Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1805/22.7T8BRR.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA NOMEAÇÃO DE TITULAR DE ÓRGÃO SOCIAL
LEGITIMIDADE
NOMEAÇÃO DE GERENTE
IRREGULARIDADE DE REPRESENTAÇÃO
IDONEIDADE DO GERENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - A sociedade tem legitimidade para recorrer da sentença de nomeação de gerente no âmbito de processo especial para nomeação de titular de órgão social porque, na qualidade de destinatária da eficácia da decisão, é na sua esfera jurídica que a nomeação se repercute direta e imediatamente e porque não é indiferente a concreta pessoa que, por força da decisão, nela passa a deter poderes de administração e representação.
II - No processo para nomeação de órgão titular a lei prevê a audição do órgão de administração ao invés da citação da sociedade, o que se compreende na medida em que o objeto do processo poderá corresponder precisamente à nomeação de administrador para sanação de irregularidade do órgão de administração da sociedade que, por falta de um ou mais administradores exigidos pelo pacto para a representar, não reúne condições para intervir em nome desta.
III - A função de representação da sociedade, que é instrumental em relação ao exercício do poder-dever de administrar, apenas se coloca nas relações com terceiros, que poderá inviabilizar a prática de atos, mas não impossibilita que quem se mantém formalmente no cargo continue a administrar a sociedade e a exercer o respetivo objeto social e que, como tal e para efeito da audição prevista pelo art.º 1053º, nº 2 do CPC, seja considerado como órgão de administração em funcionamento (ainda que em situação irregular).
IV - A sindicância da idoneidade da(s) pessoa(s) indicada(s) à nomeação para o cargo de gerente é feita por referência aos deveres fundamentais a que este está adstrito nos termos do art.º 64º do CSC, o que implica avaliar parâmetros de competência técnica, disponibilidade, incompatibilidades, e independência, que não são demonstrados pelo simples facto de aquela(s) ter(em) mantido aquela qualidade desde a constituição da sociedade ou outro lapso de tempo.
V - Ao requerente - assim como ao órgão de administração que indique pessoa a nomear gerente - impõe-se alegar e juntar os elementos necessários para demonstrar a idoneidade de quem indica à nomeação e, não o fazendo, deve o tribunal convidá-lo a suprir a fattispecie necessária à concretização da causa de pedir nessa matéria, incumbindo em qualquer caso ao tribunal o poder-dever de «colher as informações convenientes” deferindo e/ou ordenando as diligências que para o efeito repute necessárias e adequadas.
VI - Substituindo-se ao órgão deliberativo da sociedade na nomeação de administrador para integrar o órgão de administração, o tribunal terá que tomar a decisão que melhor sirva os interesses da sociedade, o que pressupõe concluir pela idoneidade da pessoa que nomeia para o cargo, o que pressupõe proceder à sua averiguação que, reitera-se, não advém do mero facto de a pessoa já ter tido aquela qualidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - RELATÓRIO
1. Em 19.07.2022 A… instaurou a presente ação sob a forma de processo especial para nomeação judicial de titular de órgão social contra F…, Ldª, pedindo a nomeação da requerente como gerente desta sociedade e a dispensa de audição do respetivo órgão de administração.
Em fundamento alega, em síntese: ela e outra são sócias da requerida, cada uma delas com uma participação social representativa de 50% do capital social, ambas designadas gerentes, sendo necessária a assinatura de dois gerentes para obrigar validamente a sociedade em todos os seus atos e contratos; ambas acordaram renunciar em simultâneo ao cargo, a requerente declarou renunciar em 06.08.2020, e a gerente F… veio posteriormente a revogar a sua renúncia, mantendo-se desde 06.08.2020 como única gerente da requerida; que a repartição das quotas na prolação de 50% entre as duas sócias tem sido um obstáculo à nomeação de um novo gerente por deliberação dos sócios; que a requerida fica impedida de praticar ou validar quaisquer atos de gestão para o seu desenvolvimento; que ela, requerente, é pessoa idónea para o cargo de gerente, idoneidade que justificou com o seu desempenho no dito órgão desde a constituição da sociedade até à referida renúncia. Requereu a dispensa da audição do órgão de administração por incapaz de exercer as suas funções por falta de um segundo gerente.
Requereu depoimento de parte da requerida, representada pela gerente única F…, arrolou testemunha, e juntou documentos.
2. Apresentados os autos a despacho, em 02.09.2022 foi de imediato proferida sentença que, com fundamento no facto de não se encontrar em funcionamento o órgão de administração da sociedade requerida, dispensou a audição desta e, julgando a ação procedente, nomeou a requerente gerente da sociedade requerida e condenou a requerente em custas.
3. Notificada da sentença a requerida interpôs o presente recurso, subscrito por mandatário constituído pela gerente F… na qualidade de gerente, apresentando alegações que reproduziu em sede de conclusões e que, em resposta a convite ao aperfeiçoamento, sintetizou nas seguintes:
1. A sociedade recorrente tem como objeto social a exploração de jardim infantil, tendo como sócias F… e A…, cada uma com uma quota correspondente a 50% do capital social.
2. Entre 13/03/1992 e 31/08/2020, ambas as sócias da recorrente foram as suas únicas gerentes.
3. A recorrida A… renunciou voluntariamente à gerência em 31/08/2020, em pleno período pandémico, com todas as consequências negativas que tal situação trouxe à recorrente.
4. Acresce que, a recorrida A… intentou também acção judicial para destituição do cargo de gerente contra a outra sócia gerente, bem sabendo das consequências negativas de tal decisão.
5. Ao tomar a decisão ora recorrida, o douto tribunal “a quo” dispensou a audição da recorrente no presente processo, por considerar que a sociedade não tem capacidade para se representar em juízo, dado que se encontra em situação irregular devido à falta de uma das gerentes.
6. E fê-lo, apesar de ter conhecimento de que a recorrida colocou a sociedade em situação irregular, em pleno período de crise e que, em simultâneo, tentou afastar judicialmente da gerência a outra sócia gerente.
7. A presente situação trata-se de um conflito entre a recorrida e a própria sociedade recorrente, bem como entre a recorrida e a outra sócia gerente.
8. Pelo que, salvo melhor opinião, mal andou o tribunal “a quo” ao proferir sentença sem proceder à audição prévia da recorrente, coartando o direito de defesa da sociedade, que fica impossibilitada de se defender em juízo por falta de representação para o efeito, ficando totalmente nas mãos da autora e ora recorrida, situação que se considera inadmissível.
9. Também não pode a recorrente concordar que o tribunal “a quo” considere a recorrida pessoa idónea para exercer o cargo de gerente.
10. Aliás, para o douto tribunal “a quo”, foi facto determinante para qualificar como pessoa idónea a representar a sociedade, o facto de a ora recorrida ter exercido o cargo de gerente entre Março de 1992 e Agosto de 2020.
11. Porém, a recorrida não pode ser considerada pessoa idónea para tal, pois em vinte e oito anos de atividade da sociedade ora recorrente, nunca a recorrida A… exerceu a gerência de facto, apenas se tratando de uma gerente de direito, a qual cedeu todos os poderes por procuração ao seu marido AR…, este sim gerente de facto.
12. A recorrida nunca exerceu na prática a gerência da sociedade recorrente e nem tem capacidade para o fazer.
13. Existem graves conflitos no seio da gerência, entre a sócia gerente F… e a recorrida, assim como entre a sócia gerente F… e o marido da ora recorrida, AR…, enquanto procurador desta última.
