Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11516/19.5T8LSB.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: TEMAS DA PROVA
FALTA DE RESIDÊNCIA PERMANENTE
AUSÊNCIA DO LOCADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1Na medida em que os temas da prova mais não servem que para enquadrar a actividade instrutória (como resulta do art.º 410º do Código de Processo Civil), tendo em vista a aquisição de toda a factualidade relevante para a decisão da causa, na perspectiva da causa de pedir e das excepções peremptórias opostas à mesma, não devem os mesmos corresponder, sem mais, à reprodução dos factos alegados pelas partes e que se mostram controvertidos.

2Só na medida em que a enunciação dos temas da prova conduz a omissões na actividade instrutória, tornando insusceptíveis de demonstração os factos que sustentam o pedido ou qualquer excepção peremptória, é que há lugar a falar da nulidade do despacho respectivo, por violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes.

3Estando demonstrado que há mais de um ano, à data da propositura da acção, a R. estava internada num estabelecimento residencial destinado a pessoas com doença neurológica ou psíquica, em razão da doença neurológica degenerativa grave e incurável que a faz depender permanentemente do auxílio de terceiros, e tendo sido aí internada porque beneficiava de melhores condições de vida, relativamente às que tinha no local arrendado, designadamente no contacto com outras pessoas e com o exterior, tal beneficio assume-se como permanente, não sendo apto a justificar o não uso do local arrendado há mais de um ano, nos termos e para os efeitos da al. a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil.

4A dimensão constitucional dos direitos à habitação e à saúde da pessoa idosa não pode significar a desconformidade da interpretação acima referida do conceito de doença, não só porque a dimensão programática dos direitos constitucionais à habitação e à saúde dirige-se ao Estado, mas igualmente porque não é exigível ao titular do direito de propriedade (com igual consagração constitucional) que sofra uma compressão na vertente da exploração económica do mesmo direito, em substituição do Estado, a quem compete garantir tal direito constitucional à habitação e à saúde do arrendatário idoso.


(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:



Em 31/5/2019 Ana O. e Jorge O. propuseram contra Maria F. acção declarativa com forma comum, pedindo que se declare resolvido o contrato de arrendamento para habitação no qual a R. figura como arrendatária e os AA. como senhorios, condenando-se a R. no despejo imediato do local arrendado, entregando-o aos AA. livre e devoluto de pessoas, bens e animais, e alegando para tanto, e em síntese, que a R. foi residir para uma instituição de acolhimento de idosos em 2010, tendo deixado de usar o local arrendado, o qual é utilizado pela filha e pela neta da R., sem autorização dos AA.

Citada a R., na pessoa da curadora provisória que lhe foi nomeada, por incapacidade de facto para receber a citação, apresentou contestação em 14/10/2020, onde alega, em síntese, que:
  • Padece de doença neurológica e incurável, mas que não obriga a internamento em estabelecimento hospitalar ou casa de repouso;
  • O seu internamento em 2010 teve carácter temporário, a conselho médico e visando o retardamento da evolução da doença, tendo estado sempre previsto o regresso a casa, que ocorreu em 27/8/2020, quando deixou de se justificar tal internamento, por já não beneficiar da estimulação mental visada pelo mesmo;
  • Os AA. sempre tiveram conhecimento do internamento da R., bem como das razões do mesmo e do seu carácter temporário, nunca tendo deduzido qualquer oposição ao mesmo nem tendo manifestado qualquer vontade de despejar a R. do local arrendado pelo facto de estar internada;
  • Tal situação de não oposição manteve-se até Junho de 2018, assim criando a convicção de que aceitavam a mesma.
Conclui pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

Os AA. responderam à matéria das excepções invocando, em síntese, que a R. foi internada de forma permanente e vitalícia, em razão da sua idade, limitações e doença, só tendo regressado ao local arrendado por conveniência dos seus familiares, após a propositura da acção e para que a mesma pudesse ser contestada, e mais negando que alguma vez tenham consentido na ausência da R. do local arrendado. Concluem como na P.I.

Com dispensa de audiência prévia foi proferido o despacho saneador, mais sendo identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, com reclamação da R., parcialmente atendida.

Após realização da audiência final foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a acção procedente e, consequentemente:
i)
Decreto a resolução do contrato de arrendamento respeitante à fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao segundo andar A esquerdo/norte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no n.º 14 da Avenida (…), em Lisboa, descrito (…) e inscrito (…).
ii)–
Condeno a ré, Maria F., no despejo imediato do locado e a entregá-lo aos autores livre e devoluto de pessoas bens e animais”.

A R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem (com correcção dos lapsos de escrita que apresentam):
1.O douto despacho ref. 404658139, de 26.04.21, ao enunciar os temas de prova d), e) e f), que não têm correspondência nos factos articulados pela ré na sua contestação, os quais consubstanciam excepção peremptória, promoveu uma interpretação do nº 1 do art. 596º do CPC que violou as normas do art. 6ª CEDH e do art. 32º, nº 1, da CRP, esta na vertente do direito a um processo justo e equitativo aplicável a qualquer processo, seja qual for a natureza; pelo que o referido despacho padece de nulidade que, pela sua relevância e importância para a boa decisão da causa, justifica a anulação de todo o processado subsequente.
2.Ao ignorar os factos alegados pela ré nos artigos 28º a 45º e 20º a 24º da sua contestação, não os incluindo nos temas de prova nem tomando qualquer posição sobre eles, o Tribunal violou o disposto no art. 607º, nº. 4 do CPC, impondo-se assim a respectiva consequência, ou seja, a anulação da decisão recorrida para ampliação da matéria de facto essencial à decisão do litígio segundo todas as soluções plausíveis, nos termos da parte final do art. 662º, nº. 2, alínea c), do CPC.
3.Determina o art. 611º, do CPC, que a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão. Ao excluir de qualquer apreciação - de facto e de direito - os factos relacionados com a circunstância de a ré ter regressado definitivamente a sua casa em 27 de Agosto de 2020, onde reside à data da sentença, pelas razões indicadas, o Tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre factos essenciais para a boa decisão da causa. A sentença é totalmente omissa sobre o regresso da ré à casa nas referidas circunstâncias.
4.Nos termos do art. 662º, nº 1, do CPC, face à prova produzida em julgamento e constante dos autos, impõe-se e existem todas as condições para o Tribunal de recurso alterar a decisão da matéria de facto no que respeita ao facto não provado f), revogando-se a decisão do Tribunal recorrido, proferindo-se douto Acórdão que:
a)-Considere provado que, pelo menos em 2012, os autores tomaram conhecimento de que a ré estava doente tinha sido internada num lar;
b)-Considere provado que a autora Ana O., em 10.01.2013, enviou à filha e curadora da ré a carta junta como documento nº 1, anexo à contestação, na qual, na parte final da mesma desejava as melhoras da mãe;
c)-Considere provado que entre 7 de Janeiro de 2013 e 7 de Dezembro de 2017, os autores enviaram à ré cartas para aumento das rendas, as quais foram respondidas pela filha da ré em representação da mãe, conforme documentos 2, 3,4 e 5 anexos à contestação;
d)-Considere provado que os autores, através da sua Ilustre Advogada, em 01 de Junho de 2018, enviaram à ré a carta junta como documento 6, anexo à contestação, nos termos da qual invocando o facto de a destinatária residir num Lar de Idosos há mais de um ano, comunicavam a resolução do contrato de arrendamento;
e)-Considere provado que os autores, por carta de 07 de Março de 2019, por carta enviada à ré, entre outras coisas, exigiram o pagamento da renda mensal de 628,00 euros, sob pena de darem início à competente acção de despejo com fundamento no não uso do locado por mais de um ano.
5.Face à prova produzida em julgamento, nomeadamente o depoimento das testemunhas Sr. Dr. Luís G., Sr. Embaixador António F. e Sra. Dra. Ana F., deverá ser proferida douto Acórdão que revogue a decisão de facto consignada na douta sentença recorrida, na parte respeitante aos factos não provados b), c), d) e e) e se considere provado que:
a)-Provado que a ré, na Casa Romana, beneficiava do contacto com outras pessoas, exercício físico e contacto com o exterior e tinha melhor qualidade de vida;
b)-Provado que os filhos da ré foram aconselhados por médico a internar a ré num estabelecimento destinado a acompanhar pessoas com doença neurológicas e psíquica enquanto fosse possível atingir os objectivos referidos em a) e d);
c)-Provado que aquando do seu internamento sempre esteve previsto o regresso a casa da ré quando se deixassem de verificar as razões que justificaram a seu internamento;
d)-Provado que o médico aconselhou que enquanto a ré pudesse ter contacto, com pessoas, sair à rua acompanhada e ter contacto social com o exterior, seria adequada a sua permanência no local.
6.A expressão “doença” referida no art. 1072º, nº. 2, a), do CC não pode ser interpretada apenas como doença curável ou não; deverá ser interpretada relativamente à situação concreta da pessoa doente, tendo em conta o seu bem-estar e saúde, e o que é mais aconselhável sob o ponto de vista médico para preservar a sua qualidade de vida enquanto pessoa doente.
7.É lícito o não uso temporário de casa arrendada, por período de tempo superior a um ano, por arrendatária idosa que padece de doença de Alzheimer e que, não obstante a sua idade e doença, é pessoa activa, com energia e saudável, razão porque deu entrada em casa de repouso ou lar que lhe proporcionava actividade física, contactos com outras pessoas e melhor qualidade de vida, situação que não se verificaria, com consequências negativas para a sua saúde, se permanecesse fechada na casa arrendada - um segundo andar de um prédio, com acesso por escadas - sem quaisquer contactos e actividade.
8.Tendo cessado os benefícios conferidos pela permanência temporária na casa de repouso ou lar, porque, entretanto, a sua saúde física e mental se degradou por força da evolução da doença de Alzheimer, e tendo regressado à casa arrendada, onde vive há mais de quinze meses com o apoio da filha e de uma cuidadora interna, deverá ser considerado justificado à luz do art. 1072º, nº 2, a), do CC o não uso do locado pelo arrendatário no período em que esteve ausente.
9.O art. 1072º, nº 2, a), do CC, na parte respeitante à expressão «doença», deverá ser interpretado no sentido de ser lícito o não uso do locado por pessoa idosa que, por motivos de doença, se tenha de ausentar, temporariamente, para local onde possa beneficiar de melhor saúde e qualidade de vida enquanto pessoa doente que é, devendo regressar ao locado logo que tais benefícios deixem de existir.
10.É inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 1º, 72º, 64º e 65º da CRP, a interpretação que a douta sentença recorrida faz do art. 1072º, nº. 2, CC, no sentido de que a expressão «doença» se reconduz apenas a doença curável e ao tempo necessário ao seu tratamento.
Não foi apresentada alegação de resposta pelos AA.
***

