublinhado nosso).
Porém, o tribunal a quo decidiu absolver o arguido da prática do crime ora em análise, aduzindo como fundamento o que resulta do seguinte excerto da decisão recorrida:
(…) não se apurou a concreta frequência com que o arguido apodou a assistente de estúpida, e lhe dirigiu a expressão não vales nada, nem o concreto circunstancialismo em que o arguido proferiu tais expressões, de modo a permitir concluir que tal conduta revestiu gravidade suficiente para configurar maus tratos psíquicos.
Ora, as ofensas verbais reiteradas são susceptíveis de integrar o conceito de maus tratos psíquicos quando, no seio da relação familiar, assumam contornos de habitualidade, transformando-as num padrão de comportamento incompatível com a sã convivência familiar, porquanto, apesar de, quando isoladamente consideradas, parecerem revestir pouca gravidade, a sua repetição transforma esse comportamento numa atitude deveras humilhante e degradante para a vítima, resultando numa afectação da sua saúde psíquica e emocional.
Porém, como se constata daquele excerto da sentença recorrida, o tribunal a quo não apurou, nem a concreta frequência com que o arguido apodou a assistente de estúpida, e lhe dirigiu a expressão não vales nada, nem o concreto circunstancialismo em que o arguido proferiu tais expressões.
Ora, resultando do texto da decisão recorrida que o tribunal a quo não apurou a factualidade em causa, essencial à correcta subsunção dos factos ao direito, é patente o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão previsto no art.º 410º/2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Como atrás se salientou já, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada tem lugar quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág.74. Recursos Penais, 8.ª ed., 2011; v. Ac. da Relação de Coimbra de 24-04-2018, proferido no processo n.º 1086/17.4T9FIG.C1).
Como explicita o Ac. da Relação do Porto de 9-01-2020, proferido no processo n.º 1204/19.8T8OAZ.P1: O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final (no mesmo sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 29-03-2011, proferido no processo n.º 288/09.1GBMTJ.L1-5 atrás citado).
Por outro lado, tal vício, sendo de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, terá de resultar patente do próprio texto da decisão recorrida.
Como se decidiu no Ac. da Relação de Évora de 4-04-2017, proferido no processo n.º 593/15.8GABNV.E1: a verificação do vício, a que se refere a al. a) do nº 2 do art.º 410º do CPP, depende da medida em que o texto da sentença impugnada, por si mesmo ou conjugado com os dados da experiência comum, deixe transparecer que o Tribunal «a quo» exerceu da forma que lhe incumbia os seus poderes de averiguação oficiosa, acerca da matéria cuja carência de demonstração se constatou.
Ora, o tribunal a quo refere não ter apurado o circunstancialismo e a frequência das ofensas verbais, sem que os tenha investigado de forma mais aprofundada, de modo a apurar os elementos factuais em falta, nomeadamente junto da assistente e demais testemunhas inquiridas, como evidencia o texto da decisão.
Consequentemente, o juízo formulado a esse respeito pelo tribunal a quo mostra-se viciado, na medida em que omitiu o dever de produzir toda a prova que em concreto se revelava imprescindível à descoberta da verdade material em toda a sua extensão, com o objectivo de alcançar uma decisão quanto à matéria de facto incidindo também sobre aquelas frequência e circunstancialismo, por forma a alcançar um juízo seguro quanto à condenação ou absolvição.
Dispõe, com efeito, o art.º 340º/1 do Código de Processo Penal que: o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Como se salienta no acima citado Ac. da Relação de Évora de 4-04-2017: o poder conferido pela disposição legal agora transcrita é um verdadeiro poder-dever e não uma mera faculdade, devendo o Tribunal exercê-lo de forma exaustiva. Assim, a eventual inércia dos sujeitos processuais ao nível probatório não exime o Tribunal do dever de, por sua iniciativa, determinar a produção dos meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e investigar todos os factos relevantes para uma decisão justa da causa, segundo as várias soluções em direito plausíveis, respeitando-se, no que se refere aos factos integradores do crime imputado e das circunstâncias agravantes deste, o quadro definido pela acusação.
No caso em apreço, face à falta de produção dos meios probatórios necessários à formulação de um juízo seguro de condenação ou de absolvição, o tribunal a quo não esgotou os seus poderes de investigação da matéria de facto, tentando apurar o contexto e a frequência das ofensas verbais julgadas provadas, quando o podia e devia fazer, pelo que ocorreu o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
É de admitir que, caso o tribunal a quo tivesse investigado e averiguado de forma mais exaustiva os factos em causa, como podia e devia, se sanaria a incerteza factual apontada no texto da fundamentação da sentença recorrida, de onde, a demonstrar-se a concreta frequência e o concreto circunstancialismo em falta, o tribunal a quo formularia um juízo seguro quanto à decisão referente ao enquadramento jurídico-penal dos factos, o que não sucedeu.
Verificado o vício decisório em questão, não se afigura a este tribunal de recurso ser possível decidir a causa, porquanto a factualidade por apurar terá de ser indagada na primeira instância, com reabertura da audiência e produção dos meios de prova que para o efeito se mostrem pertinentes.
Em conformidade, atento o disposto no art.º 426º/1 do Código de Processo Penal, deverá proceder-se ao reenvio dos autos à 1.ª instância, reabrindo-se a audiência de discussão julgamento para produção de prova, indagando-se da matéria factual em dúvida, proferindo-se a final nova sentença na qual deverão ser extraídas as conclusões que resultem do que se vier factualmente a apurar.
Tal determina que fique prejudicado no âmbito do presente recurso o conhecimento das demais questões suscitadas pela recorrente.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal desta Relação em considerar verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada na sentença recorrida, anulando-se tal decisão e determinando-se, em consequência, o reenvio dos autos à 1.ª instância, para novo julgamento parcial, nos termos e para os efeitos acima consignados e restrito à matéria de facto atrás apontada (sem prejuízo de se introduzirem as alterações na matéria de facto provada e não provada que se mostrem pertinentes e necessárias em função do que se provar), reabrindo-se a audiência de discussão julgamento para produção de prova, e proferindo-se a final nova sentença, na qual deverão ser extraídas as conclusões que resultem do que se vier factualmente a apurar.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 10 de Outubro de 2024
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º 2 do C.P. Penal)
Assinado digitalmente pela Relatora, pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos e pela Ex.ma Senhora Juíza Desembargadora Presidente da 9ª Secção Criminal
Paula Cristina Bizarro
Ana Marisa Arnedo
Jorge Rosas de Castro
Simone Abrantes de Almeida Pereira