14. Pelo que, nomear como gerente a recorrida, apenas trará novamente tais conflitos, o que implica o prejuízo da sociedade recorrente no seu regular funcionamento e na imagem perante terceiros.
15. A nomeação da recorrida novamente como gerente da sociedade recorrente irá dificultar e até mesmo obstar ao normal funcionamento da recorrente, devido aos conflitos existentes na gerência plural da sociedade.
16. A recorrida foi também Diretora Pedagógica da sociedade recorrente, tendo sido despedida com justa causa em Julho do ano de 2022, dado que, no âmbito das suas funções enquanto diretora pedagógica, prejudicou gravemente a sociedade ora recorrente, ao incumprir instruções que lhe eram dadas pela gerente F…, de modo a criar conflitos e exigindo sempre ser nomeada novamente para a gerência.
17. Assim, verifica-se que o tribunal “a quo” não deveria ter considerado a recorrida A… como pessoa idónea para o exercício do cargo de gerente da recorrente, e consequentemente, não deveria ter proferido sentença a nomear a recorrida gerente, dado que não se encontram preenchidos todos os critérios legais para tal nomeação.
3. A requerente apresentou contra-alegações, que concluiu requerendo a liminar rejeição do recurso com fundamento em falta de legitimidade da recorrente e ausência de mandato conferido pela sociedade requerida ao mandatário subscritor do recurso ou, caso assim não se entenda, com fundamento na aceitação tácita da sentença por parte da recorrente, nos termos do art.º 632º, nº 2 e 3 do CPC, mantendo-se a sentença recorrida.
Mais requereu a condenação da sócia gerente subscritora da procuração apresentada com as alegações de recurso como litigante de má fé no pagamento de multa e indemnização, incluindo o reembolso de despesas e os honorários dos mandatários da recorrida, bem como a indemnizar a sociedade em todas as custas e despesas devidas à litigância de má fé e à irregular representação da sociedade requerida na presente ação.
Alegou, em síntese, irregularidade da representação da sociedade requerida/recorrente para estar em juízo na medida em que o recurso foi interposto com base num mandato conferido apenas por um gerente quando a sociedade só se vincula validamente com a intervenção de dois (art.º 651º, nº 1 do CPC); falta de legitimidade da sociedade/requerida para recorrer por ser a única e verdadeira beneficiária direta da decisão recorrida na medida em que, por via dela, pode vincular-se de novo validamente perante terceiros e, por isso, não preenche os requisitos previstos no art.º 631º, nº 2 do CPC; aceitação tácita da sentença pela apelante nos termos do art.º 632º, nº 1 do CPC através da subscrição, pelas duas sócias, na qualidade de gerentes, das contas e relatório de gestão do exercício de 2021 datadas de 31.03.2022 e aprovadas em assembleia de 18.10.2022 realizada para o efeito com base em convocatória feita pela apelada; a requerente/recorrida é tão idónea para ser gerente da sociedade como a outra sócia; os factos alegados pela recorrente constituem factos novos sobre os quais o tribunal recorrido não se pronunciou e cuja alegação não é admissível em sede de recurso, que visa apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido e não a prolação de decisões sobre matéria nova.
No âmbito do incidente de litigância de má fé que deduziu, a requerente/recorrida alega que a recorrente distorce os factos e alega inverdades porque, contrariamente ao que esta alega, diligenciou pela regularização da gerência através da entrega à apelante de missiva a solicitar a convocatória de Assembleia Geral para “Regularização da gerência, ao abrigo do artigo 253º nº2 do Código das Sociedades Comerciais”, pelo que a situação de representação irregular até à presente data deve-se única e exclusivamente à inércia de F… enquanto sócia gerente, que se recusa a suprir tal irregularidade.
Juntou documentos para prova da alegada aceitação tácita da decisão e dos fundamentos do pedido de condenação como litigante de má fé, invocando em fundamento legal os art.ºs 425º e 651º, nº 1 do CPC.
4. Por referência à invocada irregularidade de representação da sociedade recorrente e com fundamento, em síntese, na existência de situação de conflito de interesses entre as suas duas sócias e, por titulares de participações de igual valor, na impossibilidade de assunção conjunta da representação da sociedade em juízo pelas mesmas, o tribunal a quo concluiu pela necessidade de nomear um representante especial à sociedade (art.º 25.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) e, em conformidade, proferiu o seguinte despacho:
“(…) nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 25.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, nomeio representante especial da sociedade F…, Lda., o Sr. Dr. L…, constante da lista oficial (…).//Notifique (partes e representante especial nomeado, advertindo este de que deverá, em 10 dias, declarar a sua disponibilidade para a nomeação).//Declarada a disponibilidade do sr. administrador judicial para a nomeação, cite-o para, no prazo de 10 dias, querendo, ratificar, no todo ou em parte, o processado anterior, suspendendo-se entretanto a instância (art.º 28.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
5. Apresentada declaração de aceitação da nomeação e cumprida a citação do sr. administrador judicial, este outorgou e juntou procuração forense “na qualidade de Representante Especial da sociedade “F…, Ldª” (…)” e, em 14.12.2022, o mandatário assim constituído juntou requerimento em nome desta concluindo nos seguintes termos:
“Considerando que a renúncia e o eventual exercício da gerência apenas de facto, ambas situações da aqui Apelada, não seriam motivos para ser proferida uma Decisão diferente, mas se for ainda esse o entendimento dos presentes autos, requer-se a V. Ex.ª que seja admitida a produção de prova documental e testemunhal, das razões que levaram ao despedimento da Requerente aqui Apelada e que conforme a respetiva prova, serem retiradas as devidas conclusões quanto à idoneidade da Requerente aqui Apelada.
 Caso os presentes autos considerem não ser devida a produção de prova das razões que levaram ao despedimento da Requerente aqui Apelada, deverá proceder totalmente as alegações de recurso, pelo que, nesse cenário, o aqui nomeado Representante Especial acompanha e ratifica as mesmas na sua plenitude.”
6. Por despacho de 20.01.2023 proferido por referência ao requerimento aludido em 5. o tribunal a quo indeferiu a produção de prova por ele requerida por ser “inadmissível à luz da tramitação do processo, em fase de recurso, aceitar a produção de prova documental e/ou testemunhal sobre factos que eram desconhecidos aquando da prolação da decisão”, considerou ratificadas as alegações de recurso e, assim, suprida a irregularidade da representação da sociedade, e admitiu o recurso interposto com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

II – Questão prévia - Da admissibilidade do recurso
Em sede de contra alegações a recorrida requereu a rejeição do recurso com os seguintes fundamento: i) irregularidade de representação da sociedade recorrente para estar em juízo (com base num mandato conferido apenas por um gerente quando a sociedade só se vincula validamente com a intervenção de dois); ii) falta de legitimidade da recorrente nos termos do art.º 631º, nº 1 e 2 do CPC por não ser parte e por ser diretamente beneficiada pela decisão recorrida (na medida em que esta lhe permitir vincular-se de novo validamente perante terceiros); iii) e perda do direito de recurso com fundamento na aceitação tácita da sentença pela apelante nos termos do art.º 632º, nº 1 e 2 do CPC (através da subscrição, pelas duas gerentes, das contas e relatório de gestão do exercício de 2021 datadas de 31.03.2022, e da sua aprovação em assembleia de 18.10.2022 realizada com base em convocatória feita pela recorrida, conforme documentos juntos com a resposta ao recurso);
i) Da irregularidade de representação da sociedade recorrente para estar em juízo
A sobredita exceção processual dilatória foi apreciada e declarada suprida pelo tribunal a quo através da nomeação oficiosa e subsequente intervenção nos autos de representante ad litem da recorrente nos termos do art.º 25º, nº 2 do CPC, intervenção à qual o tribunal recorrido reconheceu valor de ratificação das alegações de recurso. O descrito processado esgotou a apreciação e tratamento processual da questão, relativamente à qual nada subsiste para apreciar ou ordenar[1].
ii) Da ilegitimidade da recorrente
A legitimidade para recorrer - que não se confunde com a legitimidade processual prevista no art.º 30º do CPC - constitui pressuposto do direito a impugnar uma decisão por via de recurso.
Conforme dispõe o art.º 631º do Código de Processo Civil, têm legitimidade para requerer recurso ordinário a “parte principal na causa, que tenha ficado vencida (nº 1) e [a]s pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão” (nº 2).
Alega a recorrida que a recorrente não é parte na ação, e que esta não ficou vencida nem prejudicada pela decisão.
A qualidade de parte principal no processo constitui a regra enquanto elemento integrante do critério geral de aferição da legitimidade recursiva.
São partes os sujeitos processuais que figuram na relação jurídica processual do lado ativo ou do lado passivo da ação e que, a par com o pedido e a causa de pedir, identificam e definem os elementos da ação, por referência aos quais se determinam os elementos subjetivos e objetivos do caso julgado material – em regra, só é atingido pela extensão do caso julgado quem é parte no processo.
Dúvida não haverá que o processo especial para nomeação de titular de órgão social é um processo de partes, razão pela qual a recorrida o instaurou contra a recorrente, que logo considerou como parte passiva na ação enquanto destinatária da eficácia da decisão que requereu ao tribunal[2]. “As partes são as entidades que pedem ou contra as quais é pedida em juízo a tutela de uma situação jurídica.[3] Qualidade que a recorrente adquiriu e mantém na ação, no desenvolvimento da qual lhe assiste o direito de intervir e de exercer no processo as faculdades e prorrogativas que a lei processual reconhece às partes, designadamente, recorrer de decisões que lhe respeitem, como indubitavelmente lhe respeita a nomeação de pessoa para integrar o seu órgão de gestão. Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.09.2001[4], “Se a causa disser respeito ao próprio órgão (a administração) […] a necessidade de usar do direito de acção ou de fazer prosseguir o processo, assumindo a defesa, reside na própria sociedade - o interesse em agir está nela radicado.//É a sociedade que se encontra em situação objectiva de carência. […]. É da sociedade quer o interesse em agir quer a legitimidade;”.
Confirmada a qualidade de parte da recorrente, mais se exige que esta possa considerar-se vencida pela decisão recorrida. Nas palavras de A. Geraldes[5], “É parte vencida aquela que é objetivamente afetada pela decisão, ou seja, a que não obteve a decisão mais favorável aos seus interesses. […]. O mecanismo de recurso pressupõe que se aperceba a existência de uma utilidade na posterior intervenção de um tribunal hierarquicamente superior, traduzida na alteração, revogação ou anulação da decisão, com o cortejo de efeitos que daí emanam […]”. Com pertinência ao caso mais elucida que “[n]a aferição da legitimidade para a interposição de recurso, também não deve ser valorizada a conduta que a parte tenha adotado no processo. […] não deixa de ser parte vencida, com legitimidade para interpor recurso, o réu que, tendo sido pessoalmente citado para contestar, ficou em situação de revelia, terminando a ação com uma sentença que julgou total ou parcialmente procedente a pretensão deduzida pelo autor.[6]
Sem questionar a verificação dos pressupostos legais legitimadores do recurso ao processo especial de nomeação de titular de órgão social – no caso, os previstos pelo art.º 253º, nº 1, 2ª parte, do CSC - a recorrente questiona, discute e rejeita – ou, porque efetivamente não foi concedida, pretende seja dada a possibilidade processual de questionar, discutir e rejeitar - a idoneidade da requerente para o exercício do cargo de gerente, sendo certo que é na esfera jurídica da recorrente que a nomeação se repercute direta e imediatamente, aí entroncando a afetação que para si decorre da sentença sob censura por não ser indiferente a concreta pessoa que, por força da decisão, passa a deter poderes no seio da sociedade, que incluem o acesso à informação e aos bens da sociedade. Como afirma Rui Pinto, “Quem é o destinatário da eficácia da decisão recorrenda (legitimidade) é também quem tem a necessidade de a alterar por ser quem deduziu um pedido ou quem sofre o respetivo prejuízo (interesse).[7]
Termos em que se conclui pela legitimidade recursiva da recorrente na qualidade de parte passiva da ação afetada pela decisão que julgou procedente o pedido que por ela foi contra si deduzido.
iii) Da perda do direito de recorrer
Prevê o nº 2 do art.º 632º que “Não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida.”, aceitação que, nos termos do nº 3, pode ser expressa ou tácita - “[a] aceitação tácita é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer.
Na ausência de uma qualquer declaração expressa da recorrente de renúncia ao recurso ou de aceitação da sentença, a recorrida reclama que a realização de assembleia de sócios por si convocada após a prolação da sentença na qualidade de gerente que por esta lhe foi atribuída, e a subscrição, pela recorrida e na mesma qualidade, do relatório de gestão das contas (do exercício de 2021) que naquela foram submetidas a aprovação, consubstancia aceitação tácita da decisão pela recorrente.
Por regra, tem-se como facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer o cumprimento espontâneo/voluntário da decisão, sem qualquer reserva[8].
No caso, nos factos alegados e invocados como manifestação ou demonstração de aceitação tácita da sentença não se descortina nenhum suscetível de ser imputado à sociedade, aqui recorrente, representada pela gerente F… e pelo representante especial nomeado ad litem. Com efeito, quem convocou a assembleia e assinou o relatório de gestão foi a recorrida, e quem atendeu à convocação e participou na assembleia de sócios da recorrente por aquela convocada foram as sócias, A… e F…, nessa qualidade. Qualidade que não se confunde com a qualidade de gerentes, ainda que a cumulem. É consabido que a sociedade constitui sujeito ativo juridicamente autónomo e distinto dos seus sócios, dotada de orgânica e forma de funcionamento próprios, e com direitos e deveres que direta ou indiretamente pressupõe e coexiste umbilicalmente com um substrato humano integrado por indivíduos que, por sua vez, são eles próprios sujeitos autónomos de direitos deveres e de interesses individuais que cumprem ou que colidem com o interesse social, e que com aquela não se confundem. Esta realidade jurídica é – e pela sua complexidade dificilmente poderia deixar de ser - geradora de heterogéneas relações jurídicas de distinta natureza e conteúdo entre a sociedade e as pessoas que a integram, entre a sociedade e as pessoas que a administram e representam, e entre estas e as pessoas que a fiscalizam, e que não são em si mesmas prejudicadas ou juridicamente ‘anuladas’ pela coincidência das pessoas singulares que as protagonizam, cumulando a qualidade de sujeitos ou partes de cada uma dessas relações jurídicas, como sucede ser a relação jurídica sociedade-administrador, de natureza e conteúdo bem distintos da natureza e conteúdo da relação jurídica sócio-sociedade. O ente societário nasce do acordo dos sócios, mas deles se autonomiza, assistindo-lhe direitos ou prorrogativas que lhe são legalmente atribuídos para defesa do interesse social, que pode e deve opor aos sócios ou a membros dos órgãos sociais.
A acumulação de qualidades/posições jurídicas na mesma pessoa não afeta a natureza jurídica e conteúdo de cada uma das relações que cada um estabelece com a sociedade (sem prejuízo de a qualidade de sócio pressupor acrescida intensidade do dever de lealdade e empenho no desempenho do cargo de administrador, mas que não releva no que ora se aprecia), das quais emergem interesses, ora consensuais, ora opostos, sendo que, quando conflituantes, dão origem a litígios entre os sujeitos que os manifestam e que, por regra, se repercutem nas diversas qualidades que assumem no contexto societário, mas sem prejuízo do regime legal em que cada uma delas se enquadra. Como urge ser o litígio que notoriamente existe entre a sócia requerente e a sociedade requerida, que se reflete no litígio entre as sócias desta quanto à regularização dos termos da representação da sociedade (questão que apenas se coloca nas relações com terceiros) e que, pelo previsível empate de votação gerado pela posição paritária que detêm no capital social da sociedade, determinou o recurso à nomeação judicial de administrador - precisamente, pela impossibilidade – subjetiva e não objetiva - de procederem à sua nomeação através da assembleia de sócios enquanto órgão societário para o efeito competente (cfr. art.ºs 246º, nº 2, al. a) e 252º, nº 2 do CSC, sem prejuízo de o contrato social prever outra forma de designação).
Com o que se conclui pela ausência de alegação de factos suscetíveis de concretizar a aceitação tácita da decisão pela recorrente e, assim, pela não verificação da exceção processual da perda do direito de a sociedade requerida recorrer da decisão de nomeação da requerente para integrar o seu órgão de gestão.
Por desnecessário, mais se declara prejudicada a apreciação da requerida junção de documentos para prova dos factos alegados em fundamento da invocada perda do direito de recorrer na medida em que se concluiu pela ausência de nexo lógico-jurídico entre aqueles factos e a alegada aceitação tácita da decisão, o que, por inútil, dispensa a sua instrução e julgamento de facto.
 
III – Objeto do recurso
Nos termos dos art.ºs 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto desta, tal qual como surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões de facto ou de direito que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas; sem prejuízo das questões que oficiosamente cumpra conhecer. Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, salvo as que resultem prejudicadas pela solução das questões que logicamente as precedem.
Assim balizado o objeto do recurso, não o integram os factos descritos nas conclusões 11º a 16º por tratarem-se de factos alegados pela primeira vez nos autos em sede de alegações de recurso e, por isso, factos novos que não foram objeto de discussão, instrução e apreciação pela sentença recorrida e que, como tal, não podem fundamentar a sua revogação ou alteração. Nas palavras de Castro Mendes e Teixeira de Sousa, “se o objecto do recurso é julgar se a decisão proferida foi correcta ou incorreta, então não interessa senão comparar a decisão com os elementos de facto e de direito de que o juiz decidente dispunha.
 Desta feita, de acordo com o enunciado nas demais conclusões de recurso, por ele vêm submetidas a apreciação das seguintes questões:
1. Prolação de decisão sem prévia audição da requerida, que se reconduz à arguição da violação do seu direito de defesa.
2. Idoneidade da requerente para o cargo de requerente – fundamento de facto alegado e considerado.
3. Condenação da sócia gerente, F…, como litigante de má fé.

IV – Fundamentação
A) De Facto
A1) O tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:
Com interesse para a decisão da causa mostram-se assentes os seguintes factos, em face dos documentos apresentados:
1. F…, Lda., pessoa colectiva n.º 50…, com sede no Rua…, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial e tem por objecto social a exploração de jardim infantil.
2. Tem o capital social de € 7.481,08, repartido da seguinte forma: - A… – €3.740,99; e – F… – €3.740,99.
3. A sociedade obriga-se com a intervenção conjunta de dois gerentes.
4. As sócias A… e F… foram nomeadas gerentes da sociedade aquando da sua constituição (13/03/1992).
 5. A autora renunciou à gerência em 31/08/2020, facto inscrito no registo comercial em 17/12/2020.
6. No dia 30/09/2021, a sociedade requerida reuniu em assembleia geral extraordinária, na qual estiveram presentes e/ou representadas as duas únicas sócias, constando, designadamente, da ordem de trabalhos: “alteração do contrato de sociedade para efeitos de registo comercial, em sede das deliberações tomadas em assembleias anteriores, nomeadamente com a renúncia à gerência por parte da sócia A…”, sem que haja sido tomada qualquer deliberação sobre a matéria.
A2. Com relevo para apreciação do recurso, dos demais documentos juntos pela requerente com a petição inicial consta o seguinte:
7. F… subscreveu documento datado de 30.07.2020 pelo qual declarou “renunciar ao cargo de Gerente da sociedade comercial por quotas denominada “F…, Lsª” (…) produzindo a mesma efeitos oito dias após o recebimento da presente comunicação.
8. F… subscreveu documento, não datado, do qual consta declarado que, “presente na assembleia geral extraordinária de 31 de Agosto de 2020 (…) Entendi não dever manter o pedido de renúncia à gerência que havia apresentado, antes de devidamente serem esclarecidas todas as questões e factos que acima enuncio.//Pelas razões apresentadas, não poderia votar favoravelmente qualquer uma das questões constantes da Ordem de Trabalhos da presente Assembleia Geral Extraordinária (…).
9. Com a petição inicial a requerente juntou documento epigrafado de ACTA, não numerada e não subscrita, do qual consta que reporta à reunião em assembleia geral de sócios aludida em 6., que esta foi presidida pela sócia F…, e que nela a sócia A… esteva representada por Procurador, Sr. AR….
10. Do referido documento consta enunciada a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto Um : Apreciação do Balanço e Contas referentes ao exercício do ano de 2020............................................................
Ponto Dois : Esclarecimento sobre Suprimentos efectuados em favor da sociedade.................................................................
Ponto Três : Alteração do contrato de sociedade para efeitos de registo comercial, em sede das deliberações tomadas em assembleias anteriores, nomeadamente com a renúncia à gerência por parte da sócia A… 
Ponto Quatro: Regularização do CAE da Creche tendo o mesmo o número 88910...............................................................
Ponto Cinco : Apreciação do incumprimento contratual referente ao pagamento de rendas da Sociedade “B…, Lda”          
Ponto Seis : Exigência verificada pela sociedade “B…, Lda”, referente ao pagamento de refeições por parte do “Colégio…”               
Ponto Sete: Clarificação das funções da Gerência e responsabilidade da Direcção Pedagógica............................................
Ponto Oito: Vencimento a auferir pela Sócia Gerente........................................................................................................................
Ponto Nove: Regularização e Criação do Endereço de Email da Directora Pedagógica..........................................................
Ponto Dez : Esclarecimento sobre o eventual contrato celebrado com a Sociedade de Advogados “V…”, nomeadamente data, condições e acta com deliberação     
Ponto Onze : Apreciação da Proposta de Compra dos imóveis das sociedades “F…, Ldª” e “B…, Lda”.
11. E mais consta que:
- a sócia F… questionou o Sr. AR… – na qualidade de Procurador da outra sócia -, pedindo-lhe esclarecimento sobre como tinha sido possível realizar o registo de alteração da gerência da sociedade em 17.12.2020 “através de uma ata que não estava por si assinada e na qual nem tinha sido junta a declaração de voto que a mesma apresentou nessa mesma assembleia”, ao que aquele respondeu, seguindo-lhe intervenção do mandatários de cada uma das sócias presentes na assembleia, sem que da ata conste descrito qualquer esclarecimento à questão colocada;
- A respeito do Balanço e contas, que foram aprovados por unanimidade, AR… questionou a razão de um prejuízo de cerca de €35.000,00 e o próprio transmitiu as informações prestadas pelo gabinete de contabilidade, ao que F… acrescentou que “existiram despesas de índole particular que estavam naturalmente inscritas no balanço e contas, mas que não eram despesas da Instituição, conforme listagem que descreveu, nomeadamente : Despesas particulares de restaurantes, Gás para a habitação particular da sócia A…, encargos particulares com despesas da “MEO” da habitação da sócia A…, um pagamento à “Google”, no montante de €1.439,78 (Mil Quatrocentos e Trinta e Nove Euros e Setenta e Oito Cêntimos), cuja factura não havia sido apresentada e ainda uma notificação fiscal, relativa a IVA em atraso, no montante de €333,15 (Trezentos e Trinta e Três Euros e Quinze Cêntimos), de 28 de Julho de 2020, o qual ainda fora, naturalmente, acrescido dos respectivos juros, entre outros. A estas questões, e valores, justificou o Sr. AR… que constariam de um acordo particular entre as sócias que assim se procedesse, o que a D. F…, veementemente contestou. Afirmou ainda o Sr. AR… que durante ano de 2020, teria remetido um mail a solicitar informação sobre esses valores, com vista ao seu pagamento, por se tratarem de facto de despesas particulares, mas, uma vez mais, a D. F… afirmou não ter recebido qualquer mail nesse sentido, solicitando ao Sr. AR… que apresentasse o indicado email, o que aquele se comprometeu fazer, assim como se comprometeu de igual forma a pagar as indicadas despesas, por se tratarem de despesas e encargos que são particulares e não da responsabilidade da sociedade.
- Relativamente ao ponto 2, F… questionou o Procurador da sócia A…, sobre “com autorização de quem e quando, foram dadas indicações aos gabinetes responsáveis pela contabilidade da sociedade, para saídas de montantes vários e sem qualquer controle, a favor da sócia A…, assim como, igualmente, em nome do procurador presente, Sr. AR….//O Sr. AR…, remeteu a resposta para a Acta n° 19, de 20 de Dezembro de 2004, mas não explicou, nem justificou as questões colocadas pela sócia D. F….
- Relativamente ao ponto 3, F… quis “realçar que, se a sócia A…, sem seu conhecimento, apresentou, ou solicitou que fosse apresentada a registo, a sua renúncia à gerência da sociedade, porque razão não diligenciou para que se alterasse a forma de obrigar a sociedade, bem sabendo que, se a sociedade se obrigava por duas assinaturas e ela se havia demitido voluntariamente da gerência, naturalmente a sociedade ficaria de forma irregular e com sérias dificuldades de gestão, pois apenas com a assinatura da actual gerente, naturalmente é insuficiente para muitas das obrigações que a sociedade tem.
- Relativamente ao ponto 5, “a sócia D. F…, chamou a atenção, estando presentes a D. A… e o Sr. AR…, que igualmente são os sócios majoritários e com a gerência da sociedade “B…, Lda.” que, conforme carta que já foi remetida àquela sociedade, a mesma se encontra, desde há algum tempo, em incumprimento no pagamento da renda estipulada contratualmente com a proprietária e senhoria que é a sociedade “F…, Lda”, cujo montante, a esta data, ascende a cerca de € 21.000,00 (Vinte e Um Mil Euros), pois apenas pagou os meses de Janeiro e Fevereiro de 2020.//Mais curioso ainda, é o facto de o incumprimento apenas se ter verificado após a renúncia à gerência da sociedade “F…, Lda” apresentada pela sócia A… que é gerente da “B…, Lda”.//Tendo em conta os valores em causa, a sócia F…, expressou a vontade de que, se não for encontrada uma solução a curto prazo, conforme foi indicado na carta, outra alternativa não terá que não seja a de recorrer à via judicial, o que não gostaria de fazer.
- Relativamente ao ponto 7, “foi afirmado pela D. F… que a Directora Pedagógica, D. A…, independentemente da sua condição de sócia, é funcionária da sociedade “F…, Lda” e, como tal, tem de cumprir, como qualquer outra trabalhadora, as funções que lhe estão atribuídas, não as questionando sistemática e continuadamente, (…), esta só tem de as cumprir e, se for caso disso, transmitir as mesmas ás restantes funcionárias e não sistematicamente questioná-las e não as cumprir, como se tem verificado, obrigando a que seja a D. F… a ter de assumir funções que não lhe estão atribuídas quando existe uma funcionária para as executar.
- Relativamente ao ponto 8, Decidiu ainda a assembleia, no que se refere ao Ponto Oito da Ordem de Trabalhos que a Gerente não deverá ser remunerada.//Naturalmente que a D. F… votou contra esta decisão principalmente quando havia proposto um vencimento de €1.000,00 (Mil Euros), ou seja, metade daquele que a sócia A… havia sugerido na Assembleia Geral de Junho de 2019 que fosse atribuído ao seu procurador e marido, Sr AR…, caso a D. F… tivesse na altura aceite que o mesmo voltasse a poder representar ambas as sócias, se estas tivessem renunciado em simultâneo à gerência, o que não se verificou. Ou seja, no caso de o vencimento se destinar ao Sr. AR…, era não só um valor justo, como era o dobro do agora proposto pela D. F…, mas como agora o vencimento é para a D. F…, a sócia D. A…, através do seu procurador e marido, entenderam que ela não deveria ser remunerada.
- Relativamente ao ponto 10[Q]uestionou F…, quando, com que deliberação, para que efeitos e quais as condições em que havia sido solicitado pela sociedade “F…, Lda” a contratação dos serviços da sociedade de Advogados “V…”, pois ela desconhecia todas essas razões, mas surge uma verba de €4.500,00 (Quatro Mil e Quinhentos Euros) a favor daquela sociedade, assim como existe inscrito um montante de €20.000,00 (Vinte Mil Euros) no Balanço e Contas da sociedade “F…, Lda”, quando na verdade se apurou em sede de julgamento de audiência que afinal esses montantes seriam de despesas pessoais da D. A…. Assim e apesar de igualmente estarem inscritas no Balanço e Contas Notas de Crédito para alguns desses valores, emitidos pela indicada sociedade, questionou a D. F… os esclarecimentos que acima se identificaram.//Respondeu e esclareceu a esta questão o próprio Dr. AC…, afirmando que a Direcção da sociedade teria pedido em 2020, um parecer sobre implicações fiscais em que a sociedade se encontrava, relativamente aos capitais negativos e igualmente sobre a situação de uma das funcionárias da sociedade.//Face a estas explicações, questionou a D. F…, porque razão não teve a mesma conhecimento destas solicitações, nem dos custos das mesmas, quando enquanto gerente, nada lhe foi comunicado pela outra sócia, ou pelo seu procurador e marido.//Ficou, no entanto, esta questão sem resposta.
- Relativamente ao ponto 12, F… “começou por afirmar que desejava que os valores que lhes tinham sido doados, a ela e ao Sr. AR…, enquanto irmãos, pela mãe de ambos, deveriam constar como suprimentos de ambos (…). Manifestou ainda que nunca teve, nem tem qualquer problema em trabalhar com a sócia, D. A…, mas que é impossível e não consegue trabalhar com o Sr. AR…, pois ele quer controlar tudo, não presta informações e não a respeita, nem como sócia nem como gerente.”

B) De Direito
1. Da violação do contraditório
No contexto da realidade dinâmica da vida de uma sociedade comercial - que apela a providências que não se adequam ou compadecem com a tramitação do processo comum -, a lei previu mecanismos judiciais simplificados e céleres com o objetivo de, com o mínimo de ingerência nos desígnios e vida interna da sociedade, desmobilizar situações de pontual boicote, estrangulamento ou de impasse gerados no âmbito das relações privadas que nela se geram, e suscetíveis de paralisar o regular exercício de direitos sociais ou da própria sociedade. Mecanismos que o legislador integrou no âmbito dos processos de jurisdição voluntária que, como é consabido e expressamente resulta dos art.ºs 986º a 988º do CPC, caracterizam-se pelo inquisitório, pela liberdade e oficiosidade instrutória, e pela modificabilidade das decisões adotadas, sem que o julgador esteja vinculado à observância rigorosa do direito aplicável ou às soluções apresentadas pelas partes, podendo proferir a decisão que julgue mais conveniente e oportuna, em detrimento da legalidade estrita. Demarca-se de forma evidente da jurisdição contenciosa, essencialmente caracterizada pelo princípio do dispositivo, com os ónus preclusivos que para as partes e com as limitações que para o poder-dever de conhecimento do tribunal dele resultam.
Sob a epígrafe “Nomeação judicial de titulares de órgãos sociais prevê o art.º 1053º do CPC, no nº 1, que “Nos casos em que a lei prevê a nomeação judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns dos contitulares de participação social, deve o requerente justificar o pedido de nomeação e indicar a pessoa que reputa idónea para o exercício do cargo.” e, no nº 2, que “Antes de proceder à nomeação, o tribunal pode colher as informações convenientes, e, respeitando o pedido a sociedade cujo órgão de administração esteja em funcionamento, deve este ser ouvido.
Sobre este concreto procedimento anotam A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa que “A nomeação judicial constitui um meio rápido e expedito para a resolução imediata do impasse decorrente de a representação da sociedade não se encontrar assegurada, sendo uma solução provisória, até que os sócios ou acionistas consigam resolver o conflito pelas vias normais: nomeação de um novo gerente por deliberação ou alteração da cláusula societária que exige a vinculação através de uma gerência plural (STJ 18-06-19, 3145/17, que confirmou RC 15-1-19, e RP 1-2-11, 302/10). Acrescentam que “Se a sociedade mantiver em funções o seu órgão de gestão, deve o mesmo ser ouvido pelo tribunal antes da nomeação judicial de titular de órgão social. Se não existir órgão de gestão em exercício, o tribunal procede à nomeação sem necessidade de ouvir seja quem for da sociedade (RP 26-6-01, 0120719), devendo promover as diligências que tiver por convenientes, as quais podem contemplar a produção da prova indicada pelo requerente (…) ”.[9]
Para além da natureza da questão que pretende resolver, em termos de tramitação processual este especifico procedimento, tal qual como o processo especial para convocação de assembleia de sócios, diferencia-se dos demais previstos no capítulo do exercício de direitos sociais, precisamente, quanto ao exercício do contraditório, prevendo-se expressamente nestes últimos a citação da sociedade requerida (vd. art.º 1048º, nº 2 no pedido de inquérito judicial à sociedade, art.º 1058º, nº 2 no pedido de redução do capital social, e art.ºs 1061º, nº 2 e 1068º, nº 3), da pessoa singular afetada (art.º 1055º, nº 3 no pedido de destituição de titulares de órgãos sociais) ou de outros (art.º 1070º, nº 2 no pedido de investidura em cargos sociais).
No processo para nomeação de órgão titular a lei não prevê a citação da sociedade, e compreende-se: o objeto do processo poderá corresponder precisamente à nomeação de administrador para sanação de irregularidade do órgão de administração que, por falta de um ou mais administradores exigidos pelo pacto para representar a sociedade, não reúne condições para intervir em nome desta. Afigura-se-nos ser esta a circunstância que subjaz à previsão legal da audição do órgão de administração em funcionamento, ao invés da citação da sociedade.
Sem nos atermos na delimitação concetual das funções do órgão de administração, importa apenas referir que se concentram na dupla atividade de administrar e de representar a sociedade. Ainda que incindíveis na realidade prática de determinados atos, são conceitos distintos a que correspondem funções e atividades distintas. Desde logo, a função de representação, que é instrumental em relação ao exercício do poder-dever de administrar, apenas se coloca nas relações da sociedade com terceiros, que poderá inviabilizar a prática de atos, mas não impossibilita que quem se mantém formalmente no cargo continue a administrar a sociedade e a exercer o respetivo objeto social[10]. A título de exemplo, o gerente que se mantém no cargo mantém o poder – e o dever – de fazer os pagamentos que sejam devidos pela sociedade e de instruir os respetivos trabalhadores, transmitindo-lhes as ordens necessárias no âmbito das funções de cada um com o propósito de prosseguir a atividade lucrativa da empresa. É este órgão ‘em funcionamento’ – na prática, as pessoas que o integram e agem nessa qualidade, de administrador -, que a lei determina seja ouvido, como tal – órgão de administração -, e não em representação da sociedade. Situação que é replicada no processo para convocação de assembleia previsto no art.º 1057º do CPC, no qual a lei também não determina a citação da sociedade, limitando-se a prever a (possibilidade de) audição da administração da sociedade, o que se revela coerente com o regime legal do objeto do pedido, pois do que ali se trata é de suprir um ato da específica responsabilidade, não da sociedade[11], mas dos seus administradores[12], pelo que só estes e não aquela deverão ser ouvidos (se o juiz o entender conveniente[13]).
No caso da recorrente, não obstante exigir a intervenção da assinatura de dois gerentes para a obrigar – a referida dimensão da relação da sociedade com terceiros – ter-se-á mantido em atividade durante mais de dois anos, desde agosto de 2020, com apenas um gerente formalmente no cargo. Não há notícia nos autos de a sociedade ter paralisado a sua atividade, que é desmentida pelo teor do documento epigrafado de ATA descrito nos factos assentes, do qual se salienta a prestação de contas do exercício de 2020 e a discussão, em 2021, de questões atinentes com as refeições das crianças utentes do estabelecimento educativo da recorrente, que impõe concluir que a partir de agosto de 2020 o órgão de administração da recorrente se manteve em funcionamento por quem se manteve e permaneceu no cargo de gerente, realidade – funcionamento - que não é prejudicada pelo facto de se conceder que o foi de forma irregular[14].
Com o que se conclui pela obrigatoriedade de audição do órgão de administração da sociedade que os documentos revelam manter-se em funcionamento, através da sua gerente F… que, de resto, a própria recorrida requereu fosse ouvida em depoimento de parte da requerida[15] e, assim, pela revogação da decisão do tribunal a quo para permitir o cumprimento da audição da gerente da sociedade requerida que se manteve no cargo e em exercício de funções.  
2. Da idoneidade da pessoa a nomear
Prevê o nº 1 do art.º 1053º do CPC que “… deve o requerente justificar o pedido de nomeação e indicar a pessoa que reputa idónea para o exercício do cargo.
Para justificar ou demonstrar a sua idoneidade para o cargo a requerente limitou-se invocar o seu desempenho no dito órgão desde a constituição da sociedade até à referida renúncia. Absteve-se no entanto de dizer o que fosse a respeito desse desempenho, omitindo a indicação da atividade por si concretamente realizada no exercício da gestão e representação da recorrente e os resultados que à mesma imputa no cumprimento do objeto social da sociedade e do respetivo natural escopo lucrativo – de maior ou menor eficiência dos recursos ‘produtivos’ da sociedade, de maior ou menor faturação, de maior ou menor perceção de rendimentos, de maior ou menor volume de gastos ou de despesas, etc.
No caso o tribunal recorrido emitiu juízo sobre a oportunidade da pretensão de nomeação judicial de administrador, concluindo pela verificação dos pressupostos legais de que depende, o que nenhuma das partes põe em causa. Acolhendo in totum a indicação da própria requerente, a sentença recorrida limitou-se a fundamentar a sua idoneidade para o cargo no facto de esta o ter exercido desde a constituição da sociedade, em 13.03.1992, até à renúncia. Daqui decorre que, aceitando os pressupostos da nomeação judicial de administrador, a recorrente discorda ‘apenas’ que a nomeação incida sobre a requerente.
Recorrendo de novo às palavras de A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa[16], com subl. nosso, “[n]o que concerne à indicação da pessoa idónea para o exercício do cargo, a indicação feita pelo requerente não vincula o tribunal que, antes de proceder à nomeação, deve colher as informações convenientes (nº 2). Deste modo, incumbe ao tribunal a formulação de um juízo sobre a idoneidade do gerente indicado, a qual terá de ser aferida em função dos interesses em conflito. Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, nada obsta a que o tribunal se afaste da indicação do requerente, procedendo à nomeação da pessoa indicada pelo requerido ou de um terceiro.//(…).// Se não existir órgão de gestão em exercício, o tribunal procede à nomeação sem necessidade de ouvir seja quem for da sociedade (RP 26-6-01, 0120719), devendo promover as diligências que tiver por convenientes, as quais podem contemplar a produção da prova indicada pelo requerente (…).”
Daqui resulta que ao requerente se impõe alegar e juntar os elementos necessários para demonstrar a idoneidade de quem indica à nomeação e, não o fazendo, deve o tribunal convidá-lo a suprir a fattispecie necessária à concretização da causa de pedir nessa matéria. Em qualquer circunstância, e tratando-se de processo de jurisdição voluntária, “o legislador dá ao tribunal poderes inquisitórios para «colher as informações convenientes[17]. Poder que se impõe como o exercício de um poder-dever sob pena de, frustrada a formação da vontade da sociedade através do procedimento deliberativo próprio[18], o processo judicial de nomeação e a decisão que por ele é proferida se limitar e servir apenas para que, através da mera formulação de um pedido, um ou mais sócios sobreponha(m) a sua vontade à vontade oposta do(s) outro(s) sócio(s), como urge ser o caso destes autos.
Como já decorre do acima exposto, o alegado pela requerente é insuficiente para permitir a sindicância da idoneidade da requerente para o cargo de gerente que, por referência aos deveres fundamentais a que o gerente da sociedade está adstrito (cfr. art.º 64º do CSC), implica avaliar parâmetros de competência técnica, disponibilidade, incompatibilidades, e independência, que não vêm por qualquer forma concretizados pela requerente e não são demonstrados pelo simples facto de ter mantido aquela qualidade desde a constituição da sociedade. Circunstância que, por si só, sequer revela se a gerência de direito era acompanhada da gerência de facto e/ou em que termos era exercida[19]. Tanto mais se considerarmos que a requerente fez cessar voluntariamente aquele vínculo através da renúncia que apresentou ao cargo sem que tenha alegado – nem na declaração de renúncia nem nos autos - o circunstancialismo ou razões pelas quais renunciou; designadamente, se tem ou não subjacente ‘justa causa’,  sendo certo que, como gestora, contra a requerente joga o facto público e notório de na altura o país atravessar grave situação sócio económica, transversal a vários sectores empresariais, que incluiu estabelecimentos educativos que foram encerrados, afetando os moldes em que empresas de vários sectores funcionavam e exerciam a sua atividade e impondo-lhes reorganizações e o acudir a situação de crise, inclusive na gestão dos recursos humanos e financeiros. Referindo-se ao enquadramento a considerar pelo tribunal na nomeação de titulares de órgãos sociais, José Ferreira Gomes elucida que “a sociedade comercial dá forma jurídica a um projeto empresarial dos sócios e é um mecanismo institucionalizado de gestão de conflitos de interesses entre estes, pelo que as pessoas a nomear têm de ser idóneas para cumprir o seu papel neste contexto, demonstrando ter competência técnica e disponibilidade, não estarem sujeitas a incompatibilidades e cumprirem os demais critérios aplicáveis, incluído os de independência”[20].
A ausência de averiguação da idoneidade da requerente e a prolação de decisão por mera adesão ao pedido deduzido não encontra legitimação, nem nos critérios de conveniência e de oportunidade que nos termos do art.º 987º do CPC podem fundamentar as concretas providências a decretar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, nem no papel de ‘árbitro’ que o tribunal é aqui chamado a assumir. Substituindo-se ao órgão deliberativo da sociedade na nomeação de administrador para integrar o órgão de administração, o tribunal terá que tomar a decisão que melhor sirva os interesses da sociedade, o que pressupõe concluir pela idoneidade da pessoa que nomeia para o cargo, o que pressupõe proceder à sua averiguação que, reitera-se, não advém do mero facto de a pessoa já ter tido aquela qualidade.
Nas palavras do autor que temos vindo de citar, “[o] tribunal deve ouvir a administração e, independentemente da sua eventual não oposição, deve analisar criticamente o requerimento. Se necessário, deve ouvir o requerente e recolher as demais informações que entenda adequadas (artigo 1053.º/2 CPC)28. O tribunal goza de um “acrescido inquisitório”, traduzido numa ampla margem de discricionariedade nas decisões sobre a prova a produzir e sobre a pessoa a nomear.[21]
Inquisitório que no caso mais se impõe no cenário de conflito societário e de conflito de gestão manifestadas pela instauração destes autos e pelo teor das declarações exaradas nos documentos juntos com a petição, e mais ainda se atentarmos na probabilidade de a situação de impasse que justificou estes autos ser objetivamente apta a conferir ao gerente que por estes autos venha a ser nomeado um grau de permanência no cargo superior ao caráter excecional e provisório que o legislador pressupôs para esta solução, que deveria subsistir apenas até à designação do gerente em falta através dos mecanismos legais ou estatutários, cujo acionamento pressupõe, precisamente  ausência de impasse.
Termos em que se conclui pela revogação da sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra a proferir depois de realizadas as diligências instrutórias tidas por pertinentes para averiguação da idoneidade da requerente para o cargo de gerente, ou de outro que em alternativa venha a ser indicado para o efeito, designadamente, se assim for entendido, mediante notificação das partes e/ou interessados para o efeito.
3. Da condenação da sócia gerente F… como litigante de má fé
Em fundamento do pedido alega a recorrida que a recorrente distorce os factos e alega inverdades porque, contrariamente ao que esta afirma nas alegações de recurso, a recorrida diligenciou pela regularização da gerência através da entrega à apelante de missiva a solicitar a convocatória de Assembleia Geral para “Regularização da gerência, ao abrigo do artigo 253º nº2 do Código das Sociedades Comerciais”, pelo que a situação de representação irregular até à presente data deve-se única e exclusivamente à inércia de F… enquanto sócia gerente, que se recusa a suprir tal irregularidade.
Do art.º 23º das alegações de recurso consta que “mesmo enquanto sócia, detentora de uma participação social equivalente a 50% do capital social, a recorrida não diligenciou pela regularização da gerência da sociedade ora recorrente durante dois anos.” Com o propósito de demonstrar a inveracidade de tal alegação, a recorrida alegou que solicitou à gerente F… a convocação de assembleia geral para regularização da gerência da recorrente nos termos do art.º 253º, nº 2 do CSC.
Porém, devidamente contextualizado com o alegado sob o art.º 24º[22] das alegações de recurso e com os elementos que constam do documento epigrafado como ACTA junto com a petição inicial, tal facto não detém a virtualidade de dar corpo à alegada falsidade na medida em que daqueles resulta que são diferentes as vias de regularização da gerência perspetivadas por cada uma das sócias: a recorrida, através da sua nomeação como gerente, conforme pedido que nestes autos deduziu; a sócia e gerente F…, através da alteração do pacto social na cláusula que exige a assinatura de dois gerentes para vincular a sociedade, conforme consta da declaração que lhe é imputada no documento epigrafado de ACTA e consta descrita sob o facto aditado à decisão de facto com o nº 11 - Relativamente ao ponto 3 (da ordem de trabalhos da assembleia), F… quis “realçar que, se a sócia A…, sem seu conhecimento, apresentou, ou solicitou que fosse apresentada a registo, a sua renúncia à gerência da sociedade, porque razão não diligenciou para que se alterasse a forma de obrigar a sociedade
De resto, não se vislumbram indícios de litigância de má fé da gerente F… no âmbito do presente recurso, o que importa a improcedência do pedido de condenação que contra ela foi deduzido nesse sentido no âmbito desta instância recursiva.
Por desnecessária, mais se declara prejudicada a apreciação da requerida junção de documento para prova dos factos alegados no âmbito do incidente de litigância de má fé na medida em que se referiu não deterem a virtualidade de demonstraram a invocada alegação de factos falsos ou com distorção da realidade, dispensando, por inútil, a instrução e julgamento de facto da dita alegação.

V– Decisão
Em face de todo o exposto, acordam as juízas desta secção em:
1. Julgar a apelação procedente e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos com audição da gerente da recorrente e realização das diligências requeridas e/ou tidas por pertinentes para averiguar a idoneidade da requerente ou de outrem que venha a ser indicado para o cargo de gerente da recorrente.
2. Julgar improcedente o incidente de litigância de má fé deduzido nesta instância pela recorrida.

Vencida na apelação e no incidente de litigância de má fé que nela deduziu, as custas do recurso e do incidente são a cargo da recorrida (art.º 527º, nº 2 do CPC).

Lisboa, 02.05.2023
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
_______________________________________________________
[1] Sobre a questão, mas com distintas apreciação e solução, vd. acórdão da Relação do Porto de 18.12.2013 relatado por Eusébio Almeida, proc. nº 2290/13.0TJVNF-C.P1, de cujo sumário consta: “2 – Numa ação em que a sociedade (que se faz representar por dois gerentes), é demandado por um dos sócios gerentes, o outro gerente, por si só e não havendo convenção contrária, pode representar a sociedade e outorgar procuração para a sua defesa.” (disponível na página da dgsi, como todos os demais aqui citados sem outra indicação).
[2] Mal se entendendo que a recorrida venha agora a expressar posição contrária à atuação processual que adotou nos autos quando instaurou a ação contra a sociedade, tanto mais que sequer justifica a negação da qualidade de parte que agora alega não deter, negação que, contrariamente ao que refere, não resulta da sentença recorrida posto que esta reconhece à sociedade a qualidade de requerida nos autos, reconhecimento que não é prejudicado ou contrariado pelo facto de ter considerado que esta carece de representação por não estar o órgão de administração em funcionamento para efeitos do disposto no art.º 1053º, nº 2 do CPC. Sem prejuízo sempre se acrescenta que, entendendo-se que neste procedimento a sociedade – que em juízo é representada pelo órgão de gestão – não detém a qualidade de parte, impunha-se considera-la como terceiro à ação e, nesse caso, das duas uma: ou se considerava excluída da eficácia do caso julgado e não lhe poderia ser oposta a decisão de nomeação de gerente (situação que na prática agravaria a situação de paralisia ou entropias visadas estancar com o procedimento); ou se considerava abrangida pela eficácia do caso julgado daquela decisão, o que impunha reconhecer-lhe legitimidade para dela decorrer na qualidade de terceiro por ela diretamente afetado.
[3] Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, p. 19.
[4] Proc. 02A061, relatado por Lopes Pinto.
[5] Recursos em Processo Civil, Almedina, 6ª ed., p. 103.
[6] No mesmo sentido, Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL, 2022, p. 154.
[7] Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, p. 246.
[8] Nesse sentido, entre muitos outros, acórdão do STJ de 28.05.2015, relatado por Salazar Casanova, proc. 2471/12.3TVLSB.L1.S1.
[9] A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, CPC anotado (GPS), Vol. II, p. 498 e s.
[10] Com interesse, anota-se que o acórdão da Relação do Porto de 26-6-01, relatado por Emídio Costa, concluiu pela inexistência de órgão da sociedade (gerência) em funcionamento, mas no caso o processo de nomeação de gerente tinha sido requerido por quem se mantinha como único gerente da sociedade.
[11] Em sentido contrário, José Ferreira Gomes afirma que “Tem legitimidade passiva a sociedade.” (em Nomeação judicial de titulares de órgãos sociais, Processos Especiais dos Juízos de Comércio, Coleção Formação Contínua, ed. atualizada em maio de 2020, p. 183 - disponível em
https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=lsQNimgp8uE%3D&portalid=30)
[12] Nos termos do art.º 248º, nº 3 do CSC “A convocação das assembleias gerais compete a qualquer dos gerentes (…).
[13] O nº 2 do art.º 1057º prevê que “… o juiz … procede às averiguações necessárias, ouvindo a administração da sociedade, quando o julgue conveniente, e decide.
[14] Situação que em abstrato apenas seria suscetível de fundamentar a inoponibilidade dos atos assim celebrados/praticados, a invocar pela sociedade perante os terceiros com quem aquela gerente contratou em seu nome, com fundamento em ausência de poderes desta para, por si só, vincular a sociedade, mas que, como é óbvio, seria sempre sem prejuízo da tutela dos terceiros de boa fé (cfr. art.º 260º do CSC).
[15] Ainda que com resultado distinto por referente a contexto processual distinto, mas manifestando perplexidade por uma interpretação normativa que conduza a uma decisão final sem contraditório por falta de regularização, vd. acórdão da RP de 18.12.2013, proc. nº 2290/13.0TJVNF-C.P1, relatado por Eusébio Almeida.
[16] CPC anotado (GPS), Vol. II, p. 498 e s.
[17] Acórdão de 18.12.2008, proc. n.º 11128/2008-1, relatado por João Aveiro Pereira.
[18] Nos termos do art.º 252º, nº 2 do CSC, o gerente ou é designado no contrato de sociedade ou eleito, posteriormente, por deliberação dos sócios.
[19] Considerando o teor das declarações/imputações exaradas no documento junto com a petição inicial epigrafado de ‘ACTA’ (da assembleia geral da recorrente de 30.09.2021), afigura-se-nos pertinente anotar que, conforme dispõe o art.º 252º nº 5 do CSC, “Os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no n.2 do artigo 261º.” Conforme afirma Menezes Cordeiro, a possibilidade de representação do gerente no exercício do cargo é “claramente inadmissível.” (CSC anotado, Almedina, ed. 2009, p. 666). Acrescenta que “é nula a procuração pela qual o gerente confira poderes a outro para o exercício indiscriminado dos poderes deveres relativos à administração, representação, ou vida interna da sociedade.”
[20] Texto cit., p. 175.
[21] José Ferreira Gomes, texto cit., p. 184.
[22] No qual consta alegado que “a recorrida obstaculizou qualquer iniciativa em sede de alteração do pacto social, nomeadamente quanto à forma de obrigar a sociedade, a qual deveria ser alterada por consequência da sua renúncia.