Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ELISABETE ASSUNÇÃO | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE ACIDENTE DE VIAÇÃO CRÉDITO DO FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL VEÍCULO AUTOMÓVEL SEM SEGURO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/15/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | 1 – Os créditos do Fundo de Garantia Automóvel não estão abrangidos pela exoneração do passivo restante, nos termos do art.º 245º, n.º 2, al. b), do CIRE, na situação em que o proprietário e condutor de veículo, envolvido num acidente de viação causador de lesões a terceiro, não cumpriu a sua obrigação de segurar esse veículo envolvido no acidente, tendo o referido Fundo indemnizado o lesado em virtude da ausência de seguro válido e eficaz à data do sinistro. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa 1. Relatório P… apresentou-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, dizendo encontrar-se em situação de insolvência atual. * A insolvência do requerente foi declarada por sentença datada de 15.02.2021. * Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação de relatório. * Em 21.02.2021, foi junto aos autos, pelo insolvente, certificado de registo criminal constando deste, a menção de condenação daquele, por sentença de 10.04.2018, transitada em julgado, proferida no Juízo Criminal de Oeiras – Juiz 3, no Processo …/13.7TDLSB, de um crime de ofensa à integridade física por negligência (em acidente de viação), previsto e punido pelo art.º 148, nºs 1 e 3, do Código Penal, praticado em 20.02.2013. * Em 22.02.2021 foi apresentado nos autos requerimento pelo Fundo de Garantia Automóvel nos seguintes termos: “FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, vem reclamar o seu crédito contra P…, nos termos e com os seguintes fundamentos: - Em consequência de um acidente de viação ocorrido a 20-02-2013, P… conduzia o veículo ligeiro de mercadorias …-LI, que circulava na via publica sem seguro de responsabilidade civil obrigatório. - Tendo, por conseguinte, entrado em despiste e atropelado o peão C… que circulava no passeio, causando-lhe danos corporais graves. - Tendo o lesado reclamado os seus danos, junto do Fundo de Garantia Automóvel. - No entanto, o FGA, tem direito de reembolso do responsável civil, ou seja, do Insolvente, além do valor pago às vítimas do acidente de viação, todas as despesas com a instrução do processo acrescido dos respetivos juros. - Tendo o FGA já procedido ao pagamento das indemnizações e despendidos verbas referentes á averiguação e despesas de gestão, deve o insolvente ao FGA a quantia de € 457.687,53, acrescida de juros até integral pagamento, Doc. 1. - Mais, quanto à exoneração do passivo restante, dispõe o artº 245º nº 2 al. b) do C.I.R.E., a exoneração do devedor não abrange as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos. - Verifica-se uma dupla responsabilização, a de condutor que praticou o facto ilícito, e a de proprietário que incumpriu a obrigação de segurar, tendo a direcção efectiva do veículo causador do acidente. - Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, de 17 de junho de 2014, 2º Secção Proc. Nº 2573/13.9TBVCD-CP1, ao entender que: “I -Nos termos do artº 245º nº 2 do C.I.R.E., a exoneração do devedor não abrange as indenizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade. II – Nestes termos, não deve ser abarcado pela exoneração o crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel, relativo a uma indemnização paga por este em acidente de viação, tendo o Fundo sido acionado por força da ausência de seguro, válido e eficaz, à data do sinistro.” Termos em que deverá graduar-se o crédito de € 220.392,29 a favor do FGA, acrescido do valor que vier a ser sentenciado no âmbito da ação judicial pendente e julgar-se o crédito em causa excluído da exoneração do passivo restante.” Juntou certidão emitida pela ASF – Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensão responsável pela gestão do Fundo de Garantia Automóvel certificando que: “O FGA regularizou o acidente de viação ocorrido em Oeiras, no dia 20.02.2013, que foi provocado pelo veículo com a matrícula …-LI; Em resultado das diligências efetuadas concluiu-se que o responsável civil não beneficiava de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel à data do acidente; De acordo com os documentos arquivados no respetivo processo de sinistro n.º 105870, o FGA despendeu o montante total de 457.687,53 € (quatrocentos e cinquenta e sete mil seiscentos e oitenta e sete euros e cinquenta e três cêntimos); Do referido montante 456.525,56 (quatrocentos e cinquenta e seis mil quinhentos e vinte cinco euros e cinquenta e seis cêntimos) correspondem a indemnizações satisfeitas ao(s) lesado(s) e 1.161,97 (mil cento e sessenta e um euros e noventa e sete cêntimos), a despesas com a instrução do processo. De acordo com os registos informáticos o último pagamento efetuado pelo FGA neste processo ocorreu no dia 09-03-2020.” * A Sra. Administradora nomeada nos autos apresentou, em 01.04.2021, relatório nos autos, em cumprimento do disposto no art.º 155º do CIRE, referindo, no que respeita ao crédito do Fundo de Garantia Automóvel, o seguinte: “- Quanto ao crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel, resulta o mesmo do pagamento de indemnizações e despesas à vítima, em consequência de um acidente de viação ocorrido em 20/02/2013, uma vez que o ora insolvente se encontrava a circular na via pública sem seguro de responsabilidade civil obrigatória.” Na lista provisória de credores junta por apenso refere: “Credor Reclamante 2. FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, Pessoa Coletiva nº…, com sede na Avª … Lisboa, reclama a quantia global de € 457.687,53 (quatrocentos e cinquenta e sete mil, seiscentos e oitenta e sete euros e cinquenta e três cêntimos), proveniente de uma indemnização e despesas pagas por este, em acidente de viação ocorrido em 20/02/2013, em que foi interveniente o ora insolvente, sendo: -Créditos Comuns no montante de: € 457.687,53” * Em 29.04.2021 foi proferido, no que ora nos interessa, despacho nos autos nos seguintes termos: “Exoneração do Passivo Restante I. Relatório P… peticionou a exoneração do passivo restante, alegando no essencial que reúne os respectivos requisitos legais e se compromete a observar todas as condições exigidas, nomeadamente as previstas no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE. Foi dispensada a realização da assembleia de credores. No relatório elaborado nos termos do art.º 155.º, do CIRE, a A.I. nada opôs. Fundo de Garantia Automóvel pronunciou-se no sentido do seu crédito não estar abrangido, nos termos do art.º 245.º, n.º 2, al. b), do CIRE, por respeitar ao reembolso de indemnização por facto ilícito doloso praticado pelo Devedor. + II. Fundamentação A exoneração do passivo restante está regulada nos artigos 235.º a 248.º, do CIRE. Constitui prerrogativa exclusiva da insolvência das pessoas singulares, inspirada no princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, vigente nos Estados Unidos da América e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência – cf. art.º 45 do Preâmbulo do Dec. Lei n.º 53/2004, de 18 de Março. Tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito do processo de insolvência, desde que não se verifique algum dos factos impeditivos, enumerados no art.º 238.º, n.º 1, do CIRE. Como refere Assunção Cristas “in” Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” –Themis/Revista de Direito/Setembro de 2005, página 168 “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento (artigo 236º/1 e 4)”. A jurisprudência tem entendido, maioritariamente, que não impende sobre requerente/insolvente o ónus de alegar e provar a inexistência de tais fundamentos (por todos v.g. Acórdãos do STJ de 06.07.2011, Relator: Fernandes do Vale, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2012, Relator: Carla Mendes, ambos in http://www.dgsi.pt). Assim, cabe aos credores a demonstração de algum dessas circunstâncias. No presente caso mostram-se observados os requisitos estabelecidos no art.º 236.º, n.º 3, do CIRE. A questão suscitada pelo credor Fundo de Garantia Automóvel respeita aos efeitos da exoneração, no termo do procedimento, por conseguinte não relevando para efeitos do disposto no art.º 238.º, do CIRE, n.º 1, do CIRE. Pelo que, não tendo sido suscitado, nem se verificando, obstáculo à admissão do pedido (cfr. art.º 238.º, do CIRE), haverá que concluir pela sua admissibilidade. Sendo, no entanto, de assinalar uma vez mais que a exoneração, a final, não abrange os créditos enumerados no art.º 245.º, n.º 2, do CIRE. + No que respeita à fixação do montante mensal a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, tem o tribunal em atenção as seguintes linhas de orientação: a) A remuneração mínima mensal garantida legalmente fixada constitui valor referência para fazer face às despesas de habitação, alimentação e despesas correntes de água, luz, gás e transportes públicos (passe) do cidadão médio, adulto, para um «sustento minimamente digno». b) Havendo outros elementos no agregado familiar, são atendidas as despesas proporcionais à idade, condição de saúde e social desses elementos, sempre de acordo com o padrão médio acima referido. Sendo ainda de referir que a opção do devedor se apresentar à insolvência com um pedido de exoneração do passivo restante exige como contrapartida para a sua concessão que o devedor realize um esforço sério na gestão dos seus rendimentos, nomeadamente limitando os seus gastos à aquisição dos produtos e dos serviços estritamente necessários a uma vida sã e digna. O que poderá implicar a alteração de hábitos de consumo com vista à adequação do seu padrão de vida ao rendimento. No presente caso resulta provado, pelos documentos apresentados nos autos e pelo Relatório do(a) Administrador(a) de Insolvência, que: - O insolvente, nascido em 19.01.1983, trabalha como motorista de táxi, auferindo € 665,00 mensais de vencimento base. - Reside em casa do pai; - Indicou as seguintes despesas fixas mensais: € 250,00 de comparticipação nas despesas com consumo de água, electricidade e gás. € 320,00 de despesas de alimentação e higiene pessoal, sem incluir despesas com vestuário e calçado. Tendo em conta a realidade apurada, afigura-se ajustada a fixação da quantia a excluir do rendimento disponível para assegurar o sustento do devedor (art.º 239.º, 3, b), i), do CIRE) em montante equivalente ao valor da retribuição mínima mensal garantida, actualmente € 665,00, 12 (doze) meses por ano. + III. Decisão Decide-se assim admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e em consequência: a) Nomear para desempenhar as funções de fiduciário, o(a) Administrador(a) de Insolvência que desempenhou funções nestes autos (cfr. art.ºs 240º a 242º do CIRE). b) Fixar a remuneração do Fiduciário, a suportar pelo(a/s) Devedor(a/s), em 10% das quantias objecto de cessão ou, não havendo cessão de rendimentos, a quantia equivalente a uma e meia unidade de conta processual anual, mediante apresentação do relatório correspondente – cfr. art.º 240º, n.ºs 1 e 2, 241º, n.º 1, al. c) e 60º, n.º 1, do CIRE e art.º 28º, da Lei n.º 22/2013 de 26.02; c) Determinar que o rendimento disponível que o(a) Devedor(a) venha a auferir, no prazo de 5 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, que se denomina, período da cessão, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia equivalente ao valor da retribuição mínima mensal garantida correspondentemente em vigor, 12 (doze) meses por ano. d) Sob pena de não lhe ser concedido, a final, o pedido de exoneração do passivo restante, durante este período de cinco anos, o(a) Devedor(a) fica obrigado(a) (art.º 239º, n.º 4, do CIRE): • Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado; • Entregar imediatamente ao Fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; • Informar o tribunal e o Fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 (dez) dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; • Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. Notifique.” * Em, 11.06.2024, o Fundo de Garantia Automóvel apresentou novo requerimento nos autos, reiterando o anteriormente requerido, pedindo a final que o crédito do mesmo Fundo fique excluído da eventual concessão de exoneração do passivo restante. * Em 26.06.2024, foi proferida decisão nos autos nos seguintes termos: “Exoneração do passivo restante Por sentença proferida em 15.02.2021 foi declarada a insolvência de P…. Por despacho proferido em 29.04.2021, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante e encerrado o processo de insolvência, dando-se início ao período de cessão. Atingido o termo do período de cessão, o/a Fiduciário(a) concluiu nada ter a opor à exoneração do passivo restante. Foram notificados os credores, nos termos e para os efeitos do art.º 244.º, n.º 1, do CIRE, tendo respondido o Fundo de Garantia Automóvel, pugnando pela exclusão do seu crédito, nos termos do art.º 245.º, n.º 2, al. b), do CIRE. + Nos termos do art.º 244.º, n.º 1, do CIRE, não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período de cessão sobre a respectiva prorrogação, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência. No presente caso não houve lugar a cessação antecipada do período de cessão. Não foi suscitado, nem resulta do relatório apresentado pelo Fiduciário ou de qualquer outro elemento dos autos, motivo determinativo prorrogação ou recusa de exoneração do passivo restante, nomeadamente os previstos respectivamente nos art.ºs 242.º-A e 243.º, n.º 1, do CIRE. + Assim, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 235.º, 237.º, als. b) e d), e 244.º, do CIRE, decreta-se a exoneração do passivo restante do/a(s) Devedor (a/s). A exoneração do (a/s) Devedor (a/s) importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art.º 245.º, n.º 1, do CIRE). Não abrange, porém, os créditos por alimentos; as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações; os créditos tributários e da segurança social (art.º 245.º, n.º 2, do CIRE). Mais concretamente, não são assim abrangidos pela exoneração do passivo restante agora decretada, os créditos reconhecidos ao Fundo de Garantia Automóvel, Instituto da Segurança Social e Autoridade Tributária e Aduaneira. Custas pelo(a/s) Devedor (a/s), sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie(m) (art.ºs 248.º, n.º 1, 301.º e 303.º, do CIRE). Notifique, registe e publique (art.º 247.º, do CIRE).” * Inconformado com a parte da decisão proferida respeitante à não abrangência pela exoneração dos créditos reconhecidos ao Fundo de Garantia Automóvel, apresentou o recorrente a presente apelação, pedindo que seja revogada a decisão recorrida, nesta parte e consequentemente, ser o crédito do Fundo de Garantia Automóvel abrangido pela exoneração do passivo restante. * Apresentou o recorrente as seguintes conclusões: “1 - O crédito FGA é um crédito comum; 2 - O crédito FGA, não se enquadra na exclusão do artigo n.º 2 do artigo 245.º do CIRE.; 3 – Pelo que o crédito FGA deve ser abrangido pela exoneração do passivo restante.” * Não foram apresentadas contra-alegações. * O recurso foi admitido por despacho de 13.08.2024 a subir, imediatamente, nos próprios autos. * Na lista de credores reconhecidos, apresentada pela Administradora Judicial nomeada nos autos, em 06.04.2021, é referido, no que respeita ao fundamento do crédito do Fundo de Garantia Automóvel: “Resultante do pagamento de uma indemnização e despesas na sequência de um acidente de viação”. * Por sentença proferida no apenso de reclamação de créditos, em 21.06.2021, foi reconhecido ao Fundo de Garantia Automóvel um crédito, com a natureza de comum, no valor 457.941,93 €. * Foram colhidos os vistos. Cumpre apreciar. 2. Objeto do recurso Analisado o disposto nos artºs 608º, n.º 2, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, 635º, nºs 3 e 4, 639º, nºs 1 a 3 e 641º, n.º 2 al. b), todos do Código de Processo Civil (CPC), sem prejuízo das questões que o tribunal deve conhecer oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução a outras, este Tribunal apenas poderá conhecer das questões que constem das conclusões do recurso, que definem e delimitam o objeto do mesmo. Não está ainda o Tribunal obrigado, face ao disposto no art.º 5º, n.º 3, do citado diploma, a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar essas conclusões, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito. Considerando o acima referido é a seguinte a questão a decidir no presente recurso: - Saber se o crédito do Fundo de Garantia Automóvel se enquadra no disposto no n.º 2, al. b), do art.º 245º, do CIRE. 3. Fundamentos Fundamentação de facto: Os constantes do Relatório, que se dão por integralmente reproduzidos. 4. Apreciação do mérito do recurso Em apreciação no presente recurso está o instituto da exoneração do passivo restante. Dispõe o art.º 235º do CIRE, com a epígrafe “Princípio geral” que: “Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste …”. Tal como refere Maria do Rosário Epifânio “A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (…), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo (fresh start).[1] Por sua vez Catarina Serra menciona que: “A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2] Está aqui em causa a proteção do devedor, a segunda oportunidade que o legislador entendeu conferir ao mesmo, mas não nos podemos também esquecer dos credores desse devedor, desde logo impondo-se que se tenha em consideração a finalidade do processo de insolvência prevista do art.º 1, do CIRE, de satisfação dos credores. Tal como refere Manuela Espadaneira Lopes, em Acórdão desta mesma Relação, de 13.07.2023: “Subjacente ao instituto da exoneração do passivo está a ideia de existência de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de perdão de dívidas, o que implica sacrifícios de ambas as partes”.[3] Tendo estas considerações em mente, importa apreciar o disposto no art.º 245º, do CIRE, em causa na apreciação da questão em concreto. Refere este normativo legal, no que ora nos interessa, que: “1 – A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do art.º 217º 2 – A exoneração não abrange, porém: (…) b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade.” Referem a propósito deste n.º 2, do art.º 245º, do CIRE, Carvalho Fernandes e João Labareda, que: “Em termos gerais a razão de ser da manutenção dos créditos referidos no n.º 2 reside na particular natureza dos interesses dos seus titulares, que a sua extinção afetaria, e o legislador – em geral bem (…) – entende assegurar.”[4] No caso, está em causa, como acima referimos, a apreciação do disposto na alínea b) do citado normativo legal – indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor que hajam sido reclamados nessa qualidade. Na espécie, o Fundo de Garantia Automóvel reclamou um crédito que resulta, quase na sua globalidade, de pagamentos indemnizatórios feitos pelo mesmo ao lesado[5], por ter sido acionado na sequência de um acidente de viação da responsabilidade do insolvente, proprietário do veículo, ora recorrente, factualidade que não foi posta em causa pelo recorrente, nem no processo da primeira instância, nem em sede de alegações de recurso, tendo o referido crédito sido reconhecido pelo tribunal, sem impugnação por parte do insolvente. Dispõe o art.º 54º, n.º 1, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, que aprovou o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel que: “Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e reembolso”. A posição jurídica do Fundo de Garantia Automóvel deve assim ser configurada como um direito a sub-rogar-se na posição do lesado. Esta sub-rogação deve-se ao facto de o lesante não ter, à data do sinistro, um seguro válido e eficaz. Estabelece o art.º 4º, n.º 1, do já citado diploma legal, uma obrigação de seguro nos seguintes termos: “1 – Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.” No art.º 6º, do mesmo diploma legal, prevê-se quem são os sujeitos dessa obrigação de segurar, destacando-se desde logo o proprietário do veículo. A conduta do lesante, que conduz sem seguro válido e eficaz, constitui uma contraordenação grave, nos termos do art.º 145º, n.º 2, al. a), do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94 ,de 03 de maio. Nos termos do art.º 47º, n.º 1, do já citado Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto: “A reparação dos danos causados pelo responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel nos termos da secção seguinte.” É neste contexto que surge o mencionado direito de sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel, previsto no citado art.º 54º, n.º 1, do diploma enunciado, Antes de mais importa verificar em que consiste a sub-rogação. A sub-rogação vem prevista nos artºs 589º a 594º do Código Civil (C.C.), no seu capítulo IV, que tem como epígrafe “Transmissão de créditos e de dívidas”. Tal como refere Menezes Cordeiro: “… é uma forma de transmissão de créditos que opera a favor do terceiro que cumpre a obrigação do devedor ou com cujos meios a obrigação é cumprida pelo próprio devedor. A pessoa que é colocada na posição do primeiro credor – ou seja, o segundo credor, a favor de quem opera a transmissão – diz-se sub-rogada.”[6] Ora o Fundo de Garantia Salarial, ao indemnizar, no caso, o lesado, nos termos previstos na legislação referida, satisfez a indemnização devida a este, operando-se assim uma transmissão do crédito, ficando assim agora credor do lesante, na medida em que satisfez o crédito original. Como determina o art.º 593º, n.º 1, do C.C. “O sub-rogado adquire na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.”. A razão de ser desta intervenção do Fundo, no caso em concreto, é o facto de o veículo automóvel, como mencionámos, não ter, à data do sinistro em que se viu envolvido, seguro válido e eficaz, tendo sido incumprida a obrigação de segurar referida no já mencionado art.º 4º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, por um dos obrigados a segurar designados no art.º 6º do mesmo normativo legal, na espécie o proprietário. Constitui esta omissão facto ilícito doloso? Vária jurisprudência com a qual concordamos tem vindo a entender que sim.[7] Tal como referem João de Matos Antunes Varela: “O dolo aparece como a modalidade mais grave da culpa aquela em que a conduta do agente, pela mais estreita identificação estabelecida entre a vontade deste e o facto se torna mais fortemente censurável.”[8] Como menciona ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2014: “A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência da conduta.”[9] Precisemos onde reside o dolo neste caso. Tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.07.2016, com o qual concordamos inteiramente, no caso: “O dolo decorre da inexistência de seguro automóvel, válido e eficaz, da responsabilidade do mesmo devedor, na qualidade de proprietário do veículo interveniente no acidente. Enquanto proprietário, ele tinha o dever não só de celebrar o contrato de seguro, mas também de não circular sem seguro. Não celebrando tal contrato e circulando com o veículo sem seguro, agiu com dolo, senão directo, pelo menos eventual.”[10] Aqui, sendo o insolvente, ora recorrente, condutor e proprietário do veículo que determinou posteriormente o acionamento do Fundo de Garantia Automóvel, podemos concluir que era o insolvente que detinha a direção efetiva desse veículo nessa data. Tal como referem Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao art.º 503º do C.C.: “A direção efetiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo (…) sendo a falta dele que explica, em alguns casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário. Tem a direção efetiva do veículo aquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento.”[11] Assim, também aqui neste caso podemos considerar estar em causa a prática de um ato doloso por parte do insolvente, que obrigado a segurar o veículo automóvel com seguro obrigatório, não o fez, não possuindo, à data do sinistro, seguro válido e eficaz, sendo este igualmente o condutor do veículo interveniente no sinistro. Estamos assim perante um dos casos previstos no art.º 245º, n.º 2 al. b) do CIRE, estando em causa uma indemnização assegurada por via de sub-rogação por parte do Fundo de Garantia Automóvel, devida pela prática pelo insolvente, devedor, de facto ilícito doloso, reclamado nessa qualidade. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.03.2024 “… o dolo que releva para efeitos do no artigo 245.º, n.º 2, al. b) do CIRE não se afere exclusivamente pelo facto que directamente produz danos na esfera jurídica do lesado, mas ainda relativamente ao facto que faz nascer na esfera jurídica do devedor o dever de indemnizar, concretamente o consentimento[12] na circulação do veículo sem seguro válido e eficaz.”[13] Quanto à questão referida pelo recorrente nas alegações de recurso de o crédito ter sido reclamado como um crédito comum, em nada altera a conclusão referida. Determina o art.º 47º, n.º 4, al. c), do CIRE, que todos os demais créditos que não os garantidos, privilegiados ou subordinados são comuns. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda: “O n.º 4 limita-se à mera enunciação das categorias de créditos relevantes em sede de processo de insolvência, sem se sequer os enumerar por ordem alfabética.”[14] Estando em causa uma classificação respeitante à categoria do crédito do Fundo de Garantia Automóvel não se vê em que medida essa classificação releva para a questão em apreço nos autos. Assim sendo, importa concluir que não assiste razão ao recorrente e que o recurso deverá improceder na sua totalidade mantendo-se a decisão recorrida. As custas deverão ser suportadas recorrente, sem prejuízo do disposto no art.º 248º, n.º 1 do CIRE e do eventual benefício de apoio judiciário (artºs 663º, n.º 2, 607º, n.º 6, 527º, nºs 1 e 2, 529º e 533º todos do CPC). 5. Decisão Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto e consequentemente mantém-se a decisão recorrida Custas pelo recorrente, sem prejuízo do disposto no art.º 248º, n.º 1 do CIRE e do benefício de apoio judiciário. Notifique Lisboa, 15.10.2024 Elisabete Assunção Susana Santos Silva Fátima Reis Silva _______________________________________________________ [1] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Almedina, pág. 400. [2] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, abril de 2018, pág. 560. [3] Proc. n.º 18394/22.5T8LSB-C.L1.1., disponível em www.dgsi.pt [4] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª edição, Quid Juris, Sociedade Editora, pág. 871. [5] E uma quantia de 1.161,97 € respeitante a despesas com a instrução do processo. [6] Direito das Obrigações, 2º volume, 1990, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 99. [7] Cf. entre outros: Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 28.06.2016, Proc. n.º 4372/15.4T8CBR.C1, Relator Fonte Ramos, Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 07.07.2016, Proc. n.º 853/15.8T8STS.P1, Relator Fernando Samões, Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 05.03.3024, Proc. n.º 2498/19.4T8STS-B.P1, Relator João Proença, todos disponíveis em www.dgsi.pt [8] João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 562. [9] Processo n.º 2572/10.2TALRA.C1, Relator Vasques Osório, disponível em www.dgsi.pt [10] Proc. n.º 853/15.8T8STS.P1, Relator Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt [11] Código Civil anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, 1987. [12] Ou no caso em apreço a condução pelo próprio. [13] Proc. n.º 2498/19.4T8STS-B.P1, Relator João Proença, disponível em www.dgsi.pt [14] Obra citada (nota 4), pág. 294. |