Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
794/19.0PCLSB.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
PENAS
PERDA DE OBJECTOS UTILIZADOS NA PRÁTICA DE CRIME
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: A declaração de perda de objectos a favor do Estado é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção, não se tratando de uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque não depende sequer da existência de uma condenação.
O pressuposto material da perda é a perigosidade dos objectos, que, “atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e conatural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa.
Tratando-se um dos objectos de um projéctil deformado, que corresponde ao disparo efectuado pelo Arguido, fazendo uso de pistola e o outro de uma cápsula deflagrada do mesmo calibre, são objectos sem qualquer serventia autónoma, não passíveis de livre posse e que não podem reintegrar o comércio jurídico de munições, sendo que o primeiro claramente associado a prática de um facto ilícito.
Já a arma que foi utilizada, e também a respectiva municiação, para a prática das referidas infracções penais, sendo que as mesmas, pela sua natureza e circunstâncias do caso, puserem efectivamente em perigo a segurança das pessoas e a ordem pública, e oferecem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, o seu perdimento não evidencia qualquer ilegalidade.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.ª) da Relação de Lisboa:


I–Relatório:


I-1.)–No Juízo Central Criminal de Lisboa (Juiz 22), foi o Arguido FM, com os demais sinais dos autos, submetido a julgamento em processo comum, com a intervenção do tribunal colectivo, acusado pelo Ministério Público da prática:
- Em autoria imediata e na forma tentada, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 2, 131.º e 132.º, n.º 1, al. i), do Código Penal;
Em autoria imediata e na forma consumada, de:
- 2 (dois) crimes de ameaça agravada, p.(s) e p.(s) pelos art.ºs 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal;
- 1 (um) crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º do mesmo Diploma.

Efectuado o julgamento e proferido o respectivo acórdão veio a decidir-se o seguinte:

a)-Absolver o arguido FM da prática, em autoria imediata, do apontado crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.9 1, al. i), ambos do Código Penal.

b)-Absolvê-lo da prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um dos crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal;

c)-Condená-lo pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.

d)-Condená-lo pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão.

e)-Em cúmulo jurídico, condenar o arguido FM  na pena única de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo a contar do trânsito em julgado do presente acórdão.

I-2.)–Inconformado com o assim decidido, recorreu o Arguido FM para esta Relação, apresentando as seguintes conclusões:

1.ª-O Recorrente não se conforma com a decisão contra si proferida no Douto Acórdão de que se recorre;

2.ª-O Recorrente FM  não consegue compreender, nem se conforma com a decisão que contra si foi proferida no âmbito do presente Processo;

3.ª-Em termos estruturais, o recurso abordará as seguintes questões e terá os seguintes fundamentos:
- A alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na Acusação;
- Subsidiariamente, a aplicação do disposto no artigo 70.º do Código Penal ao caso concreto.
Subsidiariamente, a aplicação do artigo 71.º do Código Penal ao caso concreto;
Subsidiariamente, a aplicação do artigo 109.º do Código Penal ao caso concreto e a perda a favor do Estado dos objectos apreendidos ao Recorrente;

4.ª-O Recorrente dá aqui por integralmente reproduzidas todas as alegações e conclusões que verteu supra no ponto correspondente às suas motivações;

5.ª-Quanto à alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na Acusação, ao ora Recorrente, através da notificação do despacho proferido a 20 de Dezembro de 2021, foi concedido prazo para requerer o que tivesse por conveniente quanto à proposta de alteração não substancial dos factos descritos na Acusação, tendo o Recorrente submetido requerimento aos presentes autos, via CITIUS no dia 8 de Janeiro de 2022, opondo-se à continuação do Julgamento quanto à imputação que lhe foi feita quanto à prática do crime de ofensas à integridade física simples, defendendo que tal proposta consubstanciava uma verdadeira alteração substancial dos factos da acusação, tendo o Acórdão recorrido decidido que tal alteração Substancial não se verificava e decidiu qualificar juridicamente os factos constantes no ponto 9 da Acusação como consubstanciadoras de prática do referido crime de ofensas à integridade física simples;

6.ª-O Recorrente não se conforma com a decisão tomada nesta questão, uma vez que a redacção que foi dada ao ponto 9, quando foi proferido o despacho de Acusação, não sofreu qualquer alteração com o Despacho proferido a 20/12/2021, pelo que esse mesmo despacho o que visou foi apenas a integração na Acusação de uma nova qualificação jurídica, concretamente, imputando a prática do crime de ofensas à integridade física simples pelo Arguido e ora Recorrente;

7.ª-Mais se refere que, pelo Despacho proferido a 20/12/2021 não houve uma alteração da qualificação jurídica de um crime constante na acusação, houve sim a integração e imputação do crime de ofensas à integridade física simples, simplesmente porque a matéria fáctica constante no referido ponto 9 da Acusação não tem relação com qualquer dos crimes pelos quais o Arguido e ora Recorrente foi acusado;

8.ª-O Despacho de Acusação define e delimita o objecto do processo crime, pelo que esse Despacho fixa o thema decidendum desse processo, sendo o elemento estruturante de definição desse objecto, não podendo o Tribunal promovê-lo para além dos limites daquela Acusação, nem condenar para além dos limites, o que constituiu uma consequência da estrutura acusatória do processo penal;

9.ª-Os institutos de alteração não substancial ou substancial dos factos não visam colmatar lacunas da Acusação ou até da Pronúncia, sendo que a questão situa-se a montante do preceito legal incito no artigo 358.º do CPP, norma que surgiu a justificar a alteração dos factos, prendendo-se, sim, com a estrutura acusatória que, por imposição constitucional, domina o processo criminal e que, grosso modo, se revela no facto do julgamento se circunscrever dentro dos limites ditados por uma Acusação deduzida por entidade diferenciada, o Ministério Público;

10.ª-A consequência num caso, como o presente, em que o teor fáctico constante no ponto 9 da Acusação elaborada pelo MP e admitida na fase de julgamento, pelo que não foi a mesma rejeitada nos termos do artigo 311.º do CPP, porque manifestamente infundada, pois é manifesto que na Acusação não foi feita correspondência entre os factos constantes do referido ponto 9 da mesma e uma possível qualificação jurídica a que esses factos fossem subsumidos, mostrando-se a Acusação quanto ao ponto 9 ferida de nulidade e, por conseguinte, deveria, no momento próprio, ter sido rejeitada [artigo 311.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, alínea c), do CPP], não pode deixar de ser, na fase processual de julgamento, outra senão a impossibilidade de se proceder a alteração não substancial ou mesmo substancial dos factos descritos nesta Acusação, até porque o Arguido/Recorrente se opôs à continuação do julgamento no que respeitava a essa mesma proposta alteração;

11.ª-Efectivamente, o Arguido/Recorrente FM  opôs-se a essa nova qualificação jurídica que lhe foi imputada, porque o crime de ofensas à integridade física simples não podia ser julgado nestes autos, dado que a alteração proposta pelo Tribunal a quo era, efectivamente, uma alteração substancial dos factos, devendo o mesmo ter sido o garante do Princípio da Legalidade e ainda da boa aplicação da Lei, bem sabia e não podia desconhecer o disposto no supra transcrito artigo 359.º do CPP, nomeadamente, no n.º 1 desse mesmo normativo legal;

12.ª-A Decisão relativa a este segmento do Acórdão sob recurso, na modesta opinião do Recorrente, é claramente violadora do disposto no referido artigo 359.º do CPP e é ainda violadora dos Princípios da Legalidade e da Obediência à Lei, pelo que entende o Recorrente que ao se ter oposto a ser julgado nos presentes autos de acordo com uma nova qualificação jurídica que lhe imputou o crime de ofensas à integridade física simples, o que fez nos termos do n.º 3 do artigo 358.º do CPP, ao Tribunal a quo não restava outra actuação possível que dar cumprimento ao disposto nos números 1 e 2 do artigo 359.º do CPP, isto é, não tomar em conta a alteração substancial para efeito de condenação do Arguido, ora Recorrente, neste mesmo processo e, porque o mesmo se opôs, deveria, ao invés, ter procedido à comunicação da alteração substancial dos factos deveria ser considerada como denúncia ao Ministério Público para ele proceder pelos factos comunicados;

13.ª-Importa referir a Decisão do Colendo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 463/2004, de 23/06/2004, onde foi decidido que:
julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do art.º 359.º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de, em situação em que o tribunal de julgamento comunica ao arguido estar-se perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, quando a situação é de alteração substancial da acusação, pode o silêncio do arguido ser havido como acordo com a continuação do julgamento.”
e que
Depois, mesmo dentro da lógica do acórdão recorrido, não poderá sem quaisquer reservas valorar-se como correspondendo ao seu acordo com a alteração substancial dos factos a circunstância de o arguido nada ter oposto imediatamente à comunicação. É que, mesmo a sustentar-se - sem a existência de disposição legal que atribua esse valor jurídico ao silêncio e sem questionar a sua constitucionalidade - a possibilidade de formação de um acordo tácito, em caso de silêncio do arguido, não será de inferir esse sentido fora do quadro dos pressupostos constitutivos dos motivos determinantes da vontade: ora ao arguido foi comunicado que a alteração temática do processo tinha a natureza de não substancial, em contrário da natureza que lhe atribuiu o acórdão recorrido. Deste modo, não poderia ser entendido o silêncio mantido sobre uma situação processual comunicada como expressando um acordo relativamente a uma outra diferente situação processual.

14.ª-Assim, por maioria de razão, tendo o Arguido/Recorrente invocado que a alteração dos factos era substancial e, consequentemente, ter-se oposto a ser julgado no processo em curso, como ocorreu no caso destes autos, o Acórdão sob recurso, encontra-se a violar os n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP);

15.ª-Tratando-se in casu de alterar os crimes pelos quais o ora Recorrente vinha acusado no Despacho de Acusação para o crime de ofensas à integridade física simples, previsto no artigo 143.º, n.º 1, do CP - tal nova qualificação jurídica não implicou a alteração de alguns factos acusados, sendo no entanto um crime de diferente configuração típica, objectiva e subjectiva, em relação aos que foi acusado, razão pela qual o Recorrente entende e defende que o Tribunal a quodeveria ter convocado o formalismo do artigo 359.º do CPP;

16.ª-O Recorrente entende que o Acórdão recorrido ao não ter reconhecido que a sua comunicação integrava uma efectiva alteração substancial dos factos da acusação, sem dar observância ao disposto no artigo 359.º, n.º 1, do CPP, conduziu o Acórdão recorrido à sua nulidade, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, o que requer seja assim Decidido;

17.ª-Consequentemente, V.ªs Ex.ªs Venerandos Desembargadores deverão considerar que a pena de prisão em 9 meses de prisão, pela suposta prática do crime ofensas à integridade física simples, previsto no artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, foi erradamente aplicada ao Arguido/Recorrente pelo Tribunal a quo, e deverão decidir pela sua revogação porque essa aplicação teve por base a nulidade supra invocada;

18.ª-Quanto à aplicação do disposto no artigo 70.º do Código Penal ao caso concreto, importa dizer que, quer o Vosso entendimento e decisão seja em conformidade com o que supra foi alegado e concluído quanto o julgamento, à alteração da acusação com integração do crime de ofensa à integridade física simples e à condenação por esse mesmo crime, quer seja por decisão diversa da que por nós foi preconizada supra, no que não se concede, sempre se tem que alegar quanto à forma como foi erradamente aplicado e violado o disposto no artigo 70.º do CP;

19.ª-O CRC do Arguido/Recorrente tem registado um crime económico, concretamente, de abuso de confiança fiscal, pelo que o mesmo é de natureza criminal totalmente distinta dos crimes pelos quais o mesmo foi condenado ou do que se defende neste recurso, pelo que se discorda totalmente da decisão do Tribunal a quo de afastar a aplicação de pena não privativa da liberdade ao Recorrente, entendendo-se que esse mesmo Tribunal violou o disposto no artigo 70.º do CP ao ter assim decidido, por ter aplicado erradamente os factos ao Direito;

20.ª-Erradamente o Tribunal a quo entendeu que só a pena privativa da liberdade era suficiente para afastar o Arguido/Recorrente da prática de novos ilícitos criminais, fundamentando nos antecedentes criminais e no facto de o Arguido/Recorrente ter puxado de uma arma e isso revelar impulsividade;

21.ª-O Arguido/Recorrente pauta a sua vivência diária pelo cumprimento escrupuloso da legalidade, não se envolvendo em problemas com ninguém, encontrando-se familiar, social e profissionalmente inserido na sociedade, tal como demonstram todos os factos dados por provados nos pontos 15.º a 39.º dos factos dados como provados no Acórdão sob recurso, sendo bem relevante da sua postura, o último parágrafo transcrito para esse 39.º ponto que corresponde a teor do Relatório Social que foi elaborado ao mesmo, onde se conclui que o mesmo “pode vir a usufruir de uma medida de execução na comunidade”, i.e., uma pena não privativa da liberdade, tal como se demonstra pelos factos dados como provados nos referidos pontos 15.º a 39.º dos Factos Provados, os quais demonstram claramente e sem dúvida a inserção do Arguido/Recorrente na Sociedade;

22.ª-Ensina-nos o Professor JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, Parte Geral II: as consequências jurídicas do crime, Lisboa: Aequitas – Editorial Notícias, 1993, p. 119, que o que se mostra necessário é que:
a multa seja legalmente conformada e concretamente aplicada em termos que permitam a plena realização, em cada caso concreto, das finalidades das penas, em particular da de prevenção geral positiva, limitada pela culpa do agente”.

23.ª-Concluindo, deverão V.ªs Ex.ªs Venerandos Desembargadores revogar a decisão do Tribunal a quo quanto à escolha de pena privativa em detrimento da pena no privativa da Liberdade no caso em concreto, devendo em substituição deste segmento decidir pela aplicação de pena não privativa da liberdade ao crime de ameaça, ou a ambos, se no precedente ponto deste Recurso não tiver sido decidido como se promoveu;

24.ª-Quanto à aplicação do artigo 71.º do Código Penal ao caso concreto, impõe-se dizer que as decisões que venham a ser tomadas quanto ao alegado e concluído nos precedentes pontos, terá influência directa no que neste ponto se passa a alegar e se concluirá, sempre se afirmando que o Tribunal a quo erradamente aplicou e violado o disposto no artigo 70.º do CP;

25.ª-Ensina-nos a Dra. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, pp. 210 e ss. e 370 e ss.:que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida.

26.ª-Demonstradamente, o Tribunal a quo, ao longo das duas fundamentações do Acórdão, tem como pedra basilar das decisões que foi tomando os “antecedentes criminais do arguido”, sendo de questionar se se mostra oculto uma constante prática de ilícitos criminais e de condenações por esses ocultos ilícitos, pois repete-se à saciedade que o único crime pelo qual o Arguido/Recorrente foi condenado, fazendo fé no inabalável CRC do mesmo, foi o já referido crime de abuso de confiança fiscal, punido por uma multa de 180 dias à taxa de 5,00€ diários, sendo que a natureza do mesmo nada tem que ver com os crimes pelos quais vinha acusado nestes autos;

27.ª-O Tribunal a quo ao ter condenado o Arguido/Recorrente nas penas parcelares que condenou, afirmando que ponderou as necessidades de prevenção especial ajustadas ao caso e aos factos destes autos, não olvidando que afirmou que “(favorece o arguido a circunstância de se mostrar profissional e familiarmente inserido, militando contra o mesmo o facto de ter antecedentes criminais)”, laborou em manifesto erro de aplicação da dosimetria da pena a fixar ao Arguido;

28.ª-É manifesto que, se o Tribunal a quo ponderou os pontos 15.º a 39.º dos factos provados, teria de concluir que as necessidades de prevenção especial do Arguido são manifestamente diminutas e, contrariamente ao enfase que foi colocado pelo Tribunal a quo quanto ao antecedente criminal do Arguido que afectaria a dita ponderação das necessidades de prevenção especial, pois no CRC do mesmo não existe um enorme rol de condenações, como a argumentação parece querer fazer passar, mas sim uma única condenação por uma conduta de natureza criminal é certo, mas que nada tem a haver com as que lhe foram imputadas na acusação;

29.ª-Concluindo, V.ªs Ex.ªs deverão revogar as penas fixadas no Acórdão recorrido, porque foram manifestamente exageradas e desproporcionais face às efectivas necessidades de prevenção geral e especial que se verificam nos presentes autos em relação ao Arguido/Recorrente, sempre pugnando que a dosimetria da pena a aplicar seja fixada em relação a uma pena não privativa da liberdade, como supra se concluiu, e muito próximo dos seus limites mínimos, sendo de requerer ainda, para a eventualidade de assim não vir a ser decidido que, uma eventual aplicação de pena privativa se deve fixar nos limites mínimos ou muito próximo desses limites;

30.ª-Quanto à aplicação do artigo 109.º do Código Penal ao caso concreto e a perda a favor do Estado dos objectos apreendidos ao Recorrente, impõe-se ainda questionar da bondade da Decisão que foi tomada a coberto do artigo 109.º, n.º 1, do CP;

31.ª-Os objectos apreendidos a fls. 44 e 150 destes autos foram declarados perdidos a favor do Estado, sem qualquer fundamentação, numa total omissão de pronúncia quanto a essa necessária fundamentação;

32.ª-Questiona-se qual o serviço de cada um desses objectos em relação à prática, ou se os mesmos sequer estiveram destinados a esse serviço no que respeita à prática, mas estas são questões sem resposta no Acórdão recorrido;

33.ª-Mais se refere sobre que razão de ciência é que fez tomar a decisão de perda a favor do Estado desses objectos apreendidos, nomeadamente quanto à pistola, quando o Recorrente a tinha legalizada e é detentor de licença de uso e porte de arma por força até de ser militar da GNR;

34.ª-Concluindo, deverão V.ªs Ex.ªs Venerandos Desembargadores decidir revogar esta decisão de declarar perdidos os objectos apreendidos a fls. 44 e 150 a favor do Estado, proferindo em substituição nova decisão que devolva os mesmos objectos ao Recorrente.

I-3.)–Respondendo ao recurso interposto a Digna magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quoconcluiu por seu turno:

- O douto despacho recorrido não padece de vícios que determinem qualquer irregularidade ou nulidade.

- Alega o recorrente que a comunicação efectuada pelo tribunal a quo consubstancia uma verdadeira alteração substancial dos factos. Entendemos que não lhe assiste razão.

- Efectivamente, no caso dos autos resulta claramente que o tribunal não procedeu a nenhuma alteração dos factos que já constavam da acusação, tendo apenas divergido da acusação quanto à qualificação dos mesmos.

- A comunicação efectuada ao arguido para o facto de lhe vir a ser imputada a prática de um crime de ofensa à integridade física simples assentou no pressuposto de vir a ser dada como provada a factualidade devidamente descrita no art. 9 da acusação pública, mantendo-se o mesmo inalterado, havendo apenas lugar a uma alteração da qualificação jurídica da acusação.

- No acórdão recorrido optou-se pela aplicação de pena privativa da liberdade, por se ter entendido serem prementes as necessidades de prevenção geral e por se fazerem sentir de forma acentuada as necessidades de prevenção especial, dado o registo da prática em 10-09-2018 de um crime de abuso de confiança fiscal punido com pena de multa, representando a conduta objecto do processo na demonstração do fracasso da pena de multa aplicada na satisfação das exigências de prevenção isto é, na protecção dos bens jurídicos e na prevenção da prática de novos crimes pelo arguido.

- Para além do arguido ter um antecedente criminal na opção da medida da pena a aplicar teve especial relevância o facto de o arguido ser militar da GNR, o que fazia recair sobre o mesmo um especial dever de cuidado e contenção, o que não sucedeu tendo o mesmo actuado, de forma impulsiva e desproporcional aos factos ocorridos, chegando a empunhar e a pontar ao rosto do ofendido uma arma de fogo em plena via pública.

- As penas parcelares e pena única impostas no douto acórdão recorrido mostram-se justas e adequadas aos factos, à medida da culpa do arguido às circunstâncias, processuais e pessoais fixadas e correctamente valoradas no mesmo.

- Da análise do douto acórdão impugnado verifica-se que todas as operações lógicas de determinação da medida da pena foram não só respeitadas como devidamente explicadas e fundamentadas, tendo sido ponderados todos os factores susceptíveis de, in casu, determinar quais as concretas necessidades de prevenção que se fazem sentir e a culpa manifestada nos actos pelo agente.

- Atendendo à matéria de facto dada por assente, tendo os objectos apreendidos servido para a prática de um facto ilícito típico e, sendo possível prognosticar que esses objectos podem colocar em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou que oferecem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, mostram-se preenchidos os requisitos do art. 109.º do Código Penal pelo que a decisão proferida, também aqui, não merece qualquer censura.

- A decisão recorrida não violou, pois, qualquer norma legal ou constitucional.

Nestes termos e pelos expostos fundamentos, deverá negar-se provimento ao recurso e confirmar-se inteiramente a douta decisão recorrida.

II–Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no qual, entre o mais, propugnou que a alteração verificada não será substancial, pelo que tendo sido comunicada ao Arguido, nenhum obstáculo existe ao decidido.
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No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, o Arguido apresentou ainda a peça processual constante de fls. 698 verso, onde manteve o por si anteriormente alegado na motivação e conclusões do recurso  interposto.
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Seguiram-se os vistos legais.
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Tendo lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir:

III-1.)–Conforme decorre das conclusões deixadas transcritas, que entre nós, de forma tida por consensual, definem o respectivo objecto, com o recurso interposto, tem em vista o Arguido FM suscitar a apreciação por parte deste Tribunal das seguintes questões:

- Se a alteração que foi comunicada pelo Tribunal deveria ter sido considerada como integrando uma alteração substancial dos factos, razão pela qual não tendo aquele dado cumprimento ao preceituado no art. 359.º, n.º1, do Cód. Proc. Penal, o acórdão proferido padece da nulidade prevista no art. 379.º, n.º1, al. b), do mesmo Diploma;
- Se ao ter sido preferida a aplicação de penas prisão em vez de penas de multa nos crimes tidos por verificados, violou o preceituado no art. 70.º do Cód. Penal;
- E bem assim o artigo seguinte (71.º), por as sanções determinadas serem excessivas e desproporcionais;
- Se o perdimento dos objectos apreendidos a fls. 44 e 150 a favor do Estado viola o preceituado no xart. 109.º, n.º1, do Cód. Penal.

III-2.)–Como temos por habitual, vamos conferir primeiro a factualidade que se mostra definida:

Factos provados:

1.–No dia 29.07.2019, entre as 03h30 e as 04h00, na Travessa do Corpo Santo, em Lisboa, o arguido caminhou em perseguição de um indivíduo não identificado com quem se desentendeu.
2.–Nessa ocasião, em circunstâncias não apuradas, o arguido, fazendo uso da pistola semi-automática da marca Pietro Beretta, de calibre 7,65mm, com o n.º de série F60831W, que empunhou, efectuou pelo menos um disparo.
3.–O disparo produzido pelo arguido atingiu o veículo automóvel da marca Peugeot com a matrícula 91... , que se encontrava estacionado na Travessa do Corpo Santo, em Lisboa, propriedade de MS, provocando uma perfuração com cerca de lcmxl,5cm no vidro traseiro, tendo o projéctil, de calibre 7,65mm, efectuado a trajectória do exterior para o interior, em movimento descendente e da esquerda para a direita, tendo como primeiro impacto o vidro traseiro, que perfurou, após o que evoluiu para o interior do habitáculo, perfurando o encosto de cabeça do banco frontal, tendo como impacto final a zona inferior direita do vidro frontal, junto ao tablier.
4.–No mesmo dia, cerca das 04h40, FS e DC , acompanhados de um grupo de amigos, encontravam-se na Rua ..... do ....., em Lisboa.
5.–No mesmo local, encontrava-se o arguido acompanhado de uma mulher, a quem, a determinada altura, em tom de brincadeira e pensando tratar-se de turistas, FS, ao vê- los sair de um túnel, disse, em língua inglesa, que não deviam ter entrado ali.
6.–De seguida, o arguido aproximou-se de FS e perguntou-lhe o que tinha dito.
7.–Quando o arguido se encontrava a cerca de 1 metro de distância de FS, tentou atingir este com uma chapada no rosto, acabando por atingi-lo no braço, que o segundo levantou para proteger o rosto.
8.–Os amigos de FS aproximaram-se e afastaram-no do arguido.
9.–No entanto, nesse momento, DC também tentou afastar o arguido, empurrando-o.
10.–Nesta sequência, o arguido empunhou a referida pistola semi-automática de calibre 7,65mm e apontou-a na direcção do rosto de DC, provocando neste medo e inquietação pela sua vida e integridade física.
11.–De seguida, DC foi afastado por um dos seus amigos.
12.–No dia 11.03.2020, o arguido tinha na sua posse a mencionada pistola semi-automática de calibre 7,65mm, registada em seu nome, dois carregadores, 21 munições de calibre 7,65mm e uma bolsa de cintura de cor preta.
13.–O arguido sabia que ao disparar a arma de fogo na via pública podia atingir o veículo automóvel e, contra a vontade do respectivo proprietário, provocar-lhe estragos.
14.–O arguido tinha conhecimento dos factos acima descritos e, ainda assim, quis agir pela forma mencionada, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

No que respeita à inserção familiar e sócio-profissional do arguido, apurou-se que:

15.–O arguido nasceu em Angola e cresceu integrado no agregado familiar dos pais, do qual também faziam parte três irmãos uterinos e quatro irmãos consanguíneos, num contexto sócio-económico estável.
16.–Quando o arguido tinha cerca de 11 anos de idade, a família emigrou para Portugal, na procura de melhores condições de saúde, na sequência da morte de dois irmãos daquele, o mais velho e o mais novo.
17.–Em Angola, o pai do arguido explorou um negócio de animais e, em Portugal, uma empresa de bate-chapas.
18.–A mãe do arguido, mestre em gestão de empresas, em Angola trabalhava pontualmente, estando mais dedicada aos cuidados a prestar aos filhos, e em Portugal trabalhou no Ministério da Agricultura.
19.–O arguido concluiu o 12.º ano de escolaridade e, em 2007, ingressou no curso de direito da Faculdade de Direito de Lisboa, tendo concluído o 2.º ano e, para assegurar responsabilidades familiares, abandonou os estudos.
20.–Quando ainda estudava, o arguido começou a trabalhar como segurança e, em 2010, ingressou no exército, onde se manteve durante cerca de cinco anos.
21.–Por não ter conseguido integrar o curso de sargentos, e motivado pela procura de melhores de condições financeiras, concorreu à GNR e à PSP, e em 2015 ingressou na primeira.
22.–Inicialmente, o arguido exerceu funções nos postos de comando, acabando por ser colocado na secretaria do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
23.–Paralelamente, em 2017, o arguido decidiu constituir uma empresa com a sua mãe, que em 2019 foi reestruturada para a área da construção de civil.
24.–Em termos formativos, o arguido concluiu dois cursos, de línguas e de formação de formadores.
25.–O arguido manteve quatro relações afectivas mais significativas, das quais resultaram quatro filhos, um de cada uma das relações.
26.–O arguido viveu em união de facto com todas as mães dos seus filhos, tendo a relação mais duradoura sido mantida entre 2009 e 2017, durante a qual viveu na ilha Terceira, por motivos de formação profissional da GNR, após o que voltou a viver no continente, tendo essa relação terminado.
27.–No final de 2018, o arguido iniciou nova relação afectiva, passando a viver em união de facto.
28.–Quando foram praticados os factos acima descritos, o arguido vivia nessa união de facto, situação que se mantém.
29.–O filho mais velho do arguido tem 12 anos e a filha nascida dessa última relação tem 22 anos, vivendo ambos com o casal.
30.–Provisoriamente, a mãe do arguido, que havia regressado a Angola há muitos anos, também se encontra a viver no agregado daquele, por motivos de saúde.
31.–O arguido assume os cuidados quotidianos dos dois filhos que vivem consigo, acompanhando-os nas diferentes actividades, e as outras duas filhas daquele, com 11 e 3 anos de idade, encontram-se aos cuidados da respectiva mãe, mantendo o mesmo contacto com estas à distância.
32.–A filha do arguido que tem 11 anos vive nos Açores, estando ambos juntos, presencialmente, durante as férias escolares, e a filha do arguido que tem 3 anos frequenta a casa do mesmo aos fins-de-semana.
33.–Os pais do arguido residem em Angola, estando a mãe do mesmo em Portugal provisoriamente, e o mesmo mantém contacto regular com o seu irmão e respectiva família.
34.–Aquando da prática dos factos acima descritos, o arguido mantinha-se a exercer funções na GNR e, concretamente, no MNE, e em 2021 passou a estar na situação de licença sem vencimento, tendo passado a dedicar-se à referida empresa.
35.–O arguido tem a intenção de concluir o mestrado integrado em Direito e posteriormente candidatar-se ao Centro de Estudos Judiciários, com o objetivo de seguir a carreira da magistratura.
36.–O arguido não aufere um rendimento mensal estável e a sua companheira, que desempenha actividade profissional nos CTT, recebe um vencimento mensal de cerca de €770,00.
37.–O arguido tem como principais despesas mensais fixas o pagamento da renda de casa, no valor de €665,00, e o pagamento de pensão de alimentos aos seus filhos, no valor de €125,00 por cada um, e o pagamento da creche do mais novo, no montante de €135,00.
38.–Na sequência da instauração do presente processo, a GNR instaurou contra o arguido um processo disciplinar, que se encontra na fase de instrução, aguardando o desfecho daqueles autos.

39.No relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social relativo à inserção familiar e sócio-profissional do arguido, conclui-se que:
O processo de socialização do arguido parece ter decorrido num contexto familiar estruturado e afectivo, que lhe proporcionou uma educação com valores e regras de acordo com os normativos na sociedade, tendo figuras parentais muito presentes e disponíveis durante o seu crescimento.
FM denota vontade em investir num projeto de vida organizado, em que se destaca a sua ambição e desejo em alcançar uma actividade profissional que lhe possibilite, a par da satisfação pessoal, estabilidade financeira e boas condições de vida. Parece haver uma preferência pelas áreas associadas à segurança e justiça, como contributo para melhoria da sociedade. Também é evidente que privilegia o seu papel parental, em que apesar de uma certa instabilidade nas relações afectivas, mantém laços com todos os filhos e assume o seu papel parental com responsabilidade.
Do que foi possível apurar, não revela características pessoais impulsivas e agressivas, nem parece haver um histórico de envolvimento em situações de conflito, quer em relações interpessoais, quer em relações intrafamiliares. Também estabelece relações sociais tendencialmente positivas e parece privilegiar papéis de liderança, que possibilitem uma mudança positiva.
Nas circunstâncias actuais, em caso de condenação, o suporte e estabilidade familiar, a actividade laboral, a ausência de consumos de substâncias aditivas e o convívio com pares pró sociais surgem como factores de protecção. Enquanto que a atitude de negação face às circunstâncias que deram origem ao presente processo, em caso de condenação surge como o principal factor de risco.
Deste modo, consideramos estarem reunidas condições para, em caso de condenação, FM poder vir a usufruir de uma medida de execução na comunidade.

Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, provou-se que:

40.–Por sentença proferida em 08.10.2019 no processo comum singular com o n.º 1108/17.9IDLSB do Juízo Local Criminal de Sintra, transitada em julgado em 07.11.2019, o arguido foi condenado pela prática em 10.09.2018 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos arts. 6.º e 105.º, n.os 1, 2, 4, als. a) e b), e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, em pena de multa.

Factos não provados:

Da acusação pública, não se provou que:

a)-No dia 29.07.2019, entre as 03h30 e as 04h00, na Travessa do ..... ....., em Lisboa, o arguido, fazendo uso de uma pistola semi-automática de calibre 7,65mm, efectuou pelo menos três disparos na direcção de um outro indivíduo.
b)-Quando apontou a pistola semi-automática de calibre 7,65mm na direcção do rosto de DC, o arguido disse "eu dou-te um tiro na cara".
c)-O arguido apontou uma arma de fogo na direcção do rosto de FS e disse "eu dou-te um tiro na cara".
d)-O arguido agiu com o propósito de pôr termo à vida de indivíduo cuja identificação não se apurou.

III–3.1.1.)-A questão que ora se retoma conexionada com o tipo de alteração preconizada pelo despacho aqui melhor constante de fls. 573, não deixou de ser objecto de consideração expressa por parte do acórdão recorrido.

Sendo que a tal propósito aí se deixou escrito o seguinte:

“Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais, conforme consta da respectiva acta, no decurso da qual o arguido foi advertido, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, para a possibilidade de, no caso de vir a considerar-se estar provado o facto descrito no ponto 9 da acusação pública, poder ser-lhe também imputada a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, tendo o ofendido FS apresentado queixa (cf. fls. 82 a 84).
Nesta sequência, remetendo para o disposto no art. 1.º, al. f), do Código de Processo Penal, o arguido veio defender estar-se perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública (fls. 576 a 580).
No entanto, não assiste razão ao arguido. Na verdade, tal como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.04.2009, a alteração substancial dos factos descritos na acusação implica sempre apuramento de factos novos, ou modificação dos descritos, acrescentando-se no mesmo aresto que não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, dos factos à condenação do arguido, mas tão somente, na medida em que conduzindo a diferente qualificação jurídico penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, a oportunidade de defesa, solução esta que veio a ser consagrada legislativamente com o aditamento do n.º 3, do art. 358.º do C. P. Penal, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.1
De resto, a jurisprudência dos Tribunais superiores mostra-se firmada neste sentido, podendo a propósito consultar-se, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04.11.2010 (desde que a acusação contenha os factos, ainda que não contenha todos as disposições/normativos legais aplicáveis, tal não parece impeditivo de que o tribunal venha a aplicar os mesmos, respeitadas, obviamente, as regras processuais, designadamente a prevista no n.º3, do artigo 358.º),2 o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21.11.2012 (a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia a efectuar na sentença é processualmente equiparada a alteração não substancial dos factos; há lugar à notificação do arguido da referida alteração da qualificação jurídica antes da prolação da sentença o qual poderá requerer prazo para a preparação da defesa; desta forma, desde que assegurado o contraditório, o tribunal pode qualificar juridicamente os factos descritos na acusação ou na pronúncia, ainda que da alteração resulte a condenação do arguido pela prática de crime mais grave do que o ali imputado, não padecendo essa interpretação de qualquer inconstitucionalidade),[1] o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.01.2014 (a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação efectuada na sentença constitui alteração não substancial dos factos),[2] o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.05.2014 [para ocorrer uma alteração substancial de factos será necessária que haja uma alteração de factos),[3] o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.2019 [a mera alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, mantendo-se estes inalterados, não dá sequer lugar à nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal, porquanto esta tem como pressuposto ou fundamento uma condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, conduzam eles a uma alteração substancial ou não substancial; pese embora a lei, no artigo 358.º, n.º 3, desse Código, mande aplicar à alteração de qualificação jurídica a norma do n.º 1 do mesmo artigo, prevista para a alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, fá-lo apenas tendo em vista a comunicação ao arguido dessa alteração e a concessão, se aquele o requerer, do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, não indo além disso a equiparação entre uma e outra alteração),[4]o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.02.2020 [quando se fala em alteração de factos, está-se a pensar primordialmente em situações de adicionamento ou de alteração de factos já constantes da acusação, porquanto é através destas duas vias que se ultrapassam os limites do objecto do processo definidos na dita peça processual),[5]ou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.11.2020 (a mera alteração da qualificação jurídica, embora agravando o quadro punitivo, que passou de um crime de furto qualificado a eventualmente dois crimes de furto qualificado, um tentado e um consumado, constitui apenas uma alteração não substancial de factos sujeita ao regime previstos no artigo 358.º, n.ºs  1 e 3, do Código de Processo Penal; uma vez que o quadro punitivo se agravou, a tramitação conferida ao processo não está isenta de ser considerada inconstitucional, caso não tenha sido respeitado o direito ao contraditório).[6]
No caso dos autos, conforme se referiu, a comunicação ao arguido para a possibilidade de lhe ser também imputada a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, assentou no pressuposto de vir a considerar-se estar provado o facto descrito no ponto 9 da acusação pública e, portanto, de este se manter inalterado.
Nesta medida, porque não se está perante o apuramento de factos novos ou em face da modificação da factualidade que já se encontrava descrita na acusação pública, não está em causa a alteração substancial dos factos a que alude a al. f) do art. 1.º do Código de Processo Penal.
Em suma, na eventualidade de se considerar estar provado o facto que se mostra descrito no ponto 9 do libelo acusatório, e tendo havido lugar à comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica nos termos acima expostos, pode vir a ser imputada a este a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal.”

III–3.1.2.)-Ora no caso em apreço não vemos que estas razões se desmereçam minimamente.

Com efeito, revisitemos o teor do aludido despacho de comunicação:

“Sem prejuízo de outra factualidade que venha a considerar-se estar provada, entende o tribunal, após deliberação, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, advertir o arguido da possibilidade de, no caso de vir a considerar-se estar provado o facto descrito no ponto 9 da acusação pública, poder ser-lhe também imputada a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, tendo o ofendido FS apresentado queixa (cf. Fls. 82 a 84).

Em face do exposto:
- Concede-se ao arguido o prazo de 10 (dez) dias para, querendo requerer o que tiver por conveniente para a sua defesa;
- Dá-se sem efeito a data marcada para a leitura do acórdão e, nada sendo requerido pelo arguido, designa-se para o mesmo efeito (…)”.

Sendo que, como vimos, o Arguido reage nos termos do seu requerimento de fls. 577/79, onde basicamente refere que não concorda com tal alteração de “qualificação jurídica” por entender que tal alteração consubstancia, verdadeiramente, uma alteração substancial dos factos.
         
O que é que dizia o mencionado art. 9.º da acusação?

“Quando o arguido se encontrava a cerca de 1 metro de distância, o arguido tentou atingir o ofendido FS com uma chapada no rosto, acabando por atingi-lo no braço, que o ofendido levantou para proteger o rosto.”

Ou seja, basicamente o que agora figura no facto provado sob o ponto 7, ainda que com uma muito ligeira diferença de redacção:

“7.–Quando o arguido se encontrava a cerca de 1 metro de distância de FS, tentou atingir este com uma chapada no rosto, acabando por atingi-lo no braço, que o segundo levantou para proteger o rosto.”
         
Não há pois nada de estruturalmente novo ou distinto do que ali se contemplava.

Ora tal como se deixa afirmado no acórdão do STJ de 24/01/2002, no processo n.º 1298/99 da 5.ª Secção (SASTJ, n.º 57, pág.ª 93), mesma a alteração não substancial pressupõe uma modificação com relevância para a decisão da causa, não bastando para tal que a matéria de facto provada não seja inteiramente coincidente com a vertida na acusação.
É pois necessário que aquela contenda efectivamente com os direitos do arguido (como se refere no acórdão desta Relação de 29/11/2007, no Processo n.º 7223/07- 9.ª, consultável no endereço electrónico www.dgsi.pt/jtrl), e postule uma necessidade de defesa.

Tal não acontece, por exemplo, “quando aos factos da acusação se retiram algum ou alguns, isto é se reduz o objecto do processo já que aqueles direitos permanecem intocáveis” (acórdão da Relação de Lisboa já indicado e Ac. do STJ de 08/11/2007, no processo 07P3164, consultável em www.dgsi.pt/jstj), ou “quando os factos são meramente concretizadores ou esclarecedores dos constantes primitivamente da acusação e pronúncia” (v.g. acórdão da Relação do Porto de 19/01/2008, no processo 0815244, consultável em www.dgsi.pt/jtrp).

Mas o mesmo vale para o caso acima patenteado, em que existe uma mera reorganização frásica sem alteração relevante do conteúdo enunciado.

Aliás, julgamos que também não será neste sentido que o Recorrente coloca a sua objecção.
O que particularmente o impressiona é que a acusação, que nessa fase delimitava o objecto do processo, não associava a esse facto concreto nenhuma incriminação autónoma, que agora passa a existir na conformação emprestada pelo Colectivo.

Mas aí, ressalvado o devido respeito, estará a confundir as respectivas categorias processuais.
 
Embora o conceito de alteração substancial, e por antítese, a de não substancial, em função da definição legal constante do art. 1.º, al. f), do Cód. Proc. Penal, faça apelo aos conceitos de “crime diverso”, e de “agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, certo é que a alteração de qualificação jurídica assenta numa base adjectiva que lhe é distinta e autónoma, ainda que, logicamente, possa haver uma comunicação entre essas duas realidades.

Se a primeira daquelas modalidades, por via de regra, importa uma modificação da qualificação jurídica, esta pode verificar-se mesmo que se mantenham inalterados os respectivos factos, sendo que só em relação a estes faz sentido falar-se de alteração substancial ou não substancial.

A alteração de qualificação, na vigência do Código de 1929, era de actuação livre por parte do tribunal, valendo sobre essa matéria, de forma irrestrita, o brocardo “jus novit curia”.

Já num tempo mais próximo, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o Assento 2/93, o qual foi objecto de uma apreciação negativa de constitucionalidade, motivo pelo qual, mais tarde, foi reformulado pelo Assento 3/2000, que então fixou doutrina no sentido de que “ao enquadrar juridicamente os factos constante da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, o tribunal podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento, e se requerido, prazo ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa”.

Basicamente o regime agora contido no art. 358.º, n.º3, do Cód. Proc. Penal.

Seja como for, a alteração substancial ou não substancial refere-se sempre aos factos; A alteração de qualificação jurídica é a modificação da sua subsunção normativa e só isso.
Sendo que verificando-se apenas esta, como no caso em presença, não só não se converte em nenhuma das primeiras, como também não há oposiçãoenquanto tal, relevante: Apenas a sua comunicação, e caso seja solicitado, prazo para preparar a defesa nos termos do normativo já acima apontado.

Donde, nem a doutrina contida no apontado acórdão n.º 463/2004, de 23/06/2004, do Tribunal Constitucional não tem aqui aplicação, como também a pretendida nulidade conexa com o art. 359.º, n.º1 e o art. 379.º, n.º1, al. b), do Cód. Proc. Penal, não se verifica.

III–3.2.)-Por relação à questão seguidamente colocada, é verdade que qualquer dos crimes pelos quais o Arguido foi condenado comporta um sancionamento alternativo em multa.

Assim, no caso do crime de ofensa à integridade idade física simples, a situar-se entre 10 e 360 dias (cfr. art. 143.º, n.º1, do Cód. Penal), e no de ameaça agravada, entre 10 e 240 dias (art.ºs 153.º, n.º1, e 155.º, n.º1, al. a) do mesmo Diploma).

Donde, nestas situações, o art. 70.º determinar que o tribunal deva conferir preferência à pena pecuniária, “sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. O que assim impõe uma primeira operação da sua escolha.

Incidência que o Colectivo não deixou de sopesar, justificando a sua opção pela forma seguinte:

A.–Verifica-se assim que, quer no que tange ao crime de ameaça agravada, quer no que concerne ao crime de ofensa à integridade física simples, ao arguido pode ser aplicada, em alternativa, pena de prisão ou pena de multa. Há, pois, que determinar, em primeiro lugar, qual das duas referidas penas será adequada ao caso concreto.
Refere o art. 70.º do Código Penal que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. De acordo com o n.º 1 do art. 40.º do Código Penal, a aplicação de penas (...) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Como se refere no preâmbulo do Código Penal de 1982, o código traça um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem ser sempre executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.[7]
Na opção entre a aplicação da pena de prisão ou da pena de multa, há que apurar se a pena não detentiva se mostra suficiente para que, no caso concreto, sejam alcançados os efeitos que se pretendem obter com qualquer reacção criminal. O que se mostra necessário é que a multa seja legalmente conformada e concretamente aplicada em termos que permitam a plena realização, em cada caso concreto, das finalidades das penas, em particular da de prevenção geral positiva, limitada pela culpa do agente.[8]
Há assim que apurar se, na situação em apreço, pela prática dos crimes de ameaça agravada e de ofensa à integridade física simples, uma pena não privativa da liberdade, nomeadamente a pena de multa, é ainda suficiente para afastar o arguido da prática de novos ilícitos criminais, garantindo-se assim a validade e vigência da norma violada e a reintegração daquele na sociedade e constituindo tal reacção penal uma censura suficiente do facto.
Os crimes de ameaça e de ofensa à integridade física, atenta a frequência com que são cometidos, implicam prementes exigências de prevenção geral.
Acresce que se verificam no caso especiais exigências de prevenção especial. Na verdade, o arguido tem antecedentes criminais e, não obstante fosse militar da GNR, circunstância que fazia recair sobre o mesmo uma especial obrigação de não lidar de forma impulsiva com situações de tensão, não se coibiu de, sem necessidade, empunhar uma arma de fogo em plena via pública.
Nesta medida, desde logo pela prática do crime de ameaça agravada, mostra-se necessário sujeitar o arguido a pena de prisão. A este propósito, tal como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.03.2007 (proc. 515/07), perspectivando-se uma pena única de prisão, não será de optar, relativamente a nenhum dos crimes em concurso, por pena alternativa de multa, na medida em que, nessas circunstâncias, se verificariam os inconvenientes atribuídos às antigas «penas mistas» individuais de prisão e multa.[9]
Assim, quer pela prática do crime de ameaça agravada, quer pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, afigura-se necessário sujeitar o arguido a pena de prisão.

Donde o quadro que se apresenta assumir uma conformação ligeiramente distinta da que antevíamos em face das conclusões apresentadas.

No processo considerativo daquela preferência temos por um lado a circunstância dos crimes em causa, pela sua frequência, implicarem prementes exigências de prevenção geral.
Por outro, a centralidade no de ameaça agravada das circunstâncias relevantes do Arguido ser militar da GNR, sobre ele impender uma outra exigência de actuação, e não se ter coibido, ao que se afirma “sem necessidade”, de empunhar uma arma de fogo em plena via pública.

E na realidade, uma coisa é a habitual ameaça verbal “do fazer ou acontecer”, outra, a formulada na concomitância da exibição de uma arma de fogo, que naturalmente convoca um outro grau de perigosidade em termos de “mal anunciado”, já que contende de forma mais imediata e estreita com bens valiosos, tais como a integridade física ou a vida do visado.

Sendo que, da nossa parte, as razões apresentadas para sustentar a aplicação de uma pena de natureza detentiva neste delito, não deixam concitar justificação bastante.

É certo que o acórdão recorrido faz apelo também aos antecedentes criminais do Recorrente, sendo inegável que já não é primário. Pelo que tal condenação terá que ser levada em conta.
No limite, poder-se-á alegar precisamente que tal pena (de multa) não foi capaz de assegurar que no futuro o Arguido não voltasse a praticar quaisquer crimes.
Embora, do nosso ponto de vista, seja pela distinta área de ilícito violada seja pelo tipo de sanção aplicada, tal pena não postulará, de forma mandatória, uma exigência de imposição de pena privativa da liberdade.

Havendo que recordar ainda, que a pena de prisão suspensa, enquanto pena de substituição, é perfeitamente compaginável como uma sanção a ser “executada na comunidade”.

Já para o crime de ofensa à integridade física, valerá sobretudo a tal concepção quer Doutrinal quer Jurisprudencial que não confere grande favor às chamadas penas mistas, que como tal, deverão ser evitadas.

Em termos gerais, nada temos a objectar em relação a esse entendimento.
Mas no presente caso, onde objectivamente o que sucedeu, foi uma tentativa de dar uma “chapada” ao Ofendido FS que, por um gesto de auto-defesa, acabou por atingir o respectivo braço, sem que se evidencie uma qualquer sequela particular dessa agressão em termos físicos, a aplicação da prisão afigura-nos excessiva, mesmo tendo em conta aquela qualidade de militar da GNR parte do Arguido, que no entanto também não a invocou.

Donde, em relação a este segundo crime, julgarmos que a pena de multa poderá realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

III–3.3.)-Já no que concerne à medida concreta das penas aplicadas, por relação aos factores que nos termos do art. 71.º, n.º 2, do Cód. Penal depõem a favor ou contra o agente, foram encarecidos na sua determinação, os seguintes:

- O grau de ilicitude do facto, que se apresenta acima da média para uma conduta que integre a prática do crime de ameaça agravada (nomeadamente por ter envolvido o empunhamento de uma arma de fogo na via pública), e mediano para uma conduta que integre a prática do crime de ofensa à integridade física simples;
- O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo directo, cuja intensidade se mostra mediana;
- As condições pessoais e a situação económica do arguido, que se mostra inserido profissional e familiarmente;
- Os antecedentes criminais do arguido.
No que concerne às exigências de prevenção, as de prevenção geral fazem-se sentir de forma elevada, atenta a frequência com que são cometidos, quer o crime de ameaça, quer o crime de ofensa à integridade física.
A culpa do arguido reflecte o grau de ilicitude do facto e, atendendo também aos factores mencionados, situa-se no nível médio das necessidades de prevenção geral.
Pelo que, e ponderando as necessidades de prevenção especial ajustadas ao caso vertente (favorece o arguido a circunstância de se mostrar profissional e familiarmente inserido, militando contra o mesmo o facto de ter antecedentes criminais), entende o tribunal dever graduar …

Neste domínio, para além da referência renovada aos “antecedentes criminais” do Arguido, que julgamos não terem assumido a centralidade justificativa que este lhe empresta, em bom rigor, não vemos que aquele aponte a existência de quaisquer outros factores relevantes que não tenham sido considerados pelo Tribunal.
No fundo, o que se terá em vista sustentar, é que as tais necessidades de prevenção especial, no seu caso, serão “manifestamente diminutas”.

Porém, sem prejuízo do Recorrente se mostrar profissional e familiarmente inserido, a verdade é que importa não esquecer as demais circunstâncias que influenciaram a determinação das penas, sendo que do conjunto da actuação traduzida na matéria de facto provada, não vemos que as tais razões de prevenção especial assumam a conformação minimalista que ora se defende.

Assim, no que toca ao crime previsto nos termos dos art.ºs 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal (punível com prisão até 2 anos), não vemos que a pena aplicada (1 ano de prisão) se mostre excessiva ou desproporcionada em relação à culpa do Arguido, ao circunstancialismo da ameaça produzida ou aos demais factores referidos para a sua determinação.

Já no que concerne ao de ofensa a integridade física, punível com multa de 10 a 360 dias, tendo em conta o tipo de agressão e mais uma vez, os já referidos factores recenseados pelo Tribunal, teremos por adequada a aplicação de uma pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), que assim traduzirá a multa global de € 900,00.

Em relação à pena de prisão, manter-se-á, naturalmente, a respectiva suspensão, agora confinada ao prazo de 1 (um) ano.

III–3.4.)-Já no que tange ao perdimento que foi decretado dos objectos apreendidos a fls. 44 e 150, a crítica essencial que se mostra efectuada, parece assentar na falta total de fundamentação da respectiva decisão, mormente o serviço de cada um desses objectos em relação à prática, ou se os mesmos sequer estiveram destinados a esse serviço no que respeita à prática”, que “razão de ciência é que fez tomar a decisão de perda a favor do Estado desses objectos apreendidos, nomeadamente quanto à pistola, quando o Recorrente a tinha legalizada e é detentor de licença de uso e porte de arma por força até de ser militar da GNR.

A respectiva justificação poderá com efeito ser muito sucinta, mas não está omissa em absoluto.

Diz-se com efeito a este propósito que:

“De harmonia com o disposto no art. 109.º, n.º 1, do Código Penal, são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
Nesta medida, importa declarar perdidos a favor do Estado o projéctil, a cápsula, a pistola, os carregadores, as munições e a bolsa apreendidos a fls. 44 e 150.”

Como refere o Prof. Paulo de Albuquerque – Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.º Edição, pág.ª 109/10, “a perda de objectos é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Não se trata de uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque não depende sequer da existência de uma condenação. Embora não sendo também uma medida de segurança, é uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes decorrente do objecto”.
(…)
“O pressuposto formal da perda de instrumentos e produtos é o da utilização dos instrumentos numa actividade criminosa, não sendo necessário que esse crime se tenha consumado”.
O pressuposto material da perda é a perigosidade dos objectos, que, “atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e conatural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa”.
 
Os que se mostram referidos em primeiro lugar são um projéctil deformado, recolhido no interior da viatura da marca Peugeot, com matrícula 91... , que corresponde ao disparo efectuado pelo Arguido, fazendo uso da tal pistola semi-automática da marca Pietro Beretta, de calibre 7,65mm, com o n.º de série F60831W, que veio a provocar naquela os estragos melhor especificados no facto provado sob o n.º 3.
E depois, uma cápsula deflagrada do mesmo calibre, encontrada numa zona contígua ao local onde aquela estava estacionada.

São pois objectos sem qualquer serventia autónoma, não passíveis de livre posse e que não podem reintegrar o comércio jurídico de munições, sendo que o primeiro claramente associado a prática de um facto ilícito.

Já os de fls. 150, são a pistola supra-mencionada, dois carregadores, vinte e uma munições de calibre 7.65, e uma bolsa de cintura de cor preta, da marca Pepe Jeans.

Exceptuada esta última, como já houve a oportunidade de conferir, a arma em causa, para além da situação acima já reportada, foi também utilizada pelo Arguido para a apontar ao rosto do mencionado DC, assim consubstanciando o já mencionado crime de ameaça agravado.

Ou seja, tal arma foi utilizada (e no primeiro caso, também a respectiva municiação) para a prática das referidas infracções penais, sendo que as mesmas, pela sua natureza e circunstâncias do caso, puserem efectivamente em perigo a segurança das pessoas e a ordem pública, e oferecem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Pelo que nessa parte, o seu perdimento não evidencia qualquer ilegalidade.

Nesta conformidade:

IV–Decisão:

Nos termos e com os fundamentos expostos, na parcial procedência do recurso interposto pelo Arguido FM, acorda-se em condená-lo pela autoria material do sobredito crime ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

Em cúmulo com a outra pena aplicada pelo crime de ameaça agravada, na pena de 1 (um) ano de prisão cuja execução se suspende por igual período de 1 (um) ano e nos sobreditos de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), que assim traduzirão a multa global de € 900,00, e em sua alternativa, em 100 (cem) dias de prisão.

Sem custas – art. 513.º, n.º1, do Cód. Proc. Penal, a contrario.


Lisboa,07-06-2022


Luís Gominho
Vieira Lamim



Elaborado em computador. Revisto pelo relator, o 1.º signatário.


[1]Disponível em www.dgsi.pt (processo 4/07.ZTAPNH.C1).
[2]Disponível em www.dgsi.pt (processo 1720/12.2PBAVR.P1.Cl).
[3]Disponível em www.dgsi.pt (processo 384/09.5GABRR.L1-3).
[4]Disponível em www.dgsi.pt (processo 4887/15.4T9VNG.P1).
[5]Disponível em www.dgsi.pt (processo 143/19.7GAPMS.C1).
[6]Disponível em www.dgsi.pt (processo 395/19.2PBMTS.P1).
Cf. o ponto 7. do preâmbulo do Código Penal.
[8]Conf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II: as consequências jurídicas do crime, Lisboa: Aequitas - Editorial Notícias, 1993, p. 119.
[9]Sumariado em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=24974 & codarea 2.