Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA CRISTINA FIGUEIRA MATOS | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA INTERPRETAÇÃO REENVIO PREJUDICIAL | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | I.A interpretação do Direito da União é da competência do Tribunal de Justiça da União Europeia, cujas orientações interpretativas são vinculativas para os tribunais nacionais. II. Visa-se com o reenvio prejudicial garantir a uniformidade da interpretação e aplicação das normas comunitárias. III. Assim sendo, a interpretação feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, no âmbito de um processo de reenvio prejudicial, sobre determinada norma comunitária é uma interpretação genérica e abstrata sobre o sentido da norma e não uma interpretação puramente casuística. IV. É uma interpretação que é independente da concreta identificação das partes envolvidas no processo de reenvio prejudicial, visando antes estabelecer um padrão de interpretação da norma a ser seguido tanto naquele caso como em casos futuros. V. Nos termos do art. 37 nº1 da LOSJ na ordem jurídica interna a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território. VI. A competência material é, pois, um tipo de repartição da competência interna, ou seja, repartição da competência entre os tribunais portugueses. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa: Relatório: Associação Ius Omnibus, uma associação com personalidade jurídica de Direito Português, pessoa coletiva nº 515807753, com sede na Second Home Lisboa, Mercado da Ribeira, Av. 24 de Julho, 1200-479 Lisboa, Portugal Vem intentar contra B Portugal, S.A., sociedade anónima portuguesa, com sede principal e efetiva na Rua Gottlieb Wilhelm Daimler, nº 20, 2710-037 Sintra, Portugal, com o capital social de €7.500.000,00, inscrita no Registo Comercial Português sob o NIPC 500049424; AG, sociedade comercial por ações, com sede principal e efetiva em Mercedesstrasse 120, 703872 Estugarda, Alemanha (Estado de Baden-Württemberg) com o capital social de €1.000.018.000,00 e sem representação permanente inscrita no Registo Comercial em Portugal, inscrita no Registo Comercial Alemão junto do Tribunal de Estugarda sob o número HRB 762873 e com o número de IVA europeu DE321281763; Daimler AG, sociedade comercial por ações, com sede principal e efetiva em Mercedesstrasse 120, 703872 Estugarda, Alemanha (Estado de Baden-Württemberg), com o capital social de €3.069.671.971,76 e sem representação permanente inscrita no Registo Comercial em Portugal, inscrita no Registo Comercial Alemão junto do Tribunal de Estugarda sob o número HRB 19360 e com o número de IVA europeu DE812526315; Ação popular declarativa de condenação com processo comum, na qual formulam o seguinte petitório: “Nestes termos, e nos mais de Direito doutamente supridos por V. Exa., deve a presente ação popular ser julgada procedente, por provada, e em consequência, cumulativamente (salvo quando diversamente indicado): Ser declarado que as Rés instalaram e mantiveram nos Veículos Afetados Dispositivos Manipuladores Ilegais que implicam um aumento das emissões de NOx para além dos limites legais, sendo as Rés condenadas a reconhecê-lo; Ser declarado quais são os Veículos Afetados, com indicação dos tipos de motores afetados, modelos abrangidos e respetivos anos, com indicação da identificação de homologação respetiva e da norma de emissões respetiva. Ser declarado que esta prática das Rés causou e causa danos aos interesses difusos de proteção da saúde pública, do ambiente e do consumo de bens e serviços, sendo as Rés condenadas a reconhecê-lo; Condenar solidariamente as Rés a removerem os Dispositivos Manipuladores Ilegais de todos os Veículos Afetados sem quaisquer custos ou despesas para os consumidores; Condenar a Daimler (as três Rés solidariamente) a garantir o bom funcionamento de todas as peças e equipamentos que sofram modificações em razão da remoção dos Dispositivos Manipuladores Ilegais. Condenar solidariamente as Rés no pagamento de uma indemnização global a favor dos Consumidores Afetados, como segue: a) Uma quantia a determinar nos termos do art. 609º, nº 2 do CPC correspondendo a, pelo menos, 20% do valor base do total de veículos ligeiros (de passeiros e comerciais) B diesel Euro 5 e Euro 6 (até Euro 6c) vendidos em Portugal ou importados para Portugal (matriculados em Portugal), entre 1 de janeiro de 2009 e a data do trânsito em julgado da sentença, que tenham sido vendidos ou de outro modo comercializados pela primeira vez entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2019, com um mínimo de €4.200,00 por veículo, com fundamento em responsabilidade civil ou redução de preço contratual, conforme doutamente decidido pelo Tribunal. b) Acrescida de uma quantia a fixar por equidade, nos termos do art. 496º do Código Civil (ns.º 1 e 4), correspondendo a, pelo menos, €102,00 por veículo, por ano (decorrido entre a data de primeira matrícula em Portugal de cada veículo e o trânsito em julgado da sentença) a determinar (se necessário) nos termos do art. 609º, nº 2 do CPC. Subsidiariamente ao pedido anterior, serem as três Rés solidariamente condenadas no pagamento de uma indemnização global a favor dos Consumidores Afetados, no montante que venha a ser liquidado nos termos do art. 609º, nº 2 do CPC, e que corresponda a, pelo menos, €5.000 por cada veículo ligeiro Mercedes- Benz diesel Euro 5 e Euro 6 (até Euro 6c) matriculado em Portugal. Subsidiariamente ao pedido formulado em 6. e 7., caso o Tribunal doutamente entenda que, sem prejuízo da violação dos direitos e interesses difusos e individuais homogéneos dos consumidores que determinam a procedência dos demais pedidos, não é possível identificar um interesse homogéneo no que respeita ao quantum a condenar as Rés, não podendo ser esse valor determinado na presente ação popular, devem as Rés ser solidariamente condenadas Rés no pagamento de uma quantia (com fundamento em responsabilidade civil ou redução de preço contratual,) a favor de cada Consumidor Afetado, por todos os danos causados pela instalação e manutenção nos respetivos Veículos Afetados dos Dispositivos Manipuladores Ilegais, em valor a liquidar nos termos do art. 609º, nº 2 do CPC, através de incidente de liquidação de sentença individual a intentar por cada consumidor nos termos dos arts. 358º e segs. 704º e 716º do CPC. Ser declarado que a Autora tem legitimidade para proceder à cobrança das quantias a que as Rés forem condenadas, em representação dos consumidores afetados, incluindo legitimidade para requerer a liquidação judicial das quantias e a execução judicial de sentença, e demais atos necessários à cobrança efetiva das referidas quantias, devendo as Rés procederem ao pagamento da indemnização global a favor dos Consumidores Afetados diretamente à entidade designada pelo Tribunal para proceder à administração da mesma, sem prejuízo da legitimidade da Autora para exigir e executar a cobrança, mesmo que judicialmente. Nomear como entidade incumbida da administração da indemnização global (sem prejuízo da necessidade de aceitação do encargo): a) a Direção-Geral do Consumidor; b) subsidiariamente, caso não seja nomeada a Direção-Geral do Consumidor, deverá ser nomeada empresa especializada em distribuição de compensações em ações populares. c) Subsidiariamente à alínea anterior, caso não seja nomeada uma empresa especializada em distribuição de compensações em ações populares, deverá ser nomeada a Autora. Declarar que a entidade designada pelo Tribunal para administrar as quantias que as Rés foram condenadas a pagar deverá ser remunerada pelo exercício desta atividade, com uma taxa anual de 1,5% sobre o montante total da indemnização global administrada. Declarar que a entidade designada pelo Tribunal para o efeito deverá proceder à administração das quantias que as Rés foram condenadas a pagar, a título de fiel depositário, competindo-lhe: a) criar, gerir e divulgar uma plataforma na qual cada interessado individual poderá requerer a indemnização a que tem direito; b) verificar o direito de cada interessado individual que, no prazo de três anos após o trânsito em julgado da sentença, requeira a sua indemnização, devendo para o efeito juntar certidão de registo automóvel (e outros documentos que sejam necessários) e declaração em como não afetou o veículo a uso profissional; c) proceder à entrega da quantia respetiva contra recibo, no prazo de três meses após o pedido de pagamento exarado em documento autenticado, instruído com a certidão de registo automóvel e, quando necessário, com outro documento comprovativo do direito; d) três anos e três meses após o trânsito em julgado, entregar a quantia restante ao Ministério da Justiça que os escriturará em conta especial e os afetará ao pagamento da procuradoria (conforme determinado em 13.), sendo a quantia restante afetada ao apoio no acesso ao direito e aos tribunais, de titulares de direito de ação popular que justificadamente o requeiram, nos termos do art. 22º, nº 5 da Lei de Ação Popular. Declarar que, a título de procuradoria, a Autora tem direito a uma quantia a liquidar, correspondente a todos os custos que teve com a presente ação (sem limitação pelas regras gerais relativas a custas), incluindo os custos com advogados, técnicos especialistas, custos com obtenção de informação, custos com documentação, custos de financiamento da ação devidos ao financiador e IVA nos termos dos arts. 21.º e 22.º, n.º 5 da Lei de Ação Popular. Declarar que a procuradoria a favor da Autora será exclusivamente paga por recurso aos montantes correspondentes a direitos prescritos nos termos do art. 22º, nº 4 e 5 da Lei de Ação Popular. Declarar que a Autora é isenta de custas. Declarar que a decisão condenatória deve ser publicitada a expensas das Rés, sendo estas condenadas em concordância, ficando nomeadamente a constar expressamente da sentença: a) A lista de modelos abrangidos e respetivos anos, com indicação do tipo de motor, a identificação de homologação respetiva e da norma de emissões aplicável. b) Os tipos de Dispositivos Manipuladores Ilegais em cada modelo abrangido. c) Que os consumidores têm três anos a contar do trânsito em julgado da sentença para reclamar o pagamento da sua indemnização individual junto da entidade designada pelo Tribunal, identificando-se essa entidade. Para tanto, requer-se que seja: a) Ordenada a citação das Rés para contestarem, querendo; b) Ordenada a citação do Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, para efeitos do art. 13º da Lei de Ação Popular; c) Ordenada a citação dos titulares dos interesses em causa na ação nos termos do art. 15º da Lei de Ação Popular, para no prazo fixado pelo Tribunal, passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar, e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pelo Autor ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação, sem prejuízo do disposto; a citação será feita por anúncio ou anúncios tornados públicos através de qualquer meio de comunicação social ou editalmente, consoante estejam em causa interesses gerais ou geograficamente localizados, sem obrigatoriedade de identificação pessoal dos destinatários, que poderão ser referenciados enquanto titulares dos mencionados interesses, e por referência à ação de que se trate, à identificação de pelo menos o primeiro autor, quando seja um entre vários, do réu ou réus e por menção bastante do pedido e da causa de pedir; uma vez que não é possível individualizar os respetivos titulares, a citação far-se-á por referência ao respetivo universo de consumidores titulares de interesses individuais homogéneos: i) Titulares de modelos de veículos ligeiros da marca Bhomologados de acordo com as normas (Euro 5 e Euro 6, até Euro 6c) vendidos ou de outro modo comercializados pela primeira vez entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2019, e matriculados em Portugal pela primeira vez entre 1 de janeiro de 2009 e a data do trânsito em julgado da sentença; ii) Quer sejam titulares dos veículos com base em: (1) direitos reais de gozo, incluindo direito de propriedade, usufruto ou uso (em qualquer modalidade); (2) direitos decorrentes de contratos de locação, incluindo aluguer de longa duração, aluguer operacional e locação financeira (em qualquer modalidade); (3) direitos decorrentes de outros contratos (incluindo contratos atípicos), com ou sem função de financiamento, que possibilitem ao consumidor usar o veículo como se fosse seu, com ou sem possibilidade de adquirir a viatura no final do contrato.” Para tanto alega em síntese que: - Pela presente ação pretende-se a tutela judicial dos interesses difusos, e dos interesses individuais homogéneos dos consumidores lesados pelos factos praticados pelas Rés (em conjunto abreviadamente referidas por Daimler), que se traduzem e resultam, em resumo, na instalação, utilização e manutenção nos Veículos Afetados (ligeiros Bcom motores diesel Euro 5 e Euro 6, até Euro 6c), por parte das Rés de Dispositivos Manipuladores Ilegais (no sentido do art. 3º, n.