Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
61098/21.0YIPRT.L1-6
Relator: GABRIELA FÁTIMA MARQUES
Descritores: FACTO NOTÓRIO
FUSÃO DE SOCIEDADE
CESSÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Os factos notórios são do conhecimento geral, assim elegendo o conhecimento, e não os interesses, como critério de notoriedade, fazendo a lei apelo a uma ideia de publicidade, implicando a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos, de modo que o facto apareça revestido de um carácter de certeza.
II. Não integra, por norma, o conceito de facto público e notório a cisão, fusão ou integração de uma sociedade comercial numa outra, pois fará parte das decisões societárias em cada momento, apenas oponíveis a terceiros desde que registadas.
III. No âmbito de uma relação de cessão de créditos não basta a prova da emissão da factura que alegadamente titula o crédito cedido, pois impugnando-se o que a fundamenta, compete a quem a apresenta e solicita o seu pagamento a prova dos factos constitutivos do direito que invoca e que titula a obrigação – cf. art.º 342º do CC.
IV. A cessão de créditos não pode afectar, em termos de prejudicar, a posição que o devedor tinha para com o cedente, ainda que se tratasse de obrigação com vencimento posterior à cessão, desde que a sua constituição seja anterior ao conhecimento desta, ou sua coeva.
 (Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
A Autora, C…, Lda. apresentou requerimento de injunção contra F…, Lda., solicitando que fosse conferida força executiva ao requerimento de injunção, com o pedido de condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €7.562,77 a título de capital, €4.094,61 a título de juros de mora vencidos até 29.06.2021 (data da propositura da acção).
Alegou, em suma, que celebrou com a F…, SGPS, S.A. um contrato de cessão de créditos, tendo adquirido o crédito que a E... detinha sobre a Ré. Mais alegou que a Ré foi notificada da factura bem como da cessão de créditos, e não procedeu ao seu pagamento. Requer o pagamento do valo da factura acrescida dos juros de mora.
A Ré citada deduziu oposição o que determinou a transmutação do requerimento de injunção em acção declarativa com forma de processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
Na sua oposição a ré requereu que a Autora juntasse aos autos o contrato de cedência de créditos a fim de aferir da legitimidade da Autora bem como da respectiva responsabilidade; defendeu-se por excepção invocando a nulidade de todo o processo por a petição inicial ser inepta, por falta de causa de pedir: invocou a excepção prescrição dos juros de mora com mais de cinco anos; defendeu-se ainda que quando a E... lhe enviou a factura a devolveu por inexistir fundamento para tal emissão e sendo solicitado extracto de conta à E... esta tem um saldo em dívida para com a Ré de €74.456,48. Mais alegou que a Autora lhe comunicou que um crédito de €7562,77 que era titulado pela F... SGPS,S.A. lhe foi cedido solicitando o pagamento do mesmo, que a Autora ignorou dado que só por má-fé a E... transmitiu um crédito inexistente. Deduziu reconvenção para o caso de se considerar que a E... tinha um crédito sobre a Ré que este seja compensado com o crédito que a Ré detém sobre a E... considerando-se liquidada a dívida. Concluiu requerendo: a) Que seja considerada procedente a deduzida excepção dilatória de nulidade de todo o processo; b Que seja considerada procedente a deduzida excepção peremptória de prescrição, sendo a Requerida absolvida do pedido até ao valor de 1.977,04 € (mil e novecentos e setenta e sete euros e quatro cêntimos); e cumulativamente c) Que seja considerada improcedente, por não provada, a presente acção, sendo a Requerida absolvida integralmente do pedido, por provada a presente oposição. E ainda caso se considere improcedente, por não provada, a acção, d) deverá a deduzida reconvenção, no valor de 11.810,38 € (onze mil e oitocentos e dez euros e trinta e oito cêntimos) ser considerada procedente, operando a compensação entre as partes e livrando-se a Ré da obrigação.