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com:
a)-A nulidade do despacho que decidiu a reclamação à enunciação dos temas da prova, e anulação de todo o processado subsequente;
b)-a alteração da matéria de facto;
c)-a interpretação e aplicação da al. a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil.
***

Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1.Os AA. são proprietários da fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “I”, correspondente ao 2º andar A esquerdo/norte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no nº 14 da Av. (…), em Lisboa, descrito (…), – cuja aquisição, por legado, se mostra inscrita a favor dos mesmos pela apresentação (…) e inscrito (…).
2.Mediante contrato escrito datado de 19/10/1953 a fracção identificada em 1. foi dada de arrendamento pelo seu primitivo proprietário, para habitação permanente, ao marido da R., José F., por contrato escrito junto com a P.I. como documento 3.
3.O contrato foi celebrado pelo prazo de seis meses, renovando-se por iguais períodos, com início em 1/11/1953 e termo no último dia do mês de Abril de 1954.
4.Foi convencionada a renda mensal de 950$00, a qual deveria ser paga no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que a renda dissesse respeito.
5.Faleceu o primitivo inquilino, José F., em 22/2/1997.
6.A R. nasceu em 8/5/1930.
7.A R. foi internada na “Casa Romana”, sita em (…), em meados de 2010, ali tendo residido, de modo ininterrupto entre 2015 e 27/8/2020.
8.Entre Junho de 2009 e Novembro de 2013 a filha da R., Ana F., e a sua filha, residiram no local arrendado, e entre Novembro de 2013 e Agosto de 2020 ali pernoitavam pelo menos duas noites por semana, inexistindo consentimento dos AA. para esse efeito.
9.A R. padece de doença neurológica degenerativa grave e incurável (demência de Alzheimer), estando dependente permanentemente do auxílio de terceiros.
10.Esta doença não impõe internamento em estabelecimento hospitalar ou casa de repouso, podendo a R. habitar a sua casa, desde que assistida por terceiros.
11.O local arrendado é um segundo andar elevado, sem elevador, acessível apenas através de vários lanços de escadas.
12.Devido às dificuldades físicas da R. resultantes da sua idade e da doença, foi-se tornando cada vez mais difícil a sua saída de casa.
13.Entre meados de 2010 e 2015 a R. efectuou estadias periódicas no local arrendado, de duração e em datas não concretamente apuradas.
14.Em 2010 o médico neurologista da R. aconselhou o seu internamento em lar destinado a acompanhar pessoas com doença neurológica ou psíquica, visando melhorar a sua qualidade de vida ao beneficiar do contacto com outras pessoas e com o exterior. (aditado, nos termos adiante decididos)
15.No lar identificado em 7. a R. beneficiava desse contacto com outras pessoas e com o exterior, sendo-lhe proporcionada melhor qualidade de vida que aquela que tinha no local arrendado. (aditado, nos termos adiante decididos)
16.Pelo menos em 2012 os AA. tomaram conhecimento de que a R. estava doente e tinha sido internada num lar (a “Casa Romana” identificada em 7.) (aditado, nos termos adiante decididos)
***

Na sentença recorrida considerou-se ainda como não provada a seguinte matéria de facto:
a)-Que a R. não tenha voltado a pernoitar ou a tomar refeições no local arrendado entre Julho de 2010 e o final de 2014;
b)-Que a R. necessitasse de ser mentalmente estimulada, através do contacto com outras pessoas e com o exterior, e que a falta desse estímulo causasse risco de se acelerar o processo de degeneração mental causado pela doença;
c)-Que os filhos da R. tenham sido aconselhados por médico a internar a R. num estabelecimento destinado a acompanhar pessoas com doença neurológica e psíquica com o objectivo de a estimular e, com isso, retardar a evolução da doença;
d)-Que, aquando do seu internamento, tenha estado sempre previsto o regresso da R. a casa, quando se deixassem de verificar as razões que justificaram o seu internamento;
e)-Que tenha havido conselho médico no sentido de que, enquanto a R. pudesse ter contacto com pessoas, sair à rua acompanhada e ter algum contacto social com o exterior, seria adequada a sua permanência no lar residencial; (eliminado, nos termos adiante decididos)
f)-Que os AA. tenham sempre tido conhecimento da situação da R., que a A. a visitasse em casa e que ambos tenham tido conhecimento, desde o início, do internamento da R., sem manifestar qualquer oposição, até à carta de Junho de 2018. (eliminado, nos termos adiante decididos)
***

Da nulidade do despacho que decidiu a reclamação à enunciação dos temas da prova

A R. reclamou da enunciação dos temas da prova, sustentando a existência de temas da prova em falta, correspondentes aos factos por si alegados na contestação, e que se apresentam como extintivos do efeito jurídico dos factos articulados pelos AA. na P.I., desde logo porque integrantes da previsão da al. a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil. Aí pugnou a R. pela enunciação de onze novos temas da prova que correspondiam, sem grandes diferenças de redacção, aos factos alegados nos art.º 4º, 8º a 10º, 12º, 14º, 17º a 19º, 25º, 33º e 35º a 38º da contestação.

O tribunal recorrido reconheceu que a reclamação da R. se mostrava parcialmente justificada, aditando três novos temas da prova.

Vem agora a R. arguir a nulidade do despacho que conheceu a sua reclamação, por entender que a não inclusão nos temas da prova daqueles por si reclamados como estando em falta viola o seu direito a um processo justo e equitativo.

Como resulta do acórdão 330/2001 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, II Série, de 12/10/2001),o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um correcto funcionamento das regras do contraditório”, mais resultando que “o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que “a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos””.
Nesse mesmo acórdão ficou ainda referido queas partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam decididas “mediante um processo equitativo” (cf. o n.º 4 do artigo 20º da Constituição), o que – tal como se sublinhou no acórdão n.º 1193/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35º, pagina 529 e seguintes) – exige não apenas um juiz independente e imparcial (um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência), como também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça, pois, criando-se uma situação de indefesa, a sentença só por acaso será justa”.

Ou seja, na medida em que a não inclusão nos temas da prova daqueles reclamados pela R. tenha impedido a mesma de fazer valer as suas razões de facto e de direito, estar-se-á perante uma violação dos princípios da igualdade das partes e do contraditório, pelo que haverá que reconduzir a enunciação dos mesmos aos termos visados pela R., sob pena de estar em causa o respeito pelo princípio constitucional do processo equitativo e leal.

A enunciação dos temas da prova resulta do disposto no nº 1 do art.º 596º do Código de Processo Civil, havendo lugar à mesma enunciação sempre que a acção houver de prosseguir.

E como resulta a contrario da al. b) do nº 1 do art.º 595º do Código de Processo Civil, a acção deve prosseguir sempre que se torna necessária a produção de prova, face à existência de factualidade controvertida e carecida dessa prova.

Todavia, os poderes de cognição do tribunal que decorrem do nº 2 do art.º 5º do Código de Processo Civil determinam que a factualidade carecida dessa prova, por se apresentar como relevante para a apreciação do pedido e das excepções peremptórias, não se limita àquela que é alegada pelas partes.

Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 688),na elaboração dos temas da prova devem privilegiar-se, conforme as circunstâncias, fórmulas mais ou menos abrangentes, desde que permitam uma percepção clara dos pontos de divergência das partes, deixando para a sentença a sua concretização na medida que se revelar efectivamente necessária”.
Do mesmo modo, explicam tais autores (pág. 699) quenão se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual”. E acrescentam, ainda, que “este novo paradigma conjuga-se com a eliminação de preclusões quanto à alegação de certos factos (art. 5º, nº 2), com a inexistência de um nexo directo entre os depoimentos testemunhais e as concretas questões de facto pré‑definidas (como sucedia no vetusto questionário ou nos pontos da base instrutória) e com a inexistência de uma decisão judicial que, versando exclusivamente sobre a matéria de facto dos autos, se limite a responder a perguntas que, agora, não é suposto serem sequer formuladas”. Mais concluem ensinando que “a enunciação dos temas da prova pode fazer-se em diversos graus de abstracção ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio”, e bem ainda (pág. 701) que “a maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”.

Ou seja, na medida em que os temas da prova mais não servem que para enquadrar a actividade instrutória (como resulta do art.º 410º do Código de Processo Civil), tendo em vista a aquisição de toda a factualidade relevante para a decisão da causa, na perspectiva da causa de pedir e das excepções peremptórias opostas à mesma, não devem os mesmos corresponder, sem mais, à reprodução dos factos alegados pelas partes e que se mostram controvertidos.

E, nesta medida, a impugnação, no recurso interposto da decisão final, do despacho que decide as reclamações à enunciação dos temas da prova, nos termos expressamente previstos no nº 3 do art.º 596º do Código de Processo Civil, deve reconduzir-se a situações em que, no que respeita a deficiências nessa enunciação, as mesmas conduziram a omissões na actividade instrutória, correspondendo à não produção de prova relativamente a factos controvertidos e com relevo para a decisão da causa.

Com efeito, só nesta medida é que se pode afirmar que foi violado o princípio do contraditório e da igualdade das partes, já que a parte a quem aproveitaria a actividade instrutória preterida fica impedida de fazer valer a sua pretensão em juízo, por não se poder fazer valer dos factos que a sustentam, uma vez que os mesmos passam a ser insusceptíveis de ser provados.

Só que esse não é o caso dos factos alegados pela R. na contestação, desde logo porque, como a mesma reconhece na sua alegação de recurso, sobre os mesmos foi produzida a prova que a R. ofereceu e que, na sua perspectiva, conduz a que os mesmos devam ser dados como provados.

Ou seja, tal significa que os três temas da prova aditados pelo tribunal, em deferimento parcial da reclamação da R., permitiram a actividade instrutória relativa à factualidade alegada pela mesma na sua contestação, por corresponderem à enunciação das questões suscitadas pela R. na contestação a título de excepção peremptória.

E, nessa medida, apesar de na enunciação dos temas da prova não ter ficado a constar a reprodução dessa factualidade alegada pela R., ainda assim não se verifica qualquer deficiência dos temas da prova enunciados, que tenha conduzido à violação do direito da R. a um processo justo e equitativo, por não terem sido respeitados os referidos princípios da igualdade das partes e do contraditório.

O que equivale a afirmar que o despacho que decidiu a reclamação da R., não aditando aos temas da prova os factos controvertidos alegados pela mesma na contestação, não padece de qualquer nulidade, assim improcedendo as conclusões do recurso da R., nesta parte.
***

Da alteração da matéria de facto

Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.

A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a)- Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b)- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c)- Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e)- O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.

E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) arejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.

Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.

Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721),  quando explicam que o juiz da causa deve optarpor uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.

Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui queo princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al. b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.

Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.

Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718-719), afirmando a necessidade de enunciação dosfactos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.

Revertendo tais considerações para o caso concreto, pode-se desde logo afirmar que a R. deu cumprimento ao ónus de especificação a que alude o art.º 640º do Código de Processo Civil, não só porque nas conclusões da sua alegação concretiza os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e qual a decisão que os mesmos devem merecer, mas igualmente porque na motivação especifica os meios de prova que conduzem ao resultado pretendido e, no que respeita à prova gravada, identifica as passagens das gravações que entende conduzirem às alterações pretendidas (correspondentes à eliminação das al. b) a f) dos factos não provados e ao aditamento ao elenco de factos provados de nove novos pontos).

Todavia, e quanto à consideração de toda a materialidade constante dos referidos nove pontos, decorre do acima exposto quanto à enunciação de factos instrumentais, e do que adiante se explicitará quanto à relevância da mesma para a decisão do presente recurso, que nem toda ela deve ser considerada no elenco de factos provados, tal como pretendido pela R.

Regressando à delimitação dos pontos de facto visados pela impugnação da R., pretende esta que se adite ao elenco de factos provados a materialidade seguinte (quando se trata de factos alegados na contestação da R., entre parênteses consta a identificação do artigo ou artigos onde o mesmo facto se mostra alegado):
i.-Pelo menos em 2012 os AA. tomaram conhecimento de que a R. estava doente e tinha sido internada num lar;
ii.-Em 10/1/2013 a A. enviou à filha da R. a carta junta com a contestação como documento 1 na qual, na parte final da mesma, desejava “as melhoras da mãe” (art.º 28º da contestação);
iii.-Entre 7/1/2013 e 7/12/2017 os AA. enviaram à R. cartas para aumento das rendas, as quais foram respondidas pela filha da R. em representação da mãe (art.º 29º a 32º da contestação);
iv.-Em 1/6/2018 os AA., através da sua ilustre advogada, enviaram à R. a carta junta com a contestação como documento 6, nos termos da qual, invocando o facto de a destinatária residir num lar de idosos há mais de um ano, comunicavam a resolução do contrato de arrendamento (art.º 39º da contestação);
v.-Por carta de 7/3/2019 enviada à R., os AA., entre outras coisas, exigiram o pagamento da renda mensal de € 628,00, sob pena de darem início à competente acção de despejo com fundamento no não uso do local arrendado por mais de um ano (art.º 44º da contestação);
vi.-Na Casa Romana a R. beneficiava do contacto com outras pessoas, exercício físico e contacto com o exterior e tinha melhor qualidade de vida;
vii.-Os filhos da R. foram aconselhados por médico a internar a R. num estabelecimento destinado a acompanhar pessoas com doença neurológicas e psíquica enquanto fosse possível atingir os objectivos referidos em vi. e ix. (art.º 12º da contestação);
viii.-Aquando do seu internamento sempre esteve previsto o regresso a casa da R., quando deixassem de se verificar as razões que justificaram a seu internamento (art.º 14º e 18º da contestação);
ix.-O médico aconselhou que, enquanto a R. pudesse ter contacto com pessoas, sair à rua acompanhada e ter contacto social com o exterior, seria adequada a sua permanência no local de internamento (art.º 17º da contestação).

Recordando os temas da prova que se prendem com a factualidade alegada pela R. na contestação, foram os mesmos assim enunciados:
  • A R. teve se ausentar da sua residência, temporariamente, e por motivos de saúde;
  • Mas esteve sempre previsto o seu regresso a casa, assim que as condições de saúde o permitissem;
  • Os A. tiveram conhecimento da situação da R. e, até Junho de 2018, nunca se opuseram.

Ou seja, apreende-se que na contestação a R. suscitou duas questões distintas, a título de excepção peremptória. A primeira prende-se com a justificação para a ausência da R. do local arrendado, correspondente à situação de doença e sua caracterização. A segunda prende-se com o conhecimento que os AA. tinham dessa ausência por doença, não se opondo à mesma ausência.

Relativamente aos pontos de facto acima elencados em vi. a ix., respeitam os mesmos à questão da situação de doença da R. e sua caracterização.

Já relativamente aos pontos de facto acima elencados em i. a v., respeitam os mesmos à questão do conhecimento dos AA. da ausência por doença e da não oposição a tal situação.

Assim, e quanto ao ponto i., tendo a R. alegado na contestação (art.º 26º) que os AA. tiveram conhecimento do seu internamento desde o seu início (ou seja, desde meados de 2010, como resulta dos art.º 7º e 15º da contestação), no seu articulado de resposta os AA. alegaram (art.º 18º) que apenas a A. tomou conhecimento desse internamento, numa assembleia de condóminos.

