Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26249/18.1T8LSB.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: PUBLICAÇÃO JORNALÍSTICA
CONTEÚDO OFENSIVO
DEVER DE AFERIÇÃO DA VERACIDADE DA INFORMAÇÃO
LIMITES DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
OFENSA DO DIREITO À HONRA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: – Quando o autor de um texto jornalístico omite o controlo sobre a veracidade dos conteúdos, omite o dever de se informar sobre o formato e procedimentos do concurso a que se refere, e atinge, sem qualquer interesse para um debate público sério, a dignidade de uma pessoa a quem debita a responsabilidade da atribuição fraudulenta de um prémio e de quem se reclama a culpa, excede os limites da liberdade de expressão e então esse direito deve ceder perante o direito à honra e à reputação do visado.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


A instaurou acção declarativa de condenação contra C e B. Peticiona que seja reconhecido que os Réus, com o artigo de imprensa de que o 2.º Réu assumiu a autoria e a responsabilidade partilhada com a 1ª Ré, ofenderam gravemente a honra, consideração, dignidade pessoal, e bom nome do Autor, sendo solidariamente condenados a pagar ao Autor a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alega, em suma, que é apresentador de televisão; em 26 de 2018 o jornal…publicou na rubrica … um título e texto da autoria do 2.º Réu que coloca em causa a posição profissional e pessoal do Autor, ao nível da sua honestidade e rigor; o teor da publicação da autoria ofende os direitos de personalidade do Autor, no confronto com a tutela da liberdade de imprensa; o Autor sentiu-se injustiçado, humilhado e ofendido atenta, nomeadamente, a ampla divulgação do artigo.

Os Réus contestaram. Alegam a ilegitimidade substantiva do 1.º Réu. O 2.º Réu limitou-se a dar a sua opinião, enquanto jornalista e crítico, na sequência da visualização do passatempo em questão e das notícias já publicadas. Não se verificam os requisitos da responsabilidade civil.

Teve lugar audiência prévia.

Foi proferido despacho Saneador e despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.

Após audiência de julgamento, foi proferida decisão que julgou a acção improcedente.

Inconformado, interpôs o autor competente recurso, cuja minuta conclui da seguinte forma:
1.–Na publicação em causa foi feito o estabelecimento da equiparação do comportamento do Autor, a situações que são designadas e reputadas como fraudulentas.
2.–E é desde logo nessa medida que o teor da publicação da autoria do 2.º R. ofende os direitos de personalidade do Autor, e precisamente no confronto com a tutela da liberdade de imprensa.
3.–Não podemos esquecer que, os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade, sem prejuízo de isso ocorrer em artigos de natureza puramente informativa, ou puramente opinativa.
4.–O autor da publicação deve recolher a informação com base em averiguações credíveis, de modo a que o dever de informar ou emitir a sua opinião com isenção e objectividade, não seja comprometido por afirmações levianas ou sensacionalistas.
5.–E tanto mais o 2º Réu que veio a este processo afirmar ter vasta experiência em televisão, imprensa e rádio. Referindo que é jornalista desde 1983, e além do mais é Professor Auxiliar na Faculdade e professor auxiliar convidado no I.
6.–A tutela civil do direito à honra, ao bom nome e reputação assegurada pelo nosso Código Civil, impõe um dever geral de respeito e de abstenção de ofensas, ou ameaças de ofensas à honra de cada pessoa.
7.–Na publicação aqui em causa não podemos deixar de concluir, que o A. é posicionado como tomando práticas reputadas como fraudulentas, sobretudo mediante comparação com aquilo que – segundo as palavras do jornalista aqui 2º R. – seria uma “fraude muito habitual na RTP durante décadas”.
8.–E quer fosse essa a sua opinião ou sugestão, o 2º R. também não explica nem demonstra na sua publicação quais os factos de onde partiu ou baseou para concluir do modo que o fez, e bem assim, dizer porque é que afirma que o hábito de se dar prémios dos passatempos a familiares e amigos passou também a ser utilizado na  Y à semelhança do que sucedia na Z, personificado na pessoa de A.
9.–Não é uma imputação genérica, mas concreta - e focada na pessoa de A, na justa medida em que se lhe imputa objectivamente, a responsabilidade de ter atribuído o prémio ao irmão do seu companheiro, à margem das regras e procedimentos do concurso.
10.–Chegando mesmo a afirmar que depois deste caso, não resta qualquer credibilidade a A e ao concurso da Y.
11.–Isto vai muito para além de uma simples opinião / informação.
12.–Porque não podemos deixar de interpretar como afirmação, aquilo que o 1º R. quis dizer que se tratou de uma pergunta aberta.
13.–Mas ainda que se tratasse da tal pergunta, qual o direito do 2º R. para associar o nome do Autor a uma prática que aquele reputa de fraudulenta, e que partiu unicamente da sua criação intelectual, ou até do eventual conhecimento que em tempos, poderia ter tido relativamente a outras emissoras televisivas e a outras pessoas (?).
14.–O A. é uma figura de relevante notabilidade no mundo televisivo, como apresentador de grande destaque no plano nacional, e que sempre teve como bandeira, o rigor, a disciplina, o elevado profissionalismo, e a dedicação que aplica em tudo aquilo que faz, norteado por um princípio de honestidade inabalável,
15.–Os RR. e o 2º R. em especial, não podiam deixar de considerar que a publicação em apreço acabaria por degradar o seu nome.
16.–Uma vez que encerram notórios juízos de desonestidade e desconfiança relativamente ao funcionamento do concurso de entrega de prémios em dinheiro, o que põe em causa o respeito público, e do leque de espectadores do A., a manutenção do bom nome, como componentes da honra do A., e que ficaram objectivamente comprometidos.

17.–Tudo conforme resultou da matéria dada como provada, e que aqui reproduzimos:
XX.-A situação provocou desgosto ao Autor.
XXI.-O Autor sentiu-se humilhado.
XXII.-O Autor teve que justificar perante alguns telespectadores que não houve qualquer fraude praticada.
XXIII.-Durante os dois meses seguintes à publicação, o Autor foi abordado na rua por diversos transeuntes, que se lhe dirigiram sobre a situação noticiada.
XXIV.-O Autor teve de abandonar os locais públicos onde estas situações ocorreram.
XXV.-O Autor ficou triste e angustiado.

18.–Os programas apresentados pelo A. contam com elevados níveis de audiência televisivos (Facto XIII dado como provado).
19.–O A. trabalha no mundo televisivo há mais de 25 anos (Facto XIV dado como provado).
20.–O A. é um dos mais conhecidos apresentadores portugueses da actualidade (Facto XV dado como provado).
21.–A situação provocou-lhe desgosto, sentiu-se humilhado e ainda teve que se justificar perante alguns telespectadores de que não houve qualquer fraude praticada. (cfr. acima se transcreveu dos factos dados como provados).
22.–O A. foi sujeito por transeuntes a comentários desprimorosos e que causaram vergonha ao A., o qual tentou responder no sentido de justificar a sua razão - o que foi em todo o caso impossível - tendo mesmo de abandonar os locais públicos onde estas situações ocorreram.
23.–Qualquer homem médio colocado na posição dos Réus podia e devia prever ou representar que, por via da publicação em causa, ofendiam ilicitamente o direito de personalidade do A. nas suas vertentes de crédito em geral e de bom-nome em especial.
24.–Assim como qualquer homem médio colocado na posição do Autor, também não pode deixar de considerar o artigo em causa, como ofensivo do seu bom nome e reputação, pois afinal, quem gostaria de ver o seu nome associado a práticas fraudulentas, e ainda ser sujeito à imputação de ter tido um comportamento dissimulado e fingido.
25.–E permitam-nos dizer ainda mais, que na sequência da associação que foi estabelecida pelo autor do artigo, aquele ainda sujeitou o A. a uma consideração sobre a sua credibilidade profissional.
26.–Não deixou por isso de ser totalmente surpreendente o desfecho deste processo para o A., que se sente injustiçado pela improcedência da acção, após ter sido sujeito àquilo que está bem à vista – e a coberto do manto da liberdade de expressão.
27.–Cabe não esquecer que o A. foi sujeito publicamente a um juízo de desonestidade e desconfiança relativamente ao funcionamento do concurso de entrega de prémios em dinheiro.
28.–E tudo isto divulgado através de um jornal diário cuja tiragem média é de … exemplares por cada número no ano de 2018 (ano a que se reporta a publicação do artigo)Facto XXVI dado como provado.
29.–Logo o próprio título do artigo, além de desprimoroso, induz os leitores no sentido de que o A. dava o que lhe apetecia, e segundo o seu livre arbítrio ao seu cunhado:
“Ó Cunhado, “Quantos Queres”?
30.–E o corpo do artigo instiga nos leitores uma evidente associação entre uma actuação ilícita e desonesta alegadamente praticada por outros, e noutros tempos, com a situação presente de A:
“Os passatempos da M sempre serviram para dar prémios a amigos.
Décadas atrás eram mais modestos que os dez mil euros ao cunhado de A.”
1.-A. atribui um prémio de 10 mil euros a um seu cunhado ou amigo, irmão do companheiro. Fingiu não o conhecer quando com ele falou pelo telefone. O nome do passatempo de “V…” não poderia ser mais adequado: “Qs”.
31.–E por fim, o 2º R. prossegue, e guarnece a primeira parte do seu artigo, com o seguinte:
2.-Dar os prémios dos passatempos a amigos e familiares foi uma fraude muito habitual na Z durante décadas. Pelos vistos, a coisa pegou e também se utiliza na Y. Depois deste caso, qual a credibilidade que sobra a A e aos passatempos da Y?”
32.–Conforme resulta, o 2º R. associa A. e a Y à fraude que segundo aquele – era praticada na Z, e que resultava em dar prémios a familiares e amigos.
33.–Este artigo é assumidamente lesivo da honra e do bom nome do A., em toda a sua linha.
34.–Portanto, e naquilo que concerne à culpa dos RR. convirá mencionar que não é indispensável para a punibilidade uma intencionalidade ofensiva, bastando a simples reprovabilidade da sua actuação.
35.–A intencionalidade ou dolo é inócua relativamente ao dever de indemnizar.
36.–No que toca à responsabilidade da 1ª R., sendo esta proprietária do jornal «X», conhecendo a publicação em causa como era seu especial dever – e considerando o facto XIX dado como provado - atenta a natureza ofensiva dos direitos de personalidade do A., tinha também o dever de ter impedido a sua divulgação - ao não fazê-lo apesar de terem previsto a produção do facto ilícito como efeito possível ou eventual dessa sua conduta, conformaram-se com ele, aceitando-o.
37.–Os RR. podiam e deviam prever ou representar que, por via da publicação em causa, ofendiam ilicitamente o direito de personalidade do A. nas suas vertentes de crédito em geral e de bom-nome em especial.
38.–Em consequência, os RR agiram, com culpa, isto é, de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico.
39.–Como consequência directa e necessária da conduta dos RR., o A. sentiu-se lesado na sua reputação, honra, dignidade e consideração social.
40.–Encontram-se, assim, verificados os pressupostos da responsabilidade civil e correspectiva obrigação de indemnizar pelos danos causados.
41.–O dano é a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo direito, patrimonial ou não patrimonial, consoante tenha ou não conteúdo económico, ou seja, conforme seja ou susceptível de avaliação pecuniária.
42.–Ao publicar o referido artigo, onde se diz que o A. praticou uma fraude de forma a beneficiar o irmão do seu companheiro, atribuindo-lhe o primeiro prémio do concurso, sendo que tal não correspondeu à verdade, o autor do texto em causa e a 1ª R. causaram lesão grave ao direito ao bom nome e à honra da pessoa visada.
43.–Estabelece, neste domínio, o art.º 496º, n.º 1 do C. Civil, que "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Acrescentando o n.º 3 que "o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494º".
44.–Sendo que este art.º 494º manda atender, na fixação da indemnização, ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
45.–Assim, o montante da reparação há-de ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
46.–Para a reparação do dano não patrimonial, haverá que considerar a natureza, a gravidade e o reflexo social da ofensa em função do grau de difusão do escrito, do sofrimento do ofendido e da sua situação social e profissional.
47.–No caso sub judice interessa ainda ponderar que a divulgação teve lugar através da publicação no jornal X, que tem uma tiragem significativa.
48.–Ou seja, num jornal com esta difusão afigura-se uma maior aptidão potenciadora do dano, seja pelo elevado número de pessoas que tiveram acesso à notícia, seja pela activação da engrenagem social que em consequência da notícia se produz (retransmitindo-a, ampliando-a, deformando-a), seja pelo grau de credibilidade que o acontecimento impresso tem no público.
49.–O jornal X é uma publicação que se vende em todo o território nacional, sendo a 1ª R. também proprietária de várias revistas designadas por “cor de rosa”, nas quais esta notícia também foi difundida e teve impacto.
50.–Ora, conjugando o descrito quadro factual com os elementos doutrinais e jurisprudenciais, tudo sopesando e valorando com o equilíbrio e ponderação do homem médio, comprovada que está a ilicitude e culpa reportadas aos artigos publicados e comportamentos dos RR; à gravidade dos danos; o nexo causal entre estes e o artigo publicado, deverá ser entendida como justa, criteriosa e adequada às circunstâncias do caso, uma indemnização, calculada nos termos do art.º 566º, n.º 2 do C. Civil, de 15.000,00 € (quinze mil euros) para compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor.
51.–Indemnização de que serão responsáveis os 1º e 2º RR., de forma solidária, nos termos do art.º 497º CC.
Termos em que, pelo que antecede e pelo muito que V. Exas. haverão doutamente de suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida, e ser reconhecido que os RR., com o artigo de imprensa de que o 2º R. assumiu a autoria e a responsabilidade partilhada com a 1ª R, ofenderam gravemente a honra, consideração, dignidade pessoal, e bom nome do A., sendo solidariamente condenados a pagar ao A. a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!».

Os réus apresentaram contra-alegações em que pugnam pela confirmação do julgado.
***

Confrontando o direito à reputação e à honra, por um lado, e o direito à liberdade de expressão, por outro, trata-se de operar um balanceamento entre eles e decidir qual deles deve prevalecer, explicando as razões e consequências dessa prevalência.
***

São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes em primeiro grau
I.–No âmbito da sua actividade profissional o Autor apresenta o programa…, com emissões diárias de 2ª…, destinado a todos os públicos e com um leque de conteúdos abrangente.
II.–Na edição do dia … do suplemento do jornal X foi publicada na rubrica … o seguinte título e texto da autoria do 2.º Réu:
(Título) “Ó Cunhado, “Quantos Queres”?
Os passatempos da … sempre serviram para dar prémios a amigos.
Décadas atrás eram mais modestos que os dez mil euros ao cunhado de A
(Texto)1.-A atribui um prémio de …mil euros a um seu cunhado ou amigo, irmão do companheiro. Fingiu não o conhecer quando com ele falou pelo telefone. O nome do passatempo de … não poderia ser mais adequado: “QQ”.
2.-Dar os prémios dos passatempos a amigos e familiares foi uma fraude muito habitual na Z durante décadas. Pelos vistos, a coisa pegou e também se utiliza na Y. Depois deste caso, qual a credibilidade que sobra a A e aos passatempos da Y?”
III.–Enquadrando a publicação em apreço, estão seis fotografias/imagens, das quais uma do Autor e outra do programa da Y.
IV.–No dia …, o prémio do concurso denominado “Q” foi atribuído a F, irmão do companheiro….
V.–Do sorteio do concurso em … foi lavrada a Acta que consta a fls. 36 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido.
VI.–A comunicação aos vencedores do concurso é feita em directo do programa pelo apresentador, sendo que no dia … foi o Autor a proceder a esse contacto.
VII.–O concurso denominado “Q” estava sujeito às regras constantes do Regulamento de fls. 277 a 285, cujo teor se dá por reproduzido.
VIII.–A 1.ª Ré é proprietária do jornal X.
IX.–A Y exerceu direito de resposta, que foi publicado na edição online do jornal X no dia … e na edição da revista “S” do dia…, conforme fls. 106 e 107 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
X.–O Autor é apresentador de televisão e em … prestava em exclusividade serviços para a Y.
XI.–No ano de … o Autor apresentou também o programa “St, emitido todos os …, em horário nobre …, entre outras aparições em programas pontuais.
XII.–O Autor tinha ainda a responsabilidade, por obrigação contratual, de participar em spots televisivos ou radiofónicos, cartazes, outdoors, mupis, ou qualquer outra forma de campanha que a Y pretendesse utilizar com a finalidade de promoção dos referidos programas.
XIII.–Os programas apresentados pelo Autor contam com elevados níveis de audiência televisivos.
XIV.–O Autor trabalha no meio televisivo há mais de 25 anos.
XV.–O Autor é um dos mais conhecidos apresentadores portugueses da actualidade.
XVI.–No programa de … o Autor não se apercebeu que o vencedor era irmão do companheiro.
XVII.–O Autor não mantém relacionamentos pessoais com os irmãos do companheiro.
XVIII.–O Autor não foi contactado pelos Réus para efeitos de prestar esclarecimentos sobre quaisquer dúvidas sobre o formato e procedimentos do concurso em causa.
XIX.–A 1.ª Ré conhecia a publicação com o título: “ÓQ”?
XX.–A situação provocou desgosto ao Autor.
XXI.–O Autor sentiu-se humilhado.
XXII.–O Autor teve que justificar perante alguns telespectadores que não houve qualquer fraude praticada.
XXIII.–Durante os dois meses seguintes à publicação, o Autor foi abordado na rua por diversos transeuntes, que se lhe dirigiram sobre a situação noticiada.
XXIV.–O Autor teve de abandonar os locais públicos onde estas situações ocorreram.
XXV.–O Autor ficou triste e angustiado.
XXVI.–O jornal teve uma tiragem média de … exemplares por cada número em … e uma tiragem média de …exemplares por cada número em … (Informação da 1.ª Ré, mediante requerimento de 09/05/2022, a fls. 311).
XXVII.–Na sequência do programa de …, foram vários os órgãos de comunicação social que divulgaram a situação coincidente de o jackpot ter sido atribuído a um dos irmãos do companheiro do Autor.
XXVIII.–O texto foi escrito pelo 2.º Réu em ….
XXIX.–O 2.º Réu baseou-se em informação e notícias já publicadas sobre o tema.

2.–Factos Não Provados
Não foram alegados nem resultaram provados quaisquer outros factos, com relevância para a presente decisão, que extravasem, sejam diversos ou incompatíveis com os que foram dados como provados, não cabendo elencar alegações de direito, opinativas ou manifestamente conclusivas.

Não resultou, nomeadamente, provado:
1–A publicação do dia … do jornal X com o título: “ÓQQ”? coloca em causa a posição profissional e pessoal do Autor, quanto à sua honestidade e rigor (Provado apenas o que consta do Facto Provado II, ou seja, o teor do artigo, o mais consiste numa apreciação e interpretação do próprio texto, não cabendo levar aos Factos Provados considerações subjectivas e/ou de teor conclusivo).
2–O 2.º Réu e o director do Jornal X sabiam que a publicação ia ter consequências negativas na reputação do Autor (não foi produzida prova nesse sentido, não cabendo levar aos Factos Provados considerações subjectivas e/ou de teor conclusivo).
3–Não se aferiu da percentagem de mercado correspondente à tiragem média do jornal, provando-se apenas o que consta do Facto Provado XXVI.
4–No texto publicado em … o 2.º Réu sugere que o sorteio do prémio teria sido adulterado com a intervenção e conhecimento do Autor (Provado apenas o que consta do Facto Provado II, ou seja, o teor do artigo).

O Réu B foi ouvido em Declarações de parte. Apresentou a sua versão dos factos, que se afigurou credível e verosímil. As suas declarações foram claras e consistentes. Explicou o formato da rubrica, os prazos que são observados e a rotina que adopta. Na segunda-feira de manhã procede a pesquisas para ver se existe algum assunto que interesse para a rubrica, no caso em apreço encontrou uma ou duas publicações sobre o assunto, visualizou o programa e concluiu que correspondia ao que tinha lido. Os textos que escreve são de opinião e baseou-se no que leu e viu. Na sua opinião o Autor é um excelente apresentador e nada tem contra ele. Quando foi publicado o direito de resposta da Y pensou que o assunto estava esclarecido e encerrado, também quanto ao Autor.
***

Do direito

No caso sujeito conflituam vários direitos, o que torna a resolução da situação mais difícil do que o habitual.

Por um lado, está em causa o direito ao bom nome e à reputação; por outro, a liberdade de expressão.

No plano supranacional, o artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 proclama que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou sua correspondência, nem ataque à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à protecção da lei.

Por sua vez, o artigo 19.º declara que todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pela sua opinião e de procurar, receber e defender, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.

No Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 também existem dois artigos que contemplam o direito à reputação e à liberdade de expressão.

O artigo 17.º afirma que ninguém será objecto de ingerências arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de ataques ilegais à sua honra e reputação.

Sobre a liberdade de expressão rege o artigo 19.º: Ninguém poderá ser discriminado por causa da sua opinião.

Toda a pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurara, receber e divulgar informações e ideias de toda a índole sem consideração de fronteiras, seja oralmente, seja por escrito, de forma impressa ou artística ou por qualquer outro processo que escolher.

O exercício do direito previsto no parágrafo 2 deste artigo implica deveres e responsabilidades especiais. Por conseguinte, pode estar sujeito a certas restrições, expressamente previstas na lei e que sejam necessárias para:
a)-Assegurar o respeito pelos direitos e a reputação de outrem;
b)-A protecção da segurança nacional, a ordem jurídica ou a saúde ou a moral públicas.

Mas é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem que, pela sua importância e especial posição no sistema das fontes de direito, nos deve merecer maior atenção.
Esta Convenção visa tutelar alguns dos direitos humanos enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, estando funcionalizada para defender o indivíduo de ingerências arbitrárias dos poderes públicos.

O direito à reputação pessoal é titulado pelo artigo 8.º: 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

Seguindo de perto o comentário a este preceito de Donatella Perna (La Convenzione Europea dei Diritto dell´Uomo, Zanichelli Editore, Torino, 2022:660 ss.; também Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Anotada, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1999:180 ss.) diremos que o artigo 8.º da Conv. EDH impõe aos Estados um dever de abstenção, mas também obrigações positivas destinadas a tornar efectivo o respeito pela vida privada e familiar e que possam comportar a adopção de medidas destinadas a interferir nas próprias relações interpessoais.

Diz a autora citada que «o campo de operatividade do artigo 8.º compreende quatro grandes áreas temáticas:
- o direito ao respeito da vida privada.
- o direito ao respeito da vida familiar.
- o direito ao respeito do domicílio.
- o direito ao respeito da correspondência» (661).
«A noção convencional de «vida privada» é ampla e insusceptível de uma definição exaustiva, e pode compreender muitos aspectos da identidade física, social e profissional de um indivíduo» (idem; «é difícil definir vida privada», Barreto:181).
O direito ao respeito da vida privada apresenta-se como um direito com dimensão expansiva, como um genus ao qual podem ser reconduzidas as várias factispécies, nem todas tipicizadas, nas quais a vida privada pode assumir relevo.

Considerando as várias facetas que pode apresentar a noção de vida privada, as questões a ela reconduzíveis podem ser agrupadas em três grandes categorias:
- a integridade física, psicológica e moral da pessoa;
- a discrição ou reserva;
- a identidade e autonomia da pessoa humana.
A reserva compreende múltiplos aspectos ligados à identidade da pessoa, v.g. o nome, a imagem, a reputação, as informações e em geral dados pessoais que qualquer um pode legitimamente pretender que não sejam publicados sem o seu consentimento.
Seguindo a definição de Perna, o direito à reputação pessoal consiste «na imagem social ou profissional que tem um indivíduo na sociedade onde vive e trabalha».
O TEDH (Grande Câmara), no acórdão de 07/02/2012, caso Axel Springer AG. c Alemanha, lembra (§83) que a protecção da reputação é um direito que releva, como elemento da vida privada, do citado artigo 8.º, e que a noção de «vida privada» é uma noção ampla, não susceptível de uma definição exaustiva, que compreende a integridade física e moral da pessoa e pode pois englobar múltiplos aspectos da identidade de um indivíduo, tais como a identificação e a orientação sexual, o nome, ou elementos relacionados com o direito à imagem.

No outro prato da balança está, como dissemos. a liberdade de expressão, tutelada pelo artigo 10.º da Conv. EDH:
«1.- Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2.- O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial».
A liberdade de expressão abrange a liberdade de opinião e a liberdade de informação, de receber e comunicar informações ou ideias e de procurar essas informações.
O TEDH tem conferido a esta liberdade uma dimensão que ultrapassa os limites conceptuais e operativos das garantias individuais para as colocar como garantes do sistema, instrumental da tutela de também outros direitos reconhecidos na Convenção. Noutras palavras, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática.
A garantia da liberdade de expressão protege não apenas, bem entendido, as opiniões e ideias favoráveis ao sistema democrático, mas também as ideias inofensivas e indiferentes, e até as contrárias a esse sistema, dentro dos limites do §2 do citado artigo 10.º e à excepção dos discursos de ódio, negacionistas e racistas.
O TEDH, no caso Otto-Preminger Institut c. Áustria, no acórdão seminal de 20/09/1994, lembrou isso mesmo, ou seja, que , se é verdade, que sem liberdade de expressão não existe democracia, todavia, como o confirma o § 2 do artigo 10.º já citado, quem exercer os direitos e liberdades consagrados no primeiro parágrafo assume deveres e responsabilidades.
De entre eles, pode legitimamente compreender-se uma obrigação de evitar na medida do possível o uso de expressões que sejam gratuitamente ofensivas e constituam uma violação daqueles direitos e que, além do mais, não contribuem para nenhuma forma de debate público capaz de favorecer o progresso nos negócios do género humano (favoriser le progrès dans les affaires du genre humain).
Vejamos agora o direito interno.
A Constituição da República Portuguesa, logo no artigo 1.º, erige a dignidade da pessoa humana, não como um de entre vários outros princípios constitucionais, mas como base em que assenta a República, como princípio dos princípios. Quer dizer que a Constituição coloca no vértice do sistema a pessoa, tida na sua individualidade e complexidade, na variedade das suas manifestações, das suas necessidades e interesses.
O núcleo central da pessoa em que se funda o reconhecimento da tutela jurídica é a dignidade, na qual se podem detetar três componentes: a integridade, limite da substância física e metafísica da pessoa; o domínio de si e a identidade, consciência do próprio ser pessoa e de indivíduo entre os indivíduos (Annarita Ricci, La reputazione: dal concetto alle declinazioni, G. Giappichelli Editore, Torino, 2018:38).
É esta mesma dignidade que está na base da tutela dos direitos de personalidade, do direito à reputação e ao bom nome.
Sobre a dignidade versam também os artigos 25.º e 26.º da CRP, o primeiro tutelando aquela primeira componente (integridade física e moral da pessoa) e o segundo reconhecendo outros direitos pessoais, designadamente o direito ao bom nome e reputação.
Explicam Rui Medeiros e António Cortês que «o princípio consignado no artigo 26.º constitui uma «pedra angular» na demarcação dos limites ao exercício de outros direitos fundamentais, designadamente a liberdade de expressão e informação e a liberdade de imprensa e os meios de comunicação social.
Estas liberdades não poderão ser interpretadas sem ter sempre em consideração os direitos de personalidade consagrados neste artigo e, em especial, a tutela do bom nome e reputação» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005:283).
Sobre a liberdade de expressão, informação, de imprensa e meios de comunicação social regem os artigos 37.º e 38.º. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento, sem impedimentos nem discriminações, não podendo o exercício dos direitos de liberdade de expressão e informação ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
A tutela jurídico-civil contra violações do direito à integridade moral de um indivíduo, consubstanciadas em quaisquer formas de denegrir a imagem ou o bom nome de uma pessoa, resulta sobretudo da consagração dos direitos de personalidade previstos nos artigos 70.º e seguintes do CC.
Além disso, cumpre tomar em consideração o processo especial de tutela da personalidade (artigos 878.º segs. CPC) e os artigos 483º e 484º C. Civil.
O artigo 70.º não refere a honra nem a reputação, mas parece não haver dúvida que estes termos se referem a direitos de personalidade e que não são sinónimos.
Reputação é termo que provém do latim putare, ou seja pensar ou reter; o prefixo re indica repetição.
Numa interpretação etimológica poderia pensar-se que a reputação é a opinião repetida sobre alguém, expressa por várias pessoas e que se encontra consolidada (A. Ricci, op. cit:45).
Talvez possamos preferir uma outra noção menos simplificada e que permite distinguir a noção de uma outra que lhe está próxima, precisamente a de honra.
De acordo com a opinião perfilhada por A. Ricci «a honra encerra em si duas componentes: uma componente subjectiva, identificada no sentimento que qualquer indivíduo tem da sua própria dignidade e uma componente objectiva, identificável na opinião que os outros têm sobre cada um dos outros indivíduos, uma espécie de «património» moral derivado da consideração dos outros. É reconhecida nesta componente objectiva a essência conceitual da reputação que requer necessariamente a opinião dos outros e consequentemente, a colocação do indivíduo num ambiente social» (Ibidem:46).
Esclarecendo melhor a distinção, A. Ricci acrescenta: «A reputação, ao contrário da honra que representa um valor inato próprio de qualquer indivíduo, é um património socialmente adquirido derivado da consideração dos outros. Sob o perfil ontológico a reputação é, portanto, uma ideia  relacional que pressupõe a colocação do sujeito no centro de um complexo de relações interpessoais, assumindo relevo enquanto estima moral, profissional, intelectual de um indivíduo num determinado momento histórico. Eficaz a afirmação segundo a qual a reputação configura um «interesse da vida em relação», considerando que a pessoa deseja (e pretende) ser protegida na sua «esfera de respeitabilidade, este último um traço que lhe pode permitir uma relação profícua, ou pelo menos não hostil, com a colectividade» (Ibidem:47).
Dissemos logo no início que no caso sujeito conflituam dois direitos: o direito à reputação e à honra e a liberdade de expressão.
Como balancear estes direitos? A qual deles se deve dar prevalência?
Diga-se desde já que não concordamos com uma abordagem defensiva e tímida da tutela da honra e da reputação, como se a dignidade da pessoa fosse coisa do passado, de cavaleiros andantes e personagens dos romances de Walter Scott, ou como se a liberdade permitisse dizer tudo o que nos vem à cabeça, de qualquer maneira, em qualquer lugar e a toda a pessoa. O que não quer dizer, sublinhe-se, que não se reconheça o papel nuclear e insubstituível da liberdade de expressão numa sociedade democrática e pluralista.
De qualquer modo, é bom ver que, na nossa literatura civilística, Menezes Cordeiro sublinha, como pano de fundo humanista deste balanceamento, que «à partida, temos de ter presente que o direito à honra é um direito de personalidade. Marca um círculo em que o interesse da pessoa beneficiária prevalece sobre quaisquer pretensos valores superiores: e outro modo nem a figura dos direitos de personalidade faria sentido» (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte geral, Tomo III, Pessoas, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007:186).
Porém, como também alerta este autor, importa prevenir a adopção de soluções apriorísticas.
Mesmo com esta prevenção, o intérprete não pode prescindir de algumas pautas valorativas e de critérios sólidos de referência.
Parece-nos por isso que Menezes Cordeiro tem inteira razão quando afirma que «quando se refere a liberdade de informação, há que reportá-la a algo de socialmente útil ou relevante. Deste modo, faremos a distinção entre a liberdade de informação e a livre iniciativa económica: um órgão de informação que divulgue determinado facto ou desenvolva uma campanha pretende informar o seu público ou aumentar tiragens ou audiências? Esta última finalidade pode ser prosseguida com notícias socialmente insignificantes, mas que, pela forma por que sejam dadas ou pelo ambiente superficial que se venha criando, granjeiem o interesse do público. A livre iniciativa económica, mesmo aplicada no campo da comunicação social é digna e merece protecção; todavia, é evidente que ela nunca poderá prevalecer sobre o direito à honra, seja de quem for. Já a liberdade de informação poderá ir mais longe , mas sempre com limites» (Ibidem:186/187).
No balanceamento entre o direito à reputação e a liberdade de expressão, a jurisprudência do TEDH tem-se inclinado tantas vezes para o lado desta.
A primeira vez que o TEDH fez prevalecer a tutela da honra e da reputação sobre a tutela do direito de liberdade de expressão foi no leading case Von Hannover c. Alemanha, no acórdão de 07.02.2012, fazendo apelo ao critério guia de contribuição para um debate de interesse geral.
Estavam em causa nesse acórdão, que condenou o Estado Alemão, as ofensas jornalísticas e fotográficas de que foram alvo Carolina do Mónaco e os seus filhos.
Mais em detalhe podem colher-se nesse acórdão, os seguintes critérios (§§ 108-113):
i)- contribuição para um debate de interesse geral: «a definição do que faz objecto do interesse geral depende das circunstâncias do caso. O Tribunal estima contudo útil lembrar que reconheceu a existência desse interesse não apenas quando a publicação versava sobre questões políticas ou sobre crimes cometidos, mas igualmente quando relatava questões relativas ao desporto ou aos actores; em contrapartida, eventuais problemas conjugais –de um presidente da República ou dificuldades financeiras de um cantor célebre não foram considerados relevantes para um debate de interesse geral».
ii)-a notoriedade da pessoa visada e objecto da notícia: «há lugar a distinguir entre pessoas privadas e pessoas agindo num contexto público, na qualidade de personalidades políticas e pessoas públicas. Assim, ao passo que uma pessoa privada desconhecida do público pode pretender uma protecção particular do seu direito à vida privada, as pessoas públicas não podem esperar o mesmo. Não se pode assimilar uma reportagem relatando factos susceptíveis de contribuir para um debate numa sociedade democrática a respeito de personalidades politicas no exercício das suas funções, por exemplo, a uma reportagem sobre detalhes da vida privada de uma pessoa que não desempenha essas funções. Se, no primeiro caso, o papel da imprensa corresponde à sua função de «cão de guarda» encarregado, numa democracia, de comunicar ideias e informações sobre questões de interesse público, esse papel parece menos importante no segundo caso. De igual modo, se em circunstâncias particulares, o direito do público a ser informado pode mesmo incidir sobre aspectos da vida privada das pessoas públicas, nomeadamente se se tratar de personalidades políticas, tal não é o caso, mesmo se as pessoas visadas gozam de certa notoriedade, quando as fotos publicadas e os comentários que as acompanham versam exclusivamente sobre detalhes da sua vida privada e têm como único fim satisfazer a curiosidade do público a esse respeito. Neste último caso, a liberdade de expressão deve ter interpretação menos larga»
iii)-o comportamento anterior da pessoa visada: «O comportamento da pessoa visada antes da publicação da reportagem ou o facto de a foto litigiosa e das informações a ela relativas terem sido já objecto de uma publicação constituem igualmente elementos a tomar em conta. Todavia, o facto de o visado ter cooperado com a imprensa anteriormente não é de molde a privar o interessado de protecção contra a publicação da foto litigiosa».
iv)-o conteúdo, a forma e as consequências da publicação: «a maneira como a foto ou a reportagem são publicados e a maneira como a pessoa visada é representada podem entrar igualmente em linha de conta. De igual modo, a amplitude da difusão da reportagem e da foto pode, ela também, revestir importância, consoante se trate de um jornal de tiragem nacional ou local, importante ou não».
v)-as circunstâncias em que foi feita a fotografia: «é importante examinar a questão de saber se a pessoa visada deu o seu consentimento para a feitura das fotos e para a sua publicação ou se estas foram feitas sem o seu consentimento ou com a ajuda de meios fraudulentos. Convém igualmente levar em conta a natureza e a gravidade da intrusão e das repercussões da publicação das fotos para a pessoa visada. Com efeito, para uma pessoa privada desconhecida do público, a publicação de uma foto pode analisar-se como uma ingerência mais substancial do que uma reportagem escrita».

Na opinio iuris nacional, Menezes Cordeiro sustenta que, na determinação das fronteiras entre o direito à honra e a liberdade de expressão, há que trabalhar com dois critérios:
o da absoluta veracidade e o do interesse político-social.
Diz este autor: «Nenhuma liberdade de comunicação justifica notícias inverídicas, em qualquer uma das concretizações que a ampla noção acima desenvolvida pode comportar. Pelo contrário: a liberdade de informar e de comunicar exige uma verdade pura, sem equívocos ou sem sombras.
Mas além disso, a asserção questionada tem de corresponder a um interesse político-social. As dívidas de um político para com uma empresa candidata a um concurso, que ele vai decidir, são facto relevante, que pode ser relatado; as suas dívidas domésticas, mesmo quando não estejam a coberto do segredo bancário, não relevam: a serem reveladas, poderão apoucá-lo, sem vantagem para ninguém. Há atentado à honra» (op. cit:187).
Chegou agora o momento de focalizarmos o caso sujeito.
Em …, o autor prestava em exclusividade serviços para a Y.
Além de apresentar programas, designadamente o programa «VV» e também o programa “St, o autor tinha ainda a responsabilidade, por obrigação contratual, de participar em spots televisivos ou radiofónicos, cartazes, outdoors, mupis, ou qualquer outra forma de campanha que a Y pretendesse utilizar com a finalidade de promoção dos referidos programas.
No âmbito dessa actividade profissional o autor apresentou o programa V, com emissões diárias…, destinado a todos os públicos e com um leque de conteúdos abrangente.
O concurso denominado “QQ” estava sujeito às regras constantes do Regulamento de fls. 277 a 285.
No dia …, o prémio do concurso denominado “QQ foi atribuído a F, irmão do companheiro do Autor.
A comunicação aos vencedores do concurso é feita em directo do programa pelo apresentador, sendo que no dia … foi o Autor a proceder a esse contacto.
No programa de …, o autor não se apercebeu que o vencedor era irmão do companheiro, com o qual não mantém relacionamento pessoal.
Do sorteio do concurso em … foi lavrada a Acta que consta a fls. 36.
Na sequência do programa de …, foram vários os órgãos de comunicação social que divulgaram a situação coincidente de o jackpot ter sido atribuído a um dos irmãos do companheiro do Autor.
Em …, baseado em informações e notícias já publicadas sobre o tema, o 2.º Réu escreveu o texto que foi publicado no X de …, sem ter contactado o autor para efeitos de prestar esclarecimentos sobre quaisquer dúvidas sobre o formato e procedimentos do concurso em causa.
E efectivamente, na edição do dia … do suplemento do jornal X foi publicado na rubrica “I” o seguinte título e texto da autoria do 2.º Réu:
Título
Ó cunhado,
“Quantos Queres”?
OS PASSATEMPOS DA TV SEMPRE SERVIRAM PARA DAR PRÈMIOS A AMIGOS. DÉCADAS ATRÁS ERAM MAIS MODESTOS QUE OS DEZ MIL EUROS AO CUNHADO DO AUTOR.
Texto
1.-A atribuiu um prémio de 10 mil euros a um seu cunhado ou amigo, irmão do companheiro. Fingiu não o conhecer quando com ele falou pelo telefone. O nome do passatempo de … não poderia ser mais adequado: “QQ”.
2.-Dar os prémios dos passatempos a amigos e familiares foi uma fraude muito habitual na Z durante décadas. Pelos vistos, a coisa pegou e também se utiliza na Y. Depois deste caso, qual a credibilidade que sobra a A e aos passatempos da Y?
O texto remete para duas fotografias/imagens sobrepostas, num conjunto de seis, uma das quais (com número 2) de meio corpo do autor, com óculos, fato e gravata, e a outra com o número 1, com a mira do programa «QQ» da Y.
A pergunta que se coloca consiste então em saber se o conteúdo deste texto e imagens conexas violam ou não o os direitos à honra e reputação do autor e, em caso afirmativo, se estes direitos devem prevalecer sobre a liberdade de expressão e de informação dos réus.
A primeira conclusão que devemos tirar do exame deste escrito é que não vislumbramos em que medida ele  contribui para um debate público sério.
O que se verifica sim é a imputação ao autor de nepotismo, de conduta fraudulenta e eticamente reprovável, de atribuição indevida de um prémio de um concurso a um seu cunhado, a pedido deste (Ó cunhado, quanto queres?), fingindo que não o conhecia, e ainda associando este comportamento do apresentador a uma idêntica prática anterior «muito habitual na Z durante décadas» e que o autor teria reproduzido na Y.
Inclusivamente, o texto termina com uma pergunta retórica que não disfarça a verdadeira mensagem: o autor perdeu a credibilidade, assim como a própria estação.
Não tendo verificado, sem qualquer razão aparente, a exactidão da informação que veiculou e sem ter contactado o autor para efeitos de prestar esclarecimentos sobre quaisquer dúvidas sobre o formato e procedimentos do concurso em causa, antes se tendo limitado a fazer uma ronda jornalística, de cujo objecto apenas se sabe que foi a divulgação «de situação coincidente de o jackpot ter sido atribuído a um dos irmãos do companheiro do Autor», o 2.º réu divulgou notícia falsa e supérflua, a qual, porque atingia pessoa pública, só se pode compreender com uma finalidade sensacionalista e objectivamente capaz de suscitar um certo furor junto dos leitores.
O Autor trabalha no meio televisivo há mais de 25 anos e é um dos mais conhecidos apresentadores televisivos portugueses da actualidade, até porque os programas apresentados por ele contam com elevados níveis de audiência.
Quer isto dizer que o autor é uma pessoa pública.
Ora, mesmo figuras par excellence da sociedade hodierna têm direito ao respeito da reputação e da honra. Na verdade encontra-se há muito ultrapassada a ideia de que a tutela da honra dessas pessoas para na respectiva soleira da porta.
Já vimos que o autor não foi contactado e não deu autorização para a publicação do texto e da foto.
Não há qualquer comportamento anterior do autor que isente ou atenue a responsabilidade dos réus.
Acresce que o jornal X teve uma tiragem média de …exemplares por cada número em 2017 e uma tiragem média de …exemplares por cada número em 2018, o que o coloca entre os mais lidos em todo o país.
Pode, pois, concluir-se que o comportamento dos réus, o primeiro porque responsável da edição e publicação do texto e o segundo porque autor do mesmo, infringe os direitos à honra e reputação do autor.
Afirmou-se que a democracia se baseia também na liberdade de expressão, de opinião e de informação, e que não apenas as opiniões favoráveis, educadas, inócuas, merecem protecção.
Porém, a liberdade, tem limites e aí está o artigo 10.º da Conv. DH a reconhecê-lo ao falar de deveres e responsabilidades que deve haver no seu exercício.
Também a Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro) garante a liberdade de imprensa nos artigos 1.º e 2.º, referindo-se aos limites no artigo 3.º, que dispõe: «A liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática».
Destes preceitos e do Estatuto dos Jornalistas (cfr. artigo 14.º) deriva o dever dos jornalistas de agirem de boa fé e de fornecerem informações precisas sobre questões de interesse público, que não coincidem com a mera curiosidade do público, na base de factos comprovados com recurso a fontes credíveis no respeito pela deontologia profissional.
Não parece que se possa concluir que, neste caso, o 2.º réu tenha respeitado estes deveres: omitiu o controlo sobre a veracidade dos conteúdos, omitiu o dever de se informar sobre o formato e procedimentos do concurso em causa e, ao publicar o texto atingiu a dignidade da pessoa a quem debitou a responsabilidade de uma atribuição fraudulenta de um prémio e de quem se reclama a culpa.
No caso sujeito, a liberdade de expressão deve ceder perante o direito à honra e à reputação. Há responsabilidade ex artigo 484.º CPC.
Quanto ao cálculo do montante indemnizatório, o artigo 496.º, 3 CC, na sua 1.ª parte, manda fixar equitativamente tal montante, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494.º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Há ainda que ter em conta que a indemnização por danos não patrimoniais tem uma «natureza acentuadamente mista: por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente» (A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Coimbra, 1987:562 e segs.).

Ora atendendo a que:
i)- O Autor trabalha no meio televisivo há mais de 25 anos;
ii)-É um dos mais conhecidos apresentadores televisivos portugueses da actualidade;
iii)-Os programas apresentados pelo autor contam com elevados níveis de audiência;
iv)-A situação provocou desgosto ao Autor.
v)-O Autor sentiu-se humilhado.
vi)-O Autor teve que justificar perante alguns telespectadores que não houve qualquer fraude praticada.
vii)-Durante os dois meses seguintes à publicação, o Autor foi abordado na rua por diversos transeuntes, que se lhe dirigiram sobre a situação noticiada.
viii)-O Autor teve de abandonar os locais públicos onde estas situações ocorreram.
ix)-O Autor ficou triste e angustiado.
x)-O jornal teve uma tiragem média de … exemplares por cada número em 2017 e uma tiragem média de … exemplares por cada número em 2018, que consubstanciam, ao contrário do que pretendem os recorridos, danos indemnizáveis, e não deixando de levar também em conta os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, parece-nos adequado atribuir ao autor a quantia não actualizada (AcUJ n.4/02) de €10.000.00 (dez mil euros), a título de indemnização pelos  danos não patrimoniais sofridos pelo autor.

A 1.ª ré, a qual é proprietária do jornal X, e conhecia a publicação com o título: “ÓQ?”, acima referida, responde em solidariedade com o 2. Réu (artigo 497.º CC).
***

Pelo exposto, acordamos em julgar procedente o recurso e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida que se substitui por outra que condena os réus a pagarem ao autor, solidariamente, a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Custas por autor e réus na proporção de 1/3 e 2/3 respectivamente.
***


Lisboa,11.05.2023



Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
(y)Maria do Céu Silva



(y)Voto de vencido
“… o TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral” (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ proferidos a 31 de janeiro de 2017, no processo 1454/09.5TVLSB.L1.S1; e a 10 de dezembro de 2019, no processo 16687/16.0T8PRT.L1.S1).
O texto escrito pelo R. B é um artigo de opinião. O A. é uma figura pública. “A situação coincidente de o jackpot ter sido atribuído a um dos irmãos do companheiro do Autor” é matéria de interesse público.
Assim, julgaria improcedente o recurso.
                                                        Maria do Céu Silva