Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10188/19.1T8LSB.L2-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: ARRENDAMENTO
BEM LOCADO
USO
RESIDÊNCIA
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
1. Aludindo o art.º 1072.º n.º 1 do C.Civil à obrigação do arrendatário usar o locado para o fim contratado, ao ter sido acordado, ainda no âmbito da anterior legislação, que o locado se destinava a habitação, a obrigação do arrendatário é a de aí estabelecer a sua residência, dando à casa um uso efetivo e permanente.
2. O legislador veio alterar o modelo de regulação dos fundamentos de resolução do contrato de arrendamento, passando de uma enumeração taxativa dos fundamentos de resolução pelo senhorio, para uma cláusula geral que prevê no corpo do n.º 2 do art.º 1083.º, sendo necessário que o incumprimento pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do contrato, enumerando depois nas suas várias alíneas, a título de exemplo, como decorre da expressão “designadamente” situações que o podem revelar.
3. Quando o R. locatário sai do locado para ir viver com a sua mãe para Lisboa, onde trabalhava, para lhe dar assistência, o que durou pelo menos quatro anos, em que apenas esporadicamente foi ao locado, tendo após o falecimento da sua mãe passado a usar o arrendado apenas ao fim de semana, não cumpre a obrigação de usar o locado para o fim acordado nos termos previstos no art.º 1972.º n.º 1 do C.Civil.
4. Os factos não permitem dizer que a saída do R. do locado para ir residir para Lisboa, foi apenas uma situação transitória e que o mesmo sempre teria intenção de retornar ao arrendado, antes terão correspondido a uma efetiva mudança de residência do R., que alterou até os seus documentos oficiais que indicam a sua residência em Lisboa, não obstante o mesmo tenha mantido o locado para poder usar a casa de forma esporádica, essencialmente nos seus momentos de lazer, como faz agora para ir passar os fins de semana.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
A . vem intentar a presente ação contra B. pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento com ele celebrado e que o R. seja condenado a devolver o locado livre e devoluto.
Alega, em síntese, que a 1 de fevereiro de 1985 foi celebrado entre as partes o contrato de arrendamento que junta aos autos, para habitação, sendo que o R. nunca residiu no locado, nem sequer esporadicamente, nem ali recebe amigos, visitas ou correspondência, nem ali passa momentos de lazer, pelo que requer que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento e o R. condenado a entregar-lhe o imóvel.
Devidamente citado o R. veio contestar pugnando pela improcedência do pedido, impugnando os factos alegados pela A., referindo que apenas permanece menos tempo no locado por força da assistência que tem de prestar à sua mãe doente que dela necessita.
Por despacho de 26/01/2020 foi declarada a incompetência relativa do tribunal em razão do território para a ação e determinada a remessa do processo à Instância Local da Amadora, por ser a competente.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que afirmou a validade da lide, enunciando o objeto da ação, fixando os temas da prova e designando data para a realização da audiência de julgamento.
Em 15/06/2020 o R. veio apresentar requerimento ao processo, pedindo a final: “requer que seja declarada suspensa a presente ação nos termos da citada alínea c) do nº 6 do artigo 6º-A da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 19/2020, de 29 de maio, dando-se por sem efeito todos os atos praticados no processo desde a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de março, 18 de março de 2020, designadamente o despacho de marcação de data para audiência.”
A 18/01/2021 foi proferido o seguinte despacho que se reproduz:
“De acordo com a alteração legislativa promovida pela Lei n.º 4-A/2020, referia o nº 11 do art.º 7: Durante a situação excecional referida no n.º 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.  Considerando a situação do requerido e por se entender que a decisão a proferir neste processo poderia agravar essa fragilidade, ao abrigo do mencionado preceito suspendeu-se a presente acção até à revogação do regime citado. A Lei n.º 75-A/2020, procedendo à sétima alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, manteve o mencionado regime, com o preceituado no art.º 6º-A nº 6 al. c) desta lei, pelo que se determina a continuação da suspensão nestes autos à até à revogação do regime citado. Notifique. Conclua após três meses, caso o mencionado regime não seja, entretanto, revogado.”
A 17/05/2021 foi proferido novo despacho que se reproduz:
“Por se ter entendido que a decisão final a proferir neste processo poderia colocar o Réu numa situação de fragilidade por falta de habitação própria, foram os presentes autos de acção de despejo declarados suspensos. A Lei 13-B/2021, de 5 de Abril, que procedeu à décima alteração da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, manteve o regime de suspensão nas acções de despejo, com o preceituado no art.º 6º-E/7/c) desse diploma. Assim, determina-se a manutenção da suspensão destes autos até à revogação do regime legal citado. Notifique. Volvidos três meses conclua novamente, caso o regime legal não seja, entretanto, revogado.”
Por não se conformar com esta decisão, veio a A. dela interpor recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Por decisão sumária da Relatora foi julgado procedente o recurso, concluindo-se: “que não estando em causa qualquer ato de execução de entrega do locado, não tem qualquer cabimento a decretada suspensão do processo, alegadamente ao abrigo do disposto no artigo 6º-E, alínea c) da Lei 1- A 2020, de 19 de março na redação da Lei 13-B 2021 de 5 de abril, que como se viu não a pode legitimar, impondo-se a sua revogação como requerido, com o inerente prosseguimento dos autos.
Baixados os autos ao tribunal de 1ª instância foi designada data para a realização do julgamento.
O R. veio apresentar articulado superveniente, informando o falecimento da sua mãe e referindo que concentra a sua vida doméstica no locado por ter deixado de lhe dar apoio, requerendo que tal integre os temas da prova, por ser matéria que interessa à boa decisão da causa.
A A. veio opor-se ao articulado superveniente invocando a sua falta de fundamento legal.
Por despacho de 30/03/2022 foi admitido o articulado superveniente apresentado pelo R.
Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo o R. do pedido contra ele formulado.
É com esta sentença que a A. não se conforma e dela vem interpor recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que declare resolvido o contrato de arrendamento e decrete o despejo do locado, apresentando para o efeito as seguintes conclusões que se reproduzem:
a. A Autora e o Réu contrataram o arrendamento do locado para habitação do Réu.
b. O Réu deixou de residir no locado a partir de meados de 2017, para passar a residir com a sua mãe, na casa desta situada na Rua … em Lisboa.
c. Que distava 150 metros do local de trabalho do Réu, na Rua de …
d. A mãe do Réu necessitava de apoio do filho por ser invisual, diabética e ter problemas de locomoção, que segundo atestado médico junto aos autos a tornava dependente de terceiros para todas as tarefas domésticas e para a vida quotidiana.
e. Sem, no entanto, ter a incapacidade de 60 por cento, fixada na al d) do n.º 2 do art.º 1072.º do CPC.
f. O Reu declarou perante entidades públicas que a sua residência era na morada da mãe, nomeadamente para obter o cartão de cidadão e para efeitos fiscais.
g. No período de doença da mãe, o Réu ou não foi ao locado ou só lá foi esporadicamente, condicionado que estava pelas exigências da assistência à mãe.
h. Chegando mesmo a não ir trabalhar para poder acompanhá-la e, mesmo, confeciona-lhe refeições, tudo conforme Declarações de Parte prestadas pelo Réu.
i. A factualidade do quotidiano do Réu nesse período, incluída na sua Contestação é falsa e não tem qualquer adesão à realidade, mais que não seja porque parte do pressuposto de que a residência da mãe seria na margem sul, o que não é verdade.
j. O facto dado como provado com o n.º 6 não revela a realidade pelo que deverá ser substituído por outro com a seguinte redação: À data da instauração da ação, o Réu residia em casa da sua mãe, que vivia sozinha e encontrava-se afetada por cegueira bilateral, decorrente de retinopatia diabética, hipertensão e diabetes, somados a alterações degenerativas articulares, com diminuição da força dos membros inferiores e da marcha, sendo ele a única pessoa que lhe podia prestar assistência, cuja morada o Réu declarou ser a sua residência para fins fiscais e de registo civil.
k. Após a morte da sua mãe, o Réu passou a residir em casa de seu filho, também em Lisboa, deslocando-se ao locado apenas aos fins de semana, factos comprovados também pelas Declarações de Parte do Réu, confirmadas pelos depoimentos de todas as testemunhas, mas mais explícitos na testemunha da Autora, C. e do Réu, D..
l. O Réu afirmou que “Agora vou lá sempre...”, expressão que não pode senão confirmar que não está lá, ou seja, “lá” não é a sua residência, porque doutra forma, teria dito que “...moro lá...”.
m. Sendo certo que também nunca nestes autos se pronunciou sobre a falsidade da morada indicada nos seus documentos de identificação (tema acima referido), mais de um ano depois da morte da mãe, o que poderia e não quis fazer, eventualmente para não faltar à verdade.
n. O facto provado n.º 7 tem uma redação desadequada à prova produzida e intrinsecamente confusa, pelo que deve ser substituído por dois novos números:
7. Depois do falecimento dos seus avós, o Réu passou a residir em Lisboa, onde trabalhava e onde podia dar assistência a sua mãe, deslocando-se esporadicamente
ao locado por vezes ao fim de semana. E
8. Depois do falecimento da sua mãe, o Réu passou a ir ao locado todos fins de semana, passando o resto da semana em casa do filho em Lisboa.
9. (o atual facto 8.)
o. Todos os elementos de prova, documental e testemunhal incluídos nos autos impõe decisão diferente da assumida na sentença recorrida pelo que VV Exas. Senhores Juízes Desembargadores têm legitimidade para alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
p. O requisito da residência permanente como obrigação do arrendatário, continua a ser entendido pela doutrina e a jurisprudência como essencial para a construção do conceito de habitação.
q. Depois da alteração do RAU, mantêm-se a exigência do uso do locado como habitação do arrendatário, jurisprudencialmente conceptualizado como o “centro de vida” do arrendatário.
r. In casu é óbvio e indiscutível que a utilização, sem causa justificativa evidente, do locado ao fim de semana, constitui um verdadeiro abuso de direito do Réu, que desequilibra forçada e ilegitimamente a seu favor o equilíbrio que a lei define – naturalmente com proteção específica do direito constitucional à habitação – entre este e o também protegido direito de propriedade.
s. Na verdade, o locado serve apenas para os momentos de lazer do Réu e a utilização que este dele faz revela um egoísmo inaceitável, que constitui uma afronta aos milhares de portugueses que não têm casa e à Autora, que não pode retirar do bem que herdou, o legítimo proveito económico que lhe é reconhecido.
O R. veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
II. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608 n.º 2 in fine:
- da impugnação da matéria de facto;
- da falta de uso do locado para o fim destinado.
III. Fundamentos de Facto
- da impugnação da matéria de facto
Vem a Recorrente impugnar a decisão da matéria de facto invocando o seu erro quanto aos factos dados como provados nos pontos 6 e 7, requerendo a sua alteração de modo a que seja ampliada a matéria que deles consta por considerar muito redutora a sua redação, não abrangendo uma realidade mais complexa que ficou apurada.
Por terem sido por ele observados os requisitos previstos no art.º 640.º n.º 1 e n.º 2 al. a) do CPC para a impugnação da matéria de facto, procede-se à avaliação da decisão quanto aos factos impugnados.
- os pontos 6 e 7 dos factos provados, têm o seguinte teor:
6) À data da instauração da ação, o Réu pernoitava muitas vezes na casa da sua mãe por a mesma necessitar de assistência durante a noite.
7) Não obstante o Réu passar menos tempo na sua residência, nem sempre pernoitando na mesma, o mesmo continua a usar o locado.
Defende a Recorrente a alteração destes pontos da matéria de facto, no sentido de passarem a ter a seguinte redação:
6. À data da instauração da ação, o Réu residia em casa da sua mãe, que vivia sozinha e encontrava-se afetada por cegueira bilateral, decorrente de retinopatia diabética, hipertensão e diabetes, somados a alterações degenerativas articulares, com diminuição da força dos membros inferiores e da marcha, sendo ele a única pessoa que lhe podia prestar assistência, cuja morada o Réu declarou ser a sua residência para fins fiscais e de registo civil.
Quanto á matéria do ponto 7 pretende que seja dividida em dois pontos, com o seguinte teor:
7. Depois do falecimento dos seus avós, o Réu passou a residir em Lisboa, onde trabalhava e onde podia dar assistência a sua mãe, deslocando-se esporadicamente ao locado por vezes ao fim de semana.
8. Depois do falecimento da sua mãe, o Réu passou a ir ao locado todos fins de semana, passando o resto da semana em casa do filho em Lisboa.
Invoca como meios de prova suscetíveis de fundamentar a sua pretensão:
- os declarações de parte do R. nos excertos da gravação que indica;
- os documentos juntos aos autos a 28/04/2022;
- o depoimento das testemunhas C., D., nos excertos de gravação que indica.
O Recorrido na sua resposta, pronuncia-se no sentido da improcedência da alteração pedida, invocando as declarações de parte do R. nos excertos de gravação que identifica, bem como o depoimento das testemunhas E.  e F..
O tribunal a quo fundamentou da seguinte forma a resposta a esta matéria: “No que tange à factualidade vertida em 5) a 7), atentou-se nas declarações de parte de Réu, que declarou que, embora sendo reformado, ajuda o seu filho num negócio que este tem, em Lisboa. Neste enquadramento, declarou o Réu que enquanto a mãe foi viva passava mais tempo em Lisboa do que agora, porquanto tinha que lhe prestar assistência durante a noite. Todavia, admitiu que, a fim de evitar deslocações diárias entre a Margem Sul e Lisboa, por vezes, durante a semana, ainda pernoita em casa do filho, em Lisboa, asseverando, contudo que passa vários dias por semana no locado, que, sustenta, constituiu a sua única casa. Tal factualidade encontra respaldo no depoimento da testemunha C., algo vago e indireto, e que disse residir em Vila Moura. Assim, a testemunha disse que “sabe”, porque lhe disseram, que “houve uma altura em que o Réu por ali não parava, agora tem aparecido aos sábados e domingos”, sic. Questionada, a testemunha disse não ter conhecimento direto da factualidade, porquanto trabalhava e desconhecia que o Réu ali se encontrava. Quanto ao depoimento da testemunha G., que disse ser inquilina da Autora, o mesmo revelou-se de nenhuma utilidade. Com efeito, embora começando por depor que “achava” que o Réu não vivia no locado porque não se lembra de o ver por lá, confrontada acabou por dizer que se passar pelo Réu não o reconhece e que a sua casa não tem visibilidade para a casa do Réu. Quanto à testemunha D. , que disse ser amigo do Réu, relatou que reside no andar de baixo e que quando a mãe adoeceu o Réu foi para Lisboa tratar dela, mas vinha ao locado assiduamente, descrevendo que o via, que o ouvia, que via o quintal lavado e ouvia o ruído da televisão. Mais disse que atualmente o Réu se encontra no locado todos os fins de semana e que presume que durante a semana permanece na casa do filho. A testemunha E., cônjuge da anterior testemunha e que igualmente disse residir no andar de baixo do imóvel objeto dos autos, disse a mesma que o Réu viveu na casa diariamente durante bastantes anos e que houve uma fase, aquela em que a sua mãe adoeceu, em que permanecia alguns dias em Lisboa e se deslocava ao locado 2 ou 3 vezes por semana. Mais confirmou a testemunha que atualmente o Réu, embora se desloque para Lisboa, ajudando o filho no seu negócio e lá almoçando, permanece no locado com mais frequência, aí o vendo com frequência. Por último, a testemunha F., que disse ser amiga do Réu, corroborou que o Réu quando tomava conta da mãe às vezes vinha ao locado, não tendo precisado a frequência. Disse que na atualidade o Réu se encontra no locado todos os fins de semana e feriados, e que durante a semana de trabalho permanece em casa do filho, em Lisboa, a quem ajuda num negócio, regressando à sexta feira à noite. Mais disse que o Réu dorme no locado, limpa a casa e ali faz a sua vida, que ouve a máquina de lavar a funcionar e a televisão acesa.”
Procedeu-se à audição da prova gravada na íntegra, constatando-se que a motivação exposta na sentença sob recurso é algo imprecisa em alguns pontos.
Decompondo a alteração do ponto 6 verifica-se que a Recorrente pretende que se considere provado: (i) que o R. residia em casa da mãe que vivia sozinha, em lugar de que o R. pernoitava muitas vezes na casa da sua mãe; (ii) as doenças de que a mãe do R. padecia; (iii) que o R. era a única pessoa que lhe podia prestar assistência; (iv) que o R. declarou aquela morada como a sua residência para fins fiscais e de registo civil.
Quanto à matéria referida em (ii) relativa às doenças de que a mãe do R. padecia não existe qualquer omissão nos factos provados, na medida em que no ponto 4 da decisão já consta a situação de saúde da mãe do R., bem como a sua dependência de terceiros para a realização das suas tarefas diárias, sendo inútil a sua repetição.
Também irrelevante o referido em (iii), a circunstância do R. ser o único, ou não, que lhe podia prestar assistência, já estando assente neste ponto 6 que a sua mãe necessitava de assistência durante a noite.
Quanto à matéria referida em (iv), que o R. declarou aquela morada em Lisboa como a sua residência para fins fiscais e de registo civil, não se trata de factos que tenham sido alegados pela A. a que o tribunal deva responder, antes representam factos instrumentais que resultam dos documentos que foram juntos aos autos e que o tribunal pode/deve considerar, nos termos previstos no art.º 5.º n.º 2 al. a) do CPC, sem que os mesmos devam constar da decisão de facto.
Esta matéria a que alude o ponto 6 dos factos provados reporta-se a um momento em que a mãe do R. ainda era viva.
Avaliando a prova produzida, não pode deixar de concluir-se que o R. não apenas pernoitava em casa da mãe, como consta da resposta dada pelo tribunal a quo, mas aí residia efetivamente, pelo facto de, por um lado, ser quem lhe prestava assistência e, por outro lado, por trabalhar em Lisboa, tendo deixado de viver no locado onde passou a ir apenas esporadicamente.
É o próprio R. que nas suas declarações de parte dá conta desta situação. Refere que nasceu no locado, mas esteve uns tempos sem lá ir porque tinha a mãe doente, invisual e tinha de tomar conta dela, tendo vindo para Lisboa; diz que nessa altura trabalhava em Lisboa, mas que às vezes nem ia trabalhar porque tinha de ficar com a mãe, esclarecendo que ia ao locado só de passagem e que não podia lá ficar muito tempo, só fora de horas e ao fim de semana, tendo sido uma situação que afirma ter durado 3 ou 4 anos, embora tenha situado o início da incapacidade da sua mãe e a sua vinda para Lisboa quando ela tinha 77/78 anos, o que mostra que tendo a mesma falecido em 2021 com 89 anos de idade, o período de assistência à mãe terá sido mais prolongado. Foi notória alguma confusão do R. nas datas que referiu, o que se considera natural.
As testemunhas ouvidas apresentaram de um modo geral um depoimento credível e descomprometido com a situação, sendo vizinhos ou amigos do R., ajudando no esclarecimento dos factos.
A testemunha C., que vive perto do locado há 30 anos, diz que o R. morou lá, mas depois ausentou-se por um tempo, “por ali não parava”, e que nos últimos tempos tem aparecido ao sábado e ás vezes ao domingo. Não sabe se é todos os fins de semana e durante a semana não o vê.
O depoimento da testemunha G. , vizinha do prédio ao lado há cerca de 10 anos, que o tribunal desvalorizou, crê-se que indevidamente, por a mesma não conhecer o R., indicia precisamente as poucas vezes que o R. estava no locado nos últimos tempos, já que a mesma sabe qual é a casa do arrendado e refere não ver a casa habitada.
Também a testemunha D., amigo e vizinho do R. diz que ele trabalha em Lisboa e foi viver para Lisboa quando os avós (que viviam no locado) faleceram e a mãe adoeceu, para ir tomar conta da mãe. Desde que a mãe faleceu diz que o R. vai lá assiduamente ao fim de semana e que antes também ia lá, mas com menos frequência.
A testemunha E. , mulher da testemunha anterior, diz que o R. vivia lá em permanência e depois estava em Lisboa e ia lá 2/3 vezes por semana. Este depoimento não mereceu total credibilidade, por tal frequência não encontrar correspondência nem nas declarações do R. nem tão pouco nas do seu marido, também ouvido, ou das restantes testemunhas, que foi sempre no sentido de que o R. apenas ia esporadicamente ao locado no período em que teve de prestar assistência à mãe. Além do mais a testemunha também entrou em contradição, já que mais à frente refere que o R. não ia ao locado assiduamente por causa da doença da mãe, o que durou 8 a 10 anos, só às vezes, em que deixava a sua mãe com o neto. Refere ainda que atualmente o vê com frequência e que ele vai todos os dias para Lisboa, dar uma ajuda ao filho na empresa dele, o que se apresenta como contraditório com os restantes depoimentos em que as testemunham dizem que só ao fim de semana vêm lá o R. que durante a semana fica em Lisboa.
A testemunha F., que vive ao lado, esclareceu que o R. viveu lá com os avós 43 anos e depois foi com a mãe para Lisboa, para lhe dar assistência, referindo que o R. fica em casa do filho durante a semana e ao fim de semana vai para o locado.
Finalmente não pode desconsiderar-se a informação das entidades oficiais junta aos autos a 28.04.2022 que dão conta de que já em 2019 quando R. foi tratar do seu cartão de cidadão indicou que a sua residência era na Rua …, em Lisboa, sendo também a morada que deu junto da Autoridade Tributária.
Estes elementos de prova revelam que o R. não reside há largos anos no locado, tendo ido viver para Lisboa, deslocando-se ao locado apenas esporadicamente pelo menos no período de 4 anos antes da sua mãe falecer – o que ocorreu em maio de 2021- em face da situação de dependência da mesma e a necessidade de lhe dar apoio.
O R. situa a necessidade de dar apoio à mãe pela sua doença nos 77/78 anos de idade da mesma, ainda que refira que esteve a dar-lhe esse apoio durante 3 ou 4 anos; testemunha F.  refere que o R. deu apoio à mãe durante 8 ou 10 anos e a testemunha G . , que vive no prédio ao lado há cerca de 10 anos, não conhecia o R., apenas constatando a casa fechada, o que nos leva a concluir que pelo menos nos 4 anos que precederam o óbito da sua mãe o R. residiu com ela em Lisboa, onde também trabalhava e tinha organizada a sua vida.
Ainda que num primeiro momento possa ter sido a situação de doença e dependência da sua mãe que o levou a sair do locado, a verdade é que mesmo depois dela falecer o R. não voltou a estabelecer a sua residência permanente no arrendado. Pelo contrário, depois disso, ainda que tenha passado a fazer um uso mais regular do mesmo, é um uso de fim de semana, tal como o percecionam os seus vizinhos, testemunhas que depuseram em audiência, que em geral indicam que durante a semana o R. está em Lisboa. Tanto o R. não tem usado o locado para sua habitação de modo contínuo e efetivo, que ele próprio indicou a sua residência junto de todos os organismos oficiais, como sendo em Lisboa e afirma que antes ia só de passagem porque não podia ficar muito tempo, mas que agora vai lá.
Os elementos probatórios no seu conjunto mostram que o R., em razão da situação de saúde da sua mãe, foi residir com a mesma para Lisboa, onde trabalhava, estava o seu filho e tinha organizada a sua vida, e que durante o período de alguns anos em que a sua mãe necessitou de um maior acompanhamento, só esporadicamente ia ao locado. A partir do momento em que a sua mãe faleceu, tem ido lá aos fins de semana, mas nada indica que tenha voltado a fazer do locado o centro da sua vida diária, o que resulta patente da sua própria expressão ao declarar que agora tem ido lá sempre: “todas as pessoas sabem que eu vou lá.” O próprio R. diz que vai lá e não que vive lá.
Impõe-se por isso a alteração dos pontos de facto 6 e 7 impugnados, no sentido pretendido pelo Recorrente, de modo a refletir tal realidade, passando os mesmos a ter a seguinte redação:
6) o Réu foi residir com a sua mãe para Lisboa, onde também trabalhava, pelo menos nos 4 anos que antecederam o seu óbito, aí se encontrando a residir à data da propositura da ação, prestando-lhe a assistência de que ela necessitava em razão do seu estado de saúde, deslocando-se esporadicamente ao locado.
7) Depois do falecimento da sua mãe, o R. passou a usar o locado aos fins de semana.
Procede em parte a impugnação da matéria de facto apresentada pela Recorrente, alterando-se os pontos 6 e 7 dos factos provados nos termos que ficaram expostos.
*         
Resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
1) Encontra-se inscrito a favor da Autora na matriz predial urbana da união das freguesias de Caparica e Trafaria sob o art.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada, sob o n.º …/… o prédio urbano conhecido como Vila Moura e situado na Av. …, nº. …, …, Trafaria.
2) Por acordo escrito que as partes denominaram “arrendamento” celebrado em 1 de fevereiro de 1985, que aqui se dá por integralmente reproduzido, a Autora cedeu a cave do prédio identificado em 1) ao Réu, para habitação, o qual se comprometeu a pagar por ela a quantia mensal de 3000$00 (três mil escudos).
3) O valor estipulado em 2) foi, por acordo escrito entre Autora e Réu, datado de 1 de agosto de 2013, aumentado, a partir dessa data, para €70,00 (setenta euros) mensais.
4) À data da instauração da ação, a mãe do Réu era viúva, cega, diabética, e dependente de terceiros para as suas tarefas diárias.
5) O Réu trabalha em Lisboa, na Rua …, n.º …-A.
6) o Réu foi residir com a sua mãe para Lisboa, onde também trabalhava, pelo menos nos 4 anos que antecederam o seu óbito, aí se encontrando a residir à data da propositura da ação, prestando-lhe a assistência de que ela necessitava em razão do seu estado de saúde, deslocando-se esporadicamente ao locado. (alterado)
7) Depois do falecimento da sua mãe, o R. passou a usar o locado aos fins de semana. (alterado)
8) A mãe do Réu faleceu a 22 de maio de 2021.
IV. Razões de Direito
- da falta de uso do locado para o fim destinado
Alega a Recorrente que o R. não faz do locado o centro da sua vida, não residindo nele em permanência, apenas fazendo uso dele aos fins de semana, em oposição ao fim contratado que foi a sua habitação, pelo que deve ser resolvido o contrato de arrendamento.
O Recorrido defende que é no locado que tem organizado o centro da sua vida, sendo aí que habita, ainda que ali tenha passado menos tempo e nem sempre pernoitando quanto teve de dar apoio à sua mãe.
No caso não merece controvérsia que estamos perante um contrato de arrendamento celebrado entre as partes, atento o previsto nos art.º 1022.º e 1023.º do C.Civil, com a finalidade de habitação.
No que se refere às obrigações do arrendatário, o art.º 1072.º do C.Civil,  reportando-se ao uso efetivo do locado, estabelece:
1. O arrendatário deve usar efetivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano.
2. O não uso pelo arrendatário é lícito:
a) Em caso de força maior ou de doença;
b) Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto;
c) Se a utilização for mantida por quem, tendo direito de usar o locado, o fizesse há mais de um ano;
d) Se a ausência se dever à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau ou incapacidade igual ou superior a 60%, incluindo familiares.
O uso do arrendado para o fim contratado, neste caso a habitação, é uma obrigação do arrendatário, conforme expressa o art.º 1072.º n.º 1 do C.Civil, destinando-se tal norma à proteção da posição do senhorio que vê o imóvel desvalorizar-se pelo seu não uso ou abandono.
O legislador faz agora apelo ao conceito de não uso do locado, substituindo a expressão anteriormente prevista no NRAU que era a falta de residência permanente do locatário.
Como bem evidencia o Acórdão do TRE de 16-01-2020 no proc. 2079/18.0T8EVR.E1, in www.dgsi.pt : “Não tendo embora correspondência no anterior texto, deverá entender-se que, impondo o n.º 1 do art.º 1072.º que o arrendatário use efectivamente o arrendado, o uso terá de ser aferido atendendo ao fim contratualmente previsto, pelo que, tratando-se de arrendamento para habitação, o dever aqui consagrado se reconduz a final ao velho conceito de residência permanente, impondo ao arrendatário que tenha no locado, com carácter de habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida. Na verdade, e pese embora a formulação menos específica do dever aqui consagrado, a verdade é que o legislador não quis seguramente excluir dos fundamentos de resolução a falta de residência permanente do inquilino, isto quando de arrendamento para habitação se trate, posto que estamos perante a forma mais evidente de violação do contrato na modalidade de não uso atenta a destinação que as partes contratualmente fixaram ao locado, entendimento que, de resto, encontra conforto na alusão que no art.º 14.º n.º 2 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro se faz a tal conceito. Valendo aqui toda o labor doutrinário e jurisprudencial precedente na construção do conceito de residência permanente, assim se entende o lugar onde o inquilino “tem o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica; a casa em que, estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e recolhe a sua correspondência, o local onde tem instalada e organizada a sua vida familiar, o seu lar”.”.
Aludindo o art.º 1072.º n.º 1 do C.Civil à obrigação do arrendatário usar o locado para o fim contratado, ao ter sido acordado, ainda no âmbito da anterior legislação, que o locado se destinava a habitação, a obrigação do arrendatário é a de dar à casa um uso efetivo e permanente, aí estabelecendo o centro da sua vida. Se faz do locado uma residência secundária, ocasional ou de férias, não cumpre tal obrigação, contrariando a finalidade acordada com o senhorio.
Como ensina Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, Vol. II, pág. 1100: “A regra é, pois, a de esta falta de uso integra o fundamento de resolução – e vale aqui, quanto à noção de não uso, a conclusão, que já era consensual no domínio das fundamentações anteriores, de que não interrompem os simples usos intercalares, entretanto ocorridos ao longo de um não uso continuado. Não relevam, como bem se julgava já anteriormente, meras utilizações ou aberturas esporádicas, que não descaracterizam o estado de desocupação em que é essencialmente mantido o espeço arrendado com o seu não uso.”
Importa ainda ter em conta o art.º 1083.º do C.Civil que estabelece os fundamentos da resolução do contrato, começando por prever no seu n.º 1: “Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.”. Acrescenta o n.º 2 que:  “é fundamento da resolução o incumprimento que pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio (…) al. c) o uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio; d) o não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º.”
A interpretação deste art.º 1083.º do C.Civil tem vindo a merecer interpretações nem sempre inteiramente coincidentes, designadamente quanto a saber se a verificação factual ou objetiva das situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 constituem desde logo causa de resolução do contrato ou se têm ainda assim de se integrar no conceito geral previsto no corpo do n.º 2, impondo que o incumprimento seja de tal forma grave que torne inexigível a manutenção do contrato.
No enunciado breve das diferentes posições sobre esta questão socorremo-nos da exposição que é apresentada no Acórdão do TRL de 7-11-2023 no proc. 2125/19.0T8LRS.L1-7 in www.dgsi.pt que nos diz: “A este propósito, Menezes Cordeiro (in Ob. Loc. Cit., pág.s 1001 a 1002) identifica pelo menos 4 teorias que podem justificar a relação ou interação entre o corpo do n.º 2 do Art.º 1083.º do C.C. e a previsão das respetivas alíneas: 1- A teoria da interação: nos termos da qual a verificação duma situação que preencha qualquer das alíneas do n.º 2 do Art.º 1083.º seria, só por si, insuficiente para justificar a resolução do contrato, sendo necessário demonstrar ainda que a gravidade ou consequências dessa situação torna inexigível a manutenção do arrendamento pelo senhorio (posição defendida, entre outros por: António Pinto Monteiro e Paulo Videira Henriques in “A cessação do contrato no NRAU”, O Direito 136 (2004), pág.s 292 a 294; Sousa Ribeiro in “O NRAU: Contributos para uma análise”, CDP 14 (2006) pág.s 20 a 21; Olinda Garcia in “A nova disciplina” pág. 23; Baptista Oliveira in “A resolução do contrato de arrendamento no NRAU” (2007), pág.s 29 a 30; e Laurinda Gemas e outros in “Arrendamento…”, pág. 368-369); 2- A teoria da independência: segundo a qual o preenchimento duma das alíneas do n.º 2 do Art.º 1083.º do C.C. permite a resolução do contrato de arrendamento, ficando o senhorio dispensado, nesses casos, de provar a gravidade das consequências exigidos no corpo do preceito (posição defendida por: Soares Machado in “NRAU comentado e anotado”, pág. 125; e Pinto Furtado in “Manual do Arrendamento Urbano”, Vol. II, 5.ª Ed., pág. 1039); 3- A teoria da presunção: que sustenta que a verificação da qualquer das situações previstas nas alíneas do n.º 2 do Art.º 1083.º faria presumir a inexigibilidade da continuação do contrato de arrendamento (posição defendida em alguma jurisprudência: Ac. TRC de 17/11/2009 - Proc. n.º 1737/06.6 – Relator: Artur Dias; Ac. TRP de 3/11/2010 - Proc. n.º 3077/07 – Relatora Joana Salinas); 4- A teoria da ponderação móvel: que sugere que as diversas alíneas do n.º 2 do Art.º 1083.º solicitam, em graus diversos, as exigências do corpo do mesmo preceito. É essa a posição que Menezes Cordeiro tem como sendo a mais correta (cfr. Ob. Cit., pág. 1002). Efetivamente, sustenta esse autor, que qualquer das alíneas do n.º 2 do Art.º 1083.º do C.C. corresponde a situações típicas de incumprimento do contrato de arrendamento aptas a preencher o quantum necessário de gravidade e de consequências para ditar a inexigibilidade da manutenção do arrendamento. Por um lado, elas auxiliam o intérprete a melhor conhecer o corpo do n.º 2 do Art.º 1083.º. Por outro, elas solicitam esse mesmo corpo, no sentido de, dele, obter a necessária configuração valorativa. No entanto, reconhece-se que existe um grau de densidade de cada uma das alíneas que é diverso, sendo que as situações aí descritas são apresentadas de forma que crescentemente são mais graves, fazendo correspondentemente diminuir a solicitação de recurso ao corpo do n.º 2 do Art.º 1083.º. Pelo que, sendo a situação a considerar à partida valorativamente muito negativa, a sua gravidade para a manutenção do arrendamento é assumida de forma apriorística, como se presumisse que o senhorio não estará obrigado, nesses casos, a manter o contrato. Entretanto, Pinto Furtado (in “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 2019, pág.s 415 e ss.), dando nota desta distinção feita por Menezes Cordeiro, apela agora a uma 5.ª teoria: a teoria da conjugação ou complementaridade. Defende este autor que devem ser harmonizadas as alíneas do n.º 2 com o corpo do n.º 2 do Art.º 1083.º no sentido de se entender que o corpo do preceito é uma mera precisão mais nítida e caraterizadora da noção de incumprimento, complementada por exemplos enunciados nas alíneas que tipificam hipótese legais de incumprimentos do arrendatário, que tornam inexigível a manutenção do arrendamento pelo senhorio. As alíneas do n.º 2 do Art.º 1083.º seriam assim casos típicos de resolução e não “meras presunções inilidíveis de inexigibilidade da manutenção do arrendamento pelo senhorio”. Provados tais factos, nenhum juízo de valor se tem de lhe acrescentar para construir ou afastar o direito à resolução por parte do senhorio, porque eles já são, em si, ilustrações do incumprimento que, pela sua gravidade e consequências, tornam inexigível a continuidade contratual. Apesar deste esforço concretizador do seu pensamento, parece-nos que Pinto Furtado acaba por se manter no âmbito estrito da “teoria da independência”. Seja como for, julgamos ser inquestionável que existem situações, previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do Art.º 1083.º do C.C., que são de tal modo objetivamente graves, em face da valoração que a lei delas faz, que nos permitem com maior facilidade concluir que, nessas condições, não é exigível ao senhorio a manutenção da relação locatícia. O que não quer dizer que se dispensem os requisitos típicos do incumprimento relevante, conforme estabelecidos no corpo do n.º 2 do Art.º 1083.º do C.C.”.
O legislador veio alterar o modelo de regulação dos fundamentos de resolução do contrato de arrendamento, passando de uma enumeração taxativa dos fundamentos de resolução pelo senhorio, para uma cláusula geral que prevê no corpo do n.º 2 do art.º 1083.º, sendo necessário que o incumprimento pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do contrato, enumerando depois nas suas várias alíneas, a título de exemplo, como decorre da expressão “designadamente” situações que o podem revelar.
Acompanha-se a primeiro dos entendimentos expostos, considerando-se, tal como nos referem Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, in Arrendamento Urbano, em anotação este artigo, pág. 368-369: “(…) a simples alegação e prova de factos, à primeira vista subsumíveis em qualquer uma das situações exemplificativamente enunciadas, pode não bastar para o imediato e indispensável preenchimento da cláusula geral do n.º 1 do artigo, que exige um incumprimento qualificado. (…) Caberá, portanto, aos Tribunais, com o contributo da jurisprudência e da doutrina determinar perante cada caso, não apenas se ocorre a situação de incumprimento contratual invocada, mas também se esta, pela sua gravidade ou consequências, torna inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.”
Passando ao caso em presença, os factos mostram que em 1983 foi celebrado entre as partes um contrato de arrendamento para habitação do R. e que a dada altura, por a sua mãe necessitar de assistência em razão do seu estado de saúde, o R. veio residir com a mesma para Lisboa, onde também trabalhava, o que terá ocorrido pelo menos 4 anos antes da mesma vir a falecer, ou seja, por volta do ano de 2017, já que a mesma veio a falecer em maio de 2021.
Nada nos factos apurados mostra que o R. mantinha e mantém duas residências alternadas, dividindo o seu tempo entre o locado e a casa onde vivia com a mãe, como concluiu o tribunal a quo.
Em todo esse período o R. teve a sua vida centrada em Lisboa, onde trabalhava, residia e dava apoio à sua mãe, deslocando-se apenas esporadicamente ao locado e por curtos períodos de tempo, tendo por isso deixado de habitar no mesmo em permanência.
Poderia pensar-se que a alteração de residência do R. para Lisboa pudesse ter sido apenas transitória, por ter sido determinada pela necessidade de prestar à assistência à sua mãe, mas o que se verifica é que mesmo depois dela vir a falecer o R. não passou a usar novamente o locado como habitação permanente, apenas aí se deslocando aos fins de semana, não voltando a fazer do mesmo a sua residência.
Os factos mostram que o R. pelo menos desde 2017 não usa efetivamente o locado para o fim que foi contratado que foi a sua habitação permanente, sendo que se até maio de 2021 só ali se deslocava esporadicamente, durante o período em que necessitava de dar apoio à mãe, a partir do seu falecimento passou a fazer um uso mais regular do locado, mas apenas aos fins de semana.
Poderia ter-se como justificado, no âmbito da cláusula geral prevista no corpo do art.º 1083.º n.º 2 do C.Civil o facto do R. não ter residido no locado enquanto prestou apoio à sua mãe, não obstante o prolongamento de tal situação no tempo, já que não ficou demonstrada a causa da exclusão da ilicitude prevista no art.º 1072.º n.º 2 al. d) do C.Civil, não tendo o R. logrado provar que o grau de incapacidade da sua mãe fosse superior a 60%, como previstos nesta norma.
Contudo, tal entendimento fica prejudicado, com a circunstância do R. entretanto não ter voltado a estabelecer a sua residência no locado, após o falecimento da sua mãe, continuando em Lisboa e apenas o usando o arrendado ao fim de semana, o que vem revelar que não era apenas a necessidade de lhe dar apoio que o mantinha afastado do locado, retirando justificação à falta de uso do locado para o fim acordado no momento anterior.
Os factos não permitem dizer que a saída do R. do locado já em 2017 para ir residir para Lisboa, foi apenas uma situação transitória e que o mesmo sempre teria intenção de retornar ao arrendado, antes terão correspondido a uma intenção efetiva mudança de residência do R., que alterou até os seus documentos oficiais, não obstante o mesmo tenha mantido o locado para poder usar a casa de forma esporádica, essencialmente nos seus momentos de lazer, como faz agora para ir passar os fins de semana.
Resta concluir que, no caso, o R. deixou de utilizar o locado para a sua habitação permanente, há mais de um ano, o que ocorreu de modo muito prolongado no tempo, incumprindo a sua obrigação de usar a coisa para o fim contratado, nos termos previstos no art.º 1072.º n.º 1 do C.Civil de uma forma grave e mantendo “presa” uma casa de que não retirava as utilidades devidas, usando-a apenas aos fins de semana de forma intercalar e não abrindo mão da mesma, quem sabe pela circunstância de se estar perante um arrendamento antigo que não o onera muito, atento o baixo valor da renda que paga.
É preciso não esquecer ainda a função social da habitação, num momento em que é sabida da falta de casas para habitação no mercado de arrendamento, o que torna mais censurável a circunstância de não ser dado ao locado o fim a que destinou, tratando-se de um arrendamento para residência permanente, celebrado ao abrigo do regime dos arrendamentos vinculísticos e não de uma segunda habitação para ser usada nos momentos de lazer.
Consideram-se por isso verificados os requisitos que permitem a resolução do contrato de arrendamento em questão pelo senhorio, integrando-se a situação na previsão do art.º 1083.º n.º 2 al. d) do C.Civil, bem como na exigência geral prevista no corpo do n.º 2 em que pela sua gravidade, evidenciada pelo prolongamento da situação de não uso para o fim destinado ao longo de largo tempo e pelas suas consequências tornam inexigível à A. a manutenção do contrato em face do incumprimento qualificado da obrigação do R. de usar a coisa para o fim contratado, nos termos do art.º 1072.º n.º 1 do C.Civil.
Resta concluir pela procedência da apelação, com a consequente revogação da decisão proferida, decretando-se a cessão do contrato de arrendamento em causa por resolução em razão do incumprimento do R., condenando o mesmo a entregar o locado à A. livre e devoluto.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se procedente o recurso interposto pela A., revogando-se a sentença proferida que se substitui por decisão que julga resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre as partes, condenando-se o R. a entregar o locado à A. livre e devoluto de pessoas e bens.
Custas pelo R.
Notifique.
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Lisboa, 12 de setembro de 2024
Inês Moura
Laurinda Gemas
Arlindo Crua