Ou seja, não sofre controvérsia tal conhecimento, mas apenas a data do mesmo conhecimento. Nas declarações que prestou a A. admitiu que tal assembleia de condóminos não foi contemporânea do internamento, podendo ter sido a que ocorreu em 2012. Mais explicou a A. que tomou conhecimento que tal internamento teria ocorrido porque a R. “já não estava muito bem de saúde”. Do mesmo modo, a testemunha Maria C. (condómina no prédio onde se situa o local arrendado) confirmou as declarações da A., embora não conseguisse precisar a data da realização da assembleia de condóminos onde foi comentado (e, por isso, a A. ficou a ter conhecimento) a situação de saúde da R. e o seu internamento, aceitando que pudesse ter ocorrido por “volta de 2010”, mas sob sugestão do ilustre mandatário da R.

Por isso, é mais crível que tal conhecimento por parte dos AA. (mais concretamente, por parte da A.) não tenha ocorrido de imediato, mas apenas posteriormente, aquando da realização de uma assembleia de condóminos. E nessa medida, é de admitir a data de 2012 como sendo aquela onde, pelo menos nesse momento, ocorreu tal conhecimento.

É certo que a testemunha António F. (filho da R.) referiu ter tido uma conversa telefónica com a A., onde “falei que a mãe ia para um Lar”. E estando o internamento situado por altura do Verão de 2010 (segundo o seu depoimento e o depoimento da outra filha da R., Ana F.), seria de admitir que a A. teria tido conhecimento do internamento, ainda antes de o mesmo se ter concretizado. Todavia, o depoimento da testemunha António F., no que respeita à localização temporal desta conversa telefónica, é inconsistente e pouco seguro, o que associado à explicação do percurso profissional da referida testemunha, no estrangeiro, e aos cerca de 10 anos decorridos, é de molde a não permitir afirmar, com segurança bastante, que tal conhecimento ocorreu logo em 2010. Acresce ainda que, nas declarações que prestou, a A. nada referiu sobre diálogos que terá mantido com os filhos da R., contemporâneos do internamento desta (pese embora também nada lhe tenha sido perguntado a este respeito). Ou seja, não se pode afirmar, como na sentença recorrida, que a A. negou conversas telefónicas havidas entre si e a testemunha António F., no âmbito das quais este tenha comunicado à A. que a R. iria ser internada. Mas também não se consegue afirmar que as mesmas existiram, por alturas do Verão de 2010, nos termos vagamente referidos pela testemunha em questão.

Do mesmo modo, tendo a A. terminado a carta de 10/1/2013, que enviou à filha da R. (com o teor que consta do documento 1 junto com a contestação), expressando “as melhoras da sua mãe e um grande beijinho para ambas”, tal não pode deixar de significar que, ao tempo, já a A. tinha conhecimento da situação de doença da R. (embora tal não signifique que a A. sabia dos pormenores da doença, já que a expressão “as melhoras” é usada habitualmente e tão só por respeito e cortesia).

Todavia, tal realidade do envio da carta com essa expressão final (que corresponde à acima elencada no ponto ii., e que a R. pretende ver reproduzida no elenco de factos provados) mais não representa que um instrumento factual para a verificação da existência do conhecimento a que respeita o ponto i.

Pelo que, face ao acima exposto, não carece de figurar no elenco de factos provados, na medida em que apenas se destina a formar a convicção do tribunal quanto à verificação do facto a que respeita o ponto i.

É certo que a R. defende quedizer se alguém teve ou não conhecimento ou deu ou não conhecimento para determinado facto é, por natureza, um juízo conclusivo, o qual há-de ser aferido por factos concretos que revelem ou não esse conhecimento ou consentimento”. Mas sem razão, face ao acima exposto.
Com efeito, o conhecimento de determinada realidade histórica é, em si mesmo, um facto, embora de índole psicológica. O que significa que, para que tal facto possa ser apreendido, carece de uma manifestação exterior, quer seja expressa (a declaração desse conhecimento, oralmente ou por escrito), quer decorra de condutas que revelem a obtenção de tal conhecimento. E, por isso, é que é necessário recorrer aos factos que correspondem a essa manifestação exterior, para que se possa afirmar a verificação do facto psicológico, assumindo a existência deste através de juízos de experiência comum. Todavia, na medida em que o facto com juridicidade bastante para despoletar o efeito visado seja aquele facto psicológico, e já não os factos a partir dos quais se manifesta exteriormente o mesmo, não pode afirmar-se que o facto psicológico não passa de um juízo conclusivo, que conduz a que no elenco de factos provados deva antes figurar a factualidade que permite a sua afirmação, por presunção judicial.

Ou seja, se é certo que não se pode manter a al. f) dos factos não provados, na parte que respeita ao conhecimento dos AA. da situação de doença e de internamento da R., tão só há que aditar ao elenco de factos provados um novo ponto, com o seguinte teor:
  • Pelo menos em 2012 os AA. tomaram conhecimento de que a R. estava doente e tinha sido internada num lar (a “Casa Romana” identificada em 7.).
Já no que respeita à não manifestação de qualquer oposição dos AA. à situação de doença da R. e do seu internamento, intermitentemente entre meados de 2010 e 2015 (ponto 13. dos factos provados) e ininterruptamente desde 2015, mantendo-se no momento da propositura da acção (ponto 7. dos factos provados), entende a R. que importa dar como provada a factualidade por si alegada nos art.º 29º a 32º da contestação, de onde se pode concluir pela referida falta de oposição.
Como se alcança das conclusões do recurso da R., a mesma não retira qualquer consequência jurídica da factualidade em questão, relativamente à alteração da sentença recorrida. Com efeito, não obstante a impugnação da decisão de facto, nessa parte, a R. alega, tão só, que das características da sua doença decorre a justificação para a ausência do local arrendado, e sem que a alegada posição dos AA. quanto a tal doença e respectivo internamento se manifeste com qualquer relevo para a afirmação dessa justificação, nos quadros da al. a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil. Ou seja, pode-se dizer que no presente recurso a R. “deixou cair” a questão da não oposição a que a doença da R. permitisse o não uso do local arrendado por mais de um ano.
Ora, como já acima se disse, só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso. Pelo que, se a reapreciação da matéria de facto surge, não como um fim, mas como um meio de obter a alteração da sentença recorrida, e se à questão de direito por que passa a visada alteração se torna indiferente determinada factualidade alegada e não provada, não carece o tribunal de recurso de reapreciar a factualidade em questão, para efeitos de a dar como provada, por se tratar de um acto sem qualquer utilidade.
Assim, e no que respeita à matéria dos pontos i. a v., pretendidos incluir pela R. no elenco de factos provados, apenas o referido ponto i. deve merecer essa inclusão, mas já não sendo de incluir a matéria dos pontos ii. a v., nos termos expostos, e sendo igualmente de eliminar a al. f) dos factos não provados.
***

Quanto aos pontos de facto que respeitam à questão da situação de doença da R. e sua caracterização (pontos de facto acima elencados em vi. a ix.), o tribunal deu como não provados os factos que constam das al. b) a e), fundamentando tal decisão pela seguinte forma:
Quanto às alíneas b), c) e e), não resultaram tais factos do depoimento da testemunha Luís G., o qual explicou, de forma expressa, que recomendou a ida da ré para aquela instituição unicamente para aumentar a sua qualidade de vida, para lhe permitir usufruir de um jardim, poder conversar com outras pessoas, numa altura em que as suas limitações físicas dificultavam deslocações num prédio e o estádio da sua doença neurológica ainda lhe permitia desfrutar do convívio com outros. A testemunha referiu sempre que recomendou o convívio, a possibilidade de conversar com outras pessoas, como algo que conferia melhores condições de vida à ré e não como um tratamento que pudesse melhorar ou retardar a evolução da doença. A testemunha jamais afirmou ter aconselhado o internamento com base numa necessidade de estímulo da ré. A testemunha referiu que a doença não tem cura e referiu que a sua evolução não pode ser atrasada, de algum modo, designadamente através de qualquer estímulo.
Ficou, por isso, muito claro do depoimento da testemunha que a ré não precisava de estímulos, e que a evolução da doença não podia ser atrasada, seja com estímulos sociais, seja de outra forma qualquer; ficou muito claro que o seu conselho visou unicamente permitir que a ré tivesse uma vida mais agradável numa instituição com jardim e outras pessoas, ao invés de viver quase reclusa num andar, atentas as suas dificuldades de vir à rua.
Quanto ao facto da alínea d), não foi feita qualquer prova convincente disto, v.g., através de qualquer meio de prova (documento, testemunha) isento/neutro e revelador de que os filhos da ré ou esta tivessem espontaneamente mencionado esse propósito, previamente à propositura desta acção ou ao conhecimento da intenção dos autores de reaverem o locado. A única prova apresentada neste sentido resumiu-se ao depoimento do filho da ré e às declarações da sua filha e curadora, em audiência, tendo ambos referido esse propósito. Contudo, tais declarações, feitas por aqueles que, agora, manifestam abertamente interesse na manutenção do arrendamento e que a sua mãe termine ali os seus dias, não merecem credibilidade, por absoluta falta de isenção”.

Nos art.º 10º a 12º da sua contestação a R. alega que necessitava de ser mentalmente estimulada, através do contacto com outras pessoas e com o exterior, sob risco sério de se acelerar o processo de degeneração mental causado pela doença de que padece, sendo por isso que foi internada, a conselho médico.

Já no art.º 18º da sua contestação a R. alega que, durante o internamento, esteve sempre previsto o seu regresso ao local arrendado, quando deixassem de se verificar as razões que justificaram o mesmo.

E nos art.º 20º a 24º da sua contestação mais alega que:
- a diminuição acentuada da sua capacidade de se deslocar, aliada à evolução da doença, teve por consequência a diminuição progressiva da concretização dos objectivos de ter contacto com pessoas, sair à rua acompanhada e ter algum contacto social com o exterior;
-por força da pandemia e da consequente necessidade de isolamento social, mais exigente no seu caso, pela sua avançada idade, passou a estar obrigada a permanecer todo o dia isolada no seu quarto, sem qualquer estimulação mental e afecto, designadamente pelos filhos e cuidadores;
- perante esta situação, e com concordância médica, os seus filhos promoveram o seu regresso ao local arrendado, concretizado em 27/8/2020.
Não foi junto qualquer documento clínico que corporizasse o invocado “conselho médico” de estimulação mental.
Todavia, foi junta uma “Declaração” datada de 14/8/2019, onde o neurologista Luís G. atesta que a R. “sofre de doença neurológica degenerativa, grave e mentalmente incapacitante, pelo que está dependente permanentemente de terceira pessoa”, e que “por conselho médico encontra-se actualmente a residir numa residência assistida (Casa Romana), de onde poderá sair a qualquer momento”.
Mais foi junto um “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” emitido em 13/5/2013, nos termos do quais se atesta que a R. é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global e definitiva de 90%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.
Foi ainda ouvido como testemunha o referido neurologista Luís G., que confirmou ter a R. como sua paciente, estando diagnosticada com doença de Alzheimer desde 2007.
Relativamente ao internamento da R. em 2010, explicou que aconselhou o mesmo na medida em que a R. se pudesse “sentir melhor” e “ser melhor tratada”, e desde que o local de internamento tivesse “condições melhores do que em casa”.
Mas relativamente à questão de a R. ser mais estimulada no local de internamento, não confirmou ser esse o fim do internamento, mas ser tudo uma questão de “condições”, inclusive aludindo à circunstância de a família de um doente de Alzheimer ter de estar também envolvida nessa criação das condições para que o doente possa ser melhor cuidado, usando até a expressão “doença de família”, por ser a família quem tem de cuidar do doente.

Do mesmo modo, quando perguntado expressamente sobre se o internamento “podia ser um factor importante para atrasar a evolução da doença”, foi peremptório em afirmar que “não atrasa a evolução da doença, faz com que a pessoa possa viver melhor”, mais explicando que “a demência é uma coisa que existe numa pessoa que está a fazer o seu percurso para a morte, não há nada que atrase, a doença não tem cura, (…) portanto, é só isto, viva a senhora onde viver [referindo-se à R.]”.

E tendo sido perguntado novamente sobre o internamento como factor de retardamento da doença, afirmou que inexiste qualquer retardamento da doença em razão do internamento, mas apenas “melhor qualidade de vida”.

Ou seja, o referido conselho médico (prestado pelo neurologista em questão) para que a R. fosse internada, não se deveu a qualquer necessidade de a estimular mentalmente (designadamente promovendo contactos sociais e de quotidiano), tendo em vista obstar ao risco de aceleração do processo de degeneração mental causado pela doença de Alzheimer de que padece a R., caso a mesma permanecesse a residir no local arrendado. Pelo que, do mesmo modo, não se pode afirmar que esse internamento foi medicamente aconselhado aos filhos da R., porque representava uma forma de tratamento da doença de Alzheimer (correspondente à estimulação mental alegada no art.º 10º da contestação), retardando a evolução da mesma.

É certo que o mesmo neurologista Luís G. referiu que, se um doente de Alzheimer (como a R.) que tiver sido internado, para beneficiar da referida “melhor qualidade de vida”, deixar de ter esse benefício, o internamento já não se justifica mais, podendo cessar.

Todavia, também foi claro em referir que “ninguém demenciado tem de estar num sítio qualquer” (referindo-se a locais de internamento), sendo por isso que existem cerca de cem mil doentes de Alzheimer que não estão internados em lares, mas antes “nas suas próprias casas”, “porque não têm lares nos sítios próximos, ou porque não têm dinheiro para os pagar”, ou porque os “familiares acham que não devem levá-los para os lares”. Ou seja, aquilo que resulta do depoimento do neurologista em questão é que a R., como qualquer outro doente de Alzheimer, poderia deixar de estar internada e voltar à sua situação anterior (residindo no local arrendado), na medida em que deixasse de ter as referidas “condições melhores do que em casa”. Mas em momento algum afirmou que tal se prendia com a evolução da doença, antes associando essa circunstância à “qualidade de vida” de que beneficiava no lar “Casa Romana”. Aliás, quando perguntado se, aquando da declaração que subscreveu em 14/8/2019, a R. já “não tirava qualquer benefício em termos de (…) qualidade de vida na Casa Romana”, respondeu que “não posso fazer uma afirmação tão taxativa”, explicando ainda que “podia ser que tivesse mais algum benefício, podia não ter benefício nenhum”.

Ora, se o motivo determinante para o internamento da R. não foi qualquer necessidade de tratamento da doença de Alzheimer de que padece, mas a obtenção de benefícios em termos de qualidade de vida, tendo presente a sua dependência de terceiros e a circunstância de a mesma dependência se ir manter até ao fim da vida da R., face à natureza da doença em questão, não é crível que, ao tempo em que tal internamento foi decidido pelos seus filhos, tenha “estado em cima da mesa” a questão do seu regresso ao local arrendado.

Com efeito, as regras da experiência comum permitem concluir que, se alguém é internado num lar tendo em vista beneficiar de melhor qualidade de vida, relativamente à que tem na sua residência, face à doença incurável de que padece e que o obriga a depender de terceiros até ao fim da vida, então tal internamento será tendencialmente vitalício, não obstante poder cessar no concreto lar onde decorre, se as condições que o mesmo oferece à pessoa doente se alteram supervenientemente. E, do mesmo modo, pode até a pessoa doente perder os benefícios desse internamento, por ter de regressar à sua situação habitacional anterior, por questões económicas ou de outra natureza, mas sempre supervenientes. Mas isso não significa que, no momento em que é tomada a decisão do internamento, logo se tome a mesma decisão de fazer a pessoa internada regressar à sua situação habitacional anterior, se se constatar que o internamento já não representa o referido benefício.

E, por isso, é que os depoimentos dos filhos da R. não se mostram convincentes, quando afirmam que, quando tomaram a decisão de internar a R. no lar denominado “Casa Romana”, “nunca consideramos que essa fosse uma solução para sempre” (na expressão do filho António F.) ou que “a ideia era quando ela deixasse de usufruir desse bem estar, voltaria para casa para estar sentada” (na expressão da filha Ana F.).

Aliás, a testemunha António F. concretizou que a ideia de que o internamento não seria para sempre correspondia à ideia de que a R. “acabava em casa dela” (apesar de negar que tal expressão correspondesse ao regresso da R. quando “estivesse à beira da morte”).

Já a referida Ana F. explicou quenós nunca pensámos que a minha mãe fosse esta força da natureza e, portanto, o Dr. Luís G. sempre nos disse que isto era uma doença que (…) a esperança máxima de vida é entre 5 a 10 anos e o que é certo é que a minha mãe há 16 anos que está doente”. E mais acrescentou nunca esperar que “a minha mãe durasse tanto”.

Ou seja, tendo presente essa expectativa de uma esperança máxima de vida da R. entre 5 e 10 anos, contada desde 2007 (quando lhe foi diagnosticada a doença de Alzheimer), e a ideia de que a R. só devia deixar de estar internada numa fase terminal da doença, torna-se evidente que, quando em 2010 a mesma foi internada no lar denominado “Casa Romana”, os seus filhos não fizeram qualquer previsão quanto ao seu regresso, ao contrário do que quiseram fazer crer através dos seus depoimentos.

Ou seja, do mesmo modo que não resulta provada a factualidade que consta das al. b) e c) dos factos não provados, relativamente à estimulação mental que esteve na origem do conselho médico para o internamento da R., como forma de tratamento da doença de Alzheimer, também não há que dar como provada a factualidade da al. d)., no sentido de estar prevista a cessação do internamento e o regresso da R. ao local arrendado, quando tal (inexistente) tratamento deixasse de se justificar.

E, do mesmo modo, ainda, não há que aditar ao elenco de factos provados a matéria que consta do ponto viii., acima elencado.

Já no que respeita à factualidade da al. e) dos factos não provados (que corresponde, no essencial, ao ponto vi. acima elencado), resultando do conjunto dos depoimentos do neurologista e dos filhos da R. que os benefícios que seriam obtidos com o internamento no lar se prendiam com o contacto social e com o contacto com o exterior, há que eliminar a factualidade em questão do elenco dos factos não provados e aditá-la aos factos provados, embora sem a configuração a que respeita a concreta redacção proposta pela R.

Assim, aos factos provados deve ser igualmente aditada a seguinte factualidade:
  • Em 2010 o médico neurologista da R. aconselhou o seu internamento em lar destinado a acompanhar pessoas com doença neurológica ou psíquica, visando melhorar a sua qualidade de vida ao beneficiar do contacto com outras pessoas e com o exterior;
  • No lar identificado em 7. a R. beneficiava desse contacto com outras pessoas e com o exterior, sendo-lhe proporcionada melhor qualidade de vida que aquela que tinha no local arrendado.
***

Em suma, verificado o erro de julgamento do tribunal recorrido, relativamente ao conjunto de factos em questão, devem ser eliminadas as al. e) e f) dos factos não provados e ser aditados ao elenco de factos provados os três novos pontos acima referidos, relativos à factualidade correspondente à das alíneas eliminadas do elenco dos factos não provados, procedendo, nesta medida, as conclusões da alegação da R., no que respeita à alteração da decisão de facto.
***

Da interpretação e aplicação da al. a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil

Neste segmento a decisão recorrida apresenta a seguinte fundamentação:
Nem todas as situações de não uso do locado pelo arrendatário constituem fundamento de resolução. O artigo 1072º, n.º 2 enuncia as diversas situações em que o não uso é considerado lícito pelo legislador, entre as quais se encontra, sob a alínea a), o caso de força maior ou de doença.
Ora, não basta que o arrendatário tenha uma doença para que o não uso seja lícito, exige-se um nexo de causalidade entre a doença do arrendatário e o não uso do locado, como sucede, v.g., quando o arrendatário tem de permanecer internado num hospital durante período superior a um ano. Tem de tratar-se, igualmente, de um quadro de doença curável, reversível, pois de outro modo não se justificaria a subsistência do contrato de arrendamento.
(…)
No caso dos autos, provou-se que a ré padece de doença grave e incurável - demência de Alzheimer -, estando dependente permanentemente do auxílio de terceiros. Contudo, esta doença não impõe internamento em estabelecimento hospitalar ou casa de repouso, podendo a ré habitar a sua casa, desde que assistida por terceiros. Atente-se, igualmente, que não se provou que os filhos da ré tenham sido aconselhados por médico a internar a ré num estabelecimento com o objectivo de a estimular e, com isso, retardar a evolução da doença.
Em suma, não ficou provado que a doença de que a ré padece imponha o seu internamento/residência num estabelecimento especializado, nem ficou provado que a permanência da ré nesse estabelecimento consubstancie um qualquer tipo de tratamento visando o atraso na progressão da doença ou qualquer melhoria dos seus sintomas ou manifestações. A ré foi viver para um Lar e isso resultou, não de uma necessidade determinada pela doença de que padece, mas de uma opção por uma solução que proporcionasse maior qualidade de vida à família.
O que nos leva a concluir que o não uso do locado, não sendo imposto pela doença de que a ré padece, não é lícito, não constituindo circunstância impeditiva da resolução com esse fundamento.
Pelo que a acção terá de ser julgada procedente, decretando-se o despejo da ré”.

Já a R. entende que, não só os tratamentos tendentes à cura de uma doença justificam a ausência do local arrendado, para os efeitos da al a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil, mas igualmente toda e qualquer situação de ausência do local arrendado que seja aconselhável, do ponto de vista médico, para preservar a qualidade de vida da pessoa doente.

E mais entende que a interpretação do referido preceito, no sentido de justificar a ausência do local arrendado tão só em relação ao tempo necessário ao tratamento de uma doença curável, é inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, na dimensão dos direitos da pessoa idosa à saúde e à habitação.

Estando em causa a obrigação do arrendatário de usar o local arrendado para o fim habitacional a que o mesmo se destina (o que é o mesmo que afirmar a obrigação do arrendatário de ter residência permanente no local arrendado), importa recordar que, como este Tribunal da Relação de Lisboa concluiu já, no acórdão de 1/2/2007 (relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt), por residência permanente entende-seo local onde se tem centrada a vida doméstica com estabilidade e por forma duradoura, o local onde se pernoita, se tomam as refeições, se recebem familiares e amigos, onde, em suma, se tem constituído o lar com todo o ritual e laços que lhe estão associados e lhe são próprios. São traços constitutivos e indispensáveis da residência permanente, a habitualidade, a estabilidade e a circunstância de constituir o centro da organização da vida doméstica”.

Assim, para que se tenha por justificada tal ausência do local arrendado, em caso de doença, torna-se necessário que a mesma não se assuma como definitiva, entendida essa definitividade no sentido de o arrendatário deixar de ter o centro da organização da sua vida doméstica no local arrendado, porque deixou de estar ligado ao mesmo e porque não é expectável que aí volte a centrar a sua vida de relação com família e amigos.

No acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19/10/2006 (relatado por Carlos Valverde e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se queao afastar o direito de resolução do arrendamento baseado na desabitação do prédio por mais de um ano ou na falta de residência permanente do inquilino no prédio destinado a habitação, sempre que o facto atribuído ao arrendatário resulte de caso de força maior ou de doença, a lei quer efectivamente abranger os casos em que a desabitação ou falta de residência permanente se torna compreensível, aceitável, perfeitamente explicável, em consequência de tais factos exteriores à pessoa do locatário (quanto aos factos inerentes à pessoa do locatário releva o caso de doença), normalmente imprevisíveis ou pelo menos imprevistos, cuja força é superior à vontade normal do homem, que estão na origem da situação”.

Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 17/4/2008 (relatado por Ilídio Sacarrão Martins e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se que tendo o réu deixado de usar o locado por mais de um ano, verifica-se o incumprimento por parte do réu do dever de usar efectivamente a coisa para o fim do contrato, o que constitui motivo para a resolução do contrato”, mais se concluindo que “passando a viver num lar com carácter de permanência por virtude da sua doença (incapacidade física permanente fixada em 75%, com carácter definitivo, com incapacidade de viver sozinho, carecendo de cuidados permanentes), tais motivos tornam injustificável a não ocupação do locado, sendo inexigível ao autor a manutenção do arrendamento”.

Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 8/10/2009 (relatado por Ezagüy Martins e disponível em www.dgsi.pt) afirma-se, com recurso à doutrina de Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 6ª Ed., Almedina, 2002, pág. 440), quea doença como causa impeditiva, tem de obedecer aos seguintes requisitos: ser doença do locatário, das pessoas que com ele vivem em economia comum e, em certos casos, dos seus familiares a quem deva por lei assistência; obrigar, por necessidade de tratamento, o locatário a ausentar-se do locado; ser regressiva, isto é, existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do arrendado ser decisivo quanto à recuperação da saúde; não se tratar de doença crónica que torne o tratamento em definitivo; ser a doença o único motivo que levou o inquilino a deixar de viver permanentemente no arrendado, de modo que, debelada, retome a residência permanente”.

Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 21/6/2011 (relatado por Pedro Brighton e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se que a doença do arrendatário, como circunstância impeditiva do direito à resolução do contrato de arrendamento por falta de residência permanente, deve revestir as seguintes características: Gravidade que obrigue ao afastamento do local arrendado; regressividade, no sentido de existir forte probabilidade de o tratamento ser decisivo à recuperação; não se tratar de doença crónica; e ser o único motivo que levou ao afastamento do local”.

Do mesmo modo, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/10/2011 (relatado por Rui Moura e disponível em www.dgsi.pt) afirma-se que, para que a doença do arrendatário seja causa impeditiva da eficácia resolutiva da falta de residência permanente, tem de obedecer aos seguintes requisitos:
1)–ser doença do locatário (ou das pessoas que convivem com ele em economia comum);
2)–obrigar, por necessidade de tratamento, o locatário a ausentar-se do arrendado;
3)–ser regressiva, isto é, existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do arrendado ser decisivo à recuperação da saúde;
4)–não se tratar de doença crónica que torne definitivo o impedimento de regressar ao locado; e
5)–ser a doença o único motivo que levou o inquilino a deixar de viver permanentemente no arrendado, de modo que, debelada, retome a residência permanente”.

Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25/6/2013 (relatado por Roque Nogueira e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se queo que a lei pretende aí contemplar [na al. a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil] são os casos em que o não uso se torne compreensível, aceitável, perfeitamente explicável, em consequência de determinados factos, sejam eles exteriores à pessoa do locatário (força maior), sejam inerentes à pessoa do locatário (doença), normalmente imprevisíveis ou, pelo menos, imprevistos, cuja força é superior à vontade normal do homem”. E mais se conclui que “o direito à habitação a que aludem os arts. 65º e 72º, da CRP, não implica que os arrendatários possam utilizar ou não as casas sem quaisquer limitações, como se fossem suas, caso contrário estar-se-ia a proteger um direito de não habitar a casa”, esclarecendo-se ainda que “os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não, propriamente, os proprietários e senhorios”.

Do mesmo modo, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/10/2013 (relatado por Anabela Dias da Silva, disponível em www.dgsi.pt e igualmente referido na sentença recorrida) conclui-se quenão é qualquer doença que constitui impedimento à justa causa de resolução do contrato pelo não uso do arrendado, prevista na al. a) do n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil. Essa doença tem de ser temporária, curável, ou pelo menos existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do locado ser necessário e imprescindível à recuperação da saúde, sendo assim previsível o regresso ao arrendado, manifestando‑se a correspectiva vontade”, mais se concluindo aí que não se apresenta como “inconstitucional, por violação de qualquer direito social das pessoas de terceira idade, a interpretação da al. a) do n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil, no sentido de que a “doença” aí prevista seja de carácter temporário ou transitório, de modo que, debelada, o arrendatário retorne ao locado”.

Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 30/4/2015 (relatado por Ponte Gomes e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se quea doença, que impede a actuação do fundamento de resolução do contrato contido no art. 64º, nº 1, i), do RAU, não pode ser uma doença irreversível, que se prolongue indefinidamente no tempo”, mais se concluindo que “terá antes de ser uma doença passageira, ou temporária, ou seja, doença que pela sua possibilidade de cura, não incapacite o arrendatário de regressar ao locado dentro de um prazo não muito longo”.

Do mesmo modo, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/11/2015 (relatado por Luís Cravo e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado quenão é qualquer doença que constitui impedimento à justa causa de resolução do contrato pelo não uso do arrendado, prevista na al. a) do nº 2 do art. 1072º do C. Civil, avultando desde logo a necessidade de ser doença do próprio “arrendatário””, mais ficando afirmado que “essa doença tem de ser temporária, curável, ou pelo menos existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do locado ser necessário e imprescindível à recuperação da saúde, sendo assim previsível o regresso ao arrendado, manifestando-se a correspectiva vontade”.

Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 28/3/2019 (relatado por Eduardo Petersen Silva e disponível em www.dgsi.pt), ficou afirmado que uma conjugação literal do art.º 1083º, nº 2, al. d), parte final, com o art.º 1072º, nº 2, al. a), ambos do Código Civil, pode conduzir à afirmação da justificação do não uso do local arrendado em caso de residência em casa de repouso, por doença incapacitante do arrendatário para o efeito de voltar ao local arrendado. Mas ficou igualmente afirmado, para afastar tal conclusão, que “o Direito regula, não num abstracto total, mas num abstracto de satisfação de interesses que considera relevantes, e no caso concreto das disposições sobre arrendamento habitacional, ensaia uma regulação dos interesses dos proprietários à exploração económica dos seus bens e dos interesses dos inquilinos à sua habitação, e portanto nunca a lei poderia regular no sentido de que o proprietário ficava inibido de explorar uma casa que por via da doença irreversível do inquilino não poderia mais ser habitada por este, nem, por isso e de resto, por ninguém, até que o inquilino terminasse os seus dias noutro lado”.

E continua, explicando quena interpretação da norma jurídica e à força do artigo 9º do Código Civil, há-de ir-se, sem o largar, além do texto, desde logo procurando uma teleologia, uma razão de ser, algo que faça sentido enquanto solução política, isto é de gestão dos diversos interesses em confronto, e há-de supor-se que o legislador pelo menos não consagra soluções desprovidas de qualquer utilidade, no caso concreto, nem para o senhorio nem para o inquilino”, pelo que se conclui então que “a licitude do não uso prolongado do locado habitacional e no caso, à data da sentença, já tinham decorrido mais de dois anos sobre o início dessa situação e mais de um ano sobre o internamento da Ré na Unidade de Cuidados Continuados – só poderia justificar-se em vista dum possível regresso ao locado, terminada ou melhorada que fosse a doença”, justificando-se que “não se larga o texto legal mas introduz-se-lhe uma restrição, isto é, a doença que torna lícita a não utilização do locado para o fim a que se destina, não é toda e qualquer doença, sem discriminação, mas sim a doença que é, por maior ou menor tempo que dure, regressiva”.

Do mesmo modo, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/11/2021 (relatado por Eugénia Cunha e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se quea doença, como causa impeditiva da eficácia resolutiva da falta de residência permanente (al. a), do nº 2, do art. 1072º, do Código Civil), não pode ser uma qualquer doença, antes tem, para respeitar os requisitos de relevância queridos pelo legislador: i) ser doença do arrendatário; ii) demandar, por necessidade de tratamento, o afastamento do arrendatário do arrendado; iii) existir probabilidade de tal tratamento conduzir à recuperação da saúde (ser a doença, tendencialmente/previsivelmente, de natureza temporária, isto é, não ser irreversível, impeditiva do regresso ao locado); iv) ter sido ela o único motivo que levou o inquilino a deixar de viver, permanentemente, no arrendado, por forma a que, debelada, permita retomar a pretendida residência permanente”. E mais se conclui que “tal interpretação restritiva de doença, na adequada e proporcional, por justa e equilibrada, ponderação dos interesses em confronto, salvaguarda o do arrendatário, em preservar a sua habitação, na reversibilidade da doença (e, por isso, na previsibilidade de o uso poder ser retomado), e o do senhorio, em livremente poder explorar economicamente o seu bem imóvel, na irreversibilidade desta (e, por isso, ante a não prova da previsibilidade do regresso)”, concluindo-se também que “esta interpretação restritiva, a não incluir as doenças irreversíveis, não enferma de inconstitucionalidade, não gerando a referida não inclusão na al. a), do nº 2, do art. 1072.º, do CC, de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, pois que, as razões da consagração legal das situações aí previstas, a reclamar e a justificar o sacrifício de direitos e interesses privados ou públicos (como o de propriedade de senhorio e da ampliação do mercado de arrendamento), não estão presentes no caso de doença que afasta definitivamente o arrendatário do locado, seja jovem seja idoso. Não se verifica qualquer discriminação, antes todos os outros casos consagrados de licitude de não uso são situações de presumível retorno ao locado”, e ainda que “também se não configura violação do direito à habitação, pois que tal direito (v. art. 65.º da Constituição da República Portuguesa), reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigindo-se ao Estado, que o assegura por variados meios, e, desde logo, no referido nº 2, do art. 1072.º, foi salvaguardada a parte mais frágil e as situações de essencial relevo do direito à habitação, com a eleição das taxativas situações de real interesse e utilidade na manutenção do contrato de arrendamento, situações essas em que se reclama e justifica especial protecção”.

Por último, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26/4/2022 (relatado por Conceição Saavedra e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que, decorrendo da factualidade provada que, à data da propositura da acção,o arrendatário (…) deixara de usar o locado por mais de um ano de forma definitiva, tendo ingressado em ERSI em Setembro de 2011, com 82 anos de idade, em virtude de não ter autonomia para a locomoção (o prédio dos autos não tem elevador) e para exercer autonomamente as actividades básicas da vida diária, como a alimentação, o vestuário ou a higiene”, e mais ficando por provar que o ingresso do arrendatário “em ERSI tivesse carácter temporário e que houvesse qualquer intenção de regresso”, conclui-se que “se é seguro o não uso do locado pelo arrendatário por mais de um ano, seguro será também que não se verifica a previsão da al. a) do nº 2 do art. 1072 do C.C., (…) já que a situação de doença a que se refere o normativo deve ser sempre transitória e compatível com o regresso ao arrendado”.

Ou seja, a interpretação jurisprudencial da justificação do não uso do local arrendado pelo arrendatário, que consta da al. a) do nº 2 do  art.º 1072º do Código Civil, tem sido efectuada de forma uniforme, no sentido de contemplar tão só as situações em que a doença que justifica a ausência não é aquela que, pelas suas características, é de molde a fazer concluir que o regresso ao local arrendado já não se fará, mas tão só aquela que demanda cuidados a prestar fora do local arrendado, tendo em vista debelar ou atenuar o estado patológico que se verifica, e de onde resultará a melhoria da condição de saúde do arrendatário, que lhe permitirá o regresso ao local arrendado.

Assim, quando o arrendatário deixa de usar o local arrendado como sua residência permanente, passando a residir num estabelecimento destinado ao internamento de pessoas com doenças como aquela de que padece, não porque assim irá aí receber algum tipo de tratamento que permite a referida melhoria da sua doença, mas porque nesse estabelecimento lhe são facultadas melhores condições de vida que aquelas de que beneficia ao residir no local arrendado, já não se está perante a referida situação tendencialmente transitória causada pelo tratamento da sua patologia, mas antes perante uma mudança definitiva do local da residência do arrendatário, do local arrendado para o estabelecimento em questão.

Retornando ao caso concreto, é exactamente isso que sucede com a mudança da R. do local arrendado para o lar denominado “Casa Romana”.

Com efeito, resulta demonstrado que a mesma mudança ocorreu por conselho médico, face à doença neurológica degenerativa grave e incurável de que a R. padece, e que a faz estar dependente permanentemente do auxílio de terceiros. Só que está igualmente demonstrado que tal conselho médico não teve por base a necessidade de realização de qualquer tratamento que visasse fazer regredir ou atenuar os efeitos incapacitantes da doença em questão, mas teve por base a possibilidade de a R. passar a beneficiar de melhor qualidade de vida que a tinha no local arrendado, designadamente porque beneficiava de contacto com outras pessoas e com o exterior, o que no local arrendado se revelava mais difícil de ocorrer, por se tratar de um segundo andar acessível através de vários lanços de escadas, que tornava cada vez mais difícil a realização desse tipo de contactos, face às dificuldades da R. decorrentes da sua idade e da doença em questão.

Ou seja, como bem se refere na sentença recorrida, a mudança da R. do local arrendado para o lar “Casa Romana” não foi determinada por qualquer necessidade de tratar a doença da mesma, mas apenas para proporcionar à R. “maior qualidade de vida”.

Por outro lado, a melhor qualidade de vida proporcionada não corresponde à prática de actos que, pela sua natureza, permitam antever o regresso da R. ao local arrendado. É que esse regresso, atentas as características do local arrendado, associadas às características da doença da R. e às necessidades que a mesma demanda, em termos de acompanhamento constante por terceiro cuidador, sempre significaria o fim desse benefício, pelo que os actos em que se consubstancia o mesmo benefício não têm carácter temporário, mas antes permanente, no sentido de deverem acompanhar toda a vida da R. (o que é condizente com o carácter degenerativo e incurável da doença).

Ou seja, pese embora a constatação da doença de que a R. padece, nem a mesma se apresenta como temporária ou curável, nem a deslocação da R. do local arrendado para o lar onde ficou internada se destinou a receber qualquer tipo de tratamento, visando fazer regredir ou atenuar os efeitos permanentes da doença em questão, razão pela qual não há a criação de qualquer expectativa do regresso da R. ao local arrendado.

Pelo que a situação de doença em questão não justifica o não uso do local arrendado pela R. como sua residência permanente, desde (pelo menos) 2015 até ao momento da propositura da acção (ou seja, durante bem mais de um ano).

E como no confronto entre o interesse dos AA. à exploração económica do local arrendado de sua propriedade e o interesse da R. à sua habitação há-de estar encontrado o equilíbrio entre ambos, não pode aquele sofrer a compressão visada pela R., no sentido de esta poder ver transformada a sua obrigação de residir no local arrendado numa mera faculdade, porque sofre de doença incurável e incapacitante, assim impedindo os AA. de fazerem frutificar aquele património imobiliário da titularidade dos mesmos, por forma distinta da que vem acontecendo.

Ou seja, a dimensão constitucional dos referidos direitos à habitação e à saúde da pessoa idosa não pode significar a desconformidade da interpretação do conceito de doença que a jurisprudência vem fazendo, nos termos acima explanados, não só porque a dimensão programática dos direitos constitucionais à habitação e à saúde dirige-se ao Estado, mas igualmente porque não é exigível ao titular do direito de propriedade (com igual consagração constitucional) que sofra uma compressão na vertente da exploração económica do mesmo direito, em substituição do Estado, a quem compete garantir tal direito constitucional à habitação e à saúde do arrendatário idoso.

Não está em causa, naturalmente, o direito da pessoa idosa, que padece de uma doença incurável e incapacitante, de obter qualquer tipo de cuidados médicos ou tratamentos que tenham por objectivo atrasar a progressão da doença e, nessa medida, conferir-lhe vida mais longa.

Com efeito, a dimensão constitucional do direito à saúde exige que os mesmos cuidados médicos ou tratamentos devam ser prestados à pessoa doente, independentemente da sua idade e condição económica. E a dimensão constitucional do direito à habitação exige que, se para a prestação de tais cuidados médicos ou tratamentos, se tornar necessária a deslocação da pessoa idosa e doente da sua residência para outro local, não só deva ser assegurada a residência nesse outro local onde tais cuidados médicos ou tratamentos serão dispensados, como o regresso à residência original, findos os mesmos, ainda que se trate de residência em imóvel arrendado.

Todavia, para que seja igualmente respeitada a concordância com a dimensão constitucional do direito de propriedade, exige-se que tal regresso se apresente como previsível ou expectável, aquando da saída do local arrendado, desde logo em razão do carácter tendencialmente temporário desses cuidados médicos ou tratamentos.

Ou seja, aquilo que está em causa é o carácter permanente ou não permanente desses tratamentos ou cuidados médicos, só se justificando onerar o senhorio com a impossibilidade de explorar economicamente o local arrendado por forma distinta da que vem fazendo, mantendo o local arrendado sem utilização habitacional pelo arrendatário, quando é objectivamente expectável que o mesmo regresse, em face do referido carácter temporário dos referidos tratamentos ou cuidados médicos, que determinaram a saída do local arrendado.

Já se tais tratamentos ou cuidados médicos se vão manter tendencialmente até ao fim da vida do arrendatário, e sendo os mesmos prestados no local para onde a arrendatário deslocou a sua residência, então já não se justifica a manutenção da referida impossibilidade de exploração económica por parte do senhorio, sem que isso represente qualquer violação do direito do arrendatário idoso à habitação, nem tão pouco do seu direito à saúde.

Assim, e regressando ao caso concreto, porque a falta de residência permanente da R. no local arrendado não está justificada por qualquer situação de doença ou de força maior, segundo a interpretação da al. a) do nº 2 do art.º 1072º do Código Civil acima efectuada, nenhuma censura há a fazer à sentença recorrida, quando conclui pela não verificação de qualquer circunstância impeditiva da resolução do contrato de arrendamento, por não uso do local arrendado há mais de um ano, à data da propositura da acção, tendo presente o disposto nos art.º 1072º, nº 1, e 1083, nº 2, al. d), ambos do Código Civil, e assim improcedendo as conclusões do recurso da R., nesta parte.
***

DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela R.



Lisboa,7 de Julho de 2022



António Moreira
(assinatura electrónica)
Carlos Castelo Branco
(assinatura electrónica)
Orlando Nascimento (vencido, nos termos da declaração de voto que segue)

***

Declaração de Voto

Vencido por entender que a opção que fez vencimento contraria o conceito constitucional de “habitação” e o conceito civilista de “residência permanente” que com aquele se deve compaginar e ao qual se deve subordinar.
Nesta perspectiva, apesar do tratamento médico a que a R foi submetida em estabelecimento, deverá entender-se, por um lado, que continuou a ter a sua residência permanente no local e por outro que o internamento em estabelecimentos de saúde se deve considerar um tercium genus, que não “habitação” ou “residência permanente” do cidadão internado, tanto mais que, como decorre da matéria de facto da ação (factos sob os números 7, 9 e 14), o internamento e afastamento da R ocorreram por decisão de terceiros.
Por último, não se vislumbra, em concreto ou em abstrato, interesse/valor legalmente protegido que deva prevalecer em face do direito de habitação da R, exigindo este sacrifício desproporcional dos seus direitos como cidadã e como cidadã idosa e gravemente doente.

Orlando Nascimento