Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5375/18.2T8FNC.L1-7
Relator: EDGAR TABORDA LOPES
Descritores: PARTICIPAÇÃO SOCIAL
CÔNJUGES
REGIME DE COMUNHÃO GERAL DE BENS
BENS COMUNS
ALIENAÇÃO DE QUOTAS
CONSENTIMENTO
ANULAÇÃO DA VENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A regra geral que decorre do artigo 1682.º, n.º 1, do Código Civil quanto à alienação de bens móveis que sejam bens comuns, é a de que é necessário o consentimento de ambos os cônjuges (a não ser nos casos excepcionados nas sete alíneas do n.º 2 do artigo 1678.º, onde não consta referência às participações sociais).
II – O artigo 8.°, n.° 2, do Código das Sociedades Comerciais-CSC é uma norma especial relativamente ao primeiro segmento do n.º 3 do artigo 1678.° do Código Civil (do qual resulta que qualquer dos cônjuges possui legitimidade para praticar actos de administração ordinária sobre bens comuns) e tem como objecto a regulação da legitimidade dos cônjuges titulares de participações sociais, mas apenas dentro das relações com a sociedade.
III – Para efeitos do funcionamento societário e da sua estabilidade (para evitar eventuais discordâncias entre os cônjuges e que cada um pudesse adoptar soluções divergentes para a vida da sociedade) é essencial que só um dos cônjuges seja considerado sócio. Fora do que respeita à sociedade e quanto às relações entre os próprios cônjuges, não há fundamento para que uma quota que seja um seu bem comum, o não seja em plenitude.
IV – O cônjuge que, nos termos do artigo 8.º, n.º 2, CSC, pretender alienar, dividir ou amortizar uma participação social, tem de se munir do consentimento do outro cônjuge, para assegurar a validade do negócio.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
AG veio intentar a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra JA, J e mulher T e JR e mulher M, pedindo que:
- fossem declaradas nulas ou anuladas as divisões e as transmissões da quota social de 4.454,52 euros no capital social da sociedade por quotas denominada “I…, Lda.”, com o número de matrícula …, efectuadas pelo Réu JA a favor dos Réus J e JReis e ser ordenado o cancelamento dos respectivos registos e aquisições e todos os que tenham sido efectuados na sua sequência ou dele dependentes;
- fossem declaradas nulas ou anuladas as transmissões da quota social de 2.500 euros no capital social da sociedade por quotas denominada “S…, Lda.”, com o número de matrícula …, efectuada pelo Réu JA a favor dos Réus J e JR e ordenado o cancelamento do respectivo registo e aquisição e todos os que tenham sido efectuados na sua sequência ou dele dependentes.
Em síntese, alega a Autora que:
- casou com o Réu JA em 20 de Janeiro de 1981, sob o regime de comunhão geral de bens, tendo este constituído, em Agosto de 1987, a sociedade denominada “I…, Lda.”, com o capital social de 26.727,12 euros, repartido em 3 quotas de igual valor, de 8.909,04 euros cada, pertencendo uma delas ao Réu JA, outra ao Réu J (irmão da Autora) e outra ao Réu JR (irmão da Autora);
- no ano de 2003, na constância do casamento da Autora com o Réu JA, este adquiriu juntamente com os Réus irmãos a totalidade do capital social da sociedade denominada “S…,Lda.”, ficando o capital social repartido em 3 quotas no valor de 5.000 euros, sendo cada uma pertença dos três Réus;
- desde o dia 14 de Novembro de 2008 a Autora e o Réu JAestão separados de facto;
- em 23 de Julho de 2017, à revelia da Autora e sem o seu conhecimento e consentimento desta, procedeu ao registo da divisão da quota social de 8.909,04 euros, por si titulada na sociedade “I…” em duas quotas iguais - cada uma no valor de 4.454,52 euros - e vendeu-as, uma ao Réu J e outra ao Réu JR;
- na mesma data procedeu ao registo da divisão da quota de 5.000 euros por si titulada na sociedade “S…,Lda.” em duas quotas iguais - no valor de 2.500 euros - e vendeu-as aos uma ao Réu J e outra ao Réu JR;
- atendendo a que a Autora e o Réu JA eram casados em comunhão geral de bens, as quotas e participações sociais eram bens comuns pelo que não poderiam ser alienadas sem o seu consentimento.
Citados, vieram:
- os Réus J, T, JR e M apresentar Contestação, propugnado a improcedência da acção e alegando, em síntese, que:
- a Autora nunca teve qualquer participação na constituição ou desenvolvimento das sociedades, sendo uma mera associada do sócio JA;
- a Autora nunca participou em qualquer acto ordinário ou extraordinário das sociedades e que estão de relações cortadas com ela há vários anos, motivo pelo qual, atendendo à separação de facto entre a Autora e o Réu JA, achavam que estes já estariam divorciados há vários anos, até porque residem em residências distintas há muitos anos;
- a divisão de quotas configura um acto de gestão ordinário, motivo pelo qual o Réu não necessitava de qualquer consentimento da sua então esposa e que a administração das quotas sempre foi um instrumento de trabalho do sócio JA, motivo pelo qual poderia ceder as quotas sem autorização da Autora;
- desconheciam - sem obrigação de conhecer - o estado civil do Réu JA, dado que há largos anos a Autora não fazia parte da vida do Réu, motivo pelo qual são terceiros de boa fé e a sua aquisição deve ser protegida;
- o Réu JA apresentar Contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando, em síntese, que:
- a Autora nunca contribuiu com qualquer quantia para a aquisição das quotas e que sempre teve conhecimento da realização da cessão das quotas, tendo dado o seu consentimento;
- nunca participou em qualquer acto das sociedades, nem se interessou pela vida societária das mesmas;
- que as quotas eram geridas interna e externamente por si, comportando um pleno instrumento de trabalho, motivo pelo qual não necessitava da autorização da Autora para vender as mesmas, ainda que não tivesse sido dado o consentimento;
- o direito a invocar a nulidade da venda das quotas caducou, quer nos termos do artigo 287.º, quer nos termos do artigo 1687.º, ambos do Código Civil.
Foi realizada uma – frustrada – Tentativa de Conciliação.
Fixado o objeto do litígio e enunciados os Temas de Prova realizou-se a audiência de julgamento, na sequência da qual foi prolatada Sentença, onde se concluiu com o seguinte Dispositivo:
“Por todo o exposto, julgo a ação totalmente procedente e em consequência:
A) Julgo improcedente as exceções de caducidade.
B) Determino a anulação da venda, e consequentemente da divisão, da quota social, de 4.454,52 euros (quatro mil, quatrocentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos) no capital social da sociedade por quotas denominada “I…, Lda”, com o número de matrícula …, efetuadas pelo Réu JA a favor do Réu J.
C) Determino a anulação da venda, e consequentemente da divisão, da quota social, de 4.454,52 euros (quatro mil, quatrocentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos) no capital social da sociedade por quotas denominada “I…, Lda”, com o número de matrícula ..., efetuadas pelo Réu JA a favor do Réu JR.
D) Determino a anulação da venda, e consequentemente da divisão, da quota social, de 2.500 (dois mil e quinhentos) euros no capital social da sociedade por quotas denominada “S…, Lda”, com o número de matrícula …, efetuada pelo Réu JA a favor do Réu JR.
E) Determino a anulação da venda, e consequentemente da divisão, da quota social, de 2.500 (dois mil e quinhentos) euros no capital social da sociedade por quotas denominada “S…, Lda”, com o número de matrícula …, efetuada pelo Réu JÁ a favor do Réu JR.
F) Determino o cancelamento dos respetivos registos e aquisições e todos os que tenham sido efetuados na sua sequência ou dele dependentes.
G) Julgo improcedente a exceção de proteção de terceiros de boa fé.
H) Condeno os Réus JA, J e JR no pagamento das custas processuais, na proporção de 1/3 a cada um dos Réus.
Registe e notifique”.
É desta decisão que vem interposto recurso por parte dos Réus J e JR, os quais apresentaram as suas Alegações, lavrando as seguintes Conclusões:
“1. Da leitura dos factos julgados como provados constantes dos pontos 13, 14, 15, 16 e 17 ficou assente que as esposas dos sócios, nomeadamente, a Autora, nunca tiveram qualquer relação com a administração das sociedades I…, Lda. e S…, Lda., nunca tendo participado em qualquer ato societário;
2- A Autora nunca demonstrou qualquer interesse pelas sociedades, sendo as mesmas administradas de forma exclusiva pelos Réus;
3- A Autora nunca contribuiu para o crescimento das sociedades e produção de riqueza mantendo-se completamente à parte das mesmas;
4- Desde a constituição da sociedade I…, Lda. e desde a aquisição do capital social da sociedade S…, Lda., foram sempre os Réus que administraram as mesmas e que trabalharam, de forma exclusiva, para gerar riqueza e daí retirar o seu sustento;
5- Todavia, o douto Tribunal a quo relevou por completo estes factos julgados como provados, dando apenas relevância aos efeitos jurídicos do casamento sobre os bens dos cônjuges;
6. Estes factos não deveriam ter sido relevados pelo douto Tribunal a quo, uma vez que são essenciais para demonstrar que a vida societária nunca teve qualquer intervenção da Autora e que as participações sociais estão do ponto de vista material e formal abrangidas pelo conceito legal de instrumento de trabalho previsto no artigo 1678.º, n.º 2, alínea e) do Código Civil, ainda que em sentido lato;
7- A constituição do capital social e a definição dos sócios, bem como, as suas responsabilidades, é condição essencial para a existência das sociedades comerciais;
8-Sem a titularidade da capital social, não seria possível aos Réus dedicarem-se, em exclusivo, desde 1987 à exploração das sociedades comerciais;
9- O douto Tribunal a quo quando refere que a quota societária não se enquadra no sentido legal do termo de instrumento de trabalho, não concretiza ou identifica, sequer, qual é essa definição, sendo certo que o artigo 1678.º, n.º 2, alínea e) do Código Civil não prevê uma definição ou critérios orientadores para o preenchimento desse conceito legal;
10.º- A definição legal de instrumento de trabalho não se deverá cingir apenas àquilo que são bens corpóreos que utilizamos no nosso dia à dia, como por exemplo, computadores, secretárias, impressoras, viaturas automóveis ou ferramentas, abrangendo também meios não corpóreos, com existência e validade jurídica que permitem gerar riqueza;
11- Nesse âmbito, terão que ser incluídas necessariamente entidades personificadas do ponto de vista jurídico como são as pessoas coletivas e as próprias participações sociais no conceito legal de instrumentos legais, sendo esta a interpretação mais adequada e correta do conceito legal previsto no artigo 1678.º, n.º 2, alínea e) do Código Civil, tendo em contas as normas de interpretação da lei previstas no artigo 9.º do mesmo diploma legal;
12- Mesmo que não se considerasse que as participações sociais como instrumentos de trabalho, conferindo ao cônjuge que tem o seu uso exclusivo o poder de as alienar ou onerar sem consentimento do outro cônjuge, sempre se dirá que atendendo ao previsto no artigo 8.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, o cônjuge considerado como sócio tem legitimidade para administrar também teria para alienar ou onerar as mesmas;
13- Conforme defendido pelo Auto João Labareda o nosso sistema jurídico, por princípio, confere legitimidade para alienar ou onerar bens móveis comuns a um dos cônjuges, quando a ele couber a sua administração (artigo 1682.º, n.º 1 e 2, do Código Civil). Cabendo a administração de uma participação social comum, exclusivamente, a um dos cônjuges, nos termos ao artigo 8.º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais, a ele deverá ser igualmente reconhecida legitimidade plena para aliená-la ou onerá-la, como resulta à contrario, do próprio artigo 1682.º. 1 do Código Civil;
14- Sendo os Réus quem decidem diariamente o destino das sociedades, deverá ser a eles conferida legitimidade plena também para alienação das participações sociais, entendimento este que se mostra adequado e justo em face da situação concreta dos autos.
15- Em suma e em face do supra exposto, a douta sentença do Tribunal a quo que decidiu no sentido de considerar que o ato de alienação e consequente divisão das quotas societárias tituladas pelo sócio JA, carecia de consentimento da cônjuge AG, como efeito, exclusivo do regime bens, viola os artigos 1678.º, n.º 2, alínea e), 1681.º, n.º 1, 1682.º, n.º 2, 1687,º 892.º ( por remissão do n.º 4 do artigo 1687) 287.º e 289.º, todos do Código Civil e artigo 8.º, n.º 2 do Código das Sociedade Comerciais”.
A Autora veio apresentar Contra-Alegações, nas quais apresenta as seguintes Conclusões:
A) Os recorrentes, irmãos da Recorrida, limitam o objecto do recurso à discordância da sentença ad quo quando considerou que as “quotas sociais em causa constituem bens comuns devido ao facto das mesmas terem sido adquiridas na constância do casamento, sendo abrangidas pelo regime da comunhão geral de bens. E, tratando-se de bens comuns, entendeu o douto Tribunal à quo que como o ato de alienação das quotas sociais por parte do Réu JA aos outros sócios não consubstancia um ato de gestão ordinária, nos termos do artigo 1682.º, n.º 1 do Código Civil, este ato carecia do consentimento da cônjuge ora Autora. Não tendo sido prestado o consentimento, as cessões de quotas são anuláveis (…).
B) O presente recurso é interposto por apenas dois dos RR., irmãos da A., sócios adquirentes das quotas sociais em ambas as sociedades. O R. JA, marido da ora Recorrida, directamente afectado pelas anulações das vendas e consequentes divisões das quotas socias de €8.909,04, na sociedade I…, Lda, número …, e de €5.000,00 na sociedade S…, Lda, n.º …, não é parte no presente recurso.
C) Cumpre referir que a alínea G da parte decisória da douta sentença determinou a improcedência da excepção de protecção de terceiros de boa- fé.
D) Os Recorrentes não impugnaram a matéria de facto assente como provada na sentença ad quo, nomeadamente a constante dos factos 2, 3, 4.
E) Fixou o juiz ad quo na douta sentença, que o que importava era decidir se a divisão e cedência das quotas efectuadas pelo Réu marido JÁ carecia, ou não, do consentimento da Autora, ora Recorrida, AG, sua mulher e, em caso afirmativo, qual a consequência da ausência desse consentimento.
F) E bem decidiu pela anulação das vendas e consequentemente da divisão das sobreditas quotas sociais bem como pelo cancelamento dos respectivos registos e aquisições e todos os que tenham sido efectuados na sua sequência ou deles dependentes.
G) O tribunal ad quo deixou claro que a prova da contribuição da A. para as sociedades em causa não se afigurava decisiva para a decisão a proferir. Estão em causa são participações sociais em duas sociedades; Os bens comuns dos cônjuges constituem objecto não duma relação de compropriedade - mas duma propriedade colectiva ou de mão comum.
H) As participações sociais corporizam um investimento do casal, tem um valor económico, tal como seria por ex. um depósito bancário. Não se concebe que o depósito bancário seja reclamado como instrumento de trabalho (a não ser para o Banqueiro) tal como as participações socias em discussão nos autos, não o são.
I) O que integra a comunhão conjugal é a quota que corporiza um investimento financeiro do património comum do casal, como decorre dos factos n.º 2, 3 e 4 da matéria de facto, assente como provada, na sentença sob sindicância.
J) O regime jurídico consagrado no n.º 2 do art. 8.º do Código das Sociedades Comerciais não tem a virtualidade de contrariar o regime de imperatividade das regras sobre administração dos bens comuns do casal conforme decorre do art. 1699.º nº 1 c) do CC; em nada modifica a titularidade da participação social;
K) O princípio da pessoalidade da participação social do Réu marido JA, no capital social da sociedade I…, Lda e S…, Lda, cinge-se às relações do mesmo, enquanto sócio, com a sociedade e já não respeita à titularidade da participação social, que sendo bem comum de ambos os cônjuges, só com a intervenção de ambos pode ser dividida, onerada ou alienada.
L) A sua razão de ser (do n.º 2 do art. 8.º do Código das Sociedades Comerciais) assenta na necessidade de favorecer o regular funcionamento interno da pessoa colectiva. Apenas opera sobre os actos sociais, nada se modificando no que diz respeito às relações externas da sociedade.
M) Da análise das normas jurídicas (1732.º do CC e 1733.º do CC e do art. 1682.º do CC), decorre que as quotas das sociedades eram um bem comum, inexistindo qualquer excepção legal relativamente a esses bens pelo que é de concluir que a alienação das quotas careceriam do consentimento de ambos os cônjuges não podendo o Reu marido, JA, vender as quotas sem o consentimento da autora ora recorrida.
N) O que releva é que as quotas são bens comuns e que a alienação das mesmas depende do consentimento da ora Recorrida, não se tratando de um mero acto de administração ordinária. E que a alienação /venda das quotas dependia do consentimento da autora, não tendo o mesmo sido prestado.
O) Deve o Tribunal ad quem confirmar a sentença recorrida”.
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QUESTÕES A DECIDIR
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões dos Recorrentes, importará verificar se se mostram bem anuladas as alienações das quotas e decorrentes cancelamentos dos registos, em função do regime de bens do casal, do regime da administração dos bens do casal e do regime aplicável às participações sociais dos cônjuges (bens comuns).
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal considerou provada a seguinte factualidade, como decorre do teor da Sentença proferida:
1 - Os Réus J e o Réu JoR, são irmãos da Autora AG.
2 - A Autora e o Réu JA, casaram no dia 20 de Janeiro de 1981, sob o regime da comunhão geral de bens, tendo se divorciado após 14 de Julho de 2019.
3 - Na constância do casamento entre a Autora e o Réu JA, os Réus JA, J e JR, constituíram no dia 24 de Agosto de 1987, a sociedade denominada “I…, Lda.”, sociedade por quotas cuja constituição se acha registada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o número …, AP. 10/19871014, com o capital social de €26.727,12, repartido em 3 quotas de igual valor de € 8.909,04 cada, pertencendo uma delas ao Réu JA, outra ao Réu J, e outra ao Réu JR.
4 - No ano de 2003, na constância do casamento entre a Autora e o Réu JA, os Réus JA, J e JR, adquiriram a totalidade do capital social, de € 15.000, da sociedade denominada “S…, Lda.”, sociedade por quotas actualmente matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Câmara de Lobos, ficando o capital social repartido em 3 quotas de igual valor de € 5.000 cada, pertencendo uma delas ao Réu JÁ outra ao Réu J e outra ao Réu JR.
5 - Desde o dia 14 de Novembro de 2008 que a Autora e o Réu JA estão separados de facto.
6 - Residem em habitações distintas desde essa data.
7 - No dia 23 de Julho de 2017, o Réu JA, à revelia da Autora, sem o conhecimento, sem o seu consentimento e sem a sua autorização, procedeu ao registo da divisão da quota social de € 8.909,04, por si titulada, no capital da sociedade “I…, Lda.”, em duas quotas sociais, cada uma no valor e €4.454,52, e vendeu-as, uma ao Réu J e outra ao Réu JR.
8 - No dia 23 de Julho de 2017, o Réu JAprocedeu à divisão da quota social de €5.000, por si titulada, no capital da sociedade “S…, Lda.”, em duas quotas sociais, cada uma no valor de € 2.500, e vendeu-as, uma ao Réu J e outra ao Réu JR, que as fizeram registar a seu favor.
9 - A Autora tomou conhecimento das cessões de quotas no dia 20 de Agosto de 2018.
10 - A Autora não recebeu qualquer valor respeitante ao negócio de cessão de quotas.
11 - Os Réus J e JR estão de relações cortadas com a Autora há mais de 10 anos.
12 - Os Réus J e JR sabiam que a Autora era casada com o Réu JA.
13 - A vida societária e todos os actos internos e externos eram administrados pelos Réus JA, J e JR.
14 - As Rés esposas nunca participaram em qualquer acto extraordinário das sociedades, administraram ou geriram qualquer actuação das sociedades.
15 - A Autora nunca esteve presente em qualquer assembleia das sociedades.
16 - Nunca procurou tomar os comandos das sociedades.
17 - A Autora trabalha na segurança social.
18 - Servia ao balcão, habitualmente, no estabelecimento comercial da sociedade sito em …, aos fins de semana até o ano de 2010.
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O Tribunal considerou Não Provados os seguintes factos com relevância para a decisão proferida:
A) A venda das quotas foi efectuada com o consentimento da Autora.
B) A venda das quotas foi discutida pelo Réu JA e pela Autora e foi acordado que o produto da venda seria para dividir em sede de partilhas do divórcio.
C) A Autora desde 18 de Julho de 2017 que tem conhecimento da cessão de quotas.
D) Os Réus J e JR estavam convictos que, à data da cedência das quotas, a Autora e o Réu JA já estariam divorciados há vários anos.
E) A cessão de quotas foi realizada pelo valor nominal das quotas cedidas.
F) O preço acordado foi de 13.909,04 euros e foi integralmente pago em numerário na data das assembleias.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Resolvidas que foram – sem objecto de recurso – as questões da caducidade e da protecção de direitos de terceiros, releva para decisão a verificação da necessidade do consentimento da Autora para a alienação das quotas (bens comuns) por parte do Réu JA.
A Sentença seguiu o seguinte processo de raciocínio:
I - O que cumpre decidir nos presentes autos é se a divisão e cedência das quotas efetuadas pelo Réu JÁ carecia, ou não, do consentimento da Autora AG e, em caso afirmativo, qual a consequência da ausência desse consentimento, em ligação ao regime de bens do casamento;
II – As quotas em causa são bens comuns do casal, uma vez que - à data da cessão/venda - a Autora era casada com o Réu JA, no regime de comunhão geral de bens (sendo que, ainda que fosse comunhão de adquiridos a solução seria idêntica, uma vez que a sua aquisição foi no decurso do casamento);
III – Consagra o artigo 1732.º do Código Civil: “Se o regime de bens adotado pelos cônjuges for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam excetuados por lei” (sendo que, as quotas se não mostra, excluídas pelo artigo 1733.º);
IV – Face ao artigo 1682.º do Código Civil, a “alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de acto de administração ordinária” (n.º 1), podendo cada um dos cônjuges “alienar ou onerar, por acto entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do artigo 1678.º e das alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo, ressalvado o disposto nos números seguintes” (n.º 2) e carecendo do consentimento de ambos “a alienação ou oneração: a) De móveis utilizados conjuntamente por ambos os cônjuges na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho; b) De móveis pertencentes exclusivamente ao cônjuge que os não administra, salvo tratando-se de ato de administração ordinária” (n.º 3), sendo que, quando “um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais” (n.º 4);
V - A alienação das quotas carecia do consentimento de ambos os conjugues, não podendo o Réu JA vender as quotas sem o consentimento da Autora;
VI - Não releva o facto de a Autora não ser sócia das sociedades, nem tão pouco releva o ter participado mais ou menos na administração das sociedades: o que releva é que as quotas são bens comuns e que a alienação das mesmas depende do consentimento da Autora, não se tratando de um mero acto de administração ordinária;
VII – O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Setembro de 2019 (Processo n.º 14148/17.9T8SNT.L1.S1-José Rainho) decidiu que: “I - Se uma quota social é cedida por um sócio a outro sócio, mediante um certo pagamento a suportar por este último, estamos para todos os efeitos perante uma cessão de quota e não perante uma amortização de quota, ainda que tal cessão se processe no âmbito de uma assembleia geral da sociedade, se tenha deliberado no sentido de a admitir e se tenha qualificado o negócio como “amortização de quota”. II - Em caso de amortização da quota é de entender que tudo se move ainda no âmbito das “relações com a sociedade”, de sorte que é de concluir que, por aplicação do n.º 2 do art. 8.º do CSComerciais, não há necessidade de consentimento do cônjuge do sócio. III - Já no caso de cessão de quota social comum (ato extrassocial), carece tal ato de consentimento do cônjuge que não é sócio”;
VIII – Apesar da posição assumida por João Labareda, no sentido de reconhecer ao cônjuge considerado sócio plena legitimidade para a prática de atos de alienação da participação social, esse não é o entendimento acertado, nem o maioritário, uma vez que se pretende imunizar o ente societário às dissenções familiares, não resulta que se tenha pretendido atribuir, ao cônjuge poderes de administração, sobre participação social comum, tão amplos como aqueles que a lei civil confere ao cônjuge administrador;
IX - Por assim ser, sopesada a regra-básica da administração conjunta ou concorrente dos bens comuns do casal (artigo 1678.º, n.º 3, 2.ª parte, do Código Civil), decorrência do princípio diárquico da direcção da família, constitucionalmente consagrado artigo 36.º, n.º 3, da Cosntituição), carece de consentimento do cônjuge que não é considerado como sócio a alienação ou oneração de participação social comum (actos extra-sociais), "ex vi" do exarado no artigo 1682.º, n.º 1;
X – O argumento de as quotas poderem ser consideradas como instrumento de trabalho, não procede, pois que não se integra em nenhuma das alíneas do n.º 2 do artigo 1678.º do Código Civil, conjugado ainda com o artigo 1682.º, desde logo porque os Réus não usam as quotas como tal, não sendo uma participação social um instrumento de trabalho nem no sentido literal nem no sentido legal do termo: enquadrar uma quota societária no conceito de instrumento de trabalho traduz-se numa interpretação criativa sem qualquer acolhimento legal. À luz de tudo o referido, dúvidas não restam ao Tribunal que as quotas que foram cedidas são bens comuns, em virtude do regime de bens que vigorava no casamento contraído entre a Autora AG e o Réu JA, carecendo a sua alienação/venda do consentimento;
XI – Não tendo a Autora prestado o seu consentimento, aos referidos actos de alienação (tidos como de administração extraordinária) e uma vez que as quotas não podem ser consideradas como instrumento de trabalho do Réu JA, as vendas têm de ser anuladas, nos termos dos artigos 1687.º, 892.º, 287.º e 289.º, do Código Civil;
XII – No que à divisão das quotas respeita, está peticionada a sua anulação importando assinalar que aquela não configura um acto de administração ordinário, uma vez que elas foram divididas para alienação (que carecia de consentimento): não esteve em causa uma simples divisão de quotas sociais, mas sim uma divisão para venda a duas pessoas, em duas metades iguais, efectuadas no mesmo acto, sem o exigido consentimento da Autora;
XIII - Tendo o Réu dividido as quotas para uma venda sem consentimento da Autora, então essa divisão também terá de ser anulada, uma vez que não se tratou de um acto de gestão ordinário, mas sim de um acto extraordinário directamente relacionado com a alienação.
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A Sentença proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se particularmente bem estruturada, sistematizada e fundamentada, restando apenas verificar se lhe assiste razão no decidido.
A discordância dos Recorrentes assenta – basicamente – em que a Autora nunca teve participação em qualquer acto societário, nem demonstrou qualquer interesse pelas sociedades, pelo que, sendo estas administradas por si e, como tal, as participações sociais estariam abrangidos pelo conceito legal de instrumento de trabalho previsto no artigo 1678.º, n.º 2, alínea e), do Código Civil, pelo que a alienação não careceria de consentimento.
A Recorrida, por seu turno, entende que o que está em causa nos autos são participações sociais em duas sociedades e que constituem (à data) bens comuns do casal constituído pela Autora e pelo Réu JA, pelo que não podia este aliená-las, uma vez que o regime consagrado no n.º 2 do artigo 8.º do Código das Sociedades Comerciais não tem a virtualidade de contrariar o regime de imperatividade das regras sobre administração dos bens do casal conforme decorre do artigo 1699.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil.
Este é também o entendimento que temos como correcto e foi há muito estudado e explicitado por Rita Lobo Xavier, num estudo que não perdeu actualidade: Reflexões sobre a posição do cônjuge meeiro em sociedades por quotas, Coimbra, 1993, em especial entre as páginas 109 a 116.
De facto, há que nunca perder a noção de que a regra geral que decorre do artigo 1682.º, n.º 1, do Código Civil, quanto à alienação de bens móveis que sejam bens comuns, é a de que é necessário o consentimento de ambos os cônjuges (a não ser nos casos excepcionados nas sete alíneas do n.º 2 do artigo 1678.º, onde não consta referência às participações sociais).
A favor do entendimento dos recorrentes existe, de facto, uma posição doutrinal relevante (João Labareda) e um Acórdão da Relação do Porto de 07 de Dezembro de 2005 (Processo n.º 0535980-José Ferraz).
Assim, neste entendimento, o “cônjuge considerado como sócio” teria legitimidade para a alienar ou onerar participações sociais que fossem considerados bens comuns (por lhe caber a sua administração - artigo 1682.°, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), recorrendo - como base legal - ao artigo 8.° do Código das Sociedades Comerciais-CSC e aos artigos 1678.º e 1682.º do Código Civil, de onde decorre que tem legitimidade para alienar e onerar quem tem legitimidade para administrar (e só assim não se abriria uma brecha no sistema do Código Civil, ao haver bens submetidos à administração de um só dos cônjuges, mas cuja alienação/oneração estaria dependeria do consentimento dos dois, sem que tal resultasse do artigo 1682.°; só assim justificando o n.° 3 do artigo 8.° do CSC).
O que sucede é que esta posição é não apenas minoritária, como esquece que do artigo 8.°, n.° 2, CSC (sendo uma norma especial relativamente ao primeiro segmento do n.º 3 do artigo 1678.° do Código Civil), pouco pode retirar-se para a apreciação desta questão, uma vez que o seu objecto é a regulação da legitimidade dos cônjuges titulares de participações sociais, dentro das “relações com a sociedade” e a questão que nos ocupa, vai muito além disso.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001 (Recurso n.º 2676/01-Silva Salazar), assinalando esse âmbito do referido artigo 8.º, n.º 2, explica-se este regime dizendo que, “nas relações com a sociedade, sócio é o cônjuge que tenha celebrado o contrato de sociedade ou aquele por quem a participação social tenha vindo ao casal; mas, fora dessas relações, já não será assim. Compreende-se que à estabilidade da vida social interesse que só um dos cônjuges seja considerado sócio, até para evitar eventuais discordâncias entre cônjuges que não logrem pôr-se de acordo e que pudessem adoptar soluções divergentes para a vida da sociedade; mas tal consideração já não pode prevalecer noutros domínios, como seja nas relações entre os próprios cônjuges. No tocante às relações entre estes, não há motivo algum para que a quota não seja considerada inteiramente bem comum, sem qualquer restrição, e portanto sem distinção entre a qualidade de sócio e o valor económico”.
Aliás, verificando mesmo o histórico desta matéria, como refere José Miguel Duarte, após a reforma do Código Civil em 1977, “a lei civil passou a atribuir a ambos os cônjuges a “administração ordinária” das participações sociais, requerendo também o consentimento de ambos os cônjuges para a sua alienação ou oneração. Pelas razões já expostas, o legislador societário de 1986 afastou a primeira destas normas, mas manteve inalterada a segunda, pelo que, numa leitura sistemática e finalística dos preceitos em causa, é forçoso entender-se que se mantém a necessidade de intervenção de ambos os cônjuges em actos de alienação ou oneração de participações sociais comuns, quando adquiridas na constância do matrimónio”.
E, acrescenta, “Sobretudo, é de realçar que, na lei civil, se surpreende uma relativa coincidência entre os poderes de administração e os poderes de disposição de bens comuns, que são atribuídos a apenas um dos cônjuges, em virtude de uma especial e forte ligação entre determinadas categorias de bens e um dos membros do casal. Seja porque tais bens provêm do trabalho ou dos direitos de autor de um dos cônjuges, seja porque apenas um dos cônjuges adquiriu o bem ainda antes de celebrado o casamento, seja porque o bem foi doado a um dos cônjuges ou a ambos com exclusão da administração por parte do consorte, seja por se tratar de bens utilizados por um dos cônjuges como seu instrumento de trabalho (art. 1678.°, n.° 2, do CC).
Ora, convenha-se que a circunstância, que pode aliás ser de carácter meramente ocasional, de apenas um dos cônjuges outorgar o contrato aquisitivo da participação social comum, não é comparável às enunciadas no art. 1678.°, n.° 2, para dela poder assacar-se ao “cônjuge adquirente” poderes exclusivos de alienação e oneração.
Essa circunstância só justifica, nos precisos termos consagrados pela lei societária, que apenas o “cônjuge que adquiriu” seja “considerado como sócio nas relações com a sociedade”.
Sobre esta matéria, o Acórdão da Relação de Lisboa de 01 de Março de 2012 (Processo n.º 144/11.3TBPNI.L1-2-Pedro Martins) - que decidiu no sentido de que “Aquele dos cônjuges que, por força do art. 8.º/2 do CSC é considerado como sócio, não tem legitimidade para, sem o consentimento do outro cônjuge, alienar a participação social”, inclui uma resenha de posições doutrinais sobre a matéria, que vale a pena recuperar:
“Também Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2001, págs. 372/373, dizem que parece desviar-se desta regra de administração ordinária disjunta o caso da administração de uma quota que seja bem comum do casal por força do regime de bens do casamento, e citam Rita Xavier quando esta autora refere que o art. 8.º/2 do CSC implica que só tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária [– repare-se: administração ordinária – o parêntesis é deste acórdão], relativamente a uma quota comum, aquele dos cônjuges que […]. Cristina M. Araújo Dias, na sua tese sobre O regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges, Problemas, críticas e sugestões, Coimbra Editora, Junho de 2009, págs. 537 a 540, também segue a posição de Maria Rita Lobo Xavier: A atribuição a qualquer dos cônjuges de legitimidade para a prática de actos de administração ordinária em relação a uma participação social seria prejudicial e inconveniente ao normal desenvolvimento da vida societária. Procurou-se evitar esta situação perturbadora do ponto de vista da sociedade [com as normas do] art. 8.º/2 do CSC […]. Mas repare-se que se trata apenas das relações com a sociedade, nada se modificando nas relações externas. Por isso, e apesar de o cônjuge administrador da quota social comum, ter, em princípio, poderes que vão além da simples administração, abrangendo mesmo poderes de disposição, tal não será exactamente assim, carecendo o cônjuge sócio do consentimento do outro cônjuge para alienar ou onerar a participação social (art. 1682/1). Segundo as indicações desta autora, em texto e em notas, também assim seria no direito francês (quanto às quotas, já não quanto às acções – e aqui haveria que chamar a atenção para que o caso do TRP seguido pelo réu diz respeito a uma sociedade anónima…), italiano e alemão. Rita Lobo Xavier, no seu artigo sobre Participação social em sociedade por quotas integrada na comunhão conjugal e tutela dos direitos do cônjuge e do ex-cônjuge do "sócio", publicado em Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais Homenagem aos Profs. Doutores A. F. Correia, O. Carvalho e V. L. Xavier Vol. III, Coimbra Editora, Dez 2007, págs. 993 e segs (especialmente págs. 997 a 1006, volta a defender a mesma posição, embora a outros propósitos, referindo, apenas de passagem, a posição contrária de João Labareda, na nota 29 e em texto da pág. 1001 em que critica a construção deste autor da atribuição de poderes de administração exclusiva, incluindo poderes de administração extraordinária; esta autora lembra a compatibilidade das posições de Oliveira Ascensão, João Espírito Santo e Coutinho de Abreu com as suas. Remédio Marques, em Comentário [ao art. 8] ao CSC, Vol. I, Almedina, 2010, IDET, págs. 151 a 153, escreve, entre o mais, que “da administração exclusiva da vertente patrimonial deste bem comum – aí onde o estatuto ou a qualidade de sócio não é comunicável – não resulta que o cônjuge sócio ou o cônjuge accionista possa exercer os seus direitos sociais em regime de completa autonomia e imunidade relativamente à interferência do outro cônjuge. E não se diga que deve ser aplicada, por analogia, o disposto no art. 1682/2 do CC, concluindo-se que o cônjuge sócio tem legitimidade para alienar ou onerar as participações sociais que são bens comuns, de que tenha a administração, independentemente do consentimento do outro cônjuge (em nota lembra que esta é a posição de João Labareda e do ac. do TRP), visto que estas situações não seriam atingidas pelo sector normativo do nº 3 do art. 1682 do CC. Objecta-se a esta solução afirmando que o facto de, nos termos do art. 205/1 do CC, as participações sociais serem equiparadas aos bens móveis (cuja administração pertence exclusivamente a um dos cônjuges – precisamente o cônjuge sócio ou accionista) não significa que procedam as razões subjacentes à solução do art. 1682/2 do CC. Não significa que devamos aplicar, sic et simpliciter, o regime jurídico dos bens móveis, especialmente em matéria de ilegitimidades conjugais. Embora possa entender-se que o art. 1678/2 do CC, logra comportar mais este outro exemplo de bens comuns cuja prática cabe, em exclusivo, a um dos cônjuges, a verdade é que as situações do nº. 3 do art. 1682 visam apenas defender o cônjuge não administrador contra actos de alienação ou onerações respeitantes a coisas corpóreas – aquelas cuja afectação empírica é mais ostensiva na pessoa dos cônjuges. O facto de nesse nº. 3 não acharem mencionadas as participações sociais (cuja alienação ou oneração careceria de consentimento do cônjuge não administrador de tais bens comuns) não impede que esse consentimento deva ser exigido (ou objecto de suprimento), ao abrigo da norma geral do nº. 3 do art. 1678 do CC, se e quando essa alienação ou oneração forem qualificadas como actos de administração extraordinárias.” Quer isto dizer que este autor, embora parta de concepções muito diferentes das de Rita Lobo Xavier e admita a atribuição, pelo art. 8.º/2 do CSC, de administração exclusiva ao “sócio”, defendida por João Labareda, entende, mesmo assim, por outra via, a necessidade do consentimento do outro cônjuge e a impossibilidade de aplicação, por analogia, da regra do nº. 2 do art. 1682 do CC”.
Ao acabado de expor podem ainda acrescentar-se os mais recentes trabalhos de:
 - Mariana Alpalhão Gonçalves, Disposição da Participação Social em Comunhão Conjugal (Dissertação de Mestrado na Universidade Católica Portuguesa, Maio de 2014), onde se defende a necessidade do consentimento dos dois cônjuges, uma vez que, “seja qual for a especificidade da participação em causa e a dinâmica da sociedade em causa, o problema do cônjuge não considerado sócio mantem-se. A este cônjuge interessa que independentemente do tipo de participação em causa, ele seja parte no momento de decidir acerca da disposição daquela participação, que é património seu” (página 43).
E, acrescenta, para uma situação como esta, “devemos procurar seguir a solução mais sensata, porque é no senso que está o Direito. E neste caso tão controverso da “Disposição da Participação Social em Comunhão Conjugal”, o bom senso diz-nos que a lei não pode conferir ao “cônjuge considerado sócio” a administração exclusiva e unilateral da participação social. A lei não pode permitir que o cônjuge a quem não é atribuída a qualidade de sócio veja a sua situação patrimonial flagrantemente comprometida. Admitir tal estado de coisas seria admitir a prevalência do Direito Societário sobre o Direito da Família, exclusivamente com base em argumentos económicos. Não somos indiferentes ao facto de a questão aqui discutida ganhar contornos diferentes consoante estejamos perante uma sociedade de tipo mais aberto ou mais fechado, ou consoante estejamos perante participações tituladas e facilmente transmissíveis, ou quotas. Não obstante, cremos que a solução para o problema da disposição da participação social comum deveria ser transversal a todas estas situações porque em todas elas está em causa a preservação do património conjugal” (páginas 49-50).
- Remédio Marques, mantendo o mesmo entendimento em dois textos publicados na obra Direito da Família. Estudos, Gestlegal, 2022:
- Algumas notas sobre administração de bens pelos cônjuges, poderes de administração e ilegitimidades conjugais, páginas 183 a 239;
- Divórcio, sucessão e participações sociais (2022), páginas 291 e seguintes.
- Alexandre Soveral Martins, Sociedades entre cônjuges, in Casamento & união de facto – questões da jurisdição civil (Colecção Formação Contínua, e-book CEJ, 2020, páginas 87 a 97 - em especial, 92 a 94), onde se defende a mesma construção, assumindo que quem “considere que o artigo 8.º, n.º 2, não confere poderes de administração da quota bem comum tem de sustentar que, nesse caso, a alienação depende do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se a própria alienação se tratar de ato de administração ordinária ou se o cônjuge sócio tiver a administração da quota bem comum por outro motivo: por alguma das razões previstas no artigo 1678.º, n.º 2, do Código Civil. A mesma consequência terá a leitura segundo a qual o artigo 8.º, n.º 2, apenas confere poderes de administração ordinária em geral. Na leitura que preferimos, na alienação ou oneração da quota a terceiros parece evidente que não estamos perante meras relações com a sociedade.
E o artigo 8.º, n.º 2, apenas diz respeito às relações com a sociedade.
Por isso, nesses casos entendemos que é necessário recorrer ao direito da família.
E isso significa que estaremos perante uma quota bem comum que fica sujeita ao artigo 1682.º do Código Civil. E que a alienação ou oneração de quota bem comum estará, em regra, sujeita ao consentimento de ambos os cônjuges.
Isso não será assim, porém, se efetivamente houver outras razões para entender que a quota é administrada por um só dos cônjuges, nos termos do artigo 1678.º.
A quota que se torna comum, mas que veio ao património comum por um dos cônjuges apenas, não deixa de ser uma coisa. E o que se integra no património comum é essa coisa: não é apenas o seu valor económico. No entanto, o artigo 8.º, n.º 2, CSC impõe que nas relações com a sociedade (e apenas nessas) só seja considerado sócio aquele por quem a quota integrou o património comum.
Nas relações com a sociedade é que só um é sócio.
Nas relações entre cônjuges e perante terceiros já não se afasta o regime do direito da família.
Como não se afasta o direito das sociedades e a leitura unitária da participação social”.
- Cláudia Sofia Antunes Martins, Efeitos patrimoniais especiais do casamento nos regimes de comunhão, Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 27, 2016, páginas 187 a 211, onde se assume também a posição maioritária.
- e, por fim, Evaristo Mendes, Participação social e comunhão conjugal. Qualidade de sócio e poder de dispor. Algumas questões (Revista de Direito Comercial, 01 de Abril de 2023, páginas 675 a 752 (em especial 715 a 720) - que se constitui como o mais completo e actualizado estudo sobre esta matéria - e onde se conclui que:
“Como posição de princípio, esta opinião maioritária justifica-se.
Na verdade, o poder de dispor e os atos de disposição e oneração, por um lado, incidem sobre a própria participação, sendo, neste sentido, exteriores à mesma; não respeitam ao conteúdo da correspondente posição de sócio.
Por outro lado, concebem-se atos de disposição com e sem eficácia em relação à sociedade; e, neste último caso, os efeitos jurídicos são estranhos ao ente social e à condição de sócio ou, pelo menos, à correspondente legitimidade social.
O problema é essencialmente de direito patrimonial, não primariamente societário.
Além disso, se estiver em causa a alienação de uma posição de controlo ou domínio corporativo, há que ponderar uma possível aplicação (analógica ou a outro título, do art. 1682.º-A, n.º 1, al. b), do CC, que faz depender do consentimento de ambos os cônjuges a alienação do estabelecimento comercial, próprio ou comum.
Todavia, para além de terem de se ressalvar os atos de mera administração ordinária (por ex., relativos a uma carteira diversificada de ações cotadas), por um lado, importa ter presente que, nas SpQ e SA, a via normal de um sócio sair da sociedade, liquidando o investimento que nela tem, é a da alienação da participação social; ou seja, neste caso, o ato de disposição tem uma substancial dimensão social, de desvinculação da sociedade (trata-se de uma alienação exoneratória), dificilmente compatível com a necessidade do consentimento do cônjuge, como bem observou João Labareda” (páginas 719-720).
Pouco mais há a dizer sobre esta matéria, uma vez que quer em termos jurídicos quer em termos fácticos, a decisão dos presentes autos foi bem apreciada pelo Tribunal a quo, inexistindo qualquer fundamento ou argumento válido que permita abalar a sua consistência.
Os Recorrentes ainda tentam desviar a atenção para a utilização das quotas como instrumentos de trabalho, mas sem qualquer razão: as quotas não são o instrumento de trabalho do Réu em causa. Ele não se dedica a vender ou transaccionar quotas, dedica-se à actividade exercida pelas sociedades em causa.
Autora e Réu JÁ estavam casados em regime de comunhão geral, as quotas em causa eram efectivamente um bem comum do casal, foram alienadas e divididas sem o consentimento da Autora. O Réu JA (que, aliás, não recorreu) não o podia ter feito uma vez que não estava em causa um acto de administração ordinária (e não nos encontrávamos no âmbito dos poderes que o artigo 8.º, n.º 2, CSC lhe conferia).
As consequências desta actuação são aquelas que foram tiradas (anulação das vendas nos termos dos artigos 1687.º, 892.º, 287.º e 289.º do Código Civil).
O recurso só pode ser julgado improcedente.
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DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a Sentença recorrida.
Custas do Recurso a cargo dos Recorrentes.
Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC).
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Lisboa, 16 de Maio de 2023
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete