Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4940/17.0T8ALM-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: RECONHECIMENTO DE DÍVIDA
ACORDO DE PAGAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Um acordo de pagamento no qual o executado reconheça uma dívida e explique de onde ela provém, não é um simples reconhecimento de dívida do art. 458 do CC; é também uma confissão extrajudicial dos factos que deram origem à dívida (artigos 352, 355/4, 358/2, segunda parte, e 376/1-2 do CC).
II – O pagamento de dívidas do devedor, feitas pelo terceiro, em conformidade com o interesse e a vontade, real ou presumível, do devedor, vindo este, depois, a reconhecer dever ao terceiro o valor correspondente, configura uma gestão de negócios aprovada pelo devedor (artigos 464, 468 e 469 do CC). 
III – A previsão de duas formas de pagamento da dívida, num acordo de pagamento da dívida, não equivale a uma condição suspensiva ou a duas condições suspensivas sequenciais da obrigação do pagamento da dívida (art. 270 do CC), mas apenas condições suspensivas dessas formas de pagamento da dívida e, nessa medida, da imediata obrigação de pagamento da dívida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo  identificados:

A 22/06/2017, A requereu uma execução contra B para pagamento de 19.984,80€ e 8.797,34€ de juros de mora desde 19/06/2006, com base em documento particular com assinatura de ambos reconhecida notarialmente.
Alegou que o executado assinou em 19/06/2006, uma declaração de reconhecimento de divida e respectivo acordo de pagamento no valor de 19.984,80€ onde ficou estipulado que logo que recebesse sua pensão em retroactivo pagaria o valor mensal de 500€; a divida confessada ao exequente tem origem em despesas suportadas pelo mesmo em benefício do executado em alojamentos em pensão, quartos alugados, alimentação, medicamentos, transportes, viagens de ida e regresso à GB, tendo sido reconhecido notarialmente a sua assinatura, pelo que confessou ser devedor supra referida verba; até ao presente o executado não procedeu ao pagamento do valor que se encontra em dívida; enviou uma carta de interpelação para o executado, e ainda tentou por inúmeras vezes contactar pessoalmente e telefonicamente para que o executado procedesse ao pagamento do valor em divida, contudo sem sucesso. É pois necessária a presente execução.
O executado foi citado pessoalmente através de carta registada com a/r por ele assinado a 06/12/2017 e a 05/01/2018 deduziu embargos, alegando, em síntese (mas utilizando-se, no essencial, as construções e as frases do executado), que fez um favor a um terceiro; este terceiro, em reconhecimento desse favor, comprometeu-se a entregar 20.000€ ao executado o que este aceitou, tudo com a participação e o conhecimento do exequente, que agia como sócio daquele terceiro; o executado recebeu apenas 1450€ daqueles 20.000€, entre Maio e Novembro de 2005; em Junho de 2006 o exequente coagiu, com agressividade e autoridade que detinha sobre o executado, a assinar um acordo conforme a uma minuta que apresentou; com o referido acordo o exequente receberia os valores que o terceiro se comprometera perante o executado, devendo o exequente, por sua vez, “adiantar” mutuar valores ao executado; o executado não reconheceu qualquer utilidade a tal contrato por o mesmo não corresponder a qualquer realidade que existisse ou que por sua vontade pretendesse; dos valores prestados pelo exequente ao executado, este pagou-os na totalidade, em prestações de 200€, tendo disso o exequente dado a respectiva quitação em 14/12/2010, no valor de 2.714€.
Ainda: o título junto é uma cópia não autenticada. O título executivo, designadamente na cláusula 3.ª refere que o pagamento - de uma pensão que o executado esperava receber -, pressuposto ou condição do dever de pagamento ao exequente, supõe contar-se desde 29/03/2005; ao executado não foi ainda deferida, nem consequentemente, paga tal pensão com tal retroactividade; o exequente deveria alegar e provar documentalmente no requerimento executivo que a condição suspensiva da obrigação exequenda já se verificou, ou, pelo menos, deveria oferecer as provas que tem de que a condição já se verificou; não o fez. Na cláusula 5.º consta: caso se venha a verificar a não atribuição de qualquer pensão como DFA por razões imprevistas, ao PRIMEIRO CONTRAENTE, E SÓ NESTE CASO, será o total da dívida por ele totalmente liquidado através de mensalidade de 500€ até 31/12/2010, retiradas dos negócios de Importação Exportação a realizar por ele, entre a GB e Portugal.”
Ainda: o acordo correspondeu a mútuo entre o exequente e o executado; o contrato de mútuo tem natureza real, e não obrigacional ou consensual, depende da entrega do dinheiro (art. 1142 e ss. do CC); de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova (art. 342/1 do CC) é ao autor que compete a prova desses elementos, não só da entrega do dinheiro, como também da obrigação de restituição.
Ainda: A ser um negócio unilateral, é falso que o executado alguma vez tenha sido devedor do exequente naquele valor com causa em alojamentos, pensão e quarto alugado, alimentação, medicamentos, transportes, viagens de ida e regresso à GB; o valor que o executado recebeu foi aquele que foi restituído com juros; a ser o título executivo um reconhecimento de dívida e consagrando o artigo 458 do CC uma mera regra de inversão do ónus da prova (e não um negócio abstracto), não está o exequente dispensado do ónus de alegação da causa debendi, sob pena de ineptidão.
Finalmente: A entender-se que o título executivo é válido e eficaz, este formaliza um contrato entre o exequente e executado, o que encontra fundamento na designação que foi dada ao documento ‘acordo de pagamento de dívida’; decorre linearmente do texto que, para além do reconhecimento por parte do executado de que deve à exequente a quantia nele mencionada, os contraentes estabeleceram por mútuo acordo o tempo, as condições e o modo de realização do pagamento devido pelo executado, devendo ser interpretado que o dever de restituição da quantia mutuada por parte do executado dependeria deste ver reconhecido o seu direito à referida pensão com retroactivos que se supunha no título executivo desde 29/03/2005; não tendo tal condição se verificado operaria imediatamente nos termos então contratuais o pagamento à exequente pelo recebimento pela exequente dos negócios de importação exportação entre GB e Portugal a realizar pela exequente – o que efectivamente ocorreu.
O exequente contestou os embargos, impugnando os factos base das excepções deduzidas e os efeitos jurídicos que o executado deles pretender retirar.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando os embargos improcedentes.
O executado vem recorrer desta sentença – para que os autos de execução sejam anulados por insuficiência do requerimento executivo; subsidiariamente a sentença seja anulada por falta de pronúncia sobre questão sobre a qual tinha o dever de se pronunciar; ainda subsidiariamente, para que seja revogada e substituída por outra que se conforme à correta aplicação dos artigos 236/2 e 406/1 do Código Civil -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
60\ O título executivo é insuficiente para a prova da verificação da condição.
61\ O requerimento executivo é totalmente omisso quanto à eventual verificação ou não da condição suspensiva, bem como a comprová-la.
62\ Foi pedida em sede de embargos a nulidade da execução por ineptidão do requerimento executivo por falta de alegação da verificação da condição suspensiva da obrigação exequenda.
63\ A falta ou insuficiência do título quando manifesta determina ex officcio o indeferimento liminar do requerimento executivo, cfr. art. 726/2-a do CPC.
64\ A decisão recorrida não dá expressamente como provado e não o demonstra considerar na respectiva fundamentação que o mesmo acordo prevê a respectiva cláusula 5.ª.
65\ Expressamente previa o mesmo acordo, numa segunda sequencial condição suspensiva, o limite temporal do ano de 2008 para a verificação daquela primeira condição suspensiva.
66\ A segunda condição suspensiva do mesmo acordo prevê que caso não se verificasse a primeira condição, no hiato temporal até 2008 previsto, o valor da dívida seria pago com transferências dos negócios de exportação da GB do executado.
67\ O acordo é claro, preciso e expresso a determinar que o montante de retroactivos que constitui a condição suspensiva “se supõe contar desde 29/3/2005” – o que não se verificou.
68\ Foi uma surpresa a utilização dos retroactivos pagos pelo Ministério da Defesa Nacional em 2016 como coincidentes com os retroactivos previstos pelo acordo a serem pagos pela Caixa Geral de Aposentações e desde 29/3/2005.
69\ Em nenhum momento do requerimento executivo ou mesmo na contestação aos presentes embargos, o exequente, alega a verificação da condição.
70\ A razão de ser da estipulação condicional radica na incerteza do declarante de alcançar os fins a que se propõe com o negócio, porquanto, embora seja provável que venham a ser alcançados, não está afastada a dúvida sobre a sua futura verificação, uma vez que, na sua perspectiva, a finalidade a que se dirige o negócio depende de circunstâncias futuras que ele não domina e se lhe afiguram de verificação incerta.
71\ A redacção do acordo e das referidas condições foi disposta em face da informação que ambos os contraentes, executado e exequente, conheciam e que era notória a essa data e na qual estavam a prever que fosse cumprida pelo Estado Português, cfr. o segmento que refere “por razões imprevistas” na cláusula 5.ª do acordo.
72\ A condição traduz-se num elemento acidental ou secundário do negócio jurídico, nele introduzido pela vontade das partes no uso pleno do princípio da liberdade negocial, cfr. art. 405 do CC. Caso as partes não quisessem introduzir esta álea no negócio não teriam acordado a condição e teriam simplesmente acordado a dívida e o seu pagamento imediato ou no limite a um termo. Estabelecido um acordo, redigido o mesmo a comprová-lo, deve este ser respeitado como se deve respeitar pacta sunt servanda.
73\ Foi no pressuposto de que o executado havia recebido os retroactivos de pelo menos 12 anos, no valor que estimou em 312.400€ que o exequente apresentou o requerimento executivo, bem, como foi nesse pressuposto que foi redigida a condição suspensiva cuja verificação é objecto do presente recurso.
74\ Foi ainda com o mesmo pressuposto que o executado integrando o requerimento executivo e defendendo-se do mesmo que injusta e precocemente em muito tem afectado a sua subsistência – entendeu o requerimento executivo e a redacção da condição suspensiva em causa.
75\ Afastar esse pressuposto, o que o fez a decisão recorrida, é uma surpresa porque não observou o devido contraditório, além do que tal surpresa significa para a interpretação do tribunal a quo do negócio em causa.
76\ O contraditório devido em primeiro lugar só teria sido observado se o requerimento executivo tivesse sido completado com a adequada alegação e comprovação no campo próprio da condição e da sua verificação.
77\ O exequente fundamenta a execução no incumprimento de uma obrigação condicional que desde o início da instância executiva omitiu como tal.
78\ A única interpretação que se pôde fazer da condição suspensiva em causa é a determinada pelo entendimento do executado alegada em sede de embargos de executado, cfr. art. 186/3 CPC.
79\ A interpretação que exceda tal âmbito perde o respaldo nos autos e determina a ineptidão originária do requerimento executivo e da nulidade de todo o processado, cfr. art. 186/1-2a CPC.
80\ Em nenhum momento da decisão recorrida o tribunal a quo atende à questão suscitada nos embargos da insuficiência do título executivo.
81\ Em nenhum momento da decisão recorrida o tribunal a quo atende à questão suscitada nos embargos da ineptidão do requerimento executivo, por falta de compleição, ou insuficiência, da causa de pedir que fundamenta os autos embargados.
82\ A nulidade de todo o processo por ineptidão do requerimento executivo constitui excepção dilatória não suprível, salvo na hipótese legalmente no art. 186/3 do CPC e bem assim na hipótese, de cariz jurisprudencial, a que se referem aos artigos 264 e 265 do CPC.
83\ A ineptidão do requerimento executivo por falta de indicação da causa de pedir, por constituir vício enquadrável no art. 726/2-b) do CPC, não é susceptível de convite ao aperfeiçoamento, cfr. art. 726/4 do CPC, a eventual correcção ou aperfeiçoamento não seria modo legalmente admissível de sanação do vício.
84\ O tribunal a quo não se pronunciou na decisão recorrida de modo algum sobre tais questões, devidamente alegadas e pedidas em sede de embargos, o que deve determinar a nulidade da decisão recorrida.
85\ À vontade real das partes deve ser dada pelo declaratário a prioridade na interpretação das respectivas declarações, cfr. art. 236/2 CC.
86\ É inequívoco que as partes subordinaram a obrigação do pagamento à verificação de determinada condição suspensiva. É inequívoca a redacção no acordo do que constitui a condição.
87\ É também constituinte da condição supra referida a que as partes subordinaram a obrigação o que estas conseguiram redigir sobre a verificação da mesma.
88\ É também inequívoco que no funcionamento do negócio em causa as partes conseguiram redigir também de forma clara, precisa e expressa uma segunda ou sequencial condição suspensiva que se verificaria na falta de verificação da condição suspensiva anterior.
89\ São três aspectos da interpretação do negócio que o tribunal a quo não cuidou na decisão recorrida, além dos demais vícios elencados supra, designadamente, i) a vontade real conhecida das partes; ii) o hiato temporal previsto no acordo para a verificação da primeira condição suspensiva; iii) o funcionamento da condição suspensiva prevista para a eventual sequência da falta de verificação da primeira condição.
90\ Sobre o primeiro desses aspectos cumpre alegar nesta sede o supra exposto a respeito da insuficiência do título executivo e da falta de alegação do exequente sobre a verificação da condição.
91\ Tivesse o exequente observado a devida indicação da causa de pedir nos autos como era respectivo ónus teria sido ainda mais evidente o alinhamento das partes de que a condição em causa considera-se verificada com o pagamento dos retroactivos pela pensão de DFA devidos desde a junta médica, de 29/3/2005.
92\ Sobre o segundo desses aspectos cumpre alegar que o texto do acordo é claro e inequívoco a traçar o plano de pagamento com origem nos retroactivos da pensão DFA devidos desde 29/03/2005, até ao ano de 2008.
93\ A tal conclusão inequívoca chegamos pelo texto do acordo que tem um funcionamento complexo, todavia, claro, razoável e expresso.
94\ Posto que o mesmo acordo refere que “caso se venha a verificar a não atribuição de qualquer pensão como deficiente das forças armadas por razões imprevistas”.
95\ Ou seja, as partes estabeleceram, ao invés de ficarem sine die a aguardar a eventual verificação da primeira condição, uma referência de período para essa espera.
96\ Consolida esta interpretação, clara, razoável e expressa no referido acordo, a referência no mesmo de que operando a segunda condição o total da dívida estaria pago até 31/12/2010 através de mensalidades de 500€ “retiradas dos negócios de importação exportação a realizar pelo executado entre a GB e Portugal.”
97\ Termos em que não estamos perante condições suspensivas alternativas, nem cumulativas, mas sequenciais.
98\ A interpretação do tribunal a quo na decisão recorrida sobre o negócio constitui violação do art. 236/2 e 406/1 ambos do CC.
99\ O tribunal a quo recorreu na decisão recorrida a uma interpretação fictícia que não pode imputar a nenhuma das partes, bem como sem alegações das partes que lhe dê respaldo e sem necessidade dado que o acordo que as partes contigencialmente conseguiram reduzir a escrito não suscita dúvidas, nem nenhuma das partes alegou que o mesmo suscitasse qualquer dúvida em qualquer das cláusulas ou segmentos do mesmo.
O exequente não contra-alegou.
Questões que importa decidir: se os embargos deviam ter sido julgados procedentes.
*
Factos provados:
1\ No dia 19/06/2006, o [exequente] e o [executado] assinaram perante notária, documento intitulado Acordo de Pagamento de Dívida, do qual consta o seguinte:     
Entre:
Primeiro Contraente: [executado]
e
Segundo Contraente: [exequente]
é celebrado o presente acordo de pagamento de dívida, nos termos das cláusulas seguintes:
1.º O [executado] confessa dever, nesta data, ao [exequente] 19.984,80€.
2.º A dívida confessada tem por origem as despesas suportadas pelo [exequente] desde 29/10/2004, a benefício do [executado], com alojamentos em pensão e quarto alugado, alimentação, medicamentos, transportes, viagens de ida e regresso à GB.
3.º A citada importância (…) será paga pelo [executado] ao [exequente], com o montante de retroactivos (que se supõe contar desde 29/03/2005) que vier a ser pago pela Caixa Geral de Pensões ao [executado] por pensões como Deficiente das Forças Armadas e o remanescente, para totalizar a importâncias atrás mencionada, será pago em mensalidades de 500€ durante os anos de 2006 / 2007 e 2008.
4.º Os pagamentos do montante de pensões em retroactivo e das mensalidades que se lhe adicionarão, como se refere no artigo anterior, até perfazer o total da dívida, deverão ser efectuados por transferência, ou depósito bancário na conta que o [exequente] possui na Agência da CC, do Banco Montepio Geral, com o n.º […]
5.º Caso se venha a verificar a não atribuição de qualquer pensão como Deficiente das Forças Armadas por razões imprevistas, ao PRIMEIRO CONTRAENTE, E SÓ NESTE CASO, será o total da dívida por ele totalmente liquidado através de mensalidades de 500€ até 31/12/2010, retiradas dos negócios de Importação Exportação a realizar por ele, entre a GB e Portugal.
6.º Sobre a importância de 19.984,80€ recaem juros calculados à taxa de 4% ao ano, sendo os mesmos incidentes, posteriormente, sobre a quantia em dívida, após as amortizações efectuadas e a contar desde a presente data.
7.º O presente acordo é celebrado em duplicado ficando cada contraente na posse de um exemplar.
Lisboa, 19/06/2006
[seguem as assinaturas de ambos, reconhecidas notarialmente nesse mesmo dia, feitas perante o notário e com a identidade verificada pelo BI]                                              
Este documento foi dado por integralmente reproduzido e agora reproduzido de facto na íntegra por este acórdão do TRL.
2\ Em Outubro de 2017, o Ministério da Defesa Nacional - Exército pagou ao embargante, a título de retroactivos da pensão e do abono suplementar de invalidez, referente ao período de 08/05/2014 a Fevereiro de 2017, o montante global de 61.957,40€.
*
Os factos alegados pelo executado, nos seus embargos, foram submetidos a prova e dados como não provados.
Como fundamentação de tal decisão da matéria de facto consta, além do mais:
Na sequência, tendo, afinal, o embargante assinado de livre vontade o referido “Acordo”, onde reconhece dever ao embargado aquele valor de 19.984,80€, antes já confessadamente reconhecido na carta de 14 de Junho, por conta de despesas do primeiro com alojamento, medicamentos, comida, vestuário, etc., que o segundo custeou, duas consequências se impuseram retirar:
[…]
- a segunda, que a confissão extrajudicial produzida pelo embargante do pagamento daquelas concretas despesas suas e naquele valor pelo embargado, tem força probatória plena – arts. 352, 355/4, 358/2, segunda parte, e 376/1-2 do CC, e, por consequência, tanto não relevam as declarações produzidas pelo próprio em audiência, como não valem as produzidas pela testemunha AB, sua mulher, na parte […] em que procuraram infirmar os factos confessados naquele documento e dotados de tal força probatória – art. 393/2 do CC. Daqui decorreu a imediata não prova, contra o confessado no documento, de que o embargado não custeou despesas do embargante com alojamentos em pensão e quarto alugado, alimentação, medicamentos, transportes, viagens de ida e regresso à GB; de que as despesas não ascenderam ao valor de 19.984,80€; e, de que o “Acordo” não correspondia ao verdadeiro acordo entre as partes […].
Por último, relativamente ao excepcionado pagamento do valor de 19.984,80€, para além de servirem as razões anteriores quanto à comprometida valia probatória das declarações do embargante (e da testemunha AB, cônjuge) e quanto à negação de tal pagamento pelo embargado, resta dizer que [a prova documental apresentada pelo executado, concretizada] também não releva […].
Quanto à fundamentação de direito da sentença esta consistiu na seguinte, em síntese:
1\ Coacção física e pagamento da quantia exequenda
A coacção física invalidaria a declaração de dívida produzida – art. 245 do CC; e, o pagamento extinguiria a obrigação exequenda – art. 761/1 do CC, ambas conducentes à extinção da execução – art. 732/4 do CPC.
O ónus de provar os factos constitutivos subjacentes a tais excepções peremptórias recaía sobre o embargante, que delas se quis prevalecer – art. 342/2 do CC
Como se pode ver da matéria de facto elencada, esses factos resultaram não provados.
Por não verificadas, improcedem tais excepções.
2\ Reconhecimento de dívida, empréstimo e ónus de alegação e prova
O documento “acordo de pagamento de dívida” não é um mero reconhecimento de dívida, que dispensa o credor embargado de provar a relação fundamental por falta de indicação da respectiva causa – art. 458/1 do CC.
É um reconhecimento de dívida, sem dúvida, porque nele o executado declarou que “confessa dever, nesta data, ao [exequente] a quantia de 19.984,80€”; mas, é também uma confissão extrajudicial por parte do executado da relação fundamental que justifica o reconhecimento de dívida, quando nele declarou “2.º A dívida confessada tem por origem as despesas suportadas pelo [exequente] desde 29/10/2004, a benefício do [executado], com alojamentos em pensão e quarto alugado, alimentação, medicamentos, transportes, viagens de ida e regresso à GB.”
A qualificação jurídica da confessada relação fundamental de base negocial mostra-se secundária, visto que, por um lado, o objecto e o fim negocial não se divisam nulos por física ou legalmente impossíveis, contrários à lei, à ordem pública ou aos bons costumes – arts. 280 e 281 do CC, e, por outro lado, esse negócio deve ser pontualmente (no sentido temporal e de ponto-por-ponto) cumprido, mormente quanto ao pagamento assumido – art. 405/1 e 406/1, ambos do CC.
Assim, a confissão da entrega do dinheiro pelo exequente para custear despesas e serviços prestados ao executado e da obrigação de este reembolsar àquele tal valor, acrescido de juros (última cláusula), pode entender-se como contrato de mútuo – art. 1157 do CC; porém, o óbice de a entrega do dinheiro não ter sido feita directamente pelo exequente ao executado mas aos credores dos bens e serviços disponibilizados ao executado, contra a obrigação de este reembolsar àquele o valor total gasto, pode apontar para um contrato de mandato (em que a obrigação do reembolso das despesas feitas também tem consagração legal) – arts. 1157 e 1167/-a do CC.
E remate-se com o seguinte no plano do direito probatório; o credor embargado que tem a seu favor uma declaração confessória de dívida e de causa da dívida emitida pelo devedor embargante não está novamente onerado com a prova da dívida e com a causa da dívida.
A força probatória plena da confissão faz recair sobre o confitente o ónus da prova contrária – art. 347 do CC.
3\ Condição suspensiva
Resta abordar a questão da condição suspensiva.
As partes consignaram no referido “Acordo” que “a citada importância (…) será paga (…) com o montante de retroactivos (que se supõe contar desde 29/03/2005) que vier a ser pago pela CGP ao [executado] por pensões como Deficiente das Forças Armadas”, pelo que, de acordo com as regras da interpretação das declarações negociais, concluímos ter sido vontade conjunta em subordinar o efeito negocial do pagamento à verificação futura e incerta do pagamento ao executado dos retroactivos de pensões enquanto DFA, o que traduz, juridicamente, o estabelecimento de condição suspensiva – artigos 236 e seguintes e 270, ambos do CC.
O facto de as partes terem indicado que supunham contar os retroactivos desde 29/03/2005, quando apenas contaram desde 08/05/2014, e que os retroactivos seriam pagos pela CGA, quando o foram pelo Ministério da Defesa, são aspectos secundários que não impedem se dê por verificada a condição quando, em Outubro de 2017, foram pagos os retroactivos de pensões ao executado, como DFA, no valor de 61.957,40€: ali, porque a referência surge entre parêntesis e as partes não previram qualquer efeito negativo no caso de pagos desde data posterior à data meramente suposta, evidenciando a irrelevância deste aspecto; aqui, porque a identificação da entidade pagadora é aspecto de somenos importância quando se trata de receber.
Por consequência, a verificação da condição suspensiva atinente ao pagamento da dívida, retroage à data de 19/06/2006 – art. 276 do CC – sendo devido não apenas o capital de 19.984,80€, como os juros de mora vencidos desde então, como aliás previsto na cláusula 6 “e a contar desde a presente data”.
É tempo, pois, de o embargante honrar a dívida que […] assumiu ter perante o exequente e que devia e podia ter liquidado no ano de 2017 […].
Apreciação
O art. 458/1 do CC, sobre a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida, dispõe: Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
É claro assim que pode haver reconhecimento de dívida sem indicação de causa e reconhecimento de dívida com indicação da respectiva causa.
E se para a situação mais despida se presume a existência da relação fundamental, logicamente que, para a situação mais completa, a relação fundamental se tem de ter logo como provada.
Isto, como se vê, pode ser retirado, a contrario, do disposto no art. 458 do CC, mas é também retirado directamente do regime da confissão extrajudicial de factos desde que feita pelo devedor ao credor. É isto que explica que a sentença recorrida diga, com razão, na parte de Direito, que o documento “acordo de pagamento de dívida” não é um mero reconhecimento de dívida, porque é também uma confissão extrajudicial por parte do executado da relação fundamental que justifica o reconhecimento de dívida. Isto depois de na parte da fundamentação de facto já ter explicado: a confissão extrajudicial produzida pelo executado do pagamento daquelas concretas despesas suas e naquele valor pelo exequente, tem força probatória plena – arts. 352, 355/4, 358/2, segunda parte, e 376/1-2 do CC, e, por consequência, tanto não relevam as declarações produzidas pelo próprio em audiência, como não valem as produzidas pela testemunha sua mulher, na parte […] em que procuraram infirmar os factos confessados naquele documento e dotados de tal força probatória – art. 393/2 do CC.
Portanto, o executado só poderia pôr em causa o título dado à execução destruindo a força probatória plena qualificada - de que implicitamente fala a sentença - nos termos restritos determinados na lei (art. 347 do CC), isto é, impugnando o acto de confissão (art. 359 do CC), ao abrigo dos artigos 446, 448 e 449 do CPC (para tudo isto, Lebre de Freitas, A acção declarativa, 4.ª edição, págs. 308 a 314, e CC anotado, vol, I, 2.ª edição revista, CEDIS/Almedina, 2019, págs. 464 e 465, e Miguel Teixeira de Sousa, CC comentado, I, IDP/Almedina, 2020, pág. 1014), o que manifestamente não conseguiu fazer.
Os factos constantes do documento, provados por prova plena qualificada, configuram, o reconhecimento e a aprovação, pelo executado, de uma gestão de negócios, exercida pelo exequente em conformidade com o interesse e a vontade, real ou presumível, do dono do negócio (executado), pela qual ele, executado, fica obrigado a reembolsar o gestor das despesas que ele fundadamente tenha considerado indispensáveis, com juros legais a contar do momento em que foram feitas (artigos 468 e 469 do CC; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.º edição, Coimbra Editora, 1997, págs. 230 a 235, e Fernando Ferreira Pinto / Isabel Teixeira Duarte, Comentário ao CC, Direito das obrigações, UCP/FD/UCE, 2018, pág. 1043), tal como ele reconhece no documento em causa.
Isto afasta todas as questões levantadas pelo executado relativamente à relação fundamental em causa, designadamente as relativas à validade do contrato de mútuo, ao negócio unilateral, ao acordo de pagamento, às relacionadas com a entrega, ou a forma do contrato, ao ónus da alegação da causa de pedir, à ineptidão do requerimento inicial, à insuficiência do título executivo e ao ónus de prova do exequente dos factos correspondentes à causa de pedir.
Há assim, é certo, uma divergência com a qualificação feita na sentença recorrida, mas trata-se apenas de um diferente enquadramento jurídico dos factos alegados e provados e que conduz ao mesmo resultado de afastamento das objecções do executado.
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O acordo do pagamento da dívida, como decorre do seu nome, previa um plano de pagamentos: diz-se que a dívida seria paga de uma maneira e num certo período e caso não fosse paga dessa maneira seria paga de uma outra forma e até uma certa data.
Mas não se dizia que só com a verificação de um desses casos o devedor teria de pagar a dívida, pelo que não se verifica nenhuma condição suspensiva da obrigação de pagamento da divida (art. 270 do CC). Nem o executado defendia tal interpretação nos embargos. O que ele dizia é que como não tinha pago da 1.ª forma, tinha pago da 2.ª (o que, aliás, não tinha sentido: se ele recusava ter recebido os 20.000€ de que falava, não teria razão para ter pago fosse o que fosse).
Existia assim uma condição mas apenas das formas e dos momentos de pagamento da obrigação previstas e que nessa medida impedia o pagamento até um momento indeterminado entre 2006 e 2010, mas nada mais. A obrigação já existia. A 1.ª forma dependia do recebimento de retroactivos, mas isso só até, no máximo, 2010. Depois, a obrigação podia ser paga da 2.ª forma e não se diz que só dessa forma podia ser paga. Ou seja, dizia-se de onde é que o dinheiro viria, mas não se dizia que só podia vir daí (já agora repare-se, que na cláusula 3.ª previa-se que o pagamento com retroactivos seria complementado com prestações mensais de 500€ durante 3 anos, até 2008, o que representa o valor de 18.000€ que não vêm dos retroactivos nem se diz que vêm dos negócios).
A obrigação de pagamento não dependia, por isso, da obtenção de retroactivos. É certo que, dada a data em que a execução foi intentada, o exequente terá esperado até ao momento em que pensou que o executado tinha recebido retroactivos. Mas fê-lo por sua vontade e não estava obrigado a fazê-lo, pelo que não tinha que alegar o preenchimento de uma condição de que a obrigação não estava dependente, ao contrário do defendido pelo executado.
Não se concorda, pois, com a sentença que considera que a obtenção de retroactivos era uma condição da exequibilidade da obrigação de pagamento da dívida, entretanto verificada com a entrega de retroactivos em 2017 (o que na lógica da sentença evitou a necessidade da consideração da cláusula 5.ª, pelo que nenhuma nulidade da sentença ocorre por aqui). Segundo decorre do que se disse acima, pelo menos desde o fim de 2010 o exequente podia ter executado a dívida, mesmo tendo em consideração tal cláusula 5.ª
Isto afasta, também por aqui, as objecções do executado quanto à falta de verificação da condição para que o exequente a pudesse ter executado, ou da falta de alegação da condição nos precisos termos em que veio a ser aceite na sentença recorrida.
Por outro lado, previa-se que até ao fim de 2010 seria totalmente paga, não se dizendo que, se não estivesse totalmente paga até tal data, deixava de existir ou se extinguia. Ou seja, não se previa que, se ela não fosse paga da 1.ª ou 2.ª forma, seria ou ficaria extinta ou deixaria de existir (art. 270 do CC), pelo que também não existe nenhuma condição resolutiva.
Também desse acordo de pagamento resulta logicamente que o pagamento da dívida não ficou condicionado à possibilidade ou ao arbítrio do devedor (art. 778 do CC). As respectivas cláusulas são contrárias, por outro lado, a considerar que o momento do pagamento da dívida seria deixado ao critério do devedor (art. 777/3 do CC): previa-se apenas que a dívida seria paga da 1.ª ou 2.ª forma e nada se previa se assim não acontecesse.
Temos, pois, uma obrigação sem prazo, caso em que, segundo o art. 777/1 do CC, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, embora no caso não o pudesse fazer antes de um momento indeterminado até 2010. É o que o exequente está agora a fazer, servindo a citação para a execução como forma de interpelação (artigos 805/1 do CC e 610/2-b do CPC).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelo executado/embargante (que é quem fica vencido no recurso).

Lisboa, 23/06/2022
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas