Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA SANTANA | ||
Descritores: | FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO EXAME CRÍTICO DAS PROVAS NULIDADES DA SENTENÇA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário: | I - No que concerne aos pontos 2 a 5 dos factos dados como não provados, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse analisado, de forma crítica, as declarações do arguido e o depoimento da única testemunha que sobre os mesmos e pronunciou e, dado que os mesmos não são consentâneos entre si, cumpria que fosse, de forma sustentada, dada credibilidade a uma das versões em detrimento da outra. O que não foi feito. II - Assim, a sentença está inquinada por insuficiência da fundamentação de facto e exame crítico da prova, por desrespeito do preceituado no artigo 374°, n.º 2, o que acarreta a nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), ambos do CPP. III - A supra referida declaração de nulidade prejudica a apreciação das demais questões suscitadas. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I Relatório 1. No processo com o nº 531/20.6PATVD que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local Criminal de Torres Vedras – J2 - Processo Comum ( Tribunal Singular), foi, em 28.09.2023 proferida sentença da qual se transcreve o dispositivo, na parte relevante –Ref. 158239578: “3. Decisão Nestes termos, tudo visto e ponderado: 1. Julgo totalmente improcedente, por não provada a acusação do Ministério Público e, em consequência, absolvo o arguido AA da prática, em autoria material, na sua forma consumada e em concurso efectivo de: - um crime de violência doméstica, p. e p., pelo artigo 152.º, n.º 1, als. b) e c); n.º 2, al. a); n.º 4 e n.º 5, do Código Penal (praticado na pessoa da ofendida BB, sua companheira) devendo ser condenado nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima, incluindo a obrigação de afastamento da residência e do local de trabalho da mesma, devendo o seu cumprimento ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância e, ainda, na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica e de - um crime de violência doméstica, p. e p., pelo artigo 152.º, n.º 1, als. d) e e); n.º 2, al. a) e n.º 6, do Código Penal (praticado na pessoa da ofendida CC, sua filha) devendo ser condenado na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais e declaro cessada a medida coactiva que no âmbito do presente processo lhe foi aplicada. Sem taxa de justiça, nem custas, sendo que, os honorários devidos ao seu Ilustre defensor serão pagos nos termos e de acordo com a legislação em vigor. 2. Julgo totalmente improcedente, por não provado, o pedido de arbitramento às vítimas duma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 21.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09 e 82.º-A, do Código de Processo Penal.(…).” 2. Inconformado, o Ministério Público veio recorrer. 3. O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo - despacho proferido em 2.4.2024 , Ref 160435212. 4. Remetidos os autos a este Tribunal, nos termos e para os efeitos no art. 416º do C.P.P., foram os autos com vista à Ex.mª Senhora Procurador-Geral Adjunta que pugnou pela notificação do recorrente para, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417º, nº3, do CPP, completar as conclusões do recurso que apresentou, o que foi deferido. Em 8.6.2024, o recorrente apresentou novas conclusões, que se transcrevem – Ref 34382: III – CONCLUSÕES: 1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida em 28.09.2023 e depositada a 14.02.2024, que absolveu o arguido AA da prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas b) e c), 2, alínea a), 4 e 5 do Cód. Penal, praticado na pessoa da vítima BB e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), 2, alínea a) e 6, do Cód. Penal, na pessoa da vítima CC, discordando-se da decisão proferida quer quanto à matéria de facto quer quanto à matéria de direito. 2. O Ministério Público não concorda com a sentença proferida no âmbito dos presentes autos, entendendo que a mesma enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 374.º, n.º 2 ex vi do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Cód. Proc. Penal, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal, bem como de erro de julgamento, por errada apreciação da prova, considerando-se terem sido incorrectamente julgados os factos dados como não provados sob os n.ºs 1 a 5, os quais deviam ter sido dados como provados (em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal). 3. Em sede de motivação da decisão de facto, o Tribunal a quo limitou-se a resumir o que foi referido pelo arguido para justificar os factos que foram dados como provados, e no que tange aos dados como não provados referiu, de forma singela, que “o depoimento prestado por DD (…) mãe da ofendida/queixosa BB, também não permitiu concluir de forma diversa da que supra se deixou expendida. Com efeito, a mesma afirmou que nunca viu o arguido praticar qualquer agressão física e relativamente a algumas expressões que a mesmo lhe ao imputadas na acusação não conseguiu situá-las temporalmente”. 4. Salvo o devido respeito, não concordamos com a decisão do Tribunal a quo, até porque a sentença padece da nulidade expressa no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), ambos do Cód. Proc. Penal, como passamos a demonstrar. 5. Por seu turno, o Supremo Tribunal de Justiça6 decidiu que “Na motivação o juiz deve prestar contas do julgamento que efetuou e explicar o iter cognoscitivo que percorreu para chegar à decisão do facto como provado ou não provado. Só na medida em que se exterioriza 6 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.06.2021, proferido no proc. n.º 24/19.4PBPTM.S1, relator António Gama, disponível em www.dgsi.pt.esse itinerário e se mostra esse caminho, é que a decisão cumpre o seu dever de fundamentação. Só no conhecimento desse itinerário pode o interessado decidir, em plena consciência, aceitar ou recorrer da decisão. (…)”. 6. Assim, e sintetizando, o julgador deve ter como principal preocupação a clareza, racionalidade e objectividade na motivação da sua decisão de modo a que o leitor – mormente, os intervenientes processuais – compreendam e percebam o raciocínio seguido e este possa, no limite, ser objecto de controlo. 7. Tal assim é porque a liberdade de que o julgador goza na apreciação da prova não pode ser confundida com um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova pode ser vista como uma operação emocional ou intuitiva, encontrando-se os seus limites nas regras da lógica, da razão e do senso comum, nas máximas da experiência e nos conhecimentos técnico-científicos. 8. Sintetizando as razões que nos levam a sustentar a nulidade da sentença, sempre diremos que, no caso sub judice, o tribunal recorrido limitou-se a indicar as provas analisadas, não tendo, porém, efectuado o necessário exame crítico das mesmas. 9. Com efeito, a este propósito o tribunal recorrido esclarece que formou a sua convicção, no que concerne ao apuramento da matéria fáctica, através das declarações prestadas pelo arguido, da recusa de depoimento da ofendida BB e do depoimento de DD. 10. E, no exame que faz a tais provas, limita-se a resumi-las, sem que de tal ponto conste a crítica que faz às mesmas ou uma análise concatenada da totalidade da prova produzida, isto é, o confronto entre as declarações do arguido e o depoimento da testemunha. 11. Pois que, no entender do Ministério Público, e, igualmente, da vasta jurisprudência a este propósito, aquilo que se impunha ao Tribunal a quo era, por outro lado, fazer uma apreciação e exame crítico e exaustivo das declarações do arguido e do depoimento da testemunha em ordem a aferir e a esclarecer quais os aspectos a considerar não provados e a razão para tal. 12. Dito de outro modo, deparando-se o Tribunal a quo com duas versões opostas acerca da mesma factualidade – a negação do arguido e o depoimento em sentido diverso da testemunha – impunha-se que, na apreciação de tais provas esclarecesse, de forma crítica e detalhada, os motivos que o levaram a conferir mais credibilidade a uma das versões. 13. E, no caso em apreço, facilmente se percebe que esse “processológico-mental” que o Tribunal a quo terá seguido não está plasmado na sentença, e o que da sentença consta entra em contradição com os elementos que constam do processo, gerando assim a já invocada nulidade, nos termos do artigo 374.º do Cód. Proc. Penal, por não terem sido considerados todos os elementos disponíveis para análise do julgador. 14. Concluindo, não tendo sido respeitados os requisitos legais da sentença expressos no artigo 374.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, foi este mesmo preceito violado, sendo, deste modo, nula a sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do Cód. Proc. Penal, devendo ser declarada em conformidade, o que se pugna. 15. Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal que “é nula a sentença: c) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”. 16. Como refere a mais variada Jurisprudência7, a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar. 17. Equivale isto a dizer que o tribunal tem que apreciar e pronunciar-se sobre todos os factos, relevantes para a decisão, constantes da acusação, da contestação ou que resultem da discussão da causa. 18. No caso vertente, e como se verá infra a propósito da apreciação da prova produzida, o Mmo. Juiz a quo ignorou por completo a apreciação de factos que resultaram da discussão da causa, mormente do depoimento da testemunha EE, pois que os mesmos não se mostram reflectidos quer nos factos dados como provados, quer nos dados como não provados. 7 Por todos, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.04.2021, proferido no proc. n.º 928/08.0TAVNF.G1.S1, relator Paulo Ferreira da Cunha, disponível em www.dgsi.pt. 19. Com efeito, o depoimento da testemunha EE foi extenso e detalhado, tendo o Tribunal a quo escrito, a propósito do mesmo, simplesmente que “(…) afirmou que nunca viu o arguido praticar qualquer agressão física”. 20. Ora, tal conclusão constitui uma omissão de pronúncia na medida em que, perante a totalidade do depoimento da referida testemunha, impunha-se ao Tribunal a quo que tomasse conhecimento da totalidade das questões por aquela suscitadas, apreciando-as criticamente com a demais prova produzida. 21. Concluindo, não tendo o tribunal recorrido apreciado os factos que resultaram da discussão da causa, foi o disposto no artigo 368.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal violado, sendo, deste modo, nula a sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal, devendo ser declarada em conformidade, o que se pugna. 22. Como vimos, resulta da motivação da decisão de facto que, para a formação da convicção do Tribunal, foi tido em consideração o depoimento prestado por DD, já que “(…) a mesma afirmou que nunca viu o arguido praticar qualquer agressão física e relativamente a algumas expressões que ao mesmo lhe ao imputadas na acusação não conseguiu situá-las temporalmente”. 23. Todavia, no entendimento do Ministério Público, tal conclusão traduz-se na errada apreciação da prova produzida. 24. Em concreto, o Tribunal a quo deu como não provado que “2. No dia 18 de Abril de 2020, quando a ofendida CC tinha três semanas de vida e acordou a chorar, o arguido dirigiu-se à menor, retirou-lhe a fralda e deu-lhe uma palmada que a atingiu nas nádegas, enquanto referiu «eu vou-te dar motivos para chorar»” e que “4. Em data não concretamente apurada, mas em Maio de 2020 o arguido tivesse abanado a ofendida CC e/ou que a tivesse colocado no sofá como se fosse um objecto e/ou que lhe tivesse dito «quando quiseres comes»”. 25. Porém, a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, concatenada com a demais prova constante dos autos, impunha uma decisão em sentido diverso 26. Por um lado, temos a negação por parte do arguido sem que este tenha, contudo, conferido qualquer explicação para o facto de a ex-companheira o acusar da prática de tais factos. 27. Com efeito, veja-se as declarações prestadas pelo arguido no dia 18.09.2023, minuto 09:28 até ao 12:10, em que referiu: Juiz Se em 18 de Abril de 2020, um ano depois, se quando a ofendida CC tinha três semanas se o senhor, se ela acordou a chorar e se o senhor, nesta altura já não vivia com ela, se o senhor lhe tirou a fralda e deu uma palmada e… se isto é verdade. Arguido É mentira. 28. Mas, por outro, temos o depoimento de EE que, deforma escorreita e sincera, relatou toda a factualidade que presenciou e, ainda, aquela que o próprio arguido lhe relatou. 29. Com efeito, na sessão do dia 18.09.2023, minuto 07:58 até ao 16:14, a testemunha EE referiu, em síntese, que: Procuradora Olhe, há pouco quando lhe perguntei se assistiu a agressões respondeu “à BB, não”. Pergunto-lhe se assistiu a agressões a alguém. Testemunha À filha, com dois meses, que a mandou para cima do sofá como se fosse uma saca de batatas. Juiz Não ouvi, minha senhora. Testemunha A menina com dois meses e pouco, a um domingo à tarde, a menina estava a chorar e ele pegou na menina e mandou com a menina para cima do sofá como se fosse um saco que nós mandamos de batatas. Juiz E a menina ficou magoada? Testemunha. Não. A menina não que o sofá é macio e ele mandou assim com a menina…Chorou, claro, como é evidente, com dois meses e pouco…e o que a menina tinha era uma otite que a mãe na segunda feira a levou para o hospital. Juiz Não ouvi. Testemunha A menina estava com uma otite que na segunda feira ela foi ao hospital onde a médica disse que a menina tinha uma otite. Juiz E a senhora considera isso uma agressão, é? Testemunha Diga? Juiz A senhora considera isso uma agressão? Testemunha Sim. Um bebé que se manda para cima de um sofá…tem que se ter um pouco de cuidado. Juiz Mas ela estava ao colo dele? Testemunha Do pai, sim. Juiz Estava a chorar? Testemunha Sim Juiz Sabe se ele quando a atirou para o sofá assim dessa forma disse alguma coisa? Testemunha Eu só lhe perguntei se estava certo. Juiz Não, a ele. Se ele disse alguma coisa. Testemunha Ele disse “só sabe é chorar”. E com pouco tempo de vida a mãe teve uma pega com ele à noite, que eu ouvi, porque ele deu uma palmada na menina. Com se calhar duas ou três semanas. Juiz Mas ouviu o quê? Testemunha Eu ouvi a mãe a estar a dizer-lhe “o que é que estás a fazer?” e…porque a menina estava a chorar. Juiz E sabe o que é que ele fez? Testemunha Eu perguntei o que é que se estava a passar e ela disse “ah, nada” e eu disse “não, alguma coisa foi” e ela disse “ah foi ele que deu uma palmada na menina”. E eu disse “opa o que é que tu fizeste à menina, AA?”, e ele disse “não, só lhe dei…eu não lhe bati, dei-lhe uma palmadinha para ela se calar”. Juiz Mas a senhora não viu esses factos, pois não? Testemunha Não. Procuradora Só aqui para precisar alguns aspectos porque fiquei com dúvidas daquilo que disse. Nesta situação quando a criança tinha duas, três semanas de vida, a senhora não viu a palmada, mas ouviu o barulho da discussão, é isso? Testemunha Sim. Procuradora E portanto quando ouviu essa discussão o que é que fez? Testemunha Perguntei…fui ao corredor e perguntei o que é que se estava a passar. Procuradora E foi aí que a sua filha lhe disse… Testemunha Ela primeiro disse-me que não era nada e eu disse “não nada, é alguma coisa. A esta hora da noite estarem a falar alto…” Procuradora Recorda-se mais ou menos que horas eram? Testemunha Não. Sei que já devia passar das duas da manhã, mas não me recordo, não posso precisar. Procuradora Portanto e depois foi quando ela lhe disse que tinha sido uma palmada. Ela especificou, detalhou como é que isso aconteceu? Testemunha A menina estava a chorar Procuradora Pronto, mas disse-lhe se foi por cima da roupa… Testemunha Por cima da fralda, com certeza Juiz Não, com certeza não, minha senhora. Testemunha Sim, a menina tinha a fralda tinha que ser por cima da fralda Procuradora E depois foi o próprio senhor AA que lhe disse “dei-lhe uma palmadinha para ela se calar”. Foi esta a expressão que usou... Testemunha Sim Procuradora Relativamente ao outro episódio, de mandá-la para o sofá, só para eu perceber, ele fez isso porque acriança estava a chorar. Testemunha Exacto. Procuradora E estava a chorar porque tinha uma otite, é isso? Testemunha Exacto. Um bebé com dois meses chora. Juiz Mas ele sabia na altura que ela tinha uma otite? Testemunha Não, só na segunda feira é que nós fomos. Mas um bebé chora. Juiz Pois chora, minha senhora, e consoante os choros os pais reagem de forma diferente. Testemunha Penso que com dois meses não se bate, não sei. Juiz Mas a bebé ficou magoada com esse acto? Testemunha Não, não ficou. Mas mandar-se uma criança para cima de um sofá… Juiz Oh minha senhora, depende da distância a que estiver do sofá, depende da forma como se manda, depende da forma como a criança cai, depende de muita coisa. A senhora é que estava lá, é que viu. Testemunha Eu estou a dizer mandou como se manda um saco. Não a pôs, um bebé põe-se num sítio, não se manda.~ Juiz Ou deixa-se cair, às vezes. Se eu deixar cai um bebé em cima da cama, qual é que é o problema para o bebé? Testemunha Acho que pode ser, se deixar cair Juiz Mas a que distância é que ele estava do sofá? Vamos lá, então. A que distância é que o Timóteo estava do sofá? Testemunha Ele estava sentado e manda a filha assim (gesto) Juiz Ah estava sentado? Testemunha E manda a filha para o lado. Juiz E manda a filha para o lado. Isso já é diferente daquilo que a senhora disse, está a ver? Testemunha Diferente como, senhor doutor juiz? Juiz Eu vou explicar. Eu acho que é diferente. Se eu estiver de pé a distância que vai de eu ter a filha nos braços para o sofá, é uma; se eu estiver sentado, a distância da minha filha que está nos braços para o sofá é outra, é muito menos de metade. Testemunha Sim, mas um…dá-me licença? Não é um objecto, um bebé, que se manda para um sofá. Juiz Quem é que estava presente na altura? Testemunha Eu Juiz Só a senhora? Testemunha Sim, que a minha filha… ele estava a ralhar com a menina e a minha filha saiu. Juiz Quem é que estava a ralhar com a menina? Testemunha Ele estava assim a ralhar para a menina se calar… Juiz Ele? Testemunha Sim, e a minha filha saiu para não se chatear, saiu Juiz Mas porque é que ele ralhava com a menina? Testemunha Não sei. (…) Testemunha Ele tão depressa estava bem com a menina. Se estava bem era muito meigo com a menina, se não estava bem disposto não tinha paciência. Juiz Mas a menina portava-se bem ou era muito chorona? Testemunha A menina só chorava se tinha dores ou fome. De resto não chorava, era um bebé que…normal. Juiz Dava boas noites? Testemunha Sim. Só acordava para beber o leitinho, de três em três horas, mais ou menos Juiz De três em três horas? Testemunha Sim, um bebé… de três em três horas aah tem que comer Juiz Até quando? ~ Testemunha Com dois meses? Juiz Até quando é que é esse regime de comida de três em três horas? Testemunha Não tem tempo, penso eu Juiz Toda a vida? Testemunha Em bebé, sim. Juiz Eu quero saber até quando é que a senhora acha que uma criança é um bebe. A senhora diz “até bebé, sim”. Testemunha Sim, seis/sete meses é um bebé. Juiz Seis/sete meses a acordar de três em três horas? Testemunha Não foi o caso dela, mas há muitas crianças que sim Juiz Então não foi o caso dela porquê? Testemunha Porque ela começou a aguentar até às seis da manhã. (…) 30. Assim como, na mesma sessão, do minuto 20:35 até ao 23:11 referiu que: Minuto 20:35 até 23:11 Procuradora Sim, só mais um esclarecimento…Dona EE, portanto. Já explicou que houve uma primeira interrupção do relacionamento em Agosto, que depois retomaram. Pergunto-lhe quando é que a relação entre os dois terminou de forma definitiva? Testemunha Foi em Junho. Foi quando foi em que ela disse a ele que saísse de uma vez por todas de casa. Quando foi por causa da menina. Juiz Oh dona EE, tem que me dizer o ano. Porque em Junho…todos os anos têm Junho Testemunha 2020 Procuradora Disse que a BB lhe disse que tinha que sair de casa, não percebi o resto. Testemunha Por causa de ele maltratar a menina. Procuradora Portanto foi na sequência então… Testemunha Vinha de ele a maltratar a ela, e depois à filha Juiz Oh minha senhora, vamos lá ter cuidado com as palavras. Mas maltratava a menina como? Testemunha Diga Juiz Como é que a senhora, diz que a sua filha disse par ele sair de casa porque maltratava a menina. Como é que ele maltratava a menina? Testemunha Com gritos. Gritava muito com a menina quando estava mal-humorado. Se estivesse bem… Juiz Olhe, mas eu não vivia com ele, não sei os dias que ele estava de bom humor Testemunha Nos não sabíamos quando é que estava bem nem mal… Juiz Mas a senhora é que viveu com ele! Testemunha Sim, mas estou a dizer…estava bem agora daqui… Juiz Oh minha senhora, não sabia porque não tinham a capacidade de adivinhar o futuro. Mas viveram, aquilo que a senhora está a dizer agora que é passado Testemunha Exactamente Juiz Eu gostava de saber numa semana quantos dias é que ele estava bem-disposto ou não, ou se estava sempre maldisposto. Há pessoas que até estão sempre maldispostas. Testemunha Senhor juiz, podia estar bem de manhã e à tarde já estava mal, ou vice-versa. Não havia… Juiz Mas a senhora sabe com que ocorrência é que isso aconteceu? Testemunha Muitas vezes durante a semana, muitas. Juiz No seu entender, o maltratar a menina é gritar com ela? Testemunha Sim. Além das duas vezes de agressão física… Juiz Mas qual agressão física? Testemunha De mandar ao sofá Juiz Essa é uma que a senhora considera agressão física Testemunha E a outra de lhe ter dado a palmadinha, a palmada com ela com duas semanas. E a maneira de falar com um bebé Juiz Está bem. Procuradora Pergunto-lhe. Disse, era a maneira de falar com a bebé. Se pudesse descrever de que modo é que era… Juiz Não está nos autos, não consta dos autos, não vejo nada disso sem ser as agressões, alegadas.” 31. Com efeito, e relativamente ao episódio da fralda, salienta-se que a testemunha, espontaneamente referiu não ter presenciado a ocorrência dos factos. E tal deve ser salientado na medida em que confere total credibilidade e coerência ao seu depoimento pois que, sabendo que no interior da residência se encontrava a própria, o arguido e a filha, podia ter optado por dizer que viu tal facto suceder, o que não fez. 32. Depois, é de referir que a testemunha explicou ,de forma detalhada, o que sucedeu nessa noite: a discussão entre a filha e o arguido – a qual ouviu por se encontrar na mesma residência que aqueles – e, depois, a conversa que teve com a filha e com o arguido, no âmbito da qual este último lhe disse “não, só lhe dei…eu não lhe bati, dei-lhe uma palmadinha para ela se calar”. Tendo igualmente referido que ouviu a bebé a chorar. 33. Ora, se é certo que do depoimento da referida testemunha se extrai que esta não presenciou o sucedido, também é certo que o relato que faz daquilo que presenciou permite, através das regras da experiência comum, dar como provado tal facto, considerando que a testemunha ouviu uma discussão a meio da noite, ouviu a bebé a chorar e decidiu ir ver o que se passava, ocasião em que foi confrontada com a confissão do arguido. 34. Impunha-se, a este respeito, uma pronúncia do Tribunal a quo acerca das razões que o levaram a desconsiderar o depoimento desta testemunha neste segmento, o que não sucedeu, dado que se limitou a referir que a testemunha “(…) afirmou que nunca viu o arguido praticar qualquer agressão física (…)”, omitindo por completo a análise do depoimento da referida testemunha. 35. Depois, no que concerne à situação do sofá, igualmente mal andou o Tribunal a quo ao dar como não provado tal facto, uma vez que a mesma não merece qualquer dúvida. 36. A testemunha EE referiu, de forma assertiva, coerente e concisa, tudo o que sucedeu, tendo mencionado que a bebé tinha dois meses e meio, estava a chorar e o arguido atirou-a para o sofá “como se fosse um saco de batatas”, o que fez ao mesmo tempo que disse “só sabe é chorar”. 37. Ora, a existência de duas versões contraditórias a este respeito não implica, necessariamente, que se dê o facto como não provado,pois aquilo que se exigia era uma análise crítica da diferente prova produzida e que, de forma detalhada, explique por que razão confere maior credibilidade a uma das versões em confronto. 38. Aliás, aquilo que se impunha ao julgador era, como já se disse, da análise da prova acima indicada, concluir pela prova ou não do facto em causa e, depois, caso considerasse o mesmo provado, enquadrá-lo jurídico-penalmente, designadamente pronunciando-se acerca da possibilidade de o mesmo configurar a prática de uma agressão física. 39. Todavia, o Tribunal a quo “saltou” esse passo lógico, não analisou a prova produzida, não explicitou de forma detalhada por que razão desconsiderou in totum o depoimento da testemunha EE e limitou-se a referir que esta não presenciou qualquer agressão física, consideração que já encerra em si mesma o entendimento do Tribunal a quo em relação ao sucedido, isto é, se desferir uma palmada ou atirar um bebé para um sofá configura uma agressão. 40. Pelo que, e sintetizando, considerando o teor dos excertos acima transcritos, o Tribunal a quo devia, assim, ter dado como provados os factos constantes dos pontos 2 e 4, do segmento 2.2. nos seguintes termos: «2. Em dia não concretamente apurado, quando a ofendida CC tinha três semanas de vida e acordou a chorar, o arguido dirigiu-se à menor e deu-lhe uma palmada que a atingiu nas nádegas. 4. Em data não concretamente apurada, quando a ofendida CC tinha dois meses e meio de vida, o arguido, que se encontrava sentado no sofá com aquela ao colo, arremessou-a para o sofá como se fosse um objecto, ao mesmo tempo que disse “só sabe é chorar”.» 41. Por fim, no que diz respeito ao enquadramento jurídico dos sobreditos factos, no entender do Ministério Público inexistem quaisquer dúvidas que os mesmos consubstanciam a prática do crime de violência doméstica. 42. O aludido crime tutela a saúde física, psíquica, mental e moral e devem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visem atingir directamente o corpo da vítima e no conceito de maus tratos psíquicos as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas. 43. Ora, considerando o que acima se disse acerca dos factos dados como provados, cremos que os sobreditos comportamentos são susceptíveis de atingir de forma grave e significativa a integridade física e psíquica da bebé vítima, CC. 44. Pois, para qualquer cidadão médio e medianamente informado é óbvia a especial fragilidade da saúde física e psico-emocional de um bebé, daí que o comportamento do arguido não pode ser encarado como expressão da sua imaturidade ou do cansaço e frustração típicos dos primeiros meses de vida como pai, mas antes como um verdadeiro mau-trato físico. 45. Impõe-se, na análise em causa, terem consideração que, no chamado 4.ºtrimestre da gravidez, assistimos à adaptação do bebé à vida extra-uterina, a uma imaturidade na conservação do calor, à necessidade de rastrear uma multiplicidade de malformações, ao risco aumentado de infecções graves, a alterações hormonais transitórias, à adaptação a uma nova forma de alimentação, à imaturidade de todos os órgãos, a alterações de sono e ao choro excessivo. 46. E que, como tal, estamos perante um ser vivo frágil e altamente dependente dos seus cuidadores para sobreviver e adaptar-se ao meio exterior. 47. Pelo que, independentemente dos sérios desafios que o 4.º trimestre acarreta para os progenitores, aquilo que não se pode permitir é que estes ajam sobre os bebés com uma postura de total desprezo e desrespeito. 48. O que sucede se, por força de um choro incontrolável a meio da noite, optarem por desferir uma palmada no rabo de um bebé com duas semanas de vida, ainda que o façam por cima da fralda. 49. Ou se, igualmente por força de um choro incontrolável (motivado por um problema de saúde), escolherem atirar o bebé para o sofá, como se de um objecto se tratasse, acompanhado do desabafo “só sabe é chorar”. 50. Pois que, tais comportamentos, para além de serem aptos a provocar um stress e terror emocional e psicológico, acarretam riscos de lesões físicas sérias, como sejam as lesões cerebrais, abdominais, fraturas de variados graus ou intensidade, lesões oculares, entre outras. 51. Pelo que, atento o exposto, cremos inexistirem quaisquer dúvidas que o comportamento adoptado pelo arguido, configura a prática do crime de violência doméstica sobre a bebé CC. 52. Assim, e concluindo, mostrando-se preenchidos todos os elementos do tipo de crime de violência doméstica, devendo, por conseguinte, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, para além das alterações acima indicadas no que concerne à matéria de facto, condene o arguido pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), 2, alínea a) e 6 do Cód. Penal. Pelo exposto, deve ser declarada a nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 374.º, n.º 2 ex vi do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Cód. Proc. Penal, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º,n.º1,alínea c)do Cód.Proc. Penal, bem como de erro de julgamento, por errada apreciação da prova, considerando-se terem sido incorrectamente julgados os factos dados como não provados sob os n.ºs 2 e 4, os quais deviam ter sido dados como provados (em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal). E, em consequência, ser a sentença recorrida substituída por outra que julgue provados os factos n.ºs 2 e 4 e, em consequência, condene o arguido pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), 2, alínea a) e 6 do Cód. Penal. Vossas Excelências, porém, farão a costumada, JUSTIÇA!” No seu Parecer, a Senhora Procuradora Geral Adjunta, subscrevendo a argumentação e conclusões constantes do recurso apresentado, pugnou pela sua procedência. Notificado, os termos e para os efeitos do artigo 417º, nº2, o arguido não apresentou resposta. Após exame preliminar, foram colhidos os vistos legais. Foram os autos à conferência. II Fundamentação 1. Conforme jurisprudência pacífica o Supremo Tribunal de Justiça – vide, por todos e dada a demais jurisprudência nele referida, Ac. de 28.4.99, CJ/STJ, 1999, tomo 2, página 196 -, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, isto sem prejuízo do conhecimento oficioso das questõe Assim, face à conclusões apresentadas, é (são) a(s) seguinte(s) a(s) questão (ões) que constitui ( em) o objecto do recurso: - Da nulidade da sentença: * por falta de fundamentação, na vertente de falta de análise critica da prova – art.379º, nº1, al. a) e 374º, nº2, ambos do CPP; * por omissão de pronúncia – nos termos do disposto no artigo 379º, nº1, al. c), do CPP. - Da impugnação da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do CPP. 2. A decisão sob recurso Transcreve-se a decisão recorrida, nos segmentos relevantes: “(…) 2. Fundamentação 2.1. Matéria de facto provada Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido AA e BB conheceram-se no mês de … de 2018 e, posteriormente, iniciaram uma relação de namoro um com o outro, em data não concretamente apurada de finais de 2018 a … de 2019, passando, em tal período temporal, a viver um com o outro em comunhão de mesa, leito e habitação, como se de marido e mulher se tratassem. 2. Fixando residência na .... 3. Da manutenção de relações sexuais um com o outro nasceu, no dia ... de ... de 2020, CC. 4. o arguido actuou, sempre, de forma livre, voluntária e consciente. Mais se apurou que 5. O arguido AA é oriundo de um núcleo familiar que perceciona como lhe tendo proporcionado condições potenciadoras da interiorização de um quadro de valores socialmente adaptado. O arguido é o mais novo de uma fratria de 3 irmãos. Os progenitores separaram-se quando contava cerca de 14 anos de idade, tendo o arguido ficado aos cuidados do progenitor e dos avós paternos até cerca dos 20 anos, idade com a qual se autonomizou. Frequentou o ensino até cerca dos 18 anos, tendo concluído o 9.º ano de escolaridade, após o que iniciou a sua carreira profissional, desenvolvida maioritariamente no ramo da prestação dos serviços de …, para a qual obteve a respetiva licença. Estabeleceu algumas relações afetivas significativas, a mais recente das quais com a ofendida BB. Tem um filho de um relacionamento anterior, atualmente com 8 anos, quanto ao qual verbaliza afecto e proximidade. O arguido AA e BB iniciaram relacionamento afetivo em … de 2018, tendo coabitado na residência da ofendida, onde também habitava a mãe desta, num primeiro período entre finais de 2018 a … de 2019, e, num segundo momento, entre … e …. de 2020. Desse relacionamento nasceu uma filha em … de 2020. O arguido desvaloriza a relação que manteve com a ofendida, não lhe atribuindo significado tão profundo quanto esta. Considera o termo da relação foi precipitado por comportamentos assumidos pela ofendida e a sua progenitora com o objetivo de lhe criarem instabilidade. A ofendida imputa a separação aos comportamentos desajustados assumidos pelo arguido para com ela e para com a filha do par. Após o termo da relação com a ofendida, o arguido passou a residir com a sua mãe na habitação desta, na morada acima indicada. Foi exercendo a profissão de supervisor de segurança em eventos, actividade que no contexto da pandemia de COVID 19 conheceu uma redução drástica. Acresce que, mais recentemente, não lhe foi renovada a licença para o exercício desta atividade. Os poucos contactos que desde então tem mantido com a ofendida BB têm-se processado com irregularidade e tendo como objetivo o contacto do arguido com a sua filha. Do que o arguido nos refere e é corroborado pela sua progenitora e pela ofendida, têm-se decorrido sem registo de comportamentos desajustados. Desde Fevereiro que não se regista qualquer tipo de contacto pessoal entre ambos, o que o arguido justifica com base na dificuldade e custos nas deslocações. O arguido não nutre qualquer sentimento de afeto pela ofendida e não pretende manter com a mesma qualquer tipo de contacto que exceda o estritamente necessário ao que se refere à filha comum, sendo por esta verbalizada idêntica intenção. O arguido mantém após separação um novo relacionamento afetivo, que considera gratificante e se processa, de acordo com o que nos refere e a progenitora corrobora, sem conflituosidade. De acordo com o que indica, o par planeia iniciar vida em comum. Desde Abril, o arguido exerce a atividade profissional de … num estabelecimento de …, auferindo um salário líquido no valor de 790,00 euros mensais. Contribui mensalmente com cerca de 120,00 euros para as despesas do agregado familiar. Ao nível das suas características pessoais, o arguido adota um discurso de acordo com a desejabilidade social, identificando condutas do ponto de vista normativo. O arguido compreende a atual situação jurídico processual e evidencia capacidade para avaliar a ilicitude dos comportamentos em causa, formulando juízo crítico quanto a factos similares àqueles que deram origem ao presente processo. A sua atitude é de tendencial minimização da gravidade da factualidade criminal que lhe é imputada. Não há registo de qualquer nova conduta alegadamente delituosa do arguido no que concerne às ofendidas, conforme resulta da leitura das peças processuais remetidas pelo Tribunal. Revelou capacidade de cumprimento das injunções impostas no quadro da suspensão provisória do presente processo, tendo comparecido às entrevistas com o técnico de reinserção social e cumprido programa de tratamento no ..., não tendo logrado, contudo, cumprir a injunção pecuniária a que também se encontrava obrigado, mesmo após prorrogação do prazo. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais registados contra si: i) por sentença transitada em julgado em 04.01.2022 e pela prática em 08.09.2020 dos crimes de dano e de ofensa à integridade física simples foi o referido arguido condenado na pena única de 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,5º, a qual, posteriormente foi substituída por igual número de horas de trabalho a favor da comunidade e que em 08.06.2022 foi julgada etinta pelo cumprimento. Nesse processo comum com o nº 533/20.2PATVD da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Torres Vedras – Juiz 2, a execução da medida de trabalho a favor da comunidade decorreu de modo regular. Do contacto estabelecido com os OPC’s elemento não resulta a associação do arguido a outras condutas delituosas recentes. Em conclusão, o arguido AA apresenta um percurso de vida em que se encontram presentes indicadores que apontam para um processo de socialização regular, nas diversas vertentes consideradas. O relacionamento com BB e as circunstâncias do seu termo, a par dos condicionalismos de natureza laboral e económica vivenciados durante o período da pandemia, constituíram factores de desestabilização, com acréscimo de dificuldades, em via de superação, período em que o apoio da progenitora se tem revelado muito importante. Não tem mantido contactos com a ofendida, que não pretende retomar, o que corresponde ao desejo expresso por esta, com exceção do que diga respeito à filha de ambos. Não há registo de qualquer novo comportamento do arguido que configure conduta criminal no que respeita às ofendidas. Cumpriu as injunções impostas no quadro da suspensão provisória do presente processo, embora não tenha logrado cumprir a injunção pecuniária a que se encontrava obrigado. 2.2. Factos não provados Para além dos que ficaram descritos não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente, não se provou que: 1. Em data não concretamente apurada do mês de … de 2019, à noite, quando se encontravam na cama do quarto da supra mencionada habitação, a arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe “és burra, ciumenta e possessiva” e/ou que lhe tivesse dito que a mesma deveria abortar, que havia engravidado de propósito, usando-o para tal fim. 2. No dia 18 de Abril de 2020, quando a ofendida CC tinha três semanas de vida e acordou a chorar, o arguido dirigiu-se à menor, retirou-lhe a fralda e deu-lhe uma palmada que a atingiu nas nádegas, enquanto referiu “eu vou-te dar motivos para chorar”. 3. Nessa ocasião, a ofendida BB tivesse colocou a mão à frente da mão do arguido para que não perpetuasse a sua actuação e/ou que o arguido tivesse agarrado a mão daquela, com força, torcendo-a e retirando-a para trás do seu corpo. 4. Em data na concretamente apurada, mas em Maio de 2020 o arguido tivesse abanadoa ofendida CC e/ou que a tivesse colocado no sofá como se fosse um objecto e/ou que lhe tivesse dito “quando quiseres comes”. 5. Com as condutas descritas em 2.1. supra, o arguido quisesse e conseguisse molestar o corpo e a saúde, física e psíquica, de BB e da sua filha CC e/ou ofender a sua honra e/ou submetê-las a um tratamento humanamente degradante, enquanto pessoas, com total desrespeito pela sua personalidade e auto-estima e tenra idade, bem sabendo que, assim, violava os especiais deveres de respeito, solidariedade e cooperação que lhe eram devidos face a comunhão de vida e aos laços de sangue que os ligavam, bem sabendo que o fazia na habitação comum do casal e na presença da menor. * Os factos não compreendidos em 2.1. (factos provados) e em 2.2. (factos não provados) ou são conclusivos, e/ou mostram-se prejudicados pelos ali expendidos e/ou não revelam qualquer interesse para a boa decisão da causa. * 2.3. Motivação da decisão de facto 2.3.1. Quanto ao apuramento da matéria fáctica supra vertida o Tribunal formou a sua convicção: - nas declarações prestadas pelo arguido AA em audiência de discussão e julgamento, o qual, apenas confirmou o que se deixou vertido em 2.1.1º a 4º supra negando que alguma vez tivesse agredido (verbal ou fisicamente) a ofendida BB, sua companheira ou a ofendida CC, sua filha, pelo que, para além do que já se deixou vertido, tais declarações relevaram para aferir da sua actual situação familiar e socioeconómica cotejadas que foram neste aspecto com o teor do relatório social elaborado pela DGRSP e que se mostra junto a fls. 387 a 391 dos autos e com o teor da cópia actualizada do seu certificado de registo criminal junta a fls. fls. 397 a 399 dos autos (conf. 2.1.5º supra). Por outro lado, a ofendida/queixosa BB, em audiência de discussão e julgamento, recusou prestar depoimento nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 134º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal e afirmou, expressamente, por si e na qualidade de mãe da ofendida CC renunciar à indemnização a que alude o art.º 21.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09. O depoimento prestado por DD (com 65 anos de idade, reformada (trabalhou como administrativa) e mãe da ofendida/queixosa BB), também não permitiu concluir de forma diversa da que supra se deixou expendida. Com efeito, a mesma afirmou que nunca viu o arguido praticar qualquer agressão física e relativamente a algumas expressões que ao mesmo lhe ao imputadas na acusação não conseguiu situá-las temporalmente. Assim, tal depoimento desprovido da produção de qualquer outra prova (pericial, documental ou testemunhal) e maxime na ausência do testemunho da sua filha, não permitiu ultrapassar o crivo do in dubio pro reo infra melhor referenciado (vide, 2.3.2 infra). Finalmente, o depoimento prestado FF (com 37 anos de idade, conhecia a ofendida BB das saídas à noite que conjuntamente com aquela fazia) revelou-se totalmente inócuo. Por último, a demais prova documental aos autos junta, designadamente, de fls. 2/5, 29/30, 31, 32/33, 47/78, 100/102 e 181/182 dos autos quando cotejada com a demais prova supra enunciada não permitiu conclusão diversa daquela que por este Tribunal foi assumida. * 2.3.2. Os factos não provados assim foram considerados por, na convicção do Tribunal, a prova produzida não ter conduzido a diversa qualificação dos mesmos, evitando-se aqui repetir o por nós atrás expendido, a tal propósito. Quanto a tudo (factos não provados), importa não esquecer que “em Direito Penal, a prova para condenação deve ser plena, do mesmo passo que a dúvida determina a absolvição, sendo este o efeito necessário da presunção da inocência” – vd. Acórdão da Relação de Évora de 18/10/1988, BMJ, 380º-558. Com efeito, a primeira grande incidência do princípio da presunção de inocência do arguido (entre outras de menor alcance) que cumpre destacar é na matéria da prova em processo penal, decorrendo daquele princípio, fundamentalmente: a inexistência de um ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem que provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo (expressão cunhada por Stubel); e ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele. Na verdade e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido (consagrado constitucionalmente no nº 2 do artº 32º da CRP (e ainda nos termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem)) isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação – neste sentido, vd. Rui Patrício “O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português”, AAFDL, Lisboa, 2000, pág. 93. A tal acresce que no que concerne à apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento (os factos dados como não provados em 2.2. supra), o Tribunal, em corolário do supra expendido, fez uso do princípio in dubio pro reo, o qual estabelece que: “ (...) na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido. É um princípio de prova que vigora em geral (...)” – vd. Acórdão do STJ de 10/05/1995, Proc. nº 47764, cit. no CPP Anotado por Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, I Vol., 1996, pág. 550. Com efeito, “não pode condenar-se um arguido em simples presunções, que não são meios de prova, mas simples meios lógicos ou mentais. As presunções da culpa têm de haver-se como banidas em processo penal, face ao disposto no artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa” (vd. Acórdão do STJ, de 07/11/1990, Proc. nº 41294, 3ª secção, ob. cit., pág. 542) e, por outro lado, “ a livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com a apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova” – vd. Figueiredo Dias, ob. cit. e Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Coimbra, 1988, pág. 228 – não esquecendo, como se deixou dito, que “em processo penal, no domínio da prova, a dúvida sobre os elementos constitutivos da infracção resolve-se a favor do réu, funcionando o princípio in dubio pro reo” (vd. Acórdão do STJ de 19/12/1962, BMJ 122º-464). Sobre este tema, vide, ainda, Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 1986, págs. 257 e ss., Eduardo Correia, “Le preuves en droit penal portugais”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XV, 1967, págs. 1 a 52 e Acórdão nº 1124/96 do tribunal Constitucional de 19/11/96, publicado no D.R., II série, nº 31, de 06/02/1997, pág. 1566. Aqui chegados importa, igualmente, dizer que segundo o art.º 127º do Código de Processo Penal (principio da livre apreciação da prova) “salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” ou seja, o Tribunal é livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção. Não obstante tal, essa apreciação não pode ser arbitrária. É que, como escreve o Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202 e 203, “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo”. Prossegue o citado autor, afirmando que “a livre ou íntima convicção do juiz, de que se fala a este propósito não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” Uma tal convicção existirá só e quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, o que, in casu, não sucedeu quanto ao imputar ao arguido a prática dos factos considerados como não provados. * Relativamente à fundamentação de facto entendemos que o que se deixa dito basta para dar cumprimento integral ao disposto no art.º 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, já que como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/1997, in, CJSTJ, tomo I, pág. 172 e segs. “o artº 372º do Código de Processo Penal não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas serviram para formar a convicção do Tribunal, não impondo a lei a menção das inferências injuntivas levadas a cabo pelo Tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contra provas”, o que ainda assim foi feito por este Tribunal e quanto ao núcleo essencial dos factos em apreciação. * 2.4. Enquadramento Jurídico Penal 2.4.1. Conforme se deixou dito o arguido AA encontra-se acusado da prática em autoria material, na sua forma consumada e em concurso efectivo de: - um crime de violência doméstica, p. e p., pelo artigo 152.º, n.º 1, als. b) e c); n.º 2, al. a); n.º 4 e n.º 5, do Código Penal (praticado na pessoa da ofendida BB, sua companheira) devendo ser condenado nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima, incluindo a obrigação de afastamento da residência e do local de trabalho da mesma, devendo o seu cumprimento ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância e, ainda, na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica e de - um crime de violência doméstica, p. e p., pelo artigo 152.º, n.º 1, als. d) e e); n.º 2, al. a) e n.º 6, do Código Penal (praticado na pessoa da ofendida CC, sua filha) devendo ser condenado na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais. Dispõe-se no artigo 152.º do Código Penal que: Artigo 152.º Violência doméstica 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.» O artigo acabado de citar tutela a protecção da saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser ofendido por toda a multiplicidade de comportamentos que afectam a dignidade pessoal do cônjuge ou de pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, mesmo sem coabitação. Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos. Trata-se de um crime específico, que impõe ao agente uma determinada relação com o agente passivo, e de execução não vinculada, podendo os maus-tratos físicos e psíquicos consistir nas mais variadas acções ou omissões. Seguindo a corrente jurisprudencial maioritária e mais recente dos nossos tribunais superiores, à realização do crime de maus tratos (lei antiga) não bastava, por regra, uma acção isolada do agente, sendo necessária uma acção plúrima e reiterada, com uma proximidade temporal entre os vários actos ofensivos, embora não se exigisse uma situação de habitualidade. Todavia, a regra era excepcionada pela verificação de uma única acção agressiva se ela fosse suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física, emocional ou psíquica da vítima. Em suma, para a realização do crime era necessário, pois, que o agente reiterasse o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastaria para integrar o crime quando assumisse uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado. É também esta a orientação que subjaz à configuração típica do novo artigo 152.º, resultante da reforma introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, sendo que o inciso da nova lei «de modo reiterado ou não» não deixa agora qualquer dúvida quanto à posição firmada pelo legislador de pôr cobro ao dissídio doutrinal e jurisprudencial sobre a existência ou não da reiteração como elemento objectivo típico de verificação necessária, exigindo o tipo de crime, epigrafado de «violência doméstica», a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015, processo nº 469/13.3PBAMD.L1-9 (relator João Abrunhosa de Carvalho), disponível na base de dados da DGSI: «Os maus-tratos previstos neste tipo são os actos que, pelo seu carácter violento sejam, por si só, ou conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física e psíquica da vítima, ou, noutra formulação, são os actos que provocam “… lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral…”. O bem jurídico que o tipo da violência doméstica visa proteger é a saúde, enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão. O dolo exigido, que, para alguns, é variável, em função da espécie de comportamento do agente, há-de sempre abarcar, pelo menos, o dolo de perigo da afectação da saúde, no sentido supra exposto e “… o conhecimento da relação de protecção-subordinação e da menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo.”. Uma vez que este tipo abarca condutas que são também puníveis por outros tipos legais, neste caso, as ofensas à integridade física,, torna-se necessário distinguir, com um mínimo de segurança, quais as condutas que integram um e outros. Para que integre a violência doméstica, a acção do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que, “… seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. …”. (nosso o destaque a negrito) Ou, como se diz no acórdão do STJ de 14/11/1997: “…a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente.…”. Ou como afirma Plácido Conde Fernandes, “... só com a intensidade do desvalor da acção e do resultado que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana …” se preenche o conceito de maus-tratos pressuposto neste tipo legal.» (fim de citação e de onde foram eliminadas as notas de pé de página, sendo nosso o destaque a negrito). Revertendo ao caso dos autos e aplicando os ensinamentos supra vertidos, dúvidas não existem que os factos provados quando cotejados com os que foram considerados não provados (conf. 2.1. e 2.2 supra que aqui se evitam de repetir) não consubstanciam a prática pelo arguido na pessoa das ofendidas do sobredito tipo de crime (violência doméstica), nem de qualquer outro, pelo que, improcede, in totum, a acusação imputada nestes autos ao arguido, o que determina a sua consequente absolvição. Finalmente, face ao supra determinado improcede o pedido de arbitramento às vítimas de qualquer quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 21.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09 e 82.º-A, do Código de Processo Penal, sendo que, como, igualmente, vimos, a ofendida BB, por si e na qualidade de mãe da ofendida CC veio expressamente renunciar à indemnização a que alude o art.º 21.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09 *(…).” 3. Decidindo Nos termos do preceituado no artigo 428º do CPP, “As relações de facto e de direito”. No recurso suscitam-se questões de facto e de direito. - Da nulidade da sentença: * por falta de fundamentação, na vertente de falta de análise critica da prova – art.379º, nº1, al. a) e 374º, nº2, ambos do CPP; * por omissão de pronúncia – nos termos do disposto no artigo 379º, nº1, al. c), do CPP. A obrigação de fundamentação das decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente está consagrada constitucionalmente – artigo 205º, nº1, do C.R.P.. Em conformidade com o supra referido comando, ao nível da lei ordinária, em processo penal, dispõe o artigo 97º, nº5, do CPP que os acto decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito. E, no que toca às sentenças, existe uma maior exigência no que toca à fundamentação. Assim, dispõe o artigo 374º do CPP, sob a epígrafe Requisitos da sentença, no seu nº2, que: “2- Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal…”. Só desta forma fica verdadeiramente garantido o direito ao recurso. Por isso, nos termos do artigo 379º, nº1, alínea a), do C.P.P., o desrespeito dos comandos, constitucional e legal, acabados de referir determina a nulidade da sentença. Dispõe o artigo 379.ºdo CPP que:: Nulidade da sentença 1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º 3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.” Alega o recorrente que a decisão recorrida elenca os meios de prova, declarações do arguido e depoimento da testemunha de nome EE, nos quais baseou a sua convicção, resumiu tais depoimentos mas não efectuou uma análise critica dos mesmos.~ Mais alega que as declarações do arguido e o depoimento da testemunha de nome EE foram em sentido diferentes, pelo que se impunha que tivesse o Tribunal a quo explicado porque deu credibilidade a uma das versões em detrimento da outra. Por fim, afirma o recorrente que o Tribunal não se pronunciou sobre a totalidade do extenso depoimento da testemunha de nome EE e das questões nele suscitadas, verificando-se que incorreu em omissão de pronúncia. Vejamos: Na decisão recorrida verteu-se que o arguido “ apenas confirmou o que se deixou vertido m 2.11ª a 4ª negando que alguma vez tivesse agredido ( verbal ou fisicamente) a ofendida BB, sua companheira ou a ofendida CC, sua filha…”. Mais se referiu que o depoimento da testemunha de nome EE “também não permitiu concluir de forma diversa da que supra se deixou expendida. Com efeito, a mesma afirmou que nunca viu o arguido praticar qualquer agressão física e relativamente a algumas expressões que ao mesmo lhe são imputadas na acusação não conseguiu situá-las temporalmente. Assim, tal depoimento desprovido da produção de qualquer outra prova (pericial, documental ou testemunhal) e máxime na ausência do testemunho da sua filha, não conseguiu ultrapassar o crivo do in dúbio pro reo infra melhor referenciado ( vide v, 2.3.2 infra).”. Ora, no que toca aos factos vertidos nos pontos 5 e 6 da acusação ( ponto 1 dos factos dados como não provados ), concorda este Tribunal que tal fundamentação é bastante. Mas, salvo melhor entendimento, o mesmo não se entende quanto aos pontos 7 a 12 da acusação ( pontos 2 a 5 dos factos dados como não provados). Quanto a estes, impunha-se que o Tribunal a quo analisasse a prova produzida sobre os concretos factos que são imputados ao arguido: se deu ou não uma palmada na filha e disse “eu vou dar-te motivos para chorar”, se torceu ou não a mão da mãe da filha, se abanou ou não a filha após o que a colocou no sofá e disse “quando quiseres comes”. E, havendo diferentes versões sobre os mencionados factos, cumpria que fosse dada credibilidade a uma delas em detrimento da outra. E só então podia o Tribunal a quo concluir se se mostravam, ou não, preenchidos os elementos objectivo e subjectivo dos crimes imputados ao arguido ou de qualquer outro crime. Ora, do texto da sentença não consta tal percurso, não consta, de forma minimamente desenvolvida, a análise critica das declarações do arguido e do depoimento da testemunha supra mencionada, não consta o raciocínio seguido pelo Tribunal. Em conformidade, como alega o recorrente, a sentença é nula por falta de fundamentação, na vertente de omissão de análise critica da prova. Há que julgar provido o recurso, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso. III Dispositivo Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, declarar nula a sentença proferida nestes autos, por falta de fundamentação, na vertente de falta de apreciação critica da prova, determinando-se que o Tribunal “a quo” profira nova sentença sanando a referida nulidade. Sem tributação. Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora e primeira signatária. Lisboa, de Outubro de 2024 Cristina Santana Ivo Rosa Marisa Arnedo |