Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
248/23.0YUSTR.L1-PICRS
Relator: ALEXANDRE AU-YONG OLIVEIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA CONDENATÓRIA
REQUISITOS
ELEMENTO SUBJECTIVO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da responsabilidade do Relator)
1. Admitimos a aplicação, com as devidas adaptações, do disposto no artigo 379.º, n.º 1, do Código do Processo Penal (nulidade), à decisão administrativa, quando esta viole o disposto no artigo 58.º, n.º 1, al. b), do Regime Geral das Contraordenações.
2. No caso concreto, contudo, atenta a defesa apresentada pela arguida, tal vício sempre seria de considerar-se sanado, ao abrigo do disposto no artigo 121.º, n.º 1, al. c), do Código do Processo Penal.
3. O objeto do processo na impugnação judicial da decisão administrativa que aplica uma coima, não é delimitado, apenas e tão só, pela decisão administrativa condenatória, mas é antes constituído pelo acontecimento histórico concreto investigado no processo.
4. Pela sua ligação intrínseca à problemática do objeto do processo em processo penal e ao regime de alteração de factos da acusação dos artigos 358.º e 359.º, do Código do Processo Penal, não consideramos aqui aplicável a jurisprudência uniformizada, em sede de Direito Processual Penal, pelo Acórdão n.º 1/2015 (STJ).
5. Entendemos, por isso, que inexistia qualquer razão para o tribunal a quo não conhecer, em toda a sua extensão, do acontecimento histórico concreto investigado no processo, tomando em conta, inclusive, a prova que já constava dos autos (acrescida da prova produzida em audiência), e, como é óbvio, o que era alegado na impugnação judicial.
6. E não vislumbramos, assim, qualquer razão para que o tribunal a quo devolvesse os autos à entidade administrativa para reparar os vícios da sua própria decisão, tal como defende a ora Recorrente.
7. Questão diversa, parece-nos, é a de saber se a sentença recorrida, ao não responder às questões concretas suscitadas no processo, não incorreu no vício de omissão de pronúncia (artigo 379.º, n.º c), do Código do Processo Penal). Contudo, por não tendo sido alegada esta nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 3, do Código do Processo Penal, não podemos conhecer deste vício.
8. Nestes termos, o recurso deverá ser julgado improcedente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
1. “HOSPITAL DE BRAGA, EPE”, com sede em Sete Fontes, São Victor, Braga, foi condenado por decisão proferida pela “ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE” (doravante, ERS), pela prática de uma contra-ordenação ao art. 13.º, al. b), dos Estatutos da ARS (aprovados pelo DL n.º 126/2014, de 22-08), por violação dos tempos máximos de resposta garantidos, na coima de € 1 500.
2. Após a realização de audiência de julgamento, por decisão proferida no dia 19-12-2023, o tribunal a quo, conhecendo de questão prévia de nulidade da decisão administrativa, julgou procedente o recurso interposto pelo “HOSPITAL DE BRAGA, EPE” e, em consequência, considerou nula a decisão proferida pela ERS e determinou o arquivamento do processo contra-ordenacional. 
3. A ERS interpôs recurso desta decisão, que terminou com a apresentação das seguintes conclusões:
“A) A sentença recorrida considerou que decisão administrativa, sendo omissa quanto aos fatos relevantes para a imputação subjetiva da infração, deve ser considerada nula, e tal nulidade ser julgada insanável, determinando por isso o arquivamento dos autos.
B) O art. 58.º do RGCO estabelece um dever de fundamentação mínimo da decisão administrativa de aplicação de coima, concretamente no que respeita aos factos – cfr. al. b) do n.º 1.
C) Entende-se que o incumprimento dos requisitos da decisão previstos no n.º 1 do art. 58.º do RGCO tem cominação a nulidade da decisão, nos termos previstos no art. 379.º do CPP, aplicável por via do art. 41º do RGCO.
D) No entanto, ao contrário do postulado pela Sentença a quo, o efeito da nulidade não deve ser o arquivamento do processo, tratando a nulidade como insanável, porquanto não se trata de qualquer das nulidades previstas no art. 119.º do CPP.
E) Com efeito, no art. 119.º do CPP contém um elenco taxativo de nulidade da sentença, aplicando-se o mesmo elenco às decisões administrativas.
F) Sem que, no entanto, se encontre nesse elenco a nulidade que a Sentença a quo apontou à decisão administrativa.
G) Subscreve-se o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de 30.20.2022, acima citado, segundo o qual “(…) existindo nulidade por não se mostrarem cumpridas as formalidades descritas no art. 58º do RGCO, esta não está sanada, o que não significa que não deva ser suprida pela autoridade administrativa que inicialmente tramitou o processo, por referência ao n.º 2 do art. 374.º do CPP – v. entre outros, o acórdão do STJ de 21-12-2006, proferido no Proc. nº. 06P3201, acessível em www.dgsi.pt -, aliás de harmonia, com o princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, em homenagem ao princípio da economia processual, dando-se oportunidade (…) de suprir nulidades, restringindo-se, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade do acto. Tal decorre da circunstância de o processo (…) ser uma sequência de actos, os quais nem sempre estarão entre si numa relação causal ou de dependência.”.
H) Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 58.º, 41.º do RGCO e arts. 119.º, 122.º, n.º 1 e 2, 374.º e 379.º do CPP.
I) Nessa medida, deverá a sentença a quo ser revogada, na parte em que determinou o arquivamento dos autos, pugnando-se pela sua substituição por outra que devolva os autos à ERS com vista à sanação da declarada nulidade”.
4. Notificado do recurso interposto pela ERS, o Ministério Público, junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, respondeu ao recurso, entendendo que “a sentença ora recorrida não carece de qualquer reforma ou reparo, devendo assim ser confirmada em toda sua extensão e alcance.”.
5. O “HOSPITAL DE BRAGA, EPE” também respondeu ao recurso interposto, entendendo que deve “manter-se a decisão proferida nos presentes autos.”.
6. O Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação de Lisboa, emitiu parecer, no qual afirmou, em síntese, que adere integralmente à resposta oferecia pelo Ministério Público junto do tribunal a quo.
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II. QUESTÕES
7. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o objeto do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação de recurso (artigo 412.º, n° 1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
8. Assim sendo, perante as conclusões do recurso interposto, cumpre ao presente tribunal responder à seguinte questão:
i. O incumprimento dos requisitos da decisão administrativa condenatória previstos no artigo 58.º, n.º 1, al. b), do Regime Geral das Contraordenações, determina, por aplicação do artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código do Processo Penal, ex vi artigo 41.º do primeiro diploma, a nulidade da decisão administrativa e, em consequência, os autos não devem ser arquivados mas devolvidos à entidade administrativa para sanação do vício?
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III – FUNDAMENTAÇÃO
i. O incumprimento dos requisitos da decisão administrativa condenatória previstos no artigo 58.º, n.º 1, al. b), do Regime Geral das Contraordenações, determina, por aplicação do artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código do Processo Penal, ex vi artigo 41.º do primeiro diploma, a nulidade da decisão administrativa e, em consequência, os autos não devem ser arquivados mas devolvidos à entidade administrativa para sanação do vício?
9. Da sentença recorrida consta que “Da decisão não constam, contudo, quaisquer fatos dos quais se possa concluir que a conduta do recorrente foi dolosa ou negligente. E acima de tudo, é totalmente omissa quanto aos fatos alegados pelo recorrente, dos quais se poderia, eventualmente, concluir que não houve qualquer comportamento negligente. E tendo este alegado na sua defesa que o comportamento que adotou excluía o dolo e a negligência, não poderia a ERS omitir, por completo, os fatos relevantes para a imputação subjetiva da conduta: fosse discordando do recorrente, fosse concordando com ele (caso em que deveria absolvê-lo).”.
10. Daqui concluiu a sentença recorrida, que a decisão administrativa violou o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 58.º do Regime Geral das Contraordenações, o que determina, por aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do Código do Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a nulidade da decisão administrativa.
11. Mais considerou aqui aplicável a jurisprudência subjacente ao Acórdão Uniformizador do STJ n.º 1/2015, donde resulta que “[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
12. Nesta decorrência, seguindo aquela jurisprudência, considerou que o vício em causa era insuscetível de ser reparada e decidiu, por isso, pelo arquivamento dos autos.
13. Tal como resulta das conclusões supra citadas, a Recorrente também defende a nulidade da decisão administrativa ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do Código do Processo Penal, aplicável por via do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações.
14. A Recorrente sustenta, contudo, que tal nulidade não deve considerar-se insanável, porquanto não se trata de qualquer das nulidades previstas no artigo 119.º do Código do Processo Penal. Alega, assim, que os autos devem ser devolvidos à ERS para sanação do vício, em vez do arquivamento dos autos.
15. Vejamos.
16. Em primeiro lugar, há que recordar que o processo contraordenacional contém especificidades que desaconselha a aplicação acrítica das disposições do processo penal.
17. Neste contexto, é necessária cautela na interpretação do alcance do disposto no artigo 41.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, segundo o qual “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”.
18. No âmbito da questão aqui a resolver é, desde logo, controversa a aplicação do disposto no artigo 379.º, n.º 1 e 2, do Código do Processo Penal, às insuficiências da decisão administrativa.[1]
19. Apesar de tais controvérsias a Recorrente aceita que a sua própria decisão enferma de nulidade, tal como decidiu o tribunal a quo, por violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, al. b) e ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do Código do Processo Penal, aplicável por via do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações.
20. Também da nossa parte admitimos a aplicação, com as devidas adaptações, do disposto no artigo 379.º, n.º 1, do Código do Processo Penal, à decisão administrativa, quando esta viole o disposto no artigo 58.º, n.º 1, al. b), do Regime Geral das Contraordenações.[2]
21. Realçamos a condição “com as devidas adaptações”, porquanto, como veremos, o processo contraordenacional contém especificidades que devem ser aqui tomadas em conta e que nos conduzem à conclusão que a nulidade referida não era cognoscível pelo tribunal a quo.
22. Em primeiro lugar há a reparar que a Impugnante invocou na impugnação judicial, a nulidade da decisão administrativa, porque “de acordo com o disposto no artigo 374°, n.º 2, do Código de Processo Penal, a Decisão da ERS deveria conter a enumeração dos factos provados e não provados, com uma análise crítica dos factos alegados pelo Impugnante que considerasse provados ou não provados, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.” (cf. artigo 60 da impugnação judicial).
23. E tal alegação fazia sentido porquanto já em sede de defesa apresentada na fase administrativa do processo e ao abrigo do disposto no artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações, a arguida tinha alegado determinadas circunstâncias de facto que, no seu entender, implicavam a impossibilidade da imputação do ilícito contraordenacional, mesmo a título de negligência.
24. Tentando sintetizar a defesa da arguida, quer em sede de impugnação judicial da decisão administrativa, quer em sede de direito de audição e defesa (artigo 50.º, Regime Geral das Contraordenações), a arguida alegou determinados factos, desde logo o contexto criado pela pandemia Covid-19, a falta de recursos humanos e o insucesso no recrutamento de novos profissionais, concluindo que a contraordenação nem a título de negligência lhe podia ser imputada.
25. Efetivamente, da própria defesa da arguida transcrita na decisão administrativa retira-se o seguinte:
12.º No dia 11 de dezembro de 2020, o mencionado pedido de marcação de consulta de apoio à fertilidade foi triado com uma prioridade normal, tendo sido inicialmente agendada a referida consulta para o dia 28 de fevereiro de 2022, a qual foi, efetivamente, desmarcada.
13.º A mencionada desmarcação e as subsequentes devem-se ao facto das consultas de apoio à fertilidade nesta entidade hospitalar serem, à data, realizada por apenas uma profissional médica especialista de ginecologia e obstetrícia, num único período semanal, sendo que, em maio de 2022, a referida profissional denunciou o seu vínculo jurídico-laboral com o HB, o que forçou esta entidade hospitalar a tentar encontrar uma solução para a manutenção de consultas desta natureza, nomeadamente através da afetação de outro profissional médico para a sua realização.
15. º No âmbito deste panorama, verificou-se a cessação de oito contratos de trabalho de profissionais médicos da especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, dois por motivo de reforma, e seis por denúncia do trabalhador, um dos quais em exercício de funções de Direção de Serviço, o que culminou numa redução em 322 horas semanais disponíveis, comparando com o final do ano anterior, 144 das quais dedicadas ao Serviço de Urgência.
16. ° Conforme veremos, a dificuldade do preenchimento dos postos de trabalho vagados prende-se, desde logo, com a falta de profissionais médicos da especialidade de ginecologia e obstetrícia para fazer face à atividade assistencial requisitada.
17.º Atenta a urgência na acomodação das necessidades de cuidados de saúde das utentes, foram despoletados pedidos de procedimentos de contratualização externa de consultas, bem como procedimentos de recrutamento de prestadores de serviços médicos, ao abrigo do Despacho n.º 3027/2018.
18.º Sucede que, estão inscritos na Ordem dos Médicos como especialistas em Ginecologia e Obstetrícia 1772 profissionais, dos quais 1163 (66%) apresenta uma idade igual ou superior a 55 anos, o que implica que, naturalmente, pelo menos 66% dos profissionais eventualmente disponíveis para o exercício de funções nesta unidade de saúde não se encontre na base remuneratória da respetiva carreira e, assim, insuscetíveis de aceitar uma eventual proposta por parte do HB.
19.º Numa primeira fase o HB viu rejeitadas as propostas que assentavam no valor de 26€/hora determinado no Diploma suprarreferido, razão pela qual foi aquele aumentado para 39€/hora, propostas essas novamente declinadas, invocando os candidatos a "falta de disponibilidade", que "outra entidade paga mais" e "o valor não compensa".
20.º Somos a relevar que o setor empresarial do Estado, na data dos factos e no âmbito da prestação de cuidados de saúde, está legal e formalmente limitado para suprir as necessidades de recursos humanos que vai sentindo, não podendo competir com o setor privado da saúde em termos de enquadramento remuneratório a oferecer aos profissionais.
21.º Assim, forçoso é concluir que as entidades que integram o SNS estão desmembradas de mecanismos compensatórios que lhes possibilitem fixar e aliciar profissionais qualificados, o que, aos dias de hoje, face à subida dos preços e debacle dos mercados financeiros, tem um peso manifestamente preponderante na decisão dos profissionais em colaborar com as Instituições.
...
38.º Assim, compulsado o respetivo nexo de causalidade e da concreta relação jurídica estabelecida, resulta que não é possível, ainda que a título de negligência, imputar ao HB qualquer responsabilidade no incumprimento dos TMRG para primeira consulta de especialidade de fertilidade, com prioridade normal, conforme o disposto na Portaria n.º 153/2017, de 4 de maio.”.
26. Tal como sublinhou a sentença recorrida, tal defesa não foi apreciada, pelo menos de forma expressa, na decisão administrativa condenatória.
27. Efetivamente, o que se lê na decisão administrativa condenatória, é o seguinte:
Em sede de Defesa nos presentes autos, a infratora reconheceu o seguinte:
"12.º No dia 11 de dezembro de 2020, o mencionado pedido de marcação de consulta de apoio à fertilidade foi triado com uma prioridade normal, tendo sido inicialmente agendada a referida consulta para o dia 28 de fevereiro de 2022, a qual foi, efetivamente, desmarcada.
13.º A mencionada desmarcação e as subsequentes devem-se ao facto das consultas de apoio à fertilidade nesta entidade hospitalar serem, à data, realizada por apenas uma profissional médica especialista de ginecologia e obstetrícia, num único período semanal, sendo que, em maio de 2022, a referida profissional denunciou o seu vínculo jurídico-laboral com o HB, o que forçou esta entidade hospitalar a tentar encontrar uma solução para a manutenção de consultas desta natureza, nomeadamente através da afetação de outro profissional médico para a sua realização.
O que serve de confissão dos factos para os devidos efeitos legais.
14. Os factos em causa configuram, assim, a prática, por parte do Hospital de Braga, E.P.E., de uma infração por violação dos deveres que constam da "Carta dos Direitos de Acesso" a que se refere a alínea b) do artigo 13. º dos Estatutos da ERS, como é o caso da violação dos TMRG para primeira consulta de especialidade hospitalar, com prioridade normal, conforme o disposto na Portaria n.º 153/2017, de 4 de maio, que define os TMRG no SNS para a prestação de saúde sem caráter de urgência e aprova e publica a Carta de Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos Utentes do SNS, concretamente do Ponto 2.1.3. do Anexo I da Portaria n. º 153/2017, configurando uma contraordenação prevista e punida nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 61 .º dos Estatutos da ERS com coima de 1.000,00 EUR a 44.891 ,81 EUR, por se tratar de pessoa coletiva".
28. Mais consta da decisão administrativa, em sede de consequências jurídicas e a p. 28 que, "Entende-se, assim, que a infratora atuou com negligência, já que descuidou um dever objetivo de cuidado e diligência a que estava adstrito enquanto prestadora de cuidados de saúde.".
29. Salta à vista, portanto, que a defesa apresentada, em tudo que ultrapassou a dita “confissão dos factos”, não foi apreciada, obviamente com manifesto prejuízo para as garantias de defesa e, até, para a credibilidade da decisão proferida pela entidade sancionatória.
30. É também neste contexto que a defesa, após reiterar os factos supra descritos, alegou perante o tribunal a quo, que não agiu nem com dolo nem com negligência, afirmando desde logo o seguinte:
89. Está comprovado nos autos que o impugnante não agiu com dolo.
90. Dúvidas também não restam, face ao alegado supra - artigos 28º a 54º e 70° a 85° desta Impugnação -, que não agiu igualmente com negligência, já que: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto." - cfr. Artigo 15.º do Código Penal.
91. Ora, no caso sub iudice, constata-se que o Hospital de Braga, E.P.E. agiu, com o cuidado que lhe era exigível e possível dadas as circunstâncias concretas.”.
31. Ora, com tais alegações, julgamos que a existir uma nulidade da decisão administrativa, desde logo por falta de imputação de factos relativos à negligência, com aquela impugnação judicial, nos termos em que foi feita, sempre se teria que considerar sanada a nulidade, porquanto a arguida prevaleceu-se da faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia (artigo 121.º, n.º 1, al. c), do Código do Processo Penal). Ou seja, defendeu-se, no âmbito da contraordenação que lhe era imputada, afirmando que se mostrava assente que não tinha agido com dolo e descrevendo factos donde se podia concluir, segundo a sua perspetiva, que terá agido sem culpa (negligente).
32. Neste contexto, natural seria, parece-nos, que o tribunal a quo, nos amplos poderes que lhe são conferidos em sede de impugnação judicial, delimitasse o tema da prova (cf. artigo 72.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações), de forma a aferir se efetivamente a conduta imputada à arguida se poderia considerar ou não culposa.
33. Em vez disso, contudo, e apesar de ter realizado a audiência de julgamento, declarou a nulidade da decisão administrativa, apesar de, conforme vimos, esta dever considerar-se sanada.
34. Mas o entendimento do tribunal a quo, tem ainda uma segunda linha de raciocínio que torna compreensível a sua posição.
35. Efetivamente, considerou aqui aplicável a jurisprudência subjacente ao Acórdão Uniformizador do STJ n.º 1/2015, donde resulta que “[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
36. Ou seja, entendeu que jamais poderia colmatar, em sede de audiência de julgamento, as lacunas da decisão administrativa, no que tocava à falta de factos consubstanciadores do elemento subjetivo, pressuposto da prática da contraordenação.
37. Aqui também diferimos do entendimento do tribunal a quo.
38. Aliás, recorde-se que, diferentemente do que sucede quanto ao crime doloso, é controverso na doutrina saber se no crime negligente se pode falar de um tipo de ilícito subjetivo.[3]
39. Há, inclusivamente, quem sustente em tal discussão doutrinal, que o ilícito negligente tem uma natureza rigorosamente objetiva, que se deixa assim deduzir a partir de um critério puramente geral e abstrato de cuidado. Ou seja, no tipo de ilícito negligente, o lado subjetivo reduzir-se-ia ao tipo de culpa, ou seja, a um juízo de censura dirigida ao agente por não ter agido, naquelas circunstâncias concretas, como lhe era exigível.
40. Da nossa parte, pelo menos em sede de negligência inconsciente, cremos que não faz sentido falar de elementos subjetivos do tipo, pois o agente nem chega a representar (e menos ainda querer) a realização do facto (artigo 15.º, al. b), do Código Penal).
41. Assim se compreende, que em voto de vencido proferido no Ac. TRP de 09-11-2023, processo 1004/22.8T9AVR.P1[4], se tenha deixado consignado o seguinte:
É verdade que a afirmação de que a arguida, ou, mais corretamente, os seus representantes atuaram com negligência configura um juízo conclusivo que tem cabimento na fundamentação, não na descrição de factos.
E também é verdade que a prática de crimes ou contra-ordenações a título de qualquer das modalidades de dolo e a título de negligência consciente supõe a ocorrência de factos subjetivos, relativos à consciência e vontade do agente, que devem ser descritos nas acusações e decisões relativas à aplicação de alguma dessas infrações.
O mesmo não se verifica, porém, no que se refere à prática de alguma dessas infrações a título de negligência inconsciente (como sucederá no caso em apreço). A negligência inconsciente supõe a violação objetiva de um dever de cuidado, independentemente de algum facto subjetivo (relativo à consciência e vontade) do agente. Afirmar que o agente violou determinado dever de cuidado é também uma afirmação conclusiva, como afirmar que ele atuou com negligência. Se estiver em causa uma negligência inconsciente, a qualquer dessas duas conclusões se pode chegar apenas a partir de uma descrição objetiva de factos, sem atender a algum estado subjetivo do agente (e dizer que esta atuou por descuido, desatenção ou esquecimento é absolutamente irrelevante, desde que se trate de um comportamento, em qualquer caso, inconsciente). Para concluir que o agente violou algum dever de cuidado a que estava obrigado é algo a que se chega partindo apenas de factos objetivos, sem atender a algum facto subjetivo. Consequentemente, também pode concluir-se que o agente atuou com negligência inconsciente partindo apenas de factos objetivos, sem atender a algum facto subjetivo.”.
42. Também o Ac. TRP de 11-04-2012, proc. 2122/11.3TBPVZ.P1, permite a retirada dos elementos subjetivos dos factos objetivos descritos na decisão administrativa.
43. Mas entendeu o tribunal a quo, que nenhuma destas questões poderia ser resolvida no processo, desde logo, porque o objeto do processo estava já delimitado pela decisão administrativa, sendo certo que não lhe seria permitido aditar factos relativos a elementos subjetivos, em consonância com o estabelecido no AUJ n.º 1/2015.
44. Aqui convirá enunciar o nosso entendimento sobre o objeto do processo em sede contraordenacional.
45. Como é sabido, no processo penal o objeto do processo fixa-se com a acusação (artigos 283.º, n.º 1 ou 285.º, n.º 1, al. b), do Código do Processo Penal) ou com o requerimento para a abertura da instrução pelo assistente (artigo 287.º, n.º 1, al. b), do Código do Processo Penal), passando a vigorar o princípio da vinculação temática com os consequentes limites às alterações dos factos (e qualificação jurídica) previstos nos artigos 358.º e 359.º do mesmo Código.
46. Já em sede do recurso de impugnação judicial, as coisas não se passam da mesma forma.
47. Em sede de recurso de impugnação judicial sobre a decisão administrativa condenatória (artigo 59.º, nº. 1, do RGCO), inexiste uma “acusação” formal que fixa o objeto do processo.
48. Com efeito, segundo o artigo 62.º do RGCO “[r]ecebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação.”.
49. Ou seja, é o ato de apresentação dos autos ao juiz que vale como acusação.
50. Sobre este ponto, a Diretiva do Ministério Público n.º 4/2021 realça, inclusive, o seguinte:
2.ª Com a apresentação dos autos ao juiz não se verifica uma conversão da decisão sancionatória impugnada numa acusação.
3.ª O que corresponde a uma acusação é o ato de apresentação dos autos do processo contraordenacional ao juiz, não existindo uma acusação em sentido formal, enquanto indicação precisa pelo Ministério Público da factualidade que conforma o objeto do processo e das infrações que são imputadas ao arguido.”.[5]
51. É também perante a redação do citado artigo 62.º que se compreende que António Leones Dantas afirme que “o objeto do processo são os autos e não qualquer peça processual que concretize um universo factual e qualifique esse universo por referência a determinadas normas”.[6]
52. É importante recordar aqui que a estrutura do processo contraordenacional não tem a mesma estrutura que o processo penal. O processo contraordenacional “tem soluções processuais que o afastam radicalmente do processo penal e da estrutura acusatória que o enforma”.[7]
53. Concordamos, pois, com António Leones Dantas quando afirma que “No âmbito do recurso de impugnação, o objeto do processo não está fixado nem delimitado, conhecendo o tribunal do acontecimento histórico subjacente à intervenção da autoridade administrativa com base em todo o processo”.[8]
54. Por isso, realça o mesmo autor que “o regime de alteração do objeto do processo no âmbito do processo das contraordenações não está integralmente sujeito à disciplina dos artigos 358.º e 359.º do Código do Processo Penal, embora algumas das componentes desse regime sejam compatíveis com o processo das contraordenações e com o universo de garantias de defesa que nesse processo devem ser asseguradas ao arguido”.[9]
55. Também o Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2019 consignou que “o Tribunal conhece de toda questão em discussão — “o objecto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre a qual incidiu a decisão administrativa”. (…) Assim sendo, a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa tem um âmbito alargado a toda a situação sob escrutínio.” O tribunal de primeira instância procede, assim, a um “reexame do objeto processual com plenos poderes em matéria de facto e de direito, com possibilidade de produção de prova”.
56. É certo que, o citado Acórdão do STJ n.º 3/2019 refere também que o julgador do recurso de impugnação judicial “está limitado pelo objeto do processo definido pela decisão administrativa.”. Esta referência, no entanto, parece contradizer as afirmações anteriormente citadas. De qualquer modo, este acórdão não tinha por objeto decidir esta matéria pelo que não vincula este tribunal nesta parte.
57. Conclui-se, pois, que em processo contraordenacional a decisão administrativa, que obviamente faz parte dos autos, não fixa, por si só, o objeto do processo, diferentemente do que entendeu a sentença recorrida.
58. Também como decorrência lógica do ora exposto, pela sua ligação intrínseca à problemática do objeto do processo em processo penal e ao regime de alteração de factos da acusação dos artigos 358.º e 359.º, do Código do Processo Penal, não consideramos aplicável a jurisprudência uniformizada, em sede de Direito Processual Penal, pelo Acórdão n.º 1/2015 (STJ).[10]
59. Nem se julga que este entendimento viole os direitos de defesa do arguido, constitucionalmente consagrados (artigo 32.º, n.º 10, da CRP). Efetivamente, o objeto do processo estará sempre delimitado pelo acontecimento histórico concreto investigado no processo, sendo certo que ao arguido é conferido o direito de audição, antes de lhe ser aplicada qualquer coima pela entidade administrativa (artigo 50.º, do Regime Geral das Contraordenações). A tal acresce, como nos parece óbvio, que a impugnação judicial e a possibilidade do recurso para este tribunal da relação, permite o exercício cabal dos direitos de defesa.
60. Aliás, como bem demonstram os presentes autos, a arguida defendeu-se de forma cabal das imputações que lhe foram feitas, quer perante a entidade administrativa, quer perante o Tribunal de Santarém.
61. Aqui chegados, cremos estar em condições de responder à questão fundamental, a saber, se o tribunal a quo deveria ter ordenado a devolução dos autos à entidade administrativa?
62. Ora, decorre do supra exposto que, no contexto contraordenacional, mesmo a considerar-se que a decisão administrativa padecia do vício da nulidade, tal vício sempre se teria de considerar sanado, nos termos previstos no artigo 121.º, n.º 1, al. c), do Código do Processo Penal.
63. Por seu turno, entendemos que inexistia qualquer razão para o tribunal a quo não conhecer, em toda a sua extensão, do acontecimento histórico concreto investigado no processo, tomando em conta, inclusive, a prova que já constava dos autos (acrescida da prova produzida em audiência), e, como é óbvio, o que era alegado na impugnação judicial.
64. Assim sendo, não se vislumbra qualquer razão para que o tribunal a quo devolvesse os autos à entidade administrativa.
65. Questão diversa, parece-nos, é a de saber se a sentença recorrida, ao não responder às questões concretas suscitadas no processo, não incorreu no vício de omissão de pronúncia (artigo 379.º, n.º c), do Código do Processo Penal).
66. Contudo, por não tendo sido alegada esta nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 3, do Código do Processo Penal, não podemos conhecer deste vício.
67. Nestes termos, o recurso deverá ser julgado improcedente.
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IV – DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pela Entidade Reguladora da Saúde e, em consequência, não se determina a devolução dos autos ao tribunal recorrido, nos termos e para os efeitos pedidos pela mesma.
Custas a cargo da Recorrente, fixando-se em 3 UCs. a taxa de justiça devida (art. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, em conjugação com o art. 8.º, n.º 9, do RCP e com a Tabela III anexa).
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Lisboa, 16-10-2024
Alexandre Au-Yong Oliveira (1.º Adjunto, Relator nos termos previstos no artigo 425.º, n.º 1, do Código do Processo Penal)
Bernardino Tavares (2.º Adjunto)
Paulo Registo (Relator originário), com o seguinte voto de vencido:

"I - É nula a “decisão condenatória”, proferida ao abrigo do disposto no art. 58.º do DL n.º 433/82, de 27-10, que não contenha uma narração de factos que permita ao arguido compreender, enquanto garantia dos seus direitos de defesa, se o ilícito lhe é imputado a título de dolo ou a título de negligência.
II - Como a “decisão condenatória” é factualmente omissa a este respeito e como o arguido contesta judicialmente que tenha agido com dolo e/ou com negligência, discorda-se da posição que fez vencimento no acórdão no sentido desta nulidade se considerar sanada, de acordo com o disposto no art. 121.º, n.º 1, al. c), do CPP, por alegadamente o impugnante se ter “prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia”.
III - A fundamentação que fez vencimento afigura-se contraditória nos seus termos, na medida em que, ao mesmo tempo em admite a nulidade da “decisão condenatória”, afirma que o objecto do processo de impugnação judicial é “constituído pelo acontecimento histórico concreto investigado”, o que faria supor que a falta de alegação de todos os factos integrantes da contra-ordenação não importaria qualquer mácula para a “decisão condenatória”, por inexistir uma “acusação formal que fixe o objecto do processo”.
IV - A tese que fez vencimento coloca no arguido o ónus de ter se defender de tudo aquilo que consta dos autos, independentemente dos factos que lhe são imputados, o que levanta sérias dúvidas sobre se esse entendimento respeita os direitos de defesa (art. 32.º, n.º 10, da CRP), para além de parecer contrariar a estrutura acusatória do processo e o princípio da vinculação temática.
V - Deste modo, a devolução dos autos à autoridade administrativa não surge como alternativa admissível, de acordo com o art. 64.º, n.º 3, do DL n.º 433/82, para os casos em que a “decisão condenatória” não contenha uma descrição dos factos relativos ao elemento subjectivo da contra-ordenação.".
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[1] Sobre esta problemática, veja-se Frederico da Costa Pinto, «Direito de audição e defesa em processo de contra-ordenação: conteúdo, alcance e conformidade constitucional», RPCC, n.o Ano 23, n.o 1 (2013).
[2] No sentido da não aplicação do regime de nulidades do Código do Processo Penal ao processo contraordenacional, Pinto, 82–86. No sentido da aplicabilidade das nulidades previstas no artigo 379.º à decisão administrativa, com as devidas adaptações, veja-se António Leones Dantas, Direito processual das contraordenações (Coimbra: Almedina, 2023), 123. No sentido da mera irregularidade, veja-se António Beça Pereira, Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 13.a ed. (Coimbra: Almedina, 2022), 174.
[3] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral Tomo 1: Questões fundamentais: a doutrina geral do crime, 3a edição (Coimbra: Gestlegal, 2019), 1032–34.
[4] Todos os acórdãos citados estão disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] Publicação: Diário da República n.º 198/2021, Série II de 2021-10-12.
[6] Dantas, 261.
[7] Dantas, 219.
[8] Dantas, 209. No mesmo sentido, Alexandra Vilela, O Direito de Mera Ordenação Social (Coimbra: Coimbra Editora, 2013), p. 186-187.
[9] Dantas, 261–62.
[10] Parecendo sugerir a necessidade na revisão da jurisprudência uniformizada por este Acórdão, o Ac. TRL de 12-03-2019, proc. 251/15.3GESTB.E1, onde se pode ler “tendo o acórdão do STJ nº 1/2015 sido proferido em 20.11.2014, verificou-se entretanto alteração significativa na composição das secções criminais do STJ, pois dos atuais dezasseis Juízes Conselheiros que as integram, apenas seis deles se encontravam em exercício de funções aquando da prolação do AFJ 1/2015, sendo certo que um deles votou vencido e que houve igualmente mudança no cargo de Presidente do STJ.” (relatado pelo atual Juiz Conselheiro do STJ, António João Latas).