º 10, do Regulamento (CE) n.º 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2007). - A instalação dos Dispositivos Manipuladores Ilegais permitiu à Daimler fazer com que os veículos respeitassem (aparentemente) os limites de emissões nos testes impostos pela União Europeia, quando (na verdade) não os respeitavam. - Assim enganando as autoridades que homologam os modelos de veículos, levando-as a conceder a homologação e aprovar veículos que não respeitam os limites de emissões relevantes. - E mantendo os Dispositivos Manipuladores Ilegais nos Veículos Afetados até à atualidade, assim causando danos ao ambiente e aos consumidores. - A Autora obteve informação de uma sua congénere neerlandesa (a Stichting Diesel Emissions Justice), que contratou peritos para procederem à análise de um veículo Mercedes (o Veículo Teste) que permitiu concluir que este tinha oito Dispositivos Manipuladores Ilegais diferentes. - A consequência da existência dos oito Dispositivos Manipuladores Ilegais diferentes consiste em que, em condições normais de condução, o sistema de controlo de emissões do Veículo Teste opera com uma eficácia inferior, não cumprindo os limites legais de NOx (óxidos de azoto). - Os óxidos de azoto (e também o enxofre, os compostos orgânicos voláteis e os compostos de azoto reduzido) têm sido associados a efeitos nocivos sobre a saúde humana e o ambiente, sendo transportados na atmosfera a longas distâncias. - Todos os modelos diesel de veículos Bsujeitos às regras Euro 5 e Euro 6 (até Euro 6c) estão equipados com Dispositivos Manipuladores Ilegais e violam largamente os limites de emissões. - A presente ação é relativa aos veículos Euro 5 e Euro 6 (até Euro 6c) matriculados em Portugal e propriedade de consumidores domiciliados em Portugal. - Sendo abrangidos os modelos de veículos ligeiros da marca Mercedes-Benz, de passageiros ou comerciais, homologados de acordo com as normas (Euro 5 e Euro 6, até Euro 6c) vendidos ou de outro modo comercializados pela primeira vez entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2019, e matriculados em Portugal pela primeira vez entre 1 de janeiro de 2009 e a data do trânsito em julgado da sentença. - Na presente ação pretende-se proteger os interesses difusos da proteção da saúde humana, do ambiente e dos direitos dos consumidores, bem como os interesses individuais homogéneos a que correspondem os direitos a indemnização dos consumidores domiciliados em Portugal que adquiriram em Portugal veículos afetados por Dispositivos Manipuladores Ilegais, tendo os veículos sido vendidos e entregues em Portugal ou importados para Portugal, com os referidos Dispositivos Manipuladores Ilegais; sendo a sua existência propositadamente ocultada em Portugal; e mantidos os Dispositivos Manipuladores Ilegais nos veículos afetados em Portugal. - O facto danoso é um facto de execução duradoura e continuada, cuja execução partiu da ideia inicial de instalar Dispositivos Manipuladores Ilegais para adulterar as medições, passando pela inclusão dos Dispositivos Manipuladores Ilegais nos projetos dos veículos, seguindo para a integração dos Dispositivos Manipuladores Ilegais na fabricação dos Dispositivos Manipuladores Ilegais, pela importação dos veículos para Portugal e pela sua distribuição e venda em Portugal, pela entrega dos veículos com os Dispositivos Manipuladores Ilegais, pela ocultação da existência dos Dispositivos Manipuladores Ilegais desde o primeiro momento até ao presente, pela manutenção dos Dispositivos Manipuladores Ilegais nos veículos desde o primeiro momento até ao presente e pela omissão da remoção e correção desses dispositivos manipuladores ilegais nos atos de assistência, revisão e reparação dos mesmos veículos. - E tendo o conjunto dos referidos consumidores sofrido danos no seu património, em Portugal, resultantes dos referidos Dispositivos Manipuladores Ilegais. - O comportamento das Rés foi coletivo, operando as três Rés como uma única empresa, em conluio e de modo coordenado. - Sendo as Rés B AG e B Portugal S.A. filiais da Ré Daimler AG. - A Ré B AG é a responsável pela marca Mercedes-Benz, por conta da Daimler. - A Daimler AG e a B AG são o construtor. - Sendo a B Portugal S.A. uma representação permanente (não inscrita em registo) em Portugal da Daimler AG e da B AG. - Os veículos foram vendidos pelas Rés, diretamente ou indiretamente, através de intermediários instrumentalizados. - Os Veículos Afetados foram vendidos e entregues em Portugal aos consumidores e estão em circulação. - A Autora age em proteção de interesses difusos protegidos pela Constituição portuguesa, que compete aos tribunais portugueses defender. - A Autora age ainda em representação dos consumidores, para proteção dos seus interesses individuais homogéneos, sendo os consumidores os titulares destes interesses individuais homogéneos protegidos. - Na presente ação, qualquer consumidor abrangido pode passar a intervir no processo a título principal, como co-Autor (art. 15º, n.º 1 da Lei n.º 83/95). - Assim, apesar de neste momento a Autora ser apenas a Associação Ius Omnibus, poderão ser também coautores quaisquer consumidores representados, que têm o direito subjetivo a passar a integrar esta posição processual. - Se a ação não correr em Tribunais portugueses, os consumidores portugueses não terão condições práticas, económicas, e efetivas de poderem aderir como parte principal à ação, como têm direito a fazer. - Os Tribunais Portugueses são competentes nos termos dos arts. 7º, nº 1, als. a) e b) (primeira parte), 7º, nº 2, 7º, nº 5, 8º, nº 1, e 17º, nº 1, als. a), b) e c), e 18º, nº 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012. - Foi em Portugal que os consumidores adquiriram a propriedade, financiada ou não, ou o uso de veículos afetados, através de contratos de compra e venda, a pronto ou a prestações, reembolsáveis ou não, ou de aluguer, leasing, ALD, renting ou outros semelhantes (como o “Select & Drive Opção Vantagem” – Doc. 110), para uso próprio não comercial ou profissional (alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 17º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012). - Portugal é o local onde devem ser cumpridas as obrigações de (art. 7º, nº 1, als. a) e b) do Regulamento (UE) n.º 1215/2012): (i) obrigação de entregar dos Veículos Afetados aos consumidores; (ii) obrigação de garantir que os Veículos Afetados não têm Dispositivos Manipuladores Ilegais. (iii) obrigação de remover os Dispositivos Manipuladores Ilegais dos Veículos Afetados. - Portugal é o local onde ocorre o facto danoso que consiste em manter os Dispositivos Manipuladores Ilegais nos Veículos Afetados (art. 7º, nº 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012). - Portugal é o local onde ocorre o facto danoso que consiste em manter os Veículos Afetados em violação das regras de homologação CE (art. 7º, nº 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012). - Portugal é o local onde ocorre o facto danoso que consiste em manter os Veículos Afetados a produzirem emissões poluentes de NOx em quantidade que viola os limites legais (art. 7º, nº 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012). - Os Veículos Afetados foram importados para Portugal, e introduzidos no mercado português, de modo a serem vendidos aos consumidores portugueses, de modo: a serem vendidos aos consumidores portugueses; a serem possuídos e utilizados pelos consumidores portugueses; e a serem mantidos os Dispositivos Manipuladores Ilegais, através da exploração da Ré B Portugal, SA que é uma sucursal da Daimler AG e B AG (art. 7º, nº 5 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012). - A ação é requerida solidariamente contra as três Rés, sendo a Ré BPortugal, SA domiciliada em Portugal. - Os pedidos formulados contra as Rés estão ligados entre si por um nexo tão estreito que há interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente (art. 8º, nº 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012). - Os consumidores têm direito a aderir à lide a título principal como Autores, pois os contratos para aquisição da propriedade ou uso dos Veículos Afetados e de garantia de conformidade dos Veículos Afetados com a Lei foram celebrados com consumidores (art. 17º, nº 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012). - As Rés têm atividade comercial em Portugal, dirigindo a sua atividade a Portugal, e tendo os contratos de aquisição da propriedade ou uso dos Veículos Afetados, e de garantia de conformidade dos Veículos Afetados com a Lei, sido celebrados no âmbito dessa atividade (art. 17º, nº 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012). - Por outro lado, é em Portugal que os Veículos Afetados violam as normas europeias de controlo de emissões poluentes, poluindo o ambiente com NOx. - Os consumidores representados pela Autora estão domiciliados no território de Portugal, o que preenche a previsão do nº 1 do artigo 18º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012. - Os ilícitos imputados pela Autora à Daimler são de natureza mista, contratual (negocial) e extracontratual (aquiliana). - Na verdade, por um lado, correspondem à violação – como facto continuado – dos contratos pelos quais a Daimler, direta ou indiretamente, vende, aluga ou, usa de outros tipos contratuais para facultar o uso ou a utilização dos veículos afetados, nos quais se compromete a que respeitem as normas europeias de controlo de emissões poluentes e correspondam aos respetivos Certificados de Conformidade, o que integra incumprimento contratual por falta de conformidade da coisa objeto do contrato. - Por outro lado, corresponde à violação – como facto continuado – das obrigações contratuais da Daimler que, na prestação dos serviços de manutenção, reparação, assistência e garantia dos veículos afetados, manteve os dispositivos manipuladores no software (programas informáticos) e no hardware (equipamentos mecânicos) omitindo intencionalmente, ou com negligência, culposamente, a desativação dos dispositivos manipuladores, o que deveria fazer nas operações de revisão, de assistência e de reparação. - Em particular, a violação dos contratos celebrados entre os consumidores e a Daimler (o conjunto das Rés) através do qual esta se obriga a garantir que os veículos cumprem a Lei desde o momento do lançamento no mercado e até ao final da sua vida, em condições normais de utilização. - Os ilícitos imputados às Rés constituem também ilícitos extracontratuais que dão azo a responsabilidade extracontratual (aquiliana) por terem violado e continuarem a violar – como facto continuado – preceitos legais de direito objetivo e ordem pública com função de proteção de interesses alheios e do bem comum, e interesses juridicamente protegidos pela limitação das emissões poluentes por veículos automóveis designadamente de motores diesel, designadamente o Regulamento (CE) nº 715/2007, a Diretiva 2007/46/UE, o Código da Estrada e o Regulamento (EU) 2019/631, cuja violação afeta todas as pessoas (interesses difusos) e, entre elas, também os consumidores representados pela Autora (interesses individuais homogéneos). - Os ilícitos imputados às Rés na presente ação foram cometidos e continuam a ser cometidos – como facto continuado –, entre outros, no território português e causaram e continuam a causar danos em território português, entre muitas outras pessoas, aos consumidores representados pela Autora. - Conforme esclarecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em termos que vinculam os tribunais nacionais, o “artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado‑Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos por um terceiro noutro Estado‑Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado‑Membro”, com a consequência de que o tribunal deste último Estado- membro é competente para conhecer de ações que visam o ressarcimento de tal dano (Caso C-343/19 Volkswagen AG EU:C:2020:534). - É, pois, competente o Tribunal da Comarca de Lisboa. - A Autora, Associação Ius Omnibus, é uma associação de direito privado com personalidade jurídica, tendo sido constituída em 6 de março de 2020, por escritura pública lavrada no cartório notarial de Ana Rita Ribeiro da Costa Pinto Caliço (a fls. 102 a 104 do livro de notas para escrituras diversas número 82 do respetivo cartório) e sendo titular do NIPC 515807753. - Nos termos do artigo 2.º(1) dos seus Estatutos (Doc. 001), a Autora: “é uma entidade sem fins lucrativos que tem como fim a defesa dos consumidores na União Europeia, visando em especial o aumento do bem-estar dos consumidores, e em geral a promoção do Estado de Direito, do ambiente e da economia da União Europeia”. - Nos termos do artigo 2.º(2) dos Estatutos da Autora (Doc. 001): “Para efeitos do número anterior, entende-se como defesa dos consumidores a tutela e promoção dos direitos e interesses dos consumidores que sejam cidadãos da União Europeia ou que sejam cidadãos de Estados terceiros residentes na União Europeia e abrangendo-os, mas não estando limitado aos consumidores associados da Associação”. - Nos termos do artigo 2.º(3) dos Estatutos da Autora (Doc. 001): “A Associação protege todos os direitos dos consumidores que lhes são conferidos pelas ordens jurídicas da União Europeia e dos Estados-membros da União Europeia, incluindo os que decorrem do (…) Direito da Concorrência (…)”. - Nos termos do artigo 2.º(4)(h), (i) e (m) dos Estatutos da Autora (Doc. 001): “Na prossecução dos fins referidos nos números anteriores, a Associação tem o poder de praticar todos os atos jurídicos adequados para o efeito, incluindo: (…) h) Chegar a acordos extrajudiciais com pessoas que tenham violado os direitos dos consumidores, com vista à garantia do cumprimento da lei e/ou à indemnização dos danos sofridos pelos consumidores resultante de uma violação dos seus direitos e/ou interesses individuais e coletivos; i) Promover e intentar ações judiciais, ou recorrer a meios alternativos de resolução de litígios, para defesa dos direitos e interesses coletivos e individuais dos consumidores na União Europeia, na medida do permitido pelas leis aplicáveis, nomeadamente, com recurso a ações representativas de modelo “opt-in” ou “opt-out” (incluindo a ação popular) ou a qualquer outro meio processual de defesa de direitos e interesses difusos, coletivos ou individuais homogéneos, podendo ter por objetivo, entre outros, a obtenção da declaração da existência de direitos e obrigações, da imposição de comportamentos e/ou da indemnização de danos sofridos pelos consumidores resultante de uma violação dos seus direitos ou interesses; (…) m) Exercer qualquer outra competência que lhe seja atribuída por normas da União Europeia ou dos seus Estados-membros”. - Nos termos do artigo 6.º(1) dos Estatutos da Autora, pode ser associado da Autora qualquer pessoa singular que seja cidadão da UE ou que seja cidadão de Estado terceiro residente na UE, e que concorde com os fins da Associação e pretenda promover esses fins (Doc. 001 ). - A Autora é uma associação de consumidores reconhecida pela Direção-Geral do Consumidor; - A Autora age como titular do direito de ação popular (arts. 52.º, n.º 3, e 60.º, n.º 3 da Constituição; art. 2º da Lei n.º 83/95) e em representação por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, de todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão (art. 14º da Lei n.º 83/95). - A Autora propõe a presente ação em representação dos consumidores (pessoas singulares) domiciliados em Portugal. - E que, cumulativamente, sejam ou tenham sido titulares de um direito que conceda o uso de um ou mais Veículos Afetados que tenham sido afetados a uso não profissional. * O M. Público concluiu não existirem fundamentos para o indeferimento da petição inicial, devendo a ação prosseguir os seus termos. * Foi proferido, em 21.05.2021, o seguinte despacho: “Fls. 2070 e 2071: visto. Recebemos (liminarmente) a petição inicial (cfr. artigo 15.º, n.º 1, primeira parte, da Lei de Ação Popular). Diligencie pela citação das Rés. Proceda à citação dos titulares dos interesses em causa nesta ação, nos termos e para os fins previstos no artigo 15.º da Lei de Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, na sua redação atual), para, no prazo de 30 dias, passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar, e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pela Autora ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação, sem prejuízo do disposto no n.º 4 desse artigo 15.º. A citação será feita por anúncio tornado público através de meio de comunicação social (jornal diário nacional no mercado em suporte de papel), sem a obrigatoriedade de identificação pessoal dos destinatários, que poderão ser referenciados enquanto titulares dos mencionados interesses, e por referência à presente à ação, à identificação da Autora, das Rés e por menção bastante dos pedidos formulados e da causa de pedir (em suma, a alegada violação continuada em Portugal, através dos veículos afetados, das normas europeias de controlo de emissões poluentes, poluindo o ambiente com óxidos de azoto ou “NOx”). Uma vez que não é possível individualizar os respetivos titulares, a citação far-se-á por referência ao respetivo universo de consumidores titulares de interesses individuais homogéneos, a saber: i) Titulares de modelos de veículos ligeiros da marca B homologados de acordo com as normas (Euro 5 e Euro 6, até Euro 6c), vendidos ou de outro modo comercializados pela primeira vez entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2019, e matriculados em Portugal pela primeira vez entre 1 de janeiro de 2009 e a data do trânsito em julgado da sentença; ii) Quer sejam titulares dos veículos com base em: (1) direitos reais de gozo, incluindo direito de propriedade, usufruto ou uso (em qualquer modalidade); (2) direitos decorrentes de contratos de locação, incluindo aluguer de longa duração, aluguer operacional e locação financeira (em qualquer modalidade); (3) direitos decorrentes de outros contratos (incluindo contratos atípicos), com ou sem função de financiamento, que possibilitem ao consumidor usar o veículo como se fosse seu, com ou sem possibilidade de adquirir a viatura no final do contrato. Dê conhecimento ao Ministério Público. Dê conhecimento à Autora.” * As Rés C AG e B AG apresentaram contestação conjunta, peticionando que: “Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos por V. Exa., deverá: a) ser julgada procedente, por provada, a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses e, em consequência, deverão as Rés ser absolvidas da instância; subsidiariamente, b) ser julgada procedente, por provada, a exceção de incompetência em razão da matéria deste Tribunal e, em consequência, deverão as Rés ser absolvidas da instância; subsidiariamente, c) ser julgada procedente, por provada, a exceção de não verificação dos requisitos de admissibilidade da ação popular e, em consequência, deverão as Rés ser absolvidas da instância; subsidiariamente, d) ser julgada procedente, por provada, a exceção de ilegitimidade ativa da Autora IUS OMNIBUS quanto aos pedidos que respeitantes a veículos detidos ou usados por não consumidores e, em consequência, deverão as Rés ser absolvidas da instância; subsidiariamente, e) ser julgada procedente, por provada, a exceção de ilegitimidade passiva das Rés e, em consequência, deverão as Rés ser absolvidas da instância; subsidiariamente, f) ser julgada procedente, por provada, a exceção de prescrição dos direitos dos consumidores e caducidade do direito de ação, e, em consequência, deverão as Rés ser absolvidas do pedido; subsidiariamente, g) ser julgada improcedente a presente ação, por não provada, e, em consequência, deverão as Rés ser absolvidas do pedido, com todas as consequências legais.” Invocam entre o mais a incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciarem contra elas ação intentada. Para tanto, alegam que os tribunais portugueses e em particular o Tribunal de Lisboa são internacionalmente incompetentes para apreciar e julgar os pedidos contra as Rés C e MERCEDES-BENZ, as quais não podem ser demandadas perante os tribunais portugueses por não se encontrarem preenchidos nenhuns dos critérios gerais e/ ou especiais de atribuição de competência aos tribunais portugueses, constantes dos artigos 4.º, 7.º, n.º 1, als. a) e b), n.º 2 e n.º 5; 8.º, n.º 1; 17.º e 18.º, n.ºs 1, todos do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.* Relativamente ao art 7º nº2 do referido Regulamento, atenta a relevante diferença de interpretação e aplicação diferenciadas entre as Rés e a Autora IUS OMNIBUS, sem embargo da convicção bem assente de que a solução a dar à questão de direito da União Europeia é aquele que as Rés propugnam, admitem estas que possam surgir dúvidas razoáveis na mente do julgador, em particular por se tratar de matérias com um grau de complexidade elevado no Direito da União Europeia, sendo que a jurisprudência existente dos tribunais da União Europeia a respeito da aplicação do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, não tem em vista a resolução de um litígio com idênticas características específicas do presente caso concreto que possa servir de orientação a este douto Tribunal, quanto ao teor, alcance e correta interpretação e aplicação de tal norma, pelo que para o efeito entendem útil o reenvio prejudicial para o TJUE. E, por forma a tornar mais célere uma eventual decisão desse Tribunal no sentido de proceder ao aludido reenvio prejudicial, as Rés desde já sugerem, como ponto de partida e a título provisório, que sejam formuladas, em reenvio prejudicial ao TJUE, as questões que, grosso modo, se poderão sintetizar da seguinte forma e que se afiguram como relevantes e imprescindíveis para a boa decisão da presente causa, colocando-se, desde já e em todo o caso, à inteira disposição deste Tribunal para prestar qualquer outro contributo julgado necessário para a formulação das questões prejudiciais a submeter ao TJUE: 1. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, pode a jurisdição internacional de um tribunal ser baseada no "lugar de materialização do dano" relativa a ações coletivas do tipo opt-out, nos termos da respetiva lei nacional (Portuguesa neste caso), se a natureza opt-out de tais ações coletivas implica que a análise dos danos apenas tenha lugar de uma forma e a um nível abstrato (e coletivo), sem qualquer determinação de danos "para cada pretensa vítima individualmente considerada"? 2. Em caso de resposta positiva à Q1, como dever-se-á concretizar e identificar o "lugar da materialização do dano", no caso de uma ação coletiva do tipo opt-out, conforme sucede no presente caso, tendo em conta que a autora da presente ação judicial: a. é uma entidade jurídica que intentou uma só ação coletiva; b. não celebrou quaisquer contratos com qualquer das Rés; c. não deverá ser considerada como "consumidor"; d. não sofreu qualquer dano; e. está a atuar em representação de terceiros/consumidores ao abrigo de disposições legais específicas, sem qualquer mandato expresso e específico de qualquer consumidor para o efeito; e f. em conformidade, não possui e não poderá oferecer qualquer prova relativa aos contratos celebrados e os danos sofridos por aqueles terceiros/consumidores, e onde as provas relativas a danos alegadamente sofridos individualmente por terceiros/consumidores representados pela autora não serão, por definição, objeto do presente processo? 3. Em caso de resposta positiva à Q1, e ainda no contexto da interpretação do referido artigo 7.º, n.º 2: a. como deve o critério do "lugar da materialização do dano" ser concretizado e identificado se as ações coletivas sob a égide do direito nacional (Português in casu) visam proceder à compensação de consumidores que teriam (alegadamente) sofrido individualmente danos nos territórios jurisdicionais de múltiplos diferentes tribunais desse Estado-Membro (Portugal), uma vez que o artigo 7.º, n. º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 determina quer a jurisdição internacionalmente competente, quer a territorialmente competente? b. se da resposta à Q.3(a) resultar uma situação em que a jurisdição do tribunal de reenvio se encontra limitada a ações coletivas apenas no interesse daqueles terceiros/consumidores que tenham sofrido danos no território (local) do tribunal de reenvio – o que presumivelmente poderia por em causa a eficácia geral do sistema legal de ações coletivas a nível nacional (Português in casu) –, poderia o tribunal alternativamente considerar-se competente de forma mais ampla, sob a égide do artigo 7.º, n. º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, com base na localização da sede da autora, associação de consumidores, a qual se encontra sita no território jurisdicional do tribunal de reenvio? 4. Em caso de resposta positiva à Q1, como deve o critério do "lugar da materialização do dano" e a noção de "dano inicial" ser interpretados, no que respeita a veículos automóveis potencialmente afetados, cuja primeira aquisição por adquirentes finais ocorreu fora de Portugal e que, segundo dados da autora, consubstanciam uma parte significativa dos veículos automóveis potencialmente afetados? Deverão ser os alegados danos relativos a tais veículos subsequentemente adquiridos por consumidores em Portugal considerados como uma consequência indireta do dano inicialmente sofrido por outras pessoas, na aceção acórdão de 11 de janeiro de 1990, Dumez France e Tracoba, C‑220/88, EU:C:1990:8? Mais excecionam a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial de Lisboa. Alegam que este Tribunal é chamado pela Autora IUS OMNIBUS para decidir sobre questões que, quanto à matéria, não podem ser decididas por um tribunal judicial em Portugal, uma vez que caem no âmbito da jurisdição exclusiva dos tribunais administrativos alemães. Isto porque a determinação da existência de um dispositivo manipulador, tal qual definido no artigo 3.º, n.º 10, do Regulamento Emissões (Regulamento (CE) n.º 715/2007, de 20 de junho), não pode ser aferida no âmbito da relação entre as Partes deste processo, porquanto a mesma se insere no âmbito da competência e esfera de atuação da entidade homologadora dos veículos: a KBA no presente caso. A concessão de homologação CE por parte da KBA constitui um ato administrativo de direito alemão. Tanto as ordens de recall emitidas pela KBA como as homologações são atos administrativos, e assim sendo, a impugnação das decisões da KBA é da competência exclusiva dos tribunais administrativos na Alemanha. Ao apreciar e decidir os pedidos acima referidos apresentados pela Autora IUS OMNIBUS, este Tribunal apreciaria e decidiria se as homologações originais dos veículos em questão tinham violado o n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento (CE) 715/2007 e se as ordens de recall da KBA são justificadas, o que faria em violação da jurisdição exclusiva dos tribunais administrativos alemães. A R B PORTUGAL, S.A. também contestou, peticionando o seguinte: “Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos por V. Exa., deverá: a) ser julgada procedente, por provada, a exceção de incompetência em razão da matéria deste Tribunal e, em consequência, deverá a Ré MB PORTUGAL ser absolvida da instância; subsidiariamente, b) ser julgada procedente, por provada, a exceção de incompetência territorial deste Tribunal e, em consequência, deverá o presente processo ser remetido para o Juízo Cível de Sintra do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste; cumulativamente, c) ser julgada procedente, por provada, a exceção de não verificação dos requisitos de admissibilidade da ação popular e, em consequência, deverá a Ré MB PORTUGAL ser absolvida da instância; subsidiariamente, d) ser julgada procedente, por provada, a exceção de ilegitimidade ativa da Autora IUS OMNIBUS quanto aos pedidos respeitantes a veículos detidos ou usados por não consumidores e, em consequência, deverá a Ré MB PORTUGAL ser absolvida da instância; subsidiariamente, e) ser julgada procedente, por provada, a exceção de ilegitimidade passiva da Ré MB PORTUGAL e, em consequência, deverá a Ré MB PORTUGAL ser absolvida da instância; subsidiariamente, f) ser julgada procedente, por provada, a exceção de prescrição dos direitos dos consumidores e caducidade do direito de ação, e, em consequência, deverá a Ré MB PORTUGAL ser absolvida do pedido; subsidiariamente, g) ser julgada improcedente a presente ação, por não provada, e, em consequência, deverá a Ré MB PORTUGAL ser absolvida do pedido, com todas as consequências legais.” Exceciona a incompetência em razão da matéria do tribunal judicial, com os mesmos fundamentos que foram invocados para o efeito na contestação apresentada pelas outras RR, aqui dados por reproduzidos. *** A autora apresentou em 23.01.2023 articulado de resposta às exceções deduzidas nas contestações, pugnando pelo seu indeferimento. Remete para o já alegado nos artigos 33 a 68 da petição inicial quanto à competência dos Tribunais portugueses, nos termos dos arts. 7º, nº 1, als. a) e b) (primeira parte), 7º, nº 2, 7º, nº 5, 8º, nº 1, e 17º, nº 1, als. a), b) e c), e 18º, nº 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, opondo-se, por inútil ao pedido de reenvio prejudicial; quanto à competência material, refere não estar em causa nenhum pedido de impugnação de qualquer ato jurídico da KBA, nem ter sido impugnado qualquer pedido contra tal entidade. *** Em 12.07.2023 foi proferido despacho saneador (Referência: 424021348) no qual, entre o mais, se julgou improcedente a exceção de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, julgando este tribunal (tribunal de Lisboa) competente para conhecer a presente ação, e se julgou improcedente a exceção de incompetência material do tribunal para o conhecimento da presente ação. *** Inconformada, a R BPORTUGAL, S.A apresentou recurso de apelação (req. REFª: 46518971 de 15.09.2023), apresentando alegações com as seguintes conclusões: “De tudo quanto acima se alegou, deverão extrair-se as seguintes conclusões: A. No Despacho Saneador, o Tribunal a quo julgou improcedente a exceção de incompetência em razão da matéria que tinha sido arguida pelas Rés na ação. B. Entendeu o Tribunal a quo que o objeto da presente ação não respeita à homologação dos veículos da marca B e que o Tribunal foi apenas chamado a pronunciar-se sobre um pedido que foi formulado com base numa violação, por parte da Recorrente MB PORTUGAL (e Rés C AG e B AG), das condições em que os veículos foram homologados (e das suas consequências para o ambiente, para a saúde pública e para os interesses dos consumidores) e nenhum comportamento ativo ou omissivo por parte da KBA contribuiu para essa violação. Pelo que o Tribunal a quo considerou que a decisão a proferir nesta ação não é suscetível de pôr em causa a homologação dos referidos veículos. C. O Tribunal a quo errou, no entanto, na apreciação e decisão da exceção de incompetência em razão da matéria, porquanto não atendeu ao objeto da ação e ao regime jurídico que lhe é aplicável. D. A causa de pedir da pretensão da Recorrida IUS OMNIBUS baseia-se na alegada infração, resultante da alegada instalação, utilização e manutenção, por parte da Recorrente MB PORTUGAL (e Rés C AG e B AG), de dispositivos manipuladores ilegais, nos termos do n.º 10 do artigo 3.º do Regulamento Emissões (cfr. artigo 4.º da Petição Inicial). E. Com base nesta causa de pedir, a Recorrida IUS OMNIBUS pediu ao Tribunal a quo que declarasse que a Recorrente MB PORTUGAL (e as Rés C AG e B AG) instalaram e mantiveram dispositivos manipuladores ilegais nos Veículos Afetados, implicando assim um aumento das emissões de NOx superior aos limiares legais, e que a Recorrente (e as restantes Rés C AG e B AG) fossem condenadas a reconhecer este facto (sendo os restantes pedidos formulados na ação dependentes destes outros). F. Considerando o quadro legal aplicável, o Tribunal a quo não tem competência para apreciar e avaliar se um determinado veículo ou um determinado grupo de veículos contém dispositivos manipuladores (ilegais) e não pode executar os procedimentos técnicos que o legislador entendeu deverem ser atribuídos às entidades homologadoras. G. O Regulamento Emissões estabelece os termos técnicos da homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6), e tem por objetivo harmonizar esses requisitos, a fim de evitar requisitos diferentes de um Estado-Membro para outro. H. Cabe à KBA avaliar e determinar se estão ou não instalados dispositivos manipuladores nos chamados Veículos Afetados devidamente homologados, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 10, do Regulamento Emissões e, em caso afirmativo, se são ou não abrangidos pelas exceções previstas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 5º do Regulamento Emissões, caso em que os referidos dispositivos seriam legalmente admissíveis. I. Embora a concessão da homologação CE pela KBA constitua um ato administrativo de direito alemão, o mesmo produz efeitos e vincula os demais Estados-Membros por força do mecanismo de reconhecimento mútuo constante da Diretiva n.º 2007/46/CE, a não ser que o mesmo venha a ser impugnado de acordo com os mecanismos disponíveis na lei alemã para esse efeito. J. Tanto as ordens de recall emitidas pela KBA como as homologações são atos administrativos e o §35 do Código de Processo Administrativo Alemão define ato administrativo como qualquer ordem, decisão ou outra medida soberana adotada por uma autoridade para regular um caso individual na esfera do direito público e destinada a ter um efeito jurídico direto e externo. K. Por seu turno, o §43 para. 2 do Código de Processo Administrativo alemão estabelece que um ato administrativo se mantém eficaz enquanto não for revogado, anulado, cancelado ou expirar por razões de decurso do tempo ou por qualquer outro motivo, podendo ser impugnados em tribunal de acordo com a Sec. 42 para. 1 do Código de Processo Administrativo Alemão. L. As ordens de recall emitidas pela KBA foram impugnadas pelas Rés MERCEDES-BNEZ GROUP AG e B AG perante o Tribunal Administrativo de Schleswig-Holstein, na Alemanha, encontrando-se pendentes. M. Ao apreciar e decidir a presente ação, o Tribunal a quo apreciaria e decidiria se as homologações originais dos veículos em questão tinham violado o n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 715/2007 e se as ordens de recall da KBA são justificadas, ambas em violação da jurisdição exclusiva dos tribunais administrativos alemães e do mecanismo de reconhecimento mútuo constante da Diretiva 2007/46/CE. N. Ao contrário do que foi decidido na Decisão a quo, a alegação da Recorrida IUS OMNIBUS pressupõe, assim, que o Tribunal a quo analise e aprecie o comportamento ativo ou omissivo por parte da KBA, uma vez que as homologações dos veículos afetados foram emitidas pela KBA, são definitivas, não foram revogadas e não há qualquer objeção ou recurso contra elas; o pedido da IUS OMNIBUS implicaria uma decisão (explícita ou implícita) de que as homologações emitidas pela KBA não deveriam ter sido emitidas ou deveriam ter sido alteradas/revogadas. O. A Decisão a quo violou, assim, os artigos 3.º, n.º 10, 5.º, n.º 2, do Regulamento Emissões, §35 e §43 para. 2 do Código de Processo Administrativo Alemão, e a Diretiva n.º 2007/46/CE. P. Em consequência, a Decisão a quo deverá ser revogada na parte em que julgou improcedente a exceção de incompetência em razão da matéria e, em consequência, deverá a Recorrente MB PORTUGAL ser absolvida da instância, nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a), todos do CPC. “ Termina nos seguintes termos: “Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos por V. Exas., deverá a parte da Decisão que considerou que o Tribunal a quo é competente em razão da matéria ser revogada e substituída por uma decisão que julgue procedente a exceção de incompetência do Tribunal a quo em razão da matéria e, em conformidade, deverá a Recorrente MB PORTUGAL ser absolvida da instância nos termos do disposto nos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a) do CPC.” * Também as outras duas RR intentaram em 