Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
131/17.8SXLSB.L1-3
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: CRIME DE ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE PROGRAMAÇÃO E INFORMAÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O atentado contra a liberdade de programação e informação é um crime exclusivamente doloso, com dolo específico no que diz respeito ao impedimento ou à perturbação de emissão televisiva e à apreensão ou dano de materiais necessários ao exercício da atividade da televisão.

Não se tendo provado actuação dolosa dirigida à violação do bem jurídico tutelado pela norma, é manifesto que se mostra por preencher, pelo menos, um dos elementos do tipo, o que determina, forçosa e necessariamente, a absolvição do arguido da prática do crime cuja prática lhe era imputada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


*



I–RELATÓRIO:


1.– Por sentença de 02-12-2020, foi proferida a seguinte decisão, na parte que ora nos importa:
a)-Absolvem-se os arguidos HF, CS e RJ da prática de todos os crimes de que se encontram acusados;
(…)
Parte civil:
(…)
d)-Julga-se o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente “Rádio e Televisão de Portugal, S.A.” contra os arguidos HF, CS e RJ totalmente improcedente, por não provado, e, em consequência, absolvem-se estes do referido pedido.
2.–Inconformada, veio a assistente rádio e televisão de portugal, s.a interpor recurso, pedindo que o arguido CS seja condenado pela prática do crime de atentado contra a liberdade de programação e informação, previsto e punido pelo artigo 74.°, n.° 1, da Lei da Televisão, e, consequentemente, declarado procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela Recorrente,
3.–O recurso foi admitido quanto à parte criminal e não foi admitido quanto à parte cível (por o valor do pedido não ser superior à alçada do tribunal recorrido).
4.–O Ministério Público e o arguido responderam à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.
5.– O Exº PGA emitiu parecer em idêntico sentido.

II–QUESTÃO A DECIDIR.

Errado enquadramento jurídico.

III–FUNDAMENTAÇÃO.

1.A decisão deu como assentes os seguintes factos:
2.1.1.1) Provados:
1°)A “Rádio e Televisão de Portugal, S.A.” (em diante, designada apenas por “RTP”) é uma sociedade comercial anónima, que se dedica à prestação do serviço público de televisão.
2°)No dia 30.03.2017, às 16h15m, o “assistente”) e LRL , que constituíam, então, uma equipa de reportagem da RTP, respectivamente, como repórter de imagem e jornalista, deslocaram-se à Escola do Ensino Básico, do 1° Ciclo, sita na Rua ... ..., no ... ..., em Lisboa, com o intuito de realizar uma reportagem, atinente a uma situação de alegado abuso sexual de uma criança.
3°)Na ocasião referida em 2), o assistente deu início às filmagens.
4°)Após, o arguido César, movendo o braço de cima para baixo, desferiu uma palmada na câmara de filmar que o assistente utilizava, determinando que aquela câmara passasse a gravar de um modo desordenado.
5°)De seguida, o assistente, perante a palmada que tinha sido desferida na aludida câmara, recuou.
6°)Seguidamente, um indivíduo do sexo masculino cuja identificação não se logrou apurar, seguiu no encalço do assistente e levantou no ar um banco de metal.
7°)Acto contínuo, o assistente, apercebendo-se de que o referido indivíduo o ia atingir com o aludido banco na cabeça, colocou o seu braço esquerdo à frente da cabeça para melhor se defender.
8°)De imediato, o mesmo indivíduo desferiu uma pancada com o referido banco, que atingiu o assistente no referido braço e na cabeça.
9°)A pancada referida em 8) projectou o assistente para o chão e determinou que a câmara mencionada em 4) tivesse, tal-qualmente, sido projectada para o chão.
10°)Em virtude do ante descrito, a bracelete do relógio que o assistente trazia no pulso soltou-se do relógio, tendo ambos os artigos caído ao chão.
11°)Nessa altura, o arguido R. , que se encontrava a visionar os acontecimentos, apanhou o relógio do assistente e levou-o consigo, fazendo-o seu.
12°)Como consequência directa e necessária da pancada referida em 8), o assistente sofreu traumatismo craniano sem perda de conhecimento, ferida no couro cabeludo, fractura da estiloide radial esquerda e traumatismo peri-orbitário.
13°)As lesões referidas em 12) determinaram ao assistente 110 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional, por igual período de tempo.
14°)E, determinaram, como consequências permanentes, «status» pós fractura da estiloide radial esquerda, sem repercussão estética ou funcional.
15°)A câmara de filmar referida em 4) era propriedade da RTP e tinha o valor de, pelo menos, € 4.287,83.
16°)Em consequência da projecção ao chão da câmara referida em 9), a mesma sofreu danos e ficou, durante um período de tempo não concretamente apurado, inoperacional.
17°)O relógio referido em 10) era da marca Aldo e valia aproximadamente € 20,00.

18°)Ao actuar do modo supra descrito, no que concerne à situação do relógio, o arguido R. :
-Agiu com o propósito de se apoderar do relógio do assistente, com vista a fazê-lo seu, sabendo que este não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do seu legítimo dono;
-Agiu deliberada, livre e conscientemente;
-Sabia que a sua actuação era proibida e punida por lei penal.
19°) No certificado do registo criminal do arguido R. , consta que este foi condenado:

Data
Factos
Data DecisãoData
Trânsito
Crime
(Entre parêntesis, número de crimes)
Pena
(D=dia)
16.01.2016
17.01.2016
18.01.2016
26.09.201928.10.2019Furto qualificado (3) / Furto simples350D, a € 6

20°)O arguido R. não desejou prestar declarações quanto às suas condições pessoais e patrimoniais.
21°)No certificado do registo criminal do arguido HF_ , consta que este foi condenado:

Data
Factos
Data
Decisão
Data
Trânsito
Crime
(Entre parêntesis, número de crimes)
Pena
(A=ano / M=mês)
Outubro
2004
Outubro
2006
07.02.200827.02.2008Abuso de Confiança / Coacção / Roubo4A6M prisão
12.02.200529.11.201011.01.2011Roubo1A8M prisão
19.06.201617.05.201716.06.2017Furto qualificado3A3M prisão, suspensa 3A3M (c/regime prova)

22°)O arguido HF_ não desejou prestar declarações quanto às suas condições pessoais e patrimoniais.
23°)No certificado do registo criminal do arguido César, consta que este foi condenado:
Data
Factos
Data
Decisão
Data
Trânsito
Crime
(Entre parêntesis, número de crimes)
Pena principal
(A=ano / M=mês / D=dia / H=hora)
23.06.200804.10.201103.011.2011Furto qualificado11M prisão, substituída 330D multa, a € 5
01.01.201118.04.201320.05.2013Tráfico de menor gravidade5M prisão, suspensa 1A (c/regime prova)
Janeiro
2009
18.07.201301.10.2013Detenção de arma proibida150D, a € 8
11.08.201321.11.201405.01.2015Arremesso de objectos ou de produtos líquidos240D prisão, substituída por 240H trabalho
16.07.201519.11.201819.12.2018Ofensa à integridade física simples / Sequestro3A prisão, suspensa 3A (c/regime prova)

23°-A) O arguido CS_ não desejou prestar declarações quanto às suas condições pessoais e patrimoniais.
24°)No certificado do registo criminal do arguido RR , nada consta.
25°)Em decorrência de ter sido agredido fisicamente, o assistente ficou com medo de voltar a ser alvo de agressões semelhantes, em situações em que tem de realizar a cobertura televisa de situações que impliquem uma grande concentração de pessoas.

2.– Deu ainda como não provada a seguinte matéria:
2.1.1.2) Não provados:
26°)Na ocasião referida em 3), após o início das filmagens aí mencionadas, os arguidos HF_ , CS_ e RR , visando impedir aquele de proceder a filmagens no local, cercaram o assistente.
27°)Em decorrência da acção do arguido CS_ descrita em 4), a câmara aí mencionada foi projectada para o chão.
28°)Na ocasião referida em 5), o assistente, visando evitar ser atingido na sua integridade física pelos arguidos HF_ , CS_ e RR , encetou fuga, em passo de corrida, tendo aqueles seguido em seu encalço, igualmente, em passo de corrida.
29°)Poucos metros mais à frente, os arguidos HF_ , CS_ e RR alcançaram o assistente.
30°)O indivíduo referido em 6) era o arguido HF_ .
31°)O banco referido em 6) encontrava-se junto a um caixote do lixo.
32°)Após a projecção ao chão do assistente referida em 9), e aproveitando esta circunstância, os arguidos HF_ , CS_ e RR desferiram vários e violentos pontapés que atingiram o assistente por todo o corpo, o que determinou que um ténis que um deles tinha calçado lhe saltasse do pé.
33°)A bracelete referida em 10) se soltou do mostrador do relógio aí mencionado.
34°)As lesões referidas em 12) resultaram da actuação concertada dos arguidos HF_ , CS_ e RR .
35°)A inoperacionalidade descrita em 16) foi decorrente da actuação dos arguidos HF_ , CS_ e RR .
36°)Ao actuarem do modo supra descrito, os arguidos HF_ ,CS_ e RR :
- Agiram de acordo com um plano previamente elaborado entre si;
- Agiram com o propósito concretizado de perturbar a emissão televisiva da RTP, com vista a atentar contra a liberdade de informação, o que conseguiram;
- Agiram com o propósito de inutilizar a câmara de filmar com a qual se encontravam a ser feitas as filmagens, o que conseguiram;
- Agiram com o propósito de atingirem o assistente no seu corpo, o que conseguiram;
- Agiram livre, deliberada e conscientemente;
- Sabia que a actuação de cada um era proibida e punida por lei penal.

3.–E pronunciou-se nos seguintes termos, em relação ao enquadramento jurídico da apurada conduta do arguido:
2.2) De direito:
2.2.1)Enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos
(…)
2.2.1.2) Pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de atentado contra a liberdade de programação e informação, previsto e punido nos termos do artigo 74°, n.° 1, da Lei da Televisão, aprovada pela Lei 27/2007, de 30.07:
Sob a epígrafe “Atentado contra a liberdade de programação e informação ”, preceitua o artigo 74° da Lei da Televisão:
1 - Quem impedir ou perturbar o exercício da actividade televisiva ou a oferta ao público de serviços audiovisuais a pedido, ou apreender ou danificar materiais necessários ao exercício de tais actividades, fora dos casos previstos na lei e com o intuito de atentar contra a liberdade de programação e informação, é punido com prisão até 2 anos ou com multa até 240 dias se pena mais grave lhe não couber nos termos da lei penal.
2 - A aplicação da sanção prevista no número anterior não prejudica a efectivação da responsabilidade civil pelos prejuízos causados à entidade emissora.
3 - Se o infractor for agente ou funcionário do Estado ou de pessoa colectiva pública e, no exercício das suas funções, praticar os factos descritos no n.° 1, é punido com prisão até 3 anos ou com multa até 320 dias se pena mais grave lhe não couber nos termos da lei penal."
E, sob a epígrafe “Definições”, prescreve o artigo 1° da Lei da Televisão:
1 - Para efeitos da presente lei, entende-se por:
a)- «Actividade de televisão» a actividade que consiste na organização, ou na selecção e agregação, de serviços de programas televisivos com vista à sua transmissão, destinada à recepção pelo público em geral;”
São elementos constitutivos do tipo, que necessariamente apenas pode ser punido a título doloso, que o agente:
- Impeça ou perturbe o exercício da actividade televisiva ou a oferta ao público de serviços audiovisuais a pedido, ou apreenda ou danifique materiais necessários ao exercício da actividade televisiva ou de oferta ao público de serviços audiovisuais a pedido;
- A acção do agente não esteja prevista na lei;
- Aja com o intuito de atentar contra a liberdade de programação e informação (elemento subjectivo do tipo).
*
Quanto aos arguidos HF_ e RR :
(…)
*
No que concerne ao arguido C :
Em primeiro lugar, há que elucidar que, em face da descrição do objecto da acusação, mormente pela construção do elemento subjectivo (“Ao actuar da forma descrita, os três arguidos: HF_ , CS e RR agiram livre, deliberada, e conscientemente, de acordo com um plano previamente elaborado entre si, com o propósito concretizado de perturbar a emissão televisiva da RTP, com vista a atentar contra a liberdade de informação, o que conseguiram.” - sublinhados do tribunal), apenas pode estar em causa a perturbação da emissão televisiva da RTP, ou seja, da actividade televisiva da RTP (e não o acto de impedir o exercício da actividade televisiva da RTP), com vista a atentar contra a liberdade de informação (e não de programação), caso em que, para que os arguidos pudessem ser condenados, sempre seria necessário que o Ministério Público tivesse feito constar tal descrição, em termos subjectivos, na acusação.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358° do Código de Processo Penal.” (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2015, publicado no Diário da República, 1a série, n.° 18, de 27.01.2015).
De todo o modo, ainda que, hipoteticamente, se admitisse que se encontrava preenchido o elemento objectivo do tipo de crime em apreço, o que não se concede, quer porque a reportagem que a equipa da RTP estava a efectuar não se compreende no conceito de “Actividade de televisão", tal como se encontra definido na Lei da Televisão (a reportagem, salvo melhor opinião, não consubstancia uma acção de organização, selecção e agregação de serviços de programas televisivos com vista à sua transmissão), quer porque, mesmo que se admitisse que a reportagem se compreende naquele conceito, uma simples palmada, ainda que com violência, numa câmara de filmar aquando da recolha de imagens durante uma reportagem jamais poderia ser considerada uma perturbação da actividade televisiva (aliás, se assim se considerasse, o elemento objectivo do tipo em apreço, bastar-se-ia preenchido, em termos objectivos, com um mero impedimento de recolha de imagens, como sucede, por exemplo, e de forma amiúde e ostensivamente notória, com a colocação de uma mão, por parte de uma pessoa, à frente da câmara de filmar), o certo é que, não resulta da factualidade provada que o arguido C , ao agir do modo que factualmente se encontra demonstrado, tenha agido com o intuito de atentar contra a liberdade de informação da RTP.
Deste modo, sem necessidade de tecer mais considerações, porque despiciendas, impõe-se absolver também este arguido da prática do crime em apreciação e pelo qual se encontra acusado.

4.– Em sede conclusiva, a assistente avança as seguintes razões de discórdia:
I.- A acusação contém todos os elementos necessários à sua cabal compreensão pelos arguidos, incluindo a descrição dos elementos subjectivos do crime, uma vez que o Ministério Público descreve o estado subjectivo dos arguidos (em especial, do arguido CS_ , ao referir que actuaram «livre, deliberada e conscientemente» - ou seja, de forma dolosa -, e à intenção específica dos arguidos (em especial, do arguido CS_ : «com o propósito concretizado de perturbar a emissão televisiva da RTP, com vista a atendar contra a liberdade de informação» (cfr. ponto 21 da acusação).
II.- A ausência de tal descrição constitui uma nulidade da acusação (cfr. artigo 283.°, n.° 3, alínea b), do CPP) - vício que, dependendo de arguição (cfr. artigos 118.° e 120.° do CPP), não foi invocado por qualquer um dos arguidos nem conhecido pelo tribunal a quo no momento do saneamento do processo (cfr. artigo 311.°, n.° 1, do CPP) e que, a existir (no que não se concede), impunha a rejeição da acusação e a não prossecução dos autos para julgamento, devendo, consequentemente, considerar-se sanada desde a prolação do despacho que designou a data para realização da audiência de julgamento.
III.- O facto de o arguido CS não ter apresentado contestação e não ter prestado declarações sobre os factos não significa que não possa ser condenado pela prática do crime em causa, na medida em que seja possível retirar dos elementos de prova constantes dos autos (e, em especial, do contexto em que ocorreram os factos) a sua intenção ao actuar do modo descrito no facto provado n.° 4 da sentença recorrida.
IV.- O arguido nunca se dirigiu à equipa de jornalista solicitando que não fosse gravada a sua imagem, de onde se retira que, ao actuar do modo descrito no facto provado n.° 4, o arguido quis perturbar a recolha de quaisquer imagens e, bem assim, a elaboração da reportagem, sabendo que a forma mais eficaz de o fazer era através de um "ataque" à câmara de filmar.
V.- Olhando ao contexto da ação, é claro que o arguido:
a.- Quis atentar contra a liberdade de programação e de informação da Recorrente, desferindo, para o efeito, uma palmada na câmara de filmar de modo a perturbar a recolha de imagens (se assim não fosse, por que motivo, então, desferiu uma palmada na câmara de filmar?); e
b.- Sabia que tal comportamento era um meio idóneo e apto a causar o resultado pretendido.
VI.- Constituem elementos objectivos do crime de atentado contra a liberdade de programação e de informação, p.p. pelo artigo 74.°, n.° 1, da Lei da Televisão:
a.-O impedimento ou perturbação da actividade televisiva ou oferta o público de serviços audiovisuais a pedido ou a apreensão ou danificação de materiais necessários ao exercício da atividade televisiva ou de oferta ao público de serviços audiovisuais a pedido; e
b.- A não previsão da conduta na lei.
VII.- A organização da actividade televisiva implica, entre outras coisas, a selecção dos temas relevantes e a realização, em condições de normalidade, das reportagens destinadas a dar-lhes cobertura, sendo a emissão de programas - um dos quais o Telejornal, onde se destinava a ser inserida a peça jornalística cuja gravação se pretendia - uma parte relevante da actividade televisiva da RTP.
VIII.- Para que se verifiquem os elementos objectivos do tipo previsto no artigo 74.°, n.° 1, da Lei da Televisão é necessário que o infractor, não tendo justificação para o efeito, impeça o exercício da actividade televisiva - isto é, que impossibilite a realização de reportagens e a consequente edição e emissão de programas televisivos - ou que a perturbe - ou seja, que dificulte a realização de reportagens e a respectiva edição e emissão).
IX.- No exercício da sua actividade televisiva (definida no artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Lei da Televisão como «a actividade que consiste na organização, ou na selecção e agregação, de serviços de programas televisivos com vista à sua transmissão, destinada à recepção pelo público em geral»), a RTP considerou relevante a realização de uma reportagem na Escola Básica ..., a respeito de uma situação de alegado abuso sexual de uma criança, para transmissão no Telejornal de dia 30 de Março de 2017.
X.- O arguido CS_, ao actuar do modo descrito no facto provado n.° 4 da sentença recorrida, impediu que a recolha das imagens necessárias à emissão da reportagem projectada ocorresse em condições de normalidade, assim perturbando o exercício da actividade televisiva da Recorrente.
XI.- É evidente o propósito do artigo 74.°, n.° 1, da Lei da Televisão: proteger os operadores televisivos (mormente, a RTP) contra interferências injustificadas no exercício da sua actividade, como forma de garantia do exercício das liberdades de programação e de informação, corolários da liberdade de imprensa, constitucionalmente consagrada como um direito fundamental num Estado de Direito democrático.
XII.- É, também, evidente que o arguido CS_ , ao actuar do modo descrito, perturbou injustificadamente o exercício da actividade televisiva pela Recorrente, porquanto (i) impediu que a mesma fosse exercida em condições de normalidade, afectando a capacidade de informar da RTP, que, como consequência do comportamento do arguido, viu perturbado o estado de normalidade necessário à realização da reportagem (que, por força dos acontecimentos, passou a ter um objecto distinto do que se pretendia), e (ii) a sua conduta não está prevista na lei.

5.–Apreciando.

Circunscrevendo o âmbito deste recurso temos de referir, em primeiro lugar, que apenas se mostra posto em crise o enquadramento jurídico relativo ao crime imputado ao arguido CS_ (um crime de atentado contra a liberdade de programação e informação, previsto e punido nos termos do artigo 74°, n.° 1, da Lei da Televisão, aprovada pela Lei 27/2007, de 30.07) e a subsequente decisão de absolvição, o que se fundará, presume-se (uma vez que a recorrente não faz constar quais as normas que se mostram violadas nem qual o fundamento jurídico, expresso na lei, que pretende invocar) em erro de direito, nos termos do artº 410 nº1 do C.P. Penal, na perspectiva do enquadramento jurídico factual realizado.
Com efeito, a recorrente não questiona a matéria factual dada como assente pelo tribunal “a quo”, nem a fundamentação realizada a esse propósito e, como tal, nessa parte, a decisão prolatada pelo tribunal “a quo” mostra-se definitivamente determinada e será com base na mesma (até porque se não vislumbra a existência de qualquer um dos vícios enunciados no artº 410 nº2 do C.P. Penal) que faremos a peticionada apreciação.

6.–Prosseguindo.
Apreciemos então os fundamentos relativos à única questão em debate nos autos e que se reconduz ao entendimento, da banda da recorrente, de que a matéria fáctica dada como assente se mostra incorrectamente integrada, em termos jurídicos, por considerar ser a mesma preenchedora dos requisitos previstos no crime acima mencionado.

7.–Começaremos por dizer que a questão relativa à eventual ausência, em sede de acusação, de elementos factuais que impedissem o preenchimento do tipo, nunca se poderia considerar sanada, no sentido que a recorrente defende. De facto, se tal questão não tiver sido atempadamente detectada na fase própria (aquando da prolação do despacho previsto no artº 311 do C.P. Penal), a verdade é que, em sede de decisão final, a constatação de tal insuficiência acarretará, forçosamente, a conclusão de ser impossível o preenchimento do tipo de ilícito imputado e, decorrentemente, a absolvição do acusado.
Para além do mais, como de seguida se referirá, nem é esse sequer o cerne decisório deste recurso, pois uma outra questão determina, desde logo, a manifesta improcedência do pedido que a recorrente formula.

8.–Efectivamente, basta a leitura da matéria de facto provada e não provada, para se constatar algo de singelo: não se mostra dado como provado que o imputado C tenha actuado com intenção de praticar um acto violador de qualquer norma protectora de um bem jurídico, criminalmente tutelado.
Nada consta, a esse propósito, em sede de matéria de facto dada como assente e mostra-se incluído no rol de factos dados como não provados que (os arguidos)agiram com o propósito concretizado de perturbar a emissão televisiva da RTP, com vista a atentar contra a liberdade de informação, o que conseguiram”.

9.–Ora, o crime pelo qual o arguido C vinha acusado, é um ilícito de natureza dolosa, como aliás a própria recorrente admite e como decorre da mera leitura do seu texto:
“1 - Quem impedir ou perturbar o exercício da actividade televisiva ou a oferta ao público de serviços audiovisuais a pedido, ou apreender ou danificar materiais necessários ao exercício de tais actividades, fora dos casos previstos na lei e com o intuito de atentar contra a liberdade de programação e informação, é punido com prisão até 2 anos ou com multa até 240 dias se pena mais grave lhe não couber nos termos da lei penal.

10.–Assim, independentemente do facto de se poder discutir se os elementos objectivos do tipo se mostram ou não preenchidos, bem como a questão de saber se os factos constantes na acusação, a terem-se todos provado, permitiriam ou não o preenchimento dos requisitos do ilícito, a verdade é que não restam dúvidas que o elemento subjectivo se mostra por preencher.
Como refere o arguido, na sua resposta, o atentado contra a liberdade de programação e informação é um crime exclusivamente doloso, com dolo específico no que diz respeito ao impedimento ou à perturbação de emissão televisiva e à apreensão ou dano de materiais necessários ao exercício da actividade da televisão. Com efeito, para além do dolo, o tipo subjectivo do ilícito exige uma intenção específica do agente que desenvolva uma das condutas descritas pela norma, qual seja, "O intuito de atentar contra a liberdade de programação e informação." - Helena Leitão e Manuel Ferreira, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora.

11.–Não se tendo provado actuação dolosa dirigida à violação do bem jurídico tutelado pela norma, é manifesto que se mostra por preencher, pelo menos, um dos elementos do tipo, o que determina, forçosa e necessariamente, a absolvição do arguido da prática do crime cuja prática lhe era imputada.

12.– E assim sendo, conclui-se que a decisão absolutória do arguido, proferida pelo tribunal “a quo”, se mostra correcta, não merecendo a crítica que a recorrente lhe dirige, pelo que deve ser mantida.

IV–DECISÃO.

Face ao exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pela assistente rádio e televisão de portugal, s.a, mantendo-se a decisão recorrida.
Condena-se a assistente nas custas e fixa-se a T.J em 4 UC.

Lisboa, 28 de Abril de 2021

Margarida Ramos de Almeida (relatora)
Ana Paramés