Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
71/21.6TELSB-E.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: FRAUDE FISCAL
BRANQUIAMENTO DE CAPITAIS
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL CENTRAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
BUSCAS EM ESCRITÓRIO DE ADVOGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Estando em causa nos autos principais de inquérito, além do crime de fraude fiscal, também o crime de branqueamento de capitais, verificado estava já um dos pressupostos da competência do TCIC.

A lei não define o conceito de “infrações económico-financeiras” mas, “criminalidade económico-financeira será aquela que viola os bens jurídicos que emergem da regulação constitucional e legal da realidade económico financeira- obtenção, gestão e dispêndio de meios financeiros públicos: são estes os bens jurídicos a tutelar”, “deverão por isso ser aqui incluídos os crimes contra ou cometidos por o sector empresarial público ou privado, bem como o direito tributário, o direito fiscal, e a atividade bancária ou parabancária, a atividade das seguradoras, e por fim dos fundos e valores mobiliários”.

Visto que a acção que conforma o crime de fraude fiscal qualificada causa prejuízo financeiro ao Estado, porquanto se traduz numa diminuição de receitas tributárias, integra as infracções desta natureza.

E, no caso em apreço estamos também perante infracção (indiciariamente) cometida de forma organizada e de dimensão internacional ou transnacional, sendo que a expressão “de forma organizada” utilizada no art. 120º nº 1 da LOSJ e no art. 58º nº 1 do EMP tem que ver com a complexidade, com a tecnicidade e com a sofisticação e racionalidade dos meios e instrumentos utilizados no cometimento e na dissimulação do crime e não com a necessária presença de uma associação criminosa.

Por outro lado, a dimensão internacional ou transnacional dos crimes decorre da circunstância de terem sido cometidos em mais de um Estado ou, tendo sido cometidos num único Estado, uma parte relevante da sua preparação, planeamento, direcção ou controlo teve lugar noutro Estado, ou envolveu uma organização criminosa que pratique crimes em mais de um Estado , ou produzam efeitos substanciais noutro Estado.

E, tendo, a actividade criminosa, ainda que indiciariamente, ocorrido em comarcas pertencentes à área de competência de diferentes Tribunais da Relação a competência para o exercício das funções jurisdicionais relativas ao inquérito cabe ao Tribunal Central de Instrução Criminal.

A busca em escritório de advogado é nula, se não for presidida pessoalmente pelo juiz mas, se a certidão emitida pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados atesta que à data da diligência o advogado mencionado não tinha domicílio profissional na morada visada na busca e nem consta do registo da Ordem dos Advogados que ali fizesse arquivo, a sala partilhada onde se encontrava o posto de trabalho de advogado não pode ser considerada como escritório ou arquivo de advogado, não se impondo a formalidade plasmada no artigo 177º, nº 5, do CPP.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO


1.No Tribunal Central de Instrução Criminal – Juiz 1, NUIPC 71/21.6TELSB, aos 18/11/2021, foi proferido despacho pelo Mmº JIC  que indeferiu as pela “M. , S.A.” invocadas – em 06/07/2021 – nulidades ou irregularidades da busca e apreensão nessa mesma data efectuadas.

2.Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso ““M., S.A.”, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1.O presente recurso vem interposto do Despacho proferido pelo Mm. Juiz de Instrução Criminal, em 18.11.2021, nos termos do qual o Tribunal a quo julgou improcedentes as invalidades arguidas pela Recorrente no decurso das diligências de busca e apreensão realizadas em 06.07.2021.
2.Deve o presente recurso ser admitido nos termos do disposto nos artigos 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1, e 408.º, n.º 3, todos do CPP, mais devendo subir imediatamente, em separado, e com efeito suspensivo do processo - cfr. artigos 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1, e 408.º, n.º 3, do CPP -, o que se requer.
3.Em concreto, deve ser atribuída a subida imediata, nos termos do artigo 407.º, n.º 1, do CPP, na medida em que a respetiva retenção tornaria o recurso absolutamente inútil, já que uma das matérias que constituem objeto do mesmo é a incompetência do TCIC para proferir o despacho de 22.06.2021 que autorizou a apreensão de correio eletrónico no decurso das buscas.
4.Apesar de, no caso em que a incompetência fosse apreciada apenas a final pudesse ser possível, em teoria, proceder-se à anulação do processado entretanto consumado demonstra a prática judicial que este é um dos casos em que tal simplesmente “não faz sentido".
5.É que, na circunstância de o conhecimento da incompetência do tribunal ser relegado para o momento em que eventualmente venha a ser interposto recurso da decisão final, terão sido tramitadas diferentes fases processuais, a serem anuladas e repetidas (cfr. artigo 119.º, alínea e) e 122.º do CPP), com efeitos até à fase de inquérito, o que consistiria na mais flagrante violação dos princípios da economia e da celeridade processuais, bem como no princípio da limitação de atos (cfr. artigo 6.º, 547.º 130.º do CPC), com fortes prejuízos para a administração da justiça, a nível económico e de prestígio.
6.De resto, tem a Relação de Lisboa conhecido de recursos com fundamento na incompetência do TCIC em que é, precisamente, fixada a subida imediata e em separado do recurso.
7.O Despacho do Ministério Público refere apenas estar em investigação o crime de fraude fiscal, não incluído nos casos de competência do TCIC previstos no artigo 120.º da LOSJ - cfr. artigos 119.º, alínea e), 122.º, n.º 1, ou, à cautela, 123.º, n.º 1, do CPP.
8.O entendimento do Tribunal a quo, transcrevendo uma promoção do Ministério Público, segundo o qual (i) estaria em causa "uma atividade delituosa desenvolvida, pelo menos, na área das comarcas de Lisboa e Porto"; (ii) estariam ainda em investigação factos suscetíveis de integrar branqueamento de capitais (artigo 120.º, n.º 1, alínea e) da LOSJ), e (iii) infrações económico-financeiras (artigo 120.º, n.º 1, alíneas j) e k) da LOSJ) decorre de uma errada interpretação e aplicação dos artigos 119.º, n.º 1, e 120.º da LOSJ, em violação do artigo 119.º, primeira parte e alínea e), e 33.º, n.º 1, do CPP,
9.sendo ainda contrário a considerações vertidas em jurisprudência fixada no Acórdão 2/2017 do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da qual, quando o juiz é chamado a intervir durante a fase de inquérito, deve apreciar a respetiva competência para a prática do ato naquele momento específico e para aquele ato concreto, com base nos elementos que lhe são apresentados pelo Ministério Público.
10.Na medida em que o Despacho do Ministério Público que promove que seja proferido o Despacho Judicial se refere unicamente ao crime de fraude fiscal, não pode vir-se agora, com base numa promoção do Ministério Público posterior às buscas e à respetiva arguição de nulidade, avançar estarem em causa outras infrações, conforme, supostamente, resultará de outros elementos dos autos (a "fls. 137/140" e a "fls. 144") - que não foram disponibilizados à Recorrente, apesar de requerimento apresentado para o efeito, em prejuízo dos princípios do contraditório e da igualdade de armas e dos seus direitos de defesa e ao recurso (cfr. artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP) - e que, tanto quanto se sabe, não foram igualmente disponibilizados ao TCIC no momento em que este aferiu da respetiva competência.
11.No mais, não procede o argumento de que está em causa uma atividade desenvolvida em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação (cfr. artigo 120.º, n.º 1, primeira parte da LOSJ), já que apenas será atribuída competência ao TCIC com base nesse critério quando, em simultâneo, estiverem em causa os crimes elencados nas alíneas a) a k) daquele n.º 1 do artigo 120.º da LOSJ, o que, como vimos, não se verifica.
12.Por constituir a incompetência do tribunal uma nulidade insanável, requer-se a V. Exas. que se dignem declará-la, nos termos do artigo 119.º, alínea e), e 33.º, n. º 1, do CPP, com a remessa do processo para o tribunal competente e a declaração de nulidade do despacho judicial, bem como de todos os atos materiais de busca e apreensão levados a cabo, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do CPP, ou pelo menos, a respetiva irregularidade nos termos do artigo 123.º, com a invalidade de todos os atos materiais levados a cabo com base no despacho judicial.
13.No requerimento apresentado durante as buscas, arguiu a Recorrente a nulidade ou, à cautela, a irregularidade das diligências realizadas sem efetivo despacho e mandado do Ministério Público, porquanto a Diligência ocorreu em morada diferente da que corresponde ao local ordenado buscar, cfr. artigos 174º, 176.º, 178.º e 118.º a 123.º do CPP.
14.Ou, numa outra perspetiva, concluindo-se que era aquela a morada pretendida buscar -o que não se concede -, a irregularidade do Despacho do MP por falta de fundamentação, já que não se fundamenta qual a razão da realização de buscas em morada diferente da sede da(s) entidade(s) buscada(s), cfr. artigos 97.º, n.º 5, 174.º, n.º 2, e 123.º, n.º 1, do CPP,
15.acarretando, em qualquer um dos casos, a nulidade ou, pelo menos, a irregularidade da Diligência e da prova apreendida, cfr. artigos 122.º e 123.º, do CPP.
16.Entendeu, porém, o Tribunal a quo, em suma, que: (i) “as buscas são realizadas em lugares (...) independentemente da titularidade ou da disponibilidade do local"; (ii) em 18.06.2021, "o Ministério Público indicou como local a buscar a morada sita na R... - 5.º Piso, ....-... Porto, sede da M. I (...) e da M. II (...) que, à data, estava publicitado no Portal da Justiça"; (iii) apesar de "esse local já não ser, juridicamente, a sede da M. , de fato continuava a sê-lo"; (iii) "existe uma total identidade entre o local onde foi realizada a busca e o local indicado".
17.Considera a Recorrente que este entendimento viola o disposto nos artigos 174.º, n.ºs 2 e 3, 176º n.º 1, e 178.º, n.º 3, todos do CPP, normas que foram incorretamente interpretadas e aplicadas pelo Tribunal a quo.
18.Nos termos daqueles preceitos, exige a lei que se identifique de forma cabal e completa e, portanto, sem margem para dúvidas o local a buscar e que, nessa sequência, se busque o local concretamente indicado pela autoridade judiciária, mais devendo ser identificada de forma correta e atual a entidade a buscar.
19.Essa identificação deve, sob pena da violação dos mais basilares princípios e garantias dos privados contra o Estado, ser o mais rigorosa possível, pelo que não pode assentar em indicações obsoletas, contraditórias e incompatíveis entre si no que respeita à(s) entidade(s) visada(s) pelas buscas ou ao local e morada a buscar, como sucede in casu.
20.
21.É que o Despacho e o Mandado através dos quais foi ordenada a Diligência, não só ordenam a realização de buscas à sede da "M. /"e da "M. II", entidades entretanto fundidas numa só e com a denominação social da Recorrente, como indicam, para o efeito, uma morada que não mais correspondia a tal sede. Não pode, pois, admitir-se como irrelevante o facto de a morada "R... - 5.º Piso, .....-...-Porto" não corresponder ao local ordenado buscar, a "sede da M. I (anteriormente 'AP') e da M. II (anteriormente 'C. ')".
22.Ou se quer buscar a morada "R… - 5.º Piso, ....-... - Porto" ou se quer buscar a "sede da M. I (anteriormente 'AP') e da M. II (anteriormente 'C. ')".
23.Se não se sabe o local exato a buscar ou se a sede daquela(s) entidade(s) não se situa onde se supunha situar coloca-se a dúvida sobre se as suspeitas existentes - que fundamentaram a busca - efetivamente existem e sobre a legitimidade da busca, na vertente da necessidade e da proibição de excesso, mas também no que respeita à exigência de uma prévia ponderação dos interesses em presença em cada caso concreto.
24.Não se pode, assim, concordar que exista "uma total identidade entre o local onde foi realizada a busca e o local indicado no despacho que a ordenou e no correspondente mandado de busca e apreensão", já que o local indicado era a sede da M. I e da M. II, o qual não se encontrava na morada onde as diligências de busca e apreensão foram efetivamente realizadas.
25.O que aconteceu nos presentes autos traduz-se na realização de diligências de busca e apreensão por um órgão de polícia criminal formal e materialmente desprovido de competência para o efeito, o que viola ainda o artigo 272.º da CRP.
26.É, pois, inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º,18.º, 20.º, 26.º e 34.º da CRP e dos princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito Democrático, do direito a um processo equitativo, da privacidade, da proporcionalidade e da proibição do excesso, da compressão de liberdades individuais e do direito à inviolabilidade do domicílio, a norma contida nos artigos 174.º, n.ºs 2 e 3, 176.º, n.º1, e 178.º, n.º 3, do CPP, interpretada no sentido de que são válidas e regulares as diligências de busca e apreensão realizadas em local diferente daquele ordenado pelo Ministério Público.
27.Em face do exposto, requer-se a V. Exas que se dignem declarar a invalidade das diligências de busca e apreensão realizadas sem efetivo despacho e mandado que as ordene, encontrando-se as mesmas feridas de nulidade ou, pelo menos, irregularidade nos termos dos artigos 118.º a 123.º do CPP, por violação dos artigos 174.º, n.ºs 2 e 3, 176.º, n.º 1, e 178.º, n.º 3, do mesmo diploma, devendo ainda ser declarada a nulidade de toda a prova aí recolhida, nos termos e para os efeitos do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, não podendo a mesma ser utilizada no processo, mas sim desentranhada dos autos.
28.Caso assim não se entenda, requer-se a V. Exas. que declarem a insuficiente fundamentação do Despacho proferido pelo Ministério Público, por não apresentar qualquer fundamentação que permita compreender que "indícios" de se encontrarem "objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova" ou de que "o arguido ou outra pessoa que deva ser detida" existiriam por referência à morada efetivamente buscada (R... - 5.º Piso, ....-... - Porto), em violação do disposto nos artigos 97.º, n.º 5, e 174.º, n.º 2, e a irregularidade do próprio e das diligências que se lhe seguiram, nos termos do artigo 123.º do CPP, o que se requer a V. Exas.
29.Adicionalmente, arguiu a Recorrente a nulidade das diligências de busca e apreensão por terem sido realizadas em escritório de advogado sem a presença do Juiz de Instrução Criminal, a quem incumbia presidir à diligência, e sem a presença de representante da Ordem dos Advogados, nos termos e para os efeitos do artigo 75º e ss. do EOA e dos artigos 177º nº 5, 180º, n.º 1, 118.º, n.º 1, e 122º do CPP.
30.Neste contexto, avança o Tribunal Recorrido, por um lado, com fundamento na promoção do Ministério Público, que (i) "se desconhecia a existência, naquelas instalações, de um posto de trabalho afeto a um advogado da empresa, o Dr. GR (diretor jurídico)", mas que (ii) "apesar de, à data da diligência, o Dr. GR já não ter domicilio profissional naquele local, os elementos da AT que realizaram as diligências nas instalações da Movera, acautelaram o segredo profissional do Dr. GR, nunca tendo sido devassado o seu local de trabalho e o seu computador”.
31.E, por outro lado, que "no caso concreto", “a diligência foi presidida pela JIC", que "esteve presente em todas as fases de seleção e apreensão de documentos" (cfr. fls. 1520 e ss.), como, aliás, não podia deixar de ser por, tratando-se de buscas em escritório de advogado, ser "da exclusiva competência do juiz de instrução", assim resultar dos normativos aplicáveis e ser essencial à "salvaguarda do respectivo segredo profissional” (do advogado).
32.Sucede que, ao contrário do que refere o Juiz a quo ter acontecido, no caso vertente, não se verificou uma ausência momentânea do Mm.9 Juiz de Instrução do local das buscas, mas uma total e absoluta ausência de qualquer juiz no local onde decorreu a Diligência, o que sempre se impunha, nos termos dos artigos 77.º, n.º 5, 180.º, n.º 1, 268.º, n.º 1, alínea c), do CPP, e 75.º e ss. do EOA,
33.já que ainda que, formalmente, o Advogado já não tivesse domicílio profissional naquela morada, era nas instalações do lugar buscado e não em qualquer outro que, de facto, exercia a profissão e onde reunia todos os seus instrumentos e o produto do seu trabalho.
34.No presente caso, i) além de terem sido revistados e apreendidos documentos do local de trabalho do Advogado sem a presença do Juiz competente e do representante da Ordem dos Advogados, ii) foram também apreendidos documentos sujeitos a sigilo profissional, por respeitarem a correspondência compreendida no exercício da profissão, que se encontrava no local de arquivo do Advogado, não sendo verdade que os elementos da AT nunca tenham devassado o local de trabalho e o computador do Advogado que, aliás, fazia arquivo nas restantes instalações e não apenas "no seu posto de trabalho".
35.Em face do exposto, requer-se a V. Exas que se dignem declarar a nulidade das diligências de busca e apreensão realizadas em escritório de advogado por não terem sido presididas por juiz de instrução criminal e não terem contado com a presença de representante da Ordem dos Advogados, nos termos dos artigos 177.º, n.º 5, 18º.º, n.º 1, 268.º, n.º 1, alínea c), conjugados com os artigos 118.º, n.º 1, e 122.º, todos do CPP, e 75.º, n.ºs 1 e 2, e 76.º, n.ºs 1 a 3, do EOA, devendo ainda ser declarada a nulidade de toda a prova aí recolhida, nos termos e para os efeitos do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, não podendo a mesma ser utilizada no processo, mas sim desentranhada dos autos.
Nestes termos e nos melhores de Direito, requer a V. Exas. se dignem admitir e conhecer o presente recurso, nos termos conjugados das disposições contidas nos artigos 399.º a contrario e 401.º, n.º 1, alínea d), todos do CPP, e, em consequência, se dignem determinar a sua procedência, revogando o Despacho Recorrido e i) declarando a incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal para proferir o despacho judicial a que se refere o artigo 179.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alínea d), do CPP, conjugados com o artigo 17.º da Lei do Cibercrime, com as legais consequências, nomeadamente com a correspondente remessa dos autos para o tribunal competente, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, do CPP; bem como ii) declarando as demais nulidades ou, caso assim não se entenda - o que não se concede -, as irregularidades arguidas no decurso das buscas; e, bem assim, iii) a nulidade de toda a prova aí recolhida, nos termos e para os efeitos do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, devendo a mesma ser rejeitada e ordenado o respetivo desentranhamento dos autos.
Mais requer a V. Exa. se digne apreciar e decidir a inconstitucionalidade arguida no presente recurso.

3.O recurso foi admitido por despacho de 10/01/2022, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

4.Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação de recurso, pugnando por lhe ser negado provimento.

5.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6.Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pela recorrente em que conclui, em síntese, por dever ser dado provimento ao recurso que interpôs.

7.Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO

1.Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação de nulidade insanável por incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal.

Nulidade das diligências de busca e apreensão, por efectuadas em morada diferente da do local ordenado buscar/irregularidade do despacho do MP por falta de fundamentação.

Nulidade das diligências de busca e apreensão, por realizadas em escritório de advogado sem a presença do JIC e de representante da Ordem dos Advogados.

Nulidade da prova recolhida no decurso das diligências de busca e apreensão efectuadas aos 06/07/2021.

2.O despacho recorrido, lavrado aos 18/11/2021, apresenta o seguinte teor (transcrição):

REQUERIMENTO DE FLS. 650-669 APRESENTADO PELA M. - , S.A.
Através do aludido requerimento a sociedade M. - , S.A., ao abrigo do disposto nos arts 119º, 120º e 123º nº 1 do CPP veio arguir a nulidade ou a irregularidade, da diligência de busca e apreensão realizada em 06-06-2021 em R... - 5.º Piso, ....-... - Porto onde, à data, estava instalada, nos seguintes termos:
a)- Realização de busca em local que não corresponde à sede da M. Afirma a requerente que o Ministério Público determinou a realização da diligência de busca e apreensão em R... - 5o Piso, ....-... - Porto, sede da M. 1 (anteriormente "AP") e da M. II (anteriormente "C. "), mas que aquela sociedade, à data da diligência, não tinha sede nesse local, mas no Aproveitamento Hidroelétrico de Miranda do Douro
Assim, segundo a requerente, o aludido despacho do Ministério Público está ferido de irregularidade porque ou se pretendia buscar a sede da M. , mas a diligência foi realizada em local diverso da sede, sem despacho da autoridade judiciária competente, em violação do disposto nos arts. 174º, 176.º e 178º do CPP, o que implica a nulidade ou a irregularidade da diligência, nos termos dos arts. 118.º a 123º do CPP ou o despacho não fundamenta a razão das suspeitas quanto à existência de objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova naquele local que não é a sede da M. e está ferido de irregularidade por falta de fundamentação.
Assim, em qualquer das situações o despacho do MP é irregular, o que acarreta a nulidade da diligência subsequente e da correspondente prova apreendida, nos termos do disposto no artigo 122º nº 2 do CPP

Vejamos

Estatui o art 174 nºs 1 e 2 do CPP que:
1-Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.
2- Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.”.
Por sua vez, o art. 176º nº 1 do CPP dispõe que “Antes de se proceder a busca, é entregue, salvo nos casos do n.º 5 do artigo 174.º, a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza, cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança e que se apresente sem delonga.
Depois, o art. 178º nº 1 do CPP afirma que “São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”.
Como decorre dos citados normativos, as buscas são realizadas nos lugares, em relação aos quais existem suspeitas de se encontrarem (além do arguido ou de pessoa que deva ser detida) coisas ou objetos relacionados com o crime ou que possam servir de prova - instrumentos, produtos e vantagens do crime, animais, coisas e objetos deixados pelo agente do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova - independentemente da titularidade ou da disponibilidade do local e das coisas ou dos objetos a apreender
O despacho determinativo da busca e o respetivo mandado devem identificar o lugar a buscar.
E, de fato, no despacho de fls. 208-221, proferido a 18-06-2021 que determinou a busca e no respetivo mandado de busca e apreensão, o Ministério Público indicou como local a buscar a morada sita na R... - 5o Piso, .....-... - Porto, sede da M. I (anteriormente "AP") e da M. II (anteriormente "C. "), que, à data estava publicitado no Portal da Justiça http://www.mi.gov.pt/publicacoes, como sendo a sede de M.
Apesar de à data da realização da busca e apreensão - 06-07-2021 - esse local já não ser, juridicamente, a sede da M. , de fato continuava a sê-lo, estando apenas programada a mudança das instalações para a nova sede em meados do mês de Julho de 2021.
Pelo exposto, existe uma total identidade entre o local onde foi realizada a busca e o local indicado no despacho que a ordenou e no correspondente mandado de busca e apreensão.

b)-Incompetência do TCIC
A requerente também veio arguir, nos termos do art. 119º nº 2 do CPP, a nulidade do despacho judicial de fls. 231-232, proferido pelo Mº JIC junto do TCIC, que autorizou o acesso a documentos informáticos contidos em computadores existentes nas instalações da requerente e a inserção dos ficheiros de correspondência eletrónica em suporte digital autónomo para lhe serem presentes para exame e decisão sobre a sua junção aos autos
Sustenta a requerente que o TCIC não tem competência material para exercer funções jurisdicionais no presente inquérito porquanto, resulta do despacho do MP que determinou a realização da busca e apreensão, que está em causa a investigação de crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelo arts. 103º e 104º nº 3 do RGIT, crime esse que não está incluído no catálogo de crimes do art. 120º nº 1 da LOSJ, nem em relação ao qual se verificam as circunstâncias previstas nas alíneas j) ou k) daquele art. 120 nº 1, razão pela qual não se encontram preenchidos os requisitos de competência do TCIC.
Também neste aspeto não podemos concordar com a requerente

Como se alcança do despacho que o Ministério Público proferiu a fls. 137/140 e do despacho judicial de fls. 144, o presente inquérito tem por objeto a investigação de:
- crimes de fraude fiscal, suscetíveis de constituir “Infrações cometidas de forma organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática” e “Infrações económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional”, ou seja de preencherem a previsão das ais j) e k) do art. 120 nº 1 da LOSJ e, bem assim,
- fatos suscetíveis de constituir crime de branqueamento p. e p. pelo art. 368-A do C. Penal, que faz parte do elenco de crimes do art. 120º nº 1 da LOSJ (al. e)
- a que acresce a existência de indícios de dispersão territorial da atividade delituosa pelo menos, pela área das comarcas de Lisboa e Porto, portanto para além do limite da área de competência de um Tribunal de Relação (art. 120º nº 1 da LOSJ).
Afigura-se-nos, assim, ser o TCIC competente para o exercício de funções jurisdicionais no presente inquérito, nos termos do art. 120º nº 1 als. e) j) e k) da LOSJ.

c)-Irregularidade da diligência e da apreensão - extravasamento do mandado
Afirma a requerente que a AT apreendeu documentos e ficheiros informáticos de correio eletrónico sem qualquer ligação com a lista de elementos relevantes e com escopo material e temporal da prática em investigação, pelo que a sua apreensão é nula, por violação do disposto nos artigos 178º do CPP e 17º da Lei do Cibercrime
Ora, a recolha dos elementos em causa foi efetuada a coberto de mandado de busca e apreensão emitido pelo MP e de autorização judicial para acesso a documentos informáticos contidos em computadores e inserção dos ficheiros de correspondência eletrónica em suporte digital autónomo para lhe serem presentes para exame e decisão sobre a sua junção aos autos
Como estatui o art. 178º nº 1 do CPP podem ser objeto de apreensão, além do mais, instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de facto ilícito típico, coisas e objetos deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova
Por outro lado, prescreve o art. 17º da Lei do Cibercrime que compete ao juiz autorizar ou ordenar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante que se lhe afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Assim, é ao MP que, no âmbito da estratégia delineada para a investigação, decide sobre a pertinência e relevância dos elementos concretamente recolhidos para a descoberta da verdade ou para a prova e ao juiz aferir da relação daqueles com o objeto da investigação.
Em todo o caso, não é à requerente que compete determinar se os elementos apreendidos ou recolhidos têm ou não ligação com os factos sob investigação ou com elementos de prova

d)-Nulidade da diligência de busca e de apreensão em escritório de advogado
Segundo a requerente foram realizadas buscas no escritório do Dr. GR, Diretor Jurídico da M., sem mandado judicial para o efeito e sem presidência do juiz pelo que conclui pela nulidade da diligência de busca em causa e, por inerência, pela nulidade das subsequentes diligências de apreensão (em suporte físico e em eletrónico), nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 177º nº 5, 180º nº 1, 118o nº 1 e 122º do CPP
As diligências de busca e apreensão nas instalações da M. foram realizadas a coberto de mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, sendo certo que se desconhecia a existência, naquelas instalações, de um posto de trabalho afeto a um advogado da empresa, o Dr. GR (diretor jurídico), numa sala exígua também ocupada por FS (diretor financeiro) e IP (secretaria), sem qualquer separação física entre os vários postos de trabalho (fls. 767)
Em todo o caso, confrontados com esse fato e apesar de, à data da diligência, o Dr. GR já não ter domicílio profissional naquele local, os elementos da AT que realizaram as diligências nas instalações da Movera, acautelaram o segredo profissional do Dr. GR, nunca tendo sido devassado o seu local de trabalho e o seu computador,

e)-Irregularidade da diligência e da apreensão - proteção de segredos Por fim afirma a requerente que o despacho do JIC determinou a quebra do sigilo da correspondência, mas não a dos demais segredos que poderiam ficar prejudicados com diligência em causa
Considerando que “terá de assumir-se como muitíssimo provável que tenham sido apreendidos documentos e mensagens de correio eletrónico protegidas por segredo”, nomeadamente, pelo segredo profissional do advogado e que não é legalmente admissível a apreensão de correspondência que respeite ao exercício da profissão de advogado, seja qual for o suporte utilizado, atento o disposto no art. 76º nº 1 do EOA e no art. 180º nº 2 do CPP, a requerente conclui pela nulidade da apreensão realizada pela AT e de toda a prova recolhida, nos termos dos arts. 135º, 123º, 182º do CPP, art. 92º do EOA e arts. 20º, 32º nº 10, 34º e 208 da CRP
Sobre esta questão afigura-se-nos dizer que não só a requerente veio arguir a nulidade das diligências com base em meras suposições ou probabilidades, como se socorre do disposto nos arts. 76º nº 1 do EOA e 180º nº 2 do CPP, aplicáveis às apreensões efetuadas em escritório de advogado, o que o é o caso, para as fundamentar
Pelo exposto, do nosso ponto de vista, atentas as razões sumariamente expostas, são improcedentes todas as invalidades arguidas pela M. - , S.A.» (sic).

Cumpre decidir:
Atentas as posições dos ora requerentes e M.º Pº, há que, "prima fácie” enquadrar a questão na esteira do Acórdão 54/06-9, de 18 de Maio de 2006 - do Tribunal da Relação de Lisboa, prolatado no âmbito do processo com o NUIPC 482/04.1TABCL (Relatora Desembargadora Dr.a Ana Brito), que se tem como decisão verdadeiramente norteadora e basilar nesta matéria.
Como flui com cristalina evidência daquele acórdão, é ao MºPº que compete determinar quais as diligências que devem ser realizadas em ordem a descobrir e recolher as provas necessárias aos fins do inquérito, ainda que na realização de tais diligências seja assistido pelos órgãos de polícia criminal ou, quando a lei o determina, tenha que obter prévia autorização do Juiz de Instrução ou que a diligência decorra sob a presidência do JIC.
É o critério da investigação, cujo dominus é o MºPº, que determina a razoabilidade das buscas e da selecção/escolha dos objectos apreendidos.
As razões e fundamentos da busca que devem constar dos respectivos mandados não têm que abarcar "...os indícios concretos que fundamentam a realização das buscas nem os reais meios de prova em que esses indícios assentam, o que bem se compreende para que a investigação não seja inviabilizada pela manipulação de elementos de prova".
Podem ser objecto de apreensão quaisquer objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova, o que abarca coisas que estejam em poder ou que pertençam ao suspeito como coisas em poder ou pertencentes a terceiros.
Questões relacionadas com sigilo profissional - de advogado ou bancário - só se colocam quando do momento da revelação dos documentos e demais coisas apreendidas e não, no concreto momento que lhe precede e que agora está em causa, o da apreensão.
A apreensão, como meio de obtenção e conservação de prova que é, pressupõe a prévia análise do documento ou objecto apreendido com vista a averiguar a susceptibilidade do mesmo servir os propósitos probatórios da investigação;
Particularmente no que tange à apreensão em estabelecimentos bancários e escritórios de Advogados, compete exclusivamente ao Juiz de Instrução proceder à indagação da pertinência da apreensão e a sua subsequente determinação, nos termos previstos nos arts. 181.º, n.º 1 e 180.º n.º 1 do CPP, respectivamente; O regime legalmente instituído, pressupõe um critério de utilidade do objecto para efeitos probatórios que terá de ser sufragado pela autoridade no momento anterior à decisão de apreensão;
O Juiz que presidiu à diligência esteve presente em todas as fases de selecção e apreensão de documentos, apenas deixando ao cuidado dos peritos informáticos, autorizados a estarem presentes, a realização, necessariamente morosa, das cópias de ficheiros informáticos, aguardando, para controlar o resultado de tal operação técnica, pelo que nenhum acto material de carácter processual foi realizado sem a sua presença.
A realização de busca em estabelecimento bancário ou em escritório de advogado tem que ser presidida por Juiz, mas tão só para ser determinada a apreensão dos documentos pelo Magistrado, o que implica a sua presença no local dos documentos, mas não exige a sua presença em sede da actividade de selecção de documentos, sempre sem prejuízo de se tratar de uma autorização de busca emitida por um Juiz.
Cumpre referir, também que, nas buscas referidas, os visados assistiram, tomaram conhecimento prévio do objecto da diligência e assinaram os respectivos autos de busca e ficaram com cópia dos mesmos.
No que respeita a nulidades dependentes de arguição, a Lei Processual Penal estabelece no art. 120º nº 3 do C.P.P. que tais nulidades devem ser arguidas antes que o acto esteja terminado, tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista.
Quanto às irregularidades dispõe o art. 123º do CPP que, a mesma deve ser arguida pelo interessado no próprio acto, ou se não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo.
Para além disso, verifica-se, também que, o objecto das buscas encontra-se indicado nos respectivos mandados, cujas cópias foram entregues aos buscados e todos os objectos discriminados nos autos de busca e que foram encontrados durante a diligência foram, no caso concreto porque presidida pelo JIC, controladas por este, apondo a sua assinatura nos respectivos autos.
Ao contrário do que pretende a defesa não existe a obrigação de indicar os indícios concretos que fundamentam a necessidade de realização das buscas nem os reais meios de prova em que esses indícios assentam o que bem se compreende para que a investigação não seja inviabilizada pela manipulação de elementos de prova.

Como clarividentemente se refere no dito Acórdão e citamos:
“...Assim, nunca é de mais começar por repetir que o regime das proibições de prova tem subjacente a “crença na existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal” (C. Andrade, Sobre as Proibições de Prova em PP, p. 117).
E assim o art. 126º do CPP, sob a epígrafe "Métodos Proibidos de Prova”, contempla um regime de proibição de procedimentos apenas proibidos quando obtidos sem o consentimento do titular, e um regime de invalidade de outros meios de obtenção de prova, mesmo quando obtida com o consentimento do titular.
Nos seus nºs 1 e 2 prevêem-se meios de prova proibidos em termos absolutos e no nº 3 métodos proibidos sem o consentimento dos seus titulares. A proibição absoluta tem na base uma indisponibilidade dos direitos; a proibição relativa tem na base a disponibilidade dos direitos, que permite a utilização dos meios de prova havendo consentimento válido para tal.
É desta que aqui e sempre se trata, no presente recurso.
Assim, no campo das proibições relativas, a lei prevê ainda casos de (lícita) obtenção de prova na ausência do consentimento do titular dos direitos (disponíveis) protegidos.
O nº 3 do mesmo preceito legal, cominando de nulidade as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular, ressalva os casos previstos na lei.
E “os casos previstos na lei” são todos aqueles que conduzem à entrada lícita no domicílio alheio, na vida privada, na correspondência e nas comunicações, na ausência desse consentimento.
As provas são um dos elementos do processo, indispensáveis à realização do próprio processo.
Devem, por regra, buscar-se onde quer que se encontrem, desde que essa procura se processe de forma legalmente conformada.
E a procura das provas implica, muitas vezes, a busca.
O poder de disposição real, que incide sobre coisas, compreende assim a faculdade de apreensão de coisas e de objectos necessários à instrução (em sentido lato) do processo.
E, sempre que haja indícios de que alguém oculta em lugar reservado ou não livremente acessível ao público quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada busca (art. 174º, nº 2 do CPP).
O art. 178º, nº 1 legitima a apreensão de quaisquer objectos susceptíveis de sen/ir a prova.
Os autos encontram-se em fase de inquérito.
E o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262º, nº 1 do CPP).
A sua direcção cabe ao Ministério público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art. 263°. n°1 do CPP).
O inquérito é pois um procedimento da esfera do M.P. e não do juiz, competindo àquele, e não a este, a selecção e recolha da prova.
É incontroverso que o M.P: é o "dominus” da investigação criminal durante o inquérito, competindo no entanto ao juiz de instrução, por imperativo constitucional, a prática dos actos que se prendam directamente com os direitos fundamentais.
“A intervenção do juiz de instrução na fase de inquérito justifica-se ou em razão da natureza dos actos - actos materialmente jurisdicionais - ou em razão da sua gravidade, representando a intervenção do juiz uma garantia das pessoas - actos formalmente jurisdicionais” (Germano Marques da Silva. Curso PP, III, 157)
Assim, sendo o Juiz de instrução, o juiz das liberdades e das garantias. compete-lhe “apenas” assegurar, no que ora interessa, que a recolha de provas – NU1PC 71/21.6TELSB cuja selecção, repete-se, é da competência do M.P. - se processa de forma legalmente (e constitucionalmente) conformada.
Não assiste qualquer razão aos recorrentes quando defendem que “compete exclusivamente ao juiz de instrução proceder à indagação da pertinência da apreensão e a sua subsequente determinação”, sendo precisamente outra a solução a que conduz a estrutura acusatória do processo penal, como se viu.
Destituídos de razão continuam quando defendem que o juiz deve aferir, previamente à apreensão, da utilidade do objecto para efeitos probatórios: bem como quando defendem que os objectos apreendidos se destinam a comprovar factos iá processualmente “conhecidos” ou iá em investigação, e não à descoberta de novos factos.
Recorde-se que o objecto do processo só se fixa com a acusação (com as possíveis mutações que decorram posteriormente de uma eventual decisão instrutória); que o tema da prova se circunscreve e delimita apenas após a acusação, fazendo sentido falar no princípio da vinculação temática apenas em fases posteriores do processo.
Assim, é passível de apreensão todo o objecto susceptível de servir a prova. a prova dos crimes que são alvo da investigação, sendo a selecção dos documentos feita “segundo critérios que são dominados pela investigação”, (fim de citação)
O art. 268º do CPP, sob a epígrafe “Actos a praticar pelo juiz de instrução”, define na sua al. c), como competência do JIC, proceder a buscas e apreensões em escritórios de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos arts. 177º, nº 3, 180º, nº 1 e 181º do CPP;
Enumera (exemplificativamente) este preceito legal um conjunto de actos que, no decurso do inquérito, são da exclusiva competência do juiz de instrução, sujeitos por isso à sua intervenção pessoal e insusceptíveis de delegação.
Tais actos têm a ver, conforme já dissemos, com a salvaguarda e garantia dos direitos do cidadão, e decorrem dos princípios constitucionais consagrados nos arts 202º e 203º da CRP.
A referida al. c), por seu turno, aglutina três “locais” cuja entrada beneficia de um especial reforço de garantias, traduzido na presença pessoal obrigatória do juiz.
O escritório de advogado, o consultório médico e o estabelecimento bancário, terão em comum a susceptibilidade de guarda de segredos “profissionais" ou decorrentes do exercício de determinadas funções.
Assim, a entrada em qualquer um destes locais poderá dar acesso a informação protegida pelos referidos sigilos. A especial protecção visa sem dúvida a salvaguarda do respectivo segredo profissional.
O Art. 70º da Lei 15/2005 (EOA) reforça e completa as formalidades da busca, sempre em obediência aos mesmos princípios.
À semelhança com o propugnado no citado Acórdão também nós nas centenas de buscas que já levámos a cabo também não consideramos de “boa prática” a ausência, mesmo que momentânea, do juiz de instrução, do local onde decorra diligência a que deva presidir pessoalmente.

Subscrevemos inteiramente as considerações que o TRL neste tocante sancionou no Acórdão a que nos vimos reportando e que para melhor compreensão mais uma vez citamos:
“...E se tal diligência é morosa e complexa (como o terá sido in casu), deverá comportar as pausas e suspensões que se imponham; as pausas de todos, sempre que o senhor juiz de instrução não está (pessoalmente no local da busca).
Resulta do apenso de recurso, e concretamente dos autos de busca e da decisão recorrida, não resultando aliás o contrário do processo, que o juiz de instrução esteve presente, dirigiu e acompanhou pessoalmente as buscas em causa.
Ausentou-se, no entanto, do local buscado “após ter sido decidido todo o conteúdo dos objectos a buscar” regressando “uma vez concluída essa operação de carácter meramente técnico, a fim de verificar e controlar os ficheiros copiados e elaborar o respectivo auto que foi assinado pelos intervenientes”.
Adiantamos que esta “má prática", nas circunstâncias de tempo e modo referidas no despacho (e outra coisa, repete-se, não resulta do processo), não passa disso mesmo, de uma má prática, não integrando no entanto nulidade processual.
Isto porque se deve considerar que, In casu, a busca foi pessoalmente assistida pelo juiz de instrução; que ele esteve pessoalmente presente; que ele se ausentou momentaneamente apenas e enquanto decorriam procedimentos meramente materiais, na sequência de algo que ele já decidira antes.
Por outras palavras, não resulta que a sua saída do local buscado tenha prejudicado, em concreto, a função de garantia do juiz de instrução, cuja presença pode não se revelar necessária no momento da execução." (fim de citação).

E quanto ao grau de formalidades e garantias de preservação de sigilo nos escritórios de advogados, também o aludido Acórdão se debruça, em moldes que subscrevemos e que transcrevemos:
Assim, no que respeita às buscas efectuadas em escritórios de advogados- arguidos e em estabelecimento bancário, face à disciplina legal, há apenas que acrescentar o seguinte:
É legalmente reconhecido “o interesse comunitário de confiança na discrição e reserva de determinados grupos profissionais, como condição do seu desempenho eficaz”, que a doutrina germânica maioritária considera como sendo o bem jurídico pelo tipo legal de crime de violação de segredo (Costa Andrade, Coment. Conimb. art. 195º).
Mas, continua aquele Comentador, na base daquele tipo legal de crime, está o dever de confidencialidade, em que se pretende proteger para lá do simples interesse comunitário da confiança na discrição e reserva, a privacidade em sentido material, a privacidade no seu círculo mais extenso, abrangendo não só a esfera da intimidade como a esfera da privacidade stricto sensu. A privacidade é aqui protegida na medida em que seja mediatizada por um segredo.
O art. 135º do CPP concede um direito ao silêncio de todas as pessoas a quem a lei impuser ou permitir que guardem segredo sobre certas informações. A quebre do sigilo só pode ocorrer quando “se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante” (nº 3). O que significa que, ainda segundo Costa Andrade, "a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despido do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo”.
Acrescentaríamos ainda que a tutela legal do segredo, que rodeia a prova pessoal (por depoimento ou por declaração), deve cobrir igualmente a produção da prova real (coisas em sentido lato: documentos, suportes informáticos, correspondência...), sob pena de se conseguir por uma via, aquilo que a lei proíbe pela outra.
E estas questões poder-se-ão colocar - e ir-se-ão colocar, certamente, com maior ou menor acuidade, consoante os casos e as situações - no momento da revelação dos documentos e demais coisas apreendidos.
Mas esse momento processual, não é ainda este.

Por outras palavras, a aquisição da prova para o processo, e sua respectiva incorporação, pressupõe dois momentos distintos:
- o momento da apreensão da prova (real, porque é desta de que in casu se trata);
- o momento da revelação da prova.
A apreensão precede a revelação dos conteúdos. E é só neste segundo momento, que ainda não ocorreu processualmente, que a questão dos segredos se poderá colocar.
É que para o juiz de instrução não existe “segredo”, na medida em que ele também está coberto pelo segredo.
Assim, em resumo, e voltando ao início das questões suscitadas no recurso, compete ao M.P. decidir, num primeiro momento - o do inquérito -, segundo a sua perspectiva (de titular do inquérito), o que pode/deve ser apreendido, o que se revela com interesse para a prova; compete, por seu turno, ao juiz de instrução, controlar/garantir a regularidade das apreensões.
E foi isto que sucedeu aquando da efectivação das buscas em causa, não tendo ocorrido, as nulidades suscitadas pelos recorrentes.” (fim de citação).
Com inteireza, significamos que não se nos oferece aduzir mais elementos que permitam fazer compreender aos destinatários o entendimento que temos sobre o grau de participação que nos é legalmente exigível, no decurso de uma busca com estes destinatários.
Aliás, concorda-se, na íntegra, com a douta e bem elaborada promoção do M.º P.º supra transcrita, que aqui se dá por integralmente reproduzida, por ilustrar com suficiente argumentação o entendimento que perfilhamos.
Com tais fundamentos de facto e de direito aos quais nos arrimamos e que nos escusamos de repetir, por mera economia processual, não se reconhecem as arguidas nulidades e irregularidades, julgando improcedentes todas as invalidades arguidas.
Notifique.
D.N.

Apreciemos.

Verificação de nulidade insanável por incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal

No entender da recorrente, ocorreu a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea e), do CPP – violação das regras de competência do tribunal – porquanto, o despacho do Ministério Público datado de 18/06/2021, determinativo da realização da busca efectuada aos 06/07/2021, “refere apenas estar em investigação o crime de fraude fiscal, não incluído nos casos de competência do TCIC previstos no artigo 120.º da LOSJ” e o despacho do Mmº JIC, de 22/06/2021, que declarou a quebra de sigilo da correspondência e autorizou, no âmbito da busca a realizar, o acesso a todos os elementos informáticos contidos nos computadores e outros documentos abrangidos por sigilo existentes no local a buscar, bem como consignou que “caso venham a ser copiados ficheiros de correspondência, os mesmos deverão ser inseridos em suporte digital autónomo a apresentados ao JIC, para exame e decisão sobre a sua junção – ex vi dos artigos 179º, nº 3 a artº 188º, nºs 1 e 4 e ambos do CPP”, apenas pode ter tido em conta esse tipo criminal.

Efectivamente, do despacho do Ministério Público supra referido resulta que se menciona expressamente a susceptibilidade dos factos tidos por indiciados integrarem o crime de fraude fiscal, p. e p. pelos arts. 103º nº 1 al. c) e 104º, nº 3 do RGIT.

E, o Mmº JIC, ao despachar em 22/06/2021 nos termos mencionados, teve em consideração apenas o promovido pelo Ministério Público, a saber:

“No decurso dessas buscas, pode ser localizada correspondência postal não aberta e, por via da pesquisa informática ordenada, ser encontrado correio electrónico e registos de comunicações, que se mostrem relacionadas com os fatos em investigação ou possam servir a prova dos mesmos.

A fim de prevenir essa possibilidade, o MP promove que, nos termos dos arts. 179º e 269º nº 1 al. e) do CPP e dos arts. 11º, nº 1 al. c), 15º e 17º da Lei nº 109/2009 de 15/09, seja autorizada a recolher dessa correspondência postal e electrónica, esta última para suporte digital autónomo, a fim de toda ela ser apresentada ao Mº Juiz de Instrução, sem ser aberta, nos termos e para os efeitos do art. 10º nº 1 da Lei nº 109/2009 de 15/09.”

Não foi assinalado qualquer outro tipo criminal e, designadamente, o de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, do Código Penal.

Porém, vero é que no despacho do Ministério Público de 05/03/2021 – fls 137/140 dos autos principais - sob a epígrafe “Objecto da Investigação” se refere expressamente que “(…) constitui objecto da investigação a prática de crimes de Fraude Fiscal Qualificada, p. e p. pelo disposto nos artºs 103º nº 1 al. c) e nº 2 e 104º nº 3 do RGIT, bem como crime de Branqueamento de Capitais, p. e p. pelo disposto no artº 368º-A nºs 1 e 2, todos do Código Penal”.

E o Mmº JIC (igualmente subscritor do despacho recorrido), em despacho de 08/03/2021 – fls. 143 a 147 dos autos principais -, também menciona que “está em causa nos presentes autos, para além do mais, a eventual prática de crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo disposto nos art.ºs 103.º n.º al. c) e n.º 2 e 104.º n.º 3 do RGIT e de branqueamento de capitais, p. e p. pelo disposto no art.º 368.º-A, n.ºs 1 e 2 todos do Código Penal.”

Ou seja, indubitavelmente, os crimes integradores do objecto da investigação em curso nos autos de inquérito são os mencionados e não apenas o de fraude fiscal qualificada que consta do despacho do Ministério Público de 18/06/2021 e do mandado de busca.

De acordo com o estabelecido no artigo 120º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (Lei da Organização do Sistema judiciário), na versão introduzida pela Lei nº 40-A/2016, de 22/12, a competência para proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, quando a actividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes à área de competência de diferentes tribunais da Relação, cabe ao tribunal central de instrução criminal, quanto a crimes (entre outros): “branqueamento de capitais” – alínea e); “infrações económico-financeiras cometidas de forma organizada, nomeadamente com recurso à tecnologia informática” – alínea j); e “infrações económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional” – alínea k).

Como se deixou dito, estando em causa nos autos principais de inquérito também o crime de branqueamento de capitais, verificado estava já um dos pressupostos da competência do TCIC.

Mas, importa também ter em atenção as infracções elencadas nas alíneas j) e k).

A lei não define o conceito de “infrações económico-financeiras” mas, de acordo com o entendimento de Saragoça da Mata, O Sistema de Prevenção e Investigação dos Crimes Financeiros, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Abril de2017, pág. 81, citado por Ana Duarte Correia em A Investigação Criminal no Crime Económico, pág. 12, (consultável em https://eg.uc.pt), “criminalidade económico-financeira será aquela que viola os bens jurídicos que emergem da regulação constitucional e legal da realidade económico financeira- obtenção, gestão e dispêndio de meios financeiros públicos: são estes os bens jurídicos a tutelar.”

De onde, conclui a referida autora, “deverão por isso ser aqui incluídos os crimes contra ou cometidos por o sector empresarial público ou privado, bem como o direito tributário, o direito fiscal, e a atividade bancária ou parabancária, a atividade das seguradoras, e por fim dos fundos e valores mobiliários”.

Este é também o entendimento que perfilhamos e, visto que a acção que conforma o crime de fraude fiscal qualificada causa prejuízo financeiro ao Estado, porquanto se traduz numa diminuição de receitas tributárias, integra as infracções desta natureza.

E, no caso em apreço estamos também perante infracção (indiciariamente) cometida de forma organizada e de dimensão internacional ou transnacional.

Na verdade, como bem assinala o Magistrado do Ministério Público na sua resposta à motivação de recurso:

“ (…) a expressão “de forma organizada” utilizada no art. 120º nº 1 da LOSJ e no art. 58º nº 1 do EMP tem que ver com a complexidade, com a tecnicidade e com a sofisticação e racionalidade dos meios e instrumentos utilizados no cometimento e na dissimulação do crime e não com a necessária presença de uma associação criminosa.

Por outro lado, a dimensão internacional ou transnacional dos crimes decorre da circunstância de terem sido cometidos em mais de um Estado ou, tendo sido cometidos num único Estado, uma parte relevante da sua preparação, planeamento, direcção ou controlo teve lugar noutro Estado, ou envolveu uma organização criminosa que pratique crimes em mais de um Estado, ou produzam efeitos sustanciais noutro Estado (Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional – art. 3º nº 2)”. (fim de citação)

Ora, resulta dos autos, o seguinte:

(…)

No sub judice, está em causa (entre o mais) crime de fraude fiscal, para (indiciariamente, claro), como ainda se assinala na mesma resposta do Ministério Público à motivação de recurso, “execução do qual a EDP e o consórcio internacional liderado pela francesa ENGIE prepararam, planearam e edificaram um engenhosa construção jurídica que envolveu uma teia de sucessivas operações de criação e fusão de empresas para concretização e dissimulação de um negócio de compra e venda de ativos (6 barragens), com o único objectivo de não pagar ao Estado os impostos que lhe seriam devidos por esse negócio de compra e venda (…)”.

De onde, a conclusão por se indiciar infracção cometida de forma organizada e bem assim de dimensão internacional ou transnacional.

(…)

Assim, (ainda indiciariamente) a actividade criminosa ocorreu em comarcas pertencentes à área de competência de diferentes Tribunais da Relação.

Destarte, a competência para o exercício das funções jurisdicionais relativas ao inquérito cabe ao Tribunal Central de Instrução Criminal.

Face ao, que não se verifica a apontada nulidade prevista no artigo 119º, alínea e), do CPP, nem irregularidade alguma, improcedendo o recurso neste segmento.

Nulidade das diligências de busca e apreensão, por efectuadas em morada diferente da do local ordenado buscar/irregularidade do despacho do MP por falta de fundamentação

Sustenta ainda a recorrente a nulidade ou, pelo menos, a irregularidade, da busca e apreensões efectuadas, por via de terem ocorrido em morada diferente da que consta do despacho do Ministério Público que aquela determinou.

Conforme consta do despacho do Ministério Público de 18/06/2021, ordenou o titular da acção penal a realização de busca no seguinte local: R... - 5º Piso - ....-... - Porto, sede da M. I (anteriormente “AP”) e da M. II (anteriormente “C. ”).

Foi emitido mandado de busca e apreensão para esse exacto local.

Pois bem.

Estabelece-se no artigo 174º, do CPP:

1-Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.

2-Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca. (…)”.

E, extrai-se do nº 2, do artigo 176º, do mesmo Código, que a busca é realizada num “lugar”, quer dizer, num local determinado.

Ora, resulta do respectivo auto de busca e apreensão que a busca realizou-se no preciso local indicado no despacho do Ministério Público e mandado de busca.

Só que, diz a recorrente, à data da prolação do despacho e emissão do mandado esse era o local da sede das sociedades “M. I” (anteriormente “AP”) e “M. II” (anteriormente “C. ”), mas à da realização da busca – em 06/07/2021 – tinha já ocorrido uma fusão entre a “M. I” e a “M. II”, através da qual a primeira incorporou a segunda, sendo alterada a denominação para “M. – , S.A.” e mudado a sua sede para Aproveitamento Hidroelétrico de Miranda do Douro.

Mas, a verdade é que se verifica perfeita identidade (coincidência) entre o local (morada) onde a busca foi efectuada e a constante do despacho que a determinou, sendo certo que, conforme se extrai do mencionado auto de busca, nela foram apreendidos diversos documentos relativos às sociedades “M. II”, “M. I, S.A.”, “AP, S.A.” e “C. , S.A” – visadas nos presentes autos - o que conduz à conclusão de que a alegada mudança da sede estatutária (e denominação) foi apenas formal ou, pelo menos, mantinha-se à data a originária de facto, pois nela também se encontrava a sua direcção e os postos de trabalho dos colaboradores.

Por outro lado, a sociedade “M. I, S.A.” mantinha a sua existência, ainda que sob outra denominação.

Assim sendo, não se verifica a assinalada nulidade ou irregularidade, nem obliteração das normas ínsitas nos artigos 1º, 2º, 18º, 20º, 26º, 34º e 272º, da Constituição da República Portuguesa.

Subsidiariamente, pugna a recorrente por o despacho lavrado pelo Ministério Público a determinar a diligência de busca se encontrar insuficientemente fundamentado, não permitindo compreender que “"indícios" de se encontrarem "objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova" ou de que "o arguido ou outra pessoa que deva ser detida" existiriam por referência à morada efetivamente buscada”.

O despacho em causa incorpora um acto decisório do Ministério Público e, como tal, está sujeito, por força da exigência geral prevista no artigo 97º, nº 5, do CPP, ao dever de fundamentação.

Conforme se extrai da “certidão de entrega de mandado de busca e apreensão” de fls. 641 dos autos, foi entregue ao titular da disponibilidade das instalações onde se realizou a busca cópia do despacho do Ministério Público que ordenou a sua emissão.

E neste despacho mencionam-se os factos considerados indiciados, os elementos probatórios existentes no processo que levaram à conclusão pela sua existência (ainda que de forma sucinta, suficientemente esclarecedora, tendo em conta a fase processual de inquérito), o respectivo enquadramento jurídico-penal e os elementos que permitiam a conclusão pela necessidade do recurso ao meio de obtenção de prova em causa e respectiva adequação às finalidades do processo.

Face ao que, o despacho do Ministério Público se apresenta como adequadamente fundamentado.

Nulidade das diligências de busca e apreensão, por realizadas em escritório de advogado sem a presença do JIC e de representante da Ordem dos Advogados

Considera também a recorrente que a diligência de busca (e apreensão) é nula por ter sido realizada em escritório de advogado sem a presença do Juiz de Instrução Criminal, a quem incumbia presidir à diligência, e sem a presença de representante da Ordem dos Advogados.

Antes de mais, importa se deixe frisado que o despacho recorrido incorre em manifesta desconformidade com a realidade quando afirma que o Juiz que presidiu à diligência esteve presente em todas as fases de selecção e apreensão de documentos, apenas deixando ao cuidado dos peritos informáticos, autorizados a estarem presentes, a realização, necessariamente morosa, das cópias de ficheiros informáticos, aguardando, para controlar o resultado de tal operação técnica, pelo que nenhum acto material de carácter processual foi realizado sem a sua presença.

Com efeito, a diligência não foi presidida por juiz algum.

Quanto à busca ter sido realizada em escritório de advogado sem estar presente o JIC e o representante da Ordem dos Advogados, o que conduziria à sua nulidade, a recorrente não tem razão.

A busca em escritório de advogado é nula, se não for presidida pessoalmente pelo juiz, o qual avisa previamente o presidente do conselho local da Ordem dos Advogados para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente – artigo 177º, nº 5, do CPP.

De acordo com o auto de busca, numa sala das instalações visadas na diligência, partilhada com outros dois colaboradores sem separação física, existia um posto de trabalho afecto ao Dr. GR, director jurídico da “M. , S.A.” e advogado.

Esta situação era, porém, desconhecida do titular da acção penal que determinou a busca.

Estabelece-se no artigo 75º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados:

1-(…) as buscas e diligências equivalentes no escritório ou sociedade de advogados ou em qualquer outro local onde faça arquivo, assim como a interceção e a gravação de conversações ou comunicações, através de telefone ou endereço eletrónico, utilizados pelo advogado no exercício da profissão, constantes do registo da Ordem dos Advogados, só podem ser decretados e presididos pelo juiz competente.”

Ora, certidão emitida pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados atesta que à data da diligência o advogado mencionado não tinha domicílio profissional na morada visada na busca e nem consta do registo da Ordem dos Advogados que ali fizesse arquivo, como assinala o Magistrado do Ministério Público na sua resposta à motivação de recurso.

Porque assim é, a sala partilhada onde se encontrava o posto de trabalho do Sr. Dr. advogado não pode ser considerada como escritório ou arquivo de advogado, não se impondo a formalidade plasmada no artigo 177º, nº 5, do CPP.

De qualquer modo, consta expressamente do já referido “Auto de Busca e Apreensão” que a secretária de trabalho e respectivo computador do Sr. Dr. advogado não foram objecto de busca e apreensão, inexistindo quaisquer elementos nos autos que comprovem o contrário.

Termos em que, verificada não está a arguida nulidade.

Nulidade da prova recolhida no decurso das diligências de busca e apreensão efectuadas aos 06/07/2021

Com fundamento na verificação das nulidades/irregularidades das diligências de busca e apreensão, a recorrente aduz a nulidade de toda a prova recolhida, nos termos e para os efeitos do artigo 126º, nº 3, do CPP, que deverá, em seu entender, ser rejeitada e determinado o respectivo desentranhamento dos autos.

Com vimos, as ditas invalidades não estão presentes e, por conseguinte, as provas obtidas não enfermam de nulidade.

Pelo exposto, cumpre negar provimento ao recurso.


III–DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto por “M.–, S.A.” e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC.



Lisboa, 31 de Maio de 2022



(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)


                                  
(Artur Vargues)                                  
(Jorge Gonçalves)