Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | OCTÁVIO DOS SANTOS MOUTINHO DIOGO | ||
Descritores: | PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO MAIORIDADE DO MENOR INUTILIDADE DO RECURSO JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO ALTERAÇÃO DA DECISÃO TRANSITADA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | 1. Determinado o arquivamento do processo judicial de promoção dos direitos e proteção relativamente a uma menor, que atingiu a maioridade e não requereu a continuação da intervenção iniciada antes da maioridade, é inútil o recurso interposto pelo Ministério Público. 2. A natureza do presente processo – jurisdição voluntária – não afasta que possa ocorrer a exceção do caso julgado desde que se verifiquem os respectivos prossupostos. 3. A possibilidade de alteração de decisão transitada em julgado, à luz do art.º 988º, nº 1, do CPC, funda-se em circunstância superveniente, o que exige a comparação da situação factual existente na altura em que a decisão foi proferida com a existente no momento em que é formulado o pedido de alteração. 4. Tendo sido alegado como fundamento da abertura de processo judicial de promoção dos direitos e proteção o absentismo escolar da menor, tendo tal processo sido arquivado por despacho transitado em julgado, esta a decisão judicial de arquivamento faz caso julgado relativamente ao requerimento posterior de reabertura do processo ainda que neste se acrescente o mês de absentismo escolar da jovem ocorrido posteriormente à data do despacho judicial de arquivamento do primeiro requerimento do Ministério Público. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório. Por requerimento, datado de 08.02.2024, veio o Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 4.º n.º 1, alínea i), e 9.º n.º 1, alínea d), ambos do Estatuto do Ministério Público, e artigos 3.º, n.º 1 e 2, alínea f), 11.º, n.º 1, alínea c), e 3, 34.º, alíneas a) e b), 73.º, n.º 1, alínea b), 81.º e 105.º, n.º 1, todos da Lei de Proteção de crianças e Jovens em Perigo, requerer a abertura de processo judicial de promoção dos direitos e proteção relativamente à jovem M. nascida a 8 de Setembro de 2006, formulando o seguinte pedido: “Nestes termos, tendo em conta a situação de perigo actual em que a jovem se encontra e com a finalidade de o retirar de tal situação, para que lhe sejam prestados os cuidados adequados, proporcionando-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua saúde, formação e educação, requer-se a Vossa Excelência que se digne a) proferir o despacho inicial, a que aludem os artigos 106.º n.º 2 e 107.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, seguindo-se os demais trâmites até final”, fundamentou o pedido no absentismo escolar da menor Mafalda. Por despacho de 12.02.2024 foi indeferido o requerido e determinado o arquivamento dos autos, com a seguinte fundamentação: “(…), não se vislumbra que a aplicação de qualquer medida de promoção e protecção (desde logo apoio junto do progenitor ou apoio para a autonomia de vida) – ou a aplicação de outra mais gravosa (mormente o acolhimento residencial) – tivesse a capacidade de alterar o actual estado de coisas. Por outro lado, tendo em conta a rejeição (activa) da jovem a qualquer intervenção (pese embora as anuências nos acordos), creio que uma qualquer medida não lograria garantir a sua colaboração – essencial nesta fase. Acresce que a eventual medida que implicasse a reinserção escolar só seria «aproveitada» durante os últimos 4/5 meses deste ano lectivo, até à maioridade da jovem. Conclui-se, assim, que a falta de motivação que apresenta[2], nesta idade, determina quase fatalmente o insucesso da sua aplicação… . Neste contexto, por considerar que a aplicação de qualquer medida - ainda que adequada em abstracto - seria ineficaz dado o curto período de intervenção e, nessa perspectiva, manifestamente desproporcionada dada a impossibilidade prática de produzir qualquer efeito útil neste momento, determino o arquivamento dos autos. Com estes fundamentos, ao abrigo do disposto no artº 111º da LPCJP, determino o arquivamento dos autos”. * Por requerimento de 12.03.2024 veio novamente o Mº Pº aos autos requerer a reabertura do mesmo processo judicial de promoção dos direitos e proteção relativamente à jovem M. tendo formulando o seguinte pedido: “Nestes termos, tendo em conta a situação de perigo actual em que a jovem se encontra e com a finalidade de o retirar de tal situação, para que lhe sejam prestados os cuidados adequados, proporcionando-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua saúde, formação e educação, requer-se a Vossa Excelência que se digne a) Reabrir o processo e solicitar a elaboração de relatório à EMAT, seguindo-se os demais trâmites até final”, fundamentou o pedido no absentismo escolar da menor M. Por despacho de 15.04.2024 foi novamente determinado o arquivamento, nos seguintes termos: “Da informação prestada pela escola (Processo 83/17.4T8VPV-B E-Mail - Recibos (5640749) Informação (64145701) Pág. 1 de 19/03/2024 00:00:00) resulta que a jovem M. não cumpriu qualquer período de estágio nos dois anos de curso, o que segundo o Regulamento do Curso e a legislação em vigor, inviabiliza a transição de ano escolar. Neste contexto, focando-se o perigo identificado na situação escolar, considero que se mantêm válidas todas as considerações tecidas aquando do despacho de arquivamento, a que acresce o facto de, dos elementos ora colhidos, não se surpreender qualquer alteração da situação de facto que sustente pedido de reabertura do processo. Em conformidade, indefiro o pedido de reabertura do processo. Notifique e arquive novamente”. * Não se conformando com este último despacho o Ministério Público interpôs recurso de apelação tendo, após alegações, apresentado as seguintes conclusões: A) Por acordo de promoção e proteção, foi aplicada à jovem M. a medida de apoio junto do pai. B) De tal acordo fazia parte a obrigação assumida pela jovem de, entre outras, frequentar as aulas de forma assídua. C) O que a mesma não cumpriu, uma vez que consta dos autos que se encontra em abandono escolar. D) Dessa forma o acordo não foi cumprido e, por isso, ficou inviabilizada a execução da medida. E) Assim subsistindo a situação de perigo que fundamentou a requerida instauração de processo judicial de promoção e proteção. F) Pelo que, na opinião do M.P., perante os factos que constam dos autos, que só após a realização das competentes diligências de instrução se podem ou não confirmar, poderia a Mma Juiz concluir que a situação de perigo não se comprova ou não subsiste e, só nesse caso, determinar o arquivamento do processo. * Admitido o recurso, foram os autos conclusos ao juiz desembargador de turno, tendo sido proferido despacho que terminou nos seguintes termos “…, não tendo o Mº Pº reagido ao primeiro despacho de arquivamento, consideramos que se verifica a exceção de caso julgado. Repare-se até que o despacho recorrido limita-se a remeter para os fundamentos do despacho inicial de arquivamento. Não tendo, no entanto, esta questão sido suscitada, convido o Mº Pº a, querendo e no prazo de 10 dias, sobre ela se pronunciar, nos termos do art.º 3º/3 do CPC.” * Notificado do referido despacho veio o Mº Pº sustentar que a decisão judicial de arquivamento proferida na sequência daquele primeiro requerimento do Ministério Público não faz caso julgado relativamente ao requerimento posterior porquanto este reporta a factos – o mês de absentismo escolar da jovem ocorrido posteriormente à data do despacho judicial de arquivamento do primeiro requerimento do Ministério Público – não considerados naquele primeiro despacho judicial. * Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir acerca da exceção dilatória do caso julgado. 2. Fundamentação de facto. 2.1. Além dos factos que, propositadamente, se deixaram expostos em 1. Relatório, pela consulta dos autos resultam também provados os seguintes factos: 2.2. O fundamento da pretensão deduzida em ambos os requerimentos do Mº Pº é o absentismo escolar da menor M. 2.3. O teor dos requerimentos, apresentados pelo Mº Pº, são em tudo idênticos, existindo em termos factuais entre o primeiro e o segundo requerimento uma diferença que foi a de se acrescentar o seguinte facto: “A CÁRITAS da Ilha Terceira comunicou em 06/03/2024 que a M. que integra a turma do 8º ano currículo de Formação Vocacional Inserido no projecto Bota Sentido dinamizado pelo Centro de Desenvolvimento e Inclusão Juvenil da CÁRITAS da Ilha Terceira, projecto que favorece a transição entre o 3º ciclo e o ensino secundário através de um conjunto de actividades, nomeadamente, aplicação do programa de orientação vocacional, integração socioprofissional, mentoria escolar, aplicação de um programa de competências pessoais e sociais e apoio familiar” (cfr. artº 15º do requerimento de 12.03). 3. Fundamentação de direito. Tendo em conta que a M., já atingiu a maioridade e não requereu a continuação da intervenção iniciada antes da maioridade, o presente recurso afigura-se inútil, cf. artigos 5º, al. a) e 63º, al. d), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, no entanto, pelos motivos que se expõem de seguida, o presente recurso sempre estaria votado ao insucesso. A exceção dilatória do caso julgado, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, é de conhecimento oficioso, pressupõe a repetição de uma causa e têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, cf. art.ºs 576º a 578º e 580º do CPC. Estipula o art.º 581.º do CPC (Requisitos da litispendência e do caso julgado) 1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica 3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico 4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. (…). Estabelece a 1ª parte, do nº 1, do art.º 988º, do CPC (Valor das resoluções) “Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração;” Os presentes autos são de jurisdição voluntária e, portanto, atento o disposto no citado normativo pode levantar-se a questão de saber se, neste tipo de processos pode ocorrer a exceção de caso julgado. Em nosso entender, o citado normativo ao admitir a alteração das resoluções nada tem a ver com o caso julgado, porquanto, a alteração tem como fundamento circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, ou seja, uma nova causa de pedir que sempre fundamentaria uma nova ação, mas porque estamos em processo de jurisdição voluntária, por razões de celeridade e proteção dos interessados, agiliza-se o processo permitindo a alteração da decisão fundada nas circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração. Em conclusão, a natureza do presente processo – jurisdição voluntária – não afasta que possa ocorrer a exceção do caso julgado desde que se verifiquem os respetivos prossupostos. Neste sentido cf. os seguintes acórdãos (ambos em www.dgsi.pt): - TRL 24.10.2023 (2243/13.8TBSXL-K.L1-7), sumariado no seguinte sentido: 1 - O caso julgado forma-se no processo de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia que ocorre nos exactos termos previstos nos artigos 620º e 621º do Código de Processo Civil. 2 - Apenas sucede que as resoluções tomadas nos processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”. Ou seja, qualquer resolução pode ser livremente alterada, embora haja transitado em julgado. 3 – Apenas se estará perante uma situação de caso julgado quando uma anterior decisão apreciou o mesmo ponto concreto, a mesma questão concreta, de direito ou de facto. - TRG 11.05.2023 (2392/21.9T8BCL-I. G1), sumariado no seguinte sentido (na parte em que para aqui interessa) III - O caso julgado forma-se nos mesmos termos e com a mesma força e eficácia nos processos de jurisdição contenciosa e nos processos de jurisdição voluntária. A diferença é que “as decisões proferidas nos demais processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como se admite no normativo contido no art.º 988º do CPC”. IV - Para efeitos de aferir da possibilidade de alteração de decisão transitada em julgado, à luz do art.º 988º, nº 1, do CPC, é necessário apurar se ocorre circunstância superveniente, o que passa por comparar a situação factual existente na altura em que a decisão foi proferida com a existente no momento em que é formulado o pedido de alteração. Postos estes princípios e voltando ao caso dos autos constata-se que em ambos os requerimentos apresentados pelo Ministério Público, um em 08-02-2024, - abertura de processo judicial de promoção dos direitos e proteção relativamente à jovem M., outro em 12-03-2024 - reabertura de processo judicial de promoção dos direitos e proteção relativamente à jovem M. - a causa de pedir e o pedido são os mesmos. O tribunal “a quo”, nos termos expostos no despacho de 12.02.2024, indeferiu o requerimento de 08-02-2024 e determinou o arquivamento dos autos. O Ministério Público não interpôs recurso do citado despacho, tendo antes optado por apresentar, em 12-03-2024, outro requerimento- reabertura de processo judicial de promoção dos direitos e proteção relativamente à jovem M., em que alega o mesmos factos acrescentando apenas que “A CÁRITAS da Ilha Terceira comunicou em 06/03/2024 que a M. que integra a turma do 8º ano currículo de Formação Vocacional Inserido no projecto Bota Sentido dinamizado pelo Centro de Desenvolvimento e Inclusão Juvenil da CÁRITAS da Ilha Terceira, projecto que favorece a transição entre o 3º ciclo e o ensino secundário através de um conjunto de actividades, nomeadamente, aplicação do programa de orientação vocacional, integração socioprofissional, mentoria escolar, aplicação de um programa de competências pessoais e sociais e apoio familiar.” Cf. art.º 15º desse segundo requerimento. Ora, o mais agora alegado não configura diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como se admite no normativo contido no citado art.º 988º do CPC, não tem relevância para se considerar que existiu uma circunstância superveniente que justificasse a alteração da decisão de arquivamento anteriormente proferida. Não tem sentido a alegação do Mº Pº quando afirma que a decisão judicial de arquivamento proferida na sequência daquele primeiro requerimento do Ministério Público não faz caso julgado relativamente ao requerimento posterior porquanto este reporta a factos – o mês de absentismo escolar da jovem ocorrido posteriormente à data do despacho judicial de arquivamento do primeiro requerimento do Ministério Público – não considerados naquele primeiro despacho judicial, porquanto, atentos os fundamentos invocados no primeiro despacho, transitado em julgado, para determinar o arquivamento o principal fundamento foi o absentismo da menor, fundamento reproduzido, em síntese, no segundo despacho. Assim, estamos perante dois requerimentos idênticos, com os mesmos sujeitos, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido e não tendo o Mº Pº reagido contra o primeiro despacho de arquivamento, consideramos que se verifica a exceção de caso julgado, cf. art.ºs 576º a 578º, 580º e 581.º do CPC, ficando, assim, prejudicado o conhecimento do recurso. 4. Decisão. Pelo exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar extinta a instância do recurso por inutilidade superveniente da lide. Sem custas, por delas estar isento, art.º 4º, nº 1 do RCP Notifique. Lisboa, 10/10/2024 Octávio dos Santos Moutinho Diogo Carla Cristina Figueira Matos Amélia Puna Loupo |