Recebidos os autos a Autora foi notificada para responder à excepção, o que a Autora fez por requerimento, apresentado a 26.11.2021, alegando desconhecer a existência de qualquer crédito por parte da Ré sobre a credora originária, pelo que não se reconhece a existência de qualquer crédito por parte da Ré e também nesta instância não é admissível efectuar a compensação de créditos. O Tribunal proferiu despacho conhecendo da excepção da ineptidão da petição inicial, que julgou improcedente e admitindo a reconvenção apresentada pela Ré. Convidou a Ré a aperfeiçoar a reconvenção, o que esta não fez juntando somente prova documental e requerendo a audição de uma testemunha. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento e proferida sentença julgou-se totalmente improcedente por não provada a acção e, em consequência, absolveu-se a Ré do pedido formulado pela Autora na presente acção.
A Autora recorreu, pedindo a revogação da sentença recorrida, e a condenação da Ré a pagar o peticionado, concluindo da seguinte forma:
«A - A Autora, agora Recorrente, interpôs uma injunção contra a Ré, que perante a oposição desta foi transmutada na presente acção declarativa com forma de processo especial, para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
B - Por sentença datada de 11 de Novembro de 2022, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo considerou improcedente por não provada a presente acção, entendendo, no entanto a Recorrente, que a dita sentença apresenta, com todo o respeito, notórios erros de interpretação das provas apresentadas, devendo a mesma ser revogada por constituir uma denegação de justiça.
C - Ao considerar não provadas:
"...o. O credor originário era a sociedade "E..., SA que veio a ser integrada por incorporação na EL..., SA. b. A credora originária efectivamente prestou os considera provados pois:
D - Senão, vejamos os factos provados:
"... Consideram-se provados os seguintes factos: 1. Aqui Autora adquiriu a F..., SGPS, S.A. a sua carteira de créditos, onde constava identificado a Ré, com respectivo número de identificação pessoal e o número 7562,77. 2. Ré foi notificada da factura n.º 2200000058 no valor de €7.562,77, que recebeu, e da presente cessão. 3. Apesar de instada nesse sentido a Ré não procedeu ao pagamento do montante objeto de reclamação na presente injunção. 4.E... -, S.A....". o sublinhado é nosso.
E - A factura referida foi emitida pela E..., foi recebida e reconhecida pela Ré, foi objecto de depoimento da testemunha apresentada pela Ré, e então não fica provado que foi a E... a emitir o documento? Isto não é contraditório?
F - Mais, o valor em dívida aparece em mapas de obra, documentos apresentados na audiência de julgamento pela Ré, e não há serviços prestados? Aliás, a sentença em crise divaga sobre estes documentos, apesar de os considerar prova insuficiente, enredando-se em considerações para chegar à conclusão de que a E... se considerava credora da quantia que depois debitou. Se não efectuou trabalhos, porque facturou?
G - A sentença em crise deveria ter reconhecido a existência de um crédito, com base numa factura real, resultante de uma transacção entre a Ré e a E..., e adquirida pela Recorrente por cedência de crédito.
H - A integração da E... no universo EL... é pública e notória, sendo reconhecida na oposição da Ré e no depoimento da testemunha apresentada por esta. A intervenção da sociedade F..., gestora dos créditos do grupo EL..., é que poderia suscitar dúvidas ao Tribunal recorrido, mas este nem aflora este aspecto.
I - Assim, dadas as provas apresentadas, e não estando a causa a validade do contrato de cedência das quotas, devidamente notificado à Ré e não impugnado por esta, deveria ter sido reconhecido o direito da Recorrente em receber o crédito que adquiriu.
J - Nos termos do Art.º 582º nº 1, do CC, “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”.
L - A sentença recorrida deverá, em face de tudo quanto exposto, ser revogada, com as demais consequências legais.».
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de considerar provada a integração da E... no universo EL..., por ser pública e notória, reconhecida na oposição da Ré e no depoimento da testemunha apresentada por esta.  
- Por força da cessão de créditos e emissão da factura deve ser reconhecido o crédito da Autora contra a ré.
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II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. A Aqui Autora adquiriu a F..., SGPS, S.A. a sua carteira de créditos, onde constava identificado a Ré, com respectivo número de identificação pessoal e o número 7.562,77. 2. A Ré foi notificada da factura n.º 2200000058 no valor de €7.562,77, que recebeu, e da presente cessão.
3. Apesar de instada nesse sentido a Ré não procedeu ao pagamento do montante objecto de reclamação na presente injunção.
4. A Ré teve relações comerciais com a E... – , S.A.
5. A Ré rescindiu/resolveu o contrato de subempreitada celebrado com E... e A….
6. A rescisão foi comunicada em data não concretamente apurada, mas foi reiterada por carta datada de 11.02.2013 onde se escreveu «por falta de cumprimento dos prazos de pagamento acordados causando assim graves prejuízos à F…, que esta oportunamente reclamará».
7. Em 27 de Agosto de 2013, a E... GROUP emitiu uma factura 2200000058 com a descrição “REF. 11678 – Parque dos Poetas – 2ª Fase Valor respeitante a trabalhos realizados na obra Parque dos Poetas, conforme auto de fecho de contas, em anexo.”, com o valor de 7.562,77€ (sete mil e quinhentos e sessenta e dois euros e setenta e sete cêntimos).
8. Em 5 de Setembro de 2013, a Requerida devolveu a referida factura, com a seguinte comunicação: «Acusamos a receção da vossa fatura, e vimos pelo presente devolver a mesma em virtude de não percebermos o seu teor e de considerar que o valor inidcado é indevido. A haver faturação, a mesma é feita F... que é quem prestou serviços. No que respeita ao fecho de contas da obra do Parque dos Poetas têm vindo a ser trocadas comunicações com o Sr. JQ da E... pelo que não se entende o fundamento da fatura enviada. Tendo em conta as negociações em curso que visam o fecho de contas da obra do Parque dos Poetas, oportunamente realizar-se-ão eventuais compensações/acertos que possam vir a ter lugar. Com os melhores cumprimentos Eng. RMP» Assinado autograficamente com nome RMP
9. Após a devolução da factura, em 25 de Novembro de 2013, a ora Ré pediu junto da E... o envio de extracto de conta, no qual consta que a referida E... tem uma dívida para com a Requerida no montante global 79.456,48€ (setenta e nove mil e quatrocentos e cinquenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos) referente a facturas até 31.01.2013.
10. Em 3 de Fevereiro de 2021, foi a Ré notificada pela Autora de que um alegado crédito, no valor de 7.562,77€ (sete mil e quinhentos e sessenta e dois euros e setenta e sete cêntimos) que era titulado pela sociedade “F... SGPS, S.A.” junto da Ré, havia sido cedido à Autora, mais solicitando o pagamento do mesmo.
11.Cuja missiva a ora Ré ignorou.
12. Em 25.11.2013 a E... enviou à Ré um «Relatório de partidas individuais de fornecedores» onde aquela constava como devedora da Ré do valor de 79.456,48 € (setenta e nove mil e quatrocentos e cinquenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos).
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Foram ainda considerados como não provados que:
 a. O credor originário era a sociedade "E... , SA que veio a ser integrada por incorporação na EL..., SA.
b. A credora originária efectivamente prestou os trabalhos.
c. O consórcio composto por E..., S.A. e A…, Lda. celebraram contrato de subempreitada com a Ré, para que esta executasse demolições e movimentos de terras, inserida na empreitada designada por obra 11678 – Parque dos Poetas, adjudicada pela Câmara Municipal de Oeiras ao referido consórcio.
d. A ora Ré cumpriu a sua prestação contratual até ao momento em que o consórcio, composto por E... e A…, entrou em incumprimento, sendo devedor da Requerida, a 23 de Março de 2012, da entre outros montantes, da quantia de €979.562,15 (novecentos e setenta e nove mil e quinhentos e sessenta e dois euros e quinze cêntimos). e. O que obrigou a Ré aquando da restruturação da E..., a aceitar um acordo de pagamento, com a E... E A…, sob pena de nada receber, no qual, nomeadamente, aceitou a redução do montante em dívida por parte da E... para o valor de 602.000,00€ (seiscentos e dois mil euros), sendo pago nas condições aí melhor explicitadas.
f. Após o pagamento de tal valor por parte da E..., tal como acordado, a Requerida retomou o pontual cumprimento da sua prestação contratual.
g. Veio a verificar-se novo incumprimento por parte do consórcio, relativamente a facturas emitidas posteriormente ao acordo supra mencionado.
h. Sendo, nomeadamente, alegado pela Ré como fundamento para a rescisão efectuada em 28.01.2013: “(…) Após comunicação escrita enviada pela F... para regularização de valores vencidos até à data que ascendiam a 13.746,97€, verificámos que nenhuma quantia foi regularizada. Nos termos contratualmente previstos, os quais decorrem também da legislação aplicável, incumbe ao Consórcio efectuar o bom e pontual pagamento de todas as quantias devidas à F..., o que não se verificou. Não obstante da obrigação de pagamento ter prazo certo, conhecendo o Consórcio a data de vencimento das faturas emitidas, a F... concedeu, nos termos e para os efeitos no artigo 808º, nº1 do C.C., um prazo admonitório de 15 dias, para que fossem liquidados os valores em dívida sob cominação de resolução/rescisão do contrato de subempreitada celebrado. O prazo atribuído, como limite de regularização de valores vencidos, foi até dia 22 de janeiro de 2013. Verificámos que neste dia nenhum valor foi regularizado. Em boa fé, a F... esperou pela regularização dos valores vencidos até dia 25 de janeiro de 2013 inclusivé, sendo que até a esta data nenhum crédito foi efectuado por V. Exas. Nestes termos a F... considera que não se encontram reunidas as condições para manutenção da relação contratual entre as partes e nos termos da cláusula 27º, n.ºs 27.1 e 27.3 do contrato de subempreitada nº 68746, encontrando-se o mesmo à data resolvido/rescindido. (…)”
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Da impugnação dos factos:
A recorrente no que concerne aos factos insurge-se quanto ao facto negativo contido em a. da sentença recorrida, sustentando que a integração da E... no universo EL... é pública e notória, sendo reconhecida na oposição da Ré e no depoimento da testemunha apresentada por esta. Mais dizendo que a intervenção da sociedade F..., gestora dos créditos do grupo EL..., é que poderia suscitar dúvidas ao Tribunal recorrido, mas este nem aflora este aspecto.
Não obstante alegar o depoimento da testemunha, não faz menção, nem no corpo das alegações, nem nas suas conclusões, as passagens do depoimento que determine a afirmação de tal facto, em conformidade com o exposto no art.º 640º nº 1 alínea b) e nº 2 alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, o que determinaria a rejeição do recurso nesta parte, ou seja, não podendo a alteração ter na sua génese a apreciação da prova, por falta de cumprimento do ónus de impugnação imposto à recorrente em sede de recurso. Porém, alicerça igualmente a recorrente a alteração na ausência de oposição da ré, bem como na alegada circunstância de, no seu entender, tal facto ser público e notório, pelo que deveria ter sido considerado pelo tribunal nos termos do disposto no art.º 5º nº 2 alínea c) do Código de Processo Civil.
O Tribunal deu como não provado que: a. O credor originário era a sociedade "E... - , SA que veio a ser integrada por incorporação na EL..., SA.
Na motivação de tal resposta negativa o Tribunal recorrido refere que: “Quanto aos factos não provados e relativamente ao ponto a. não foi junto prova documental (designadamente certidão de matrícula das sociedades comerciais) que demonstre que a E... -, SA foi integrada por incorporação na EL..., SA..”.
No requerimento injuntivo inicial, na parte relevante, a requerente começou por alegar que:” A Aqui Requerente adquiriu o presente crédito em que o credor originário era a sociedade "E... -, SA que veio a ser integrada por incorporação na EL... , SA, por incorporação.”.
Todavia, ao contrário do alegado inexiste acordo ou ausência de oposição nos termos do art.º 574º do Código de Processo Civil quanto a este facto, pois na oposição deduzida veio a ré invocar, além do mais, que:”24. A Requerente C… & N… Recuperação de Crédito, Lda. intentou procedimento especial de injunção contra a Requerida, a exigir o pagamento do montante de 11.810,38€ (onze mil e oitocentos e dez euros e trinta e oito cêntimos).
25. A Requerente alega que adquiriu o presente crédito em que o credor originário era a sociedade E... –, S.A. que veio a ser integrada por incorporação na EL..., Sa.
26. Mais se afirma no referido requerimento que a Requerida foi notificada da factura, que recebeu, e da presente cessão, e que apesar de instada nesse sentido, a Requerida não procedeu ao pagamento do montante.
27. Todavia, como veremos, a fundamentação exposta pela Requerente não tem correspondência com a realidade.
28. Pelo que, desde já se impugnam todos os factos alegados pela Requerente.”.
Logo, não há ausência de impugnação que determine a admissão de tal facto por acordo. Nem foi junta pela Autora prova documental de tal facto.
Resta aferir se tal facto pode ser considerado pelo Tribunal por constituir um facto público e notório.
Como diz expressivamente Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol III, pág. 261) são "factos notórios apenas aqueles que sejam do conhecimento geral, ou seja, os que sejam do conhecimento da massa dos cidadãos portugueses regularmente informados, isto é, com acesso aos meios normais de informação".
A propósito de tal classificação expõe-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 5/12/2013 (Proc. nº 610/07.5TBALR.E1, in www.dgsi.pt) que na definição dos factos notórios, ainda que reportando ao art.º 514º do Código de Processo Civil/95, “como os que são do conhecimento geral, assim elegendo o conhecimento, e não os interesses, como critério de notoriedade, a lei faz apelo a uma ideia de publicidade, implicando a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos, de modo que o facto apareça revestido de um carácter de certeza. Factos notórios são os que toda a gente conhece (o cidadão médio, vulgar), e não aquilo que (eventualmente) saibam os vizinhos do autor, ou outro grupo concreto e determinado de populares.
Também no Acórdão da Relação de Coimbra de 22/06/2010 (Proc.nº 1803/08.3TBVIS.C1, endereço da net aludido) se sumaria que: ”Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos.”.
Ora, a cisão, fusão ou integração de uma sociedade comercial numa outra não constitui um facto público e notório, pois fará parte das decisões societárias em causa no momento, aliás, apenas oponíveis a terceiros desde que registadas. Donde, na ausência de acordo quanto a este facto deveria a ré ter feito prova do mesmo, não existindo essa prova nos autos, nada haverá a apontar à decisão que considerou o mesmo não provado.
Desta sorte improcede a alteração dos factos a subsumir ao direito, improcedendo nesta parte o recurso.
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III. O Direito:
A recorrente entende que há contradição na sentença dizendo que resultando a prova da emissão da factura pela E..., e que esta foi recebida e reconhecida pela Ré, e que a dívida aparece em mapas de obra, não se pode concluir que os serviços não foram prestados. Dizendo que a “sentença em crise divaga sobre estes documentos, apesar de os considerar prova insuficiente, enredando-se em considerações para chegar à conclusão de que a E... se considerava credora da quantia que depois debitou. Se não efectuou trabalhos, porque facturou?”
Conclui que a sentença em crise deveria ter reconhecido a existência de um crédito, com base numa factura real, resultante de uma transacção entre a Ré e a E..., e adquirida pela Recorrente por cedência de crédito.
Antecipando, é manifesta a ausência de razão no recurso apresentado, pois a emissão de uma factura não implica por si só o reconhecimento de uma dívida ou sequer a prova da prestação dos serviços constantes da mesma, como parece defender a recorrente.
Acresce que apesar de a recorrente ter impugnado o facto provado em a., não impugnou em sede de recurso a ausência de prova do seguinte facto: “b. A credora originária efectivamente prestou os trabalhos.”.
Na sentença recorrida não se fundamenta a improcedência apenas na ausência de prova que a credora originária fosse a E... - , SA e que esta veio a ser integrada por incorporação na EL... , SA.
Com efeito, tal como se expõe na decisão recorrida a Ré ao deduzir oposição aceitou que a cessão de créditos lhe foi notificada e que a factura aqui reclamada foi a emitida pela E... (artigo 40.º, da oposição), porém, na sua impugnação motivada alegou ainda que «só por notória má-fé poderia a E... ceder um crédito inexistente à Requerente».
Logo, impugnando a ré, alegada devedora, a existência da dívida ou a sua origem, competia à Autora provar o seu fundamento, o que não logrou fazer. Pois não basta a prova da emissão da factura, impugnando-se o que a fundamenta, compete a quem a apresenta e solicita o seu pagamento a prova dos factos constitutivos do direito que invoca e que titula a obrigação – cf. art.º 342º do CC.
A Cessão de créditos é efectivamente um “contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito (artigo 577.º)” – ( Antunes Varela in “Das Obrigações em geral”, II, 6.ª ed. 293) e “o termo cessão, tanto designa o acto (contrato) realizado entre cedente e cessionário, como o efeito fundamental da operação (a transmissão da titularidade do crédito)”, sendo que esta pode ser operada não só por via convencional, ou contrato de cessão, mas também por disposição de lei ou por decisão judicial (cf. o artigo 588.º CC).
Na mesma esteira Menezes Cordeiro (in “Direito das Obrigações”, 2.º volume, 1994, p. 90) alude que os requisitos da cessão são “um acordo entre o credor e o devedor; consubstanciada num facto transmissivo (fonte da transmissão); a transmissibilidade do crédito”. E Menezes Leitão nota serem “requisitos da cessão de créditos: a) um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do crédito; b) a inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão; c) a não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do credor.” (in “Direito das Obrigações” II, 11.ª ed., p.14).
Nesta linha, Dias Marques (in “Noções Elementares de Direito Civil”, 7.ª ed., p. 188) ensina que a cessão de créditos “pode definir-se como a sucessão de um crédito por efeito de um negócio jurídico «inter vivos» (v.g. venda, doação, troca …) através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito”.
Porém, subjacente a tal regime está sempre a ideia que a cessão não pode afectar, em termos de prejudicar, a posição que o devedor tinha para com o cedente, ainda que se tratasse de obrigação com vencimento posterior à cessão, desde que a sua constituição seja anterior ao conhecimento desta, ou sua coeva. (cf. Prof. A. Varela, ob. cit. 287 e nota 1; Prof. Vaz Serra, “Cessão de Créditos ou de Outros Direitos”, BMJ, 1955, 130; e Prof. Ribeiro de Faria, “Direito das Obrigações”, II, 2.ª ed., 539).
Claro que ficam fora da defesa do devedor cedido as circunstâncias do negócio causa da cessão, outorgado entre cedente e cessionário, do qual resultou a transmissão do crédito e que apenas relevam entre estes (cf. Doutor Luís Pestana de Vasconcelos, in “Dos Contratos de Concessão Financeira (Factoring)”, apud “Studia Iuridica”, 43, BFDUC, 1999, 314).
Nesta linha de pensamento a cessão não pode determinar o agravamento da situação do devedor que continua a poder dispor dos meios de defesa de que podia lançar mão. Além disso, constitui condição que tenha sido dado conhecimento da cessão ao devedor pois é do seu interesse saber, em cada momento, quem é o seu credor, pois que, como regra, aprestação feita a credor aparente não tem eficácia liberatória. Pois, como se julgou no Acórdão do STJ de 6 de Novembro de 2012 Proc. nº 314/2002.S1.L1) “que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente. Se, nesse caso, cumpre perante este, cumpre perante quem crê ser ainda seu credor, não devendo, por isso, ser prejudicado (cfr. art.ºs 707.º e 583.º - 2 C. Civil)”.
As excepções quanto à defesa do devedor são os factos posteriores ao conhecimento da cessão, bem como as excepções conectadas com o negócio causa da cessão, entre cedente e cessionário, das quais resultou a transmissão do crédito. (cf. Prof.s Pires de Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, I, 4.ª ed. 601). A lei impede assim que a modificação da obrigação quanto ao credor prejudique “a posteriori” os meios de defesa de que o devedor podia ter lançado mão, sempre considerando este como um terceiro em relação ao contrato de cessão e, por isso, não poder ver a sua situação agravada pela transferência do direito de crédito.
Nos autos logrou-se provar que a aqui Autora adquiriu a F..., SGPS, S.A. a sua carteira de créditos, onde constava identificado a Ré, com respectivo número de identificação pessoal e o número 7.562,77.
Logo, no caso dos autos e na modalidade de sucessão nas relações obrigacionais ocorreu uma cessão de créditos e nesta o princípio é que o crédito se transfere para o cessionário com as suas vantagens e defeitos, isto é, tal como pertencia ao cedente.
Outrossim, provou-se que a Ré foi notificada da factura n.º 2200000058 no valor de €7.562,77, que recebeu, e da presente cessão. Provando-se ainda que em 3 de Fevereiro de 2021, foi a Ré notificada pela Autora de que um alegado crédito, no valor de 7.562,77€ (sete mil e quinhentos e sessenta e dois euros e setenta e sete cêntimos) que era titulado pela sociedade “F... SGPS, S.A.” junto da Ré, havia sido cedido à Autora, mais solicitando o pagamento do mesmo.
Como se explicita no Acórdão do STJ de 7/09/2021 (proc. nº 348/16.2T8BJA-A.E1.S1, in www.dgsi.pt) A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjectiva que consiste na transferência do lado activo da relação obrigacional.
A propósito desta consequência refere Mota Pinto quanto a um dos aspectos jurídicos da cessão que “o devedor cedido pode opor ao cessionário, ainda que este as ignorasse, todas as excepções e objecções propriamente ditas que poderia opor ao cedente, salvo se provêm de facto posterior ao conhecimento da cessão (art.º 585º). Nestes termos pode o devedor objectar ao cessionário a nulidade ou anulação do contrato donde emerge o crédito ou com o pagamento ou extinção anterior deste, ou opor-lhe a excepção de inadimplência com fundamento em não cumprimento pelo cedente, se o crédito emerge de um contrato sinalagmático (…), isto mesmo que o inadimplemento do cedente, que funda a exceptio inadimpleti contratus ou a resolução, seja posterior  à cessão, pois o seu fundamento não está no acto de incumprimento, mas no contrato bilateral” ( in “Cessão da Posição Contratual”, pág. 164 a 165).
A par desta consequência a jurisprudência reconhece ainda ao devedor cedido o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art.º 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1).
No caso concreto, provou-se que efectivamente apesar de instada a ré não procedeu ao pagamento do montante objecto de reclamação na presente injunção.
Porém, não há que olvidar que a par da ausência de prova dos serviços prestados pela credora originária à ré, haverá ainda que considerar que a Ré teve relações comerciais com a E... – , S.A., mas a Ré rescindiu/resolveu o contrato de subempreitada celebrado com E... e A…, a qual foi comunicada em data não concretamente apurada, mas foi reiterada por carta datada de 11.02.2013 onde se escreveu «por falta de cumprimento dos prazos de pagamento acordados causando assim graves prejuízos à F..., que esta oportunamente reclamará».
É certo que em 27 de Agosto de 2013, a E... GROUP emitiu uma factura 2200000058 com a descrição “REF. 11678 – Parque dos Poetas – 2ª Fase Valor respeitante a trabalhos realizados na obra Parque dos Poetas, conforme auto de fecho de contas, em anexo.”, com o valor de 7.562,77 € (sete mil e quinhentos e sessenta e dois euros e setenta e sete cêntimos).
Porém, em 5 de Setembro de 2013, a Requerida devolveu a referida factura, com a seguinte comunicação: «Acusamos a receção da vossa fatura, e vimos pelo presente devolver a mesma em virtude de não percebermos o seu teor e de considerar que o valor inidcado é indevido. A haver faturação, a mesma é feita feita F... que é quem prestou serviços. No que respeita ao fecho de contas da obra do Parque dos Poetas têm vindo a ser trocadas comunicações com o Sr. JQ da E... pelo que não se entende o fundamento da fatura enviada. Tendo em conta as negociações em curso que visam o fecho de contas da obra do Parque dos Poetas, oportunamente realizar-se-ão eventuais compensações/acertos que possam vir a ter lugar. Com os melhores cumprimentos Eng. RMP» Assinado autograficamente com nome RMP. E após a devolução da factura, em 25 de Novembro de 2013, a ora Ré pediu junto da E... o envio de extracto de conta, no qual consta que a referida E... tem uma dívida para com a Requerida no montante global 79.456,48 € (setenta e nove mil e quatrocentos e cinquenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos) referente a facturas até 31.01.2013. Acresce que em 25.11.2013 a E... enviou à Ré um «Relatório de partidas individuais de fornecedores» onde aquela constava como devedora da Ré do valor de 79.456,48 € (setenta e nove mil e quatrocentos e cinquenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos).
Logo, em nada releva que a ré tenha ignorado o ocorrido em 3 de Fevereiro de 2021, quando foi notificada pela Autora de que um alegado crédito, no valor de 7.562,77€ (sete mil e quinhentos e sessenta e dois euros e setenta e sete cêntimos) que era titulado pela sociedade “F... SGPS, S.A.” junto da Ré, havia sido cedido à Autora, mais solicitando o pagamento do mesmo. Pois, nessa data a par da resolução aludida, já havia também sido invocado um crédito da ré em relação à credora originária, podendo a extinção da dívida ser operada mediante compensação, excepção que era passível de ser oposta ao cessionário pelo devedor. Efectivamente no Código de Seabra estava vedado ao devedor opor ao cessionário a compensação quando tivesse aceite a cessão, mas no actual código o devedor pode opor ao cessionário tal excepção, nos mesmos termos em que pode opor as outras excepções, não perdendo, sem mais, a possibilidade de as invocar, mesmo perante a circunstância de ter aceitado a cessão (neste sentido Mota Pinto, in ob. cit. pág. 165).
Por outro lado, como bem se decidiu na sentença sob recurso: ”Autora reclama o pagamento da factura 2200000058 no valor de €7.562,77 que foi emitida pela E... e que as partes discutiram sobre a sua exigibilidade temos que constatar o seguinte: A Autora para fundamentar que a Ré é devedora da factura atrás referida alegou que « a credora originária efectivamente prestou os trabalhos», isto é, que a Ré prestou trabalhos na obra Parque dos Poetas, conforme auto de fecho de contas, em anexo, no valor de €7.562,77. Ao contrário do alegado pela Autora não resultou provado que a E... – , S.A. tenha prestado trabalhos à Ré e que esta se tenha comprometido ao pagamento da respectiva retribuição. O facto não provado: prestação de trabalhos da E... à Ré – é um facto essencial e constitutivo do direito da Autora (artigo 342.º, 1, do Código Civil), pelo que não resultando provado não pode ser exigido do Ré o pagamento de €7562,77 com o fundamento que esta é devedora à E... de tal quantia por trabalhos prestados pela E.... Improcede, pois, a presente acção, tanto a título de capital, como de juros de mora.(…)”.
Improcede assim, a apelação.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 11 de Maio de 2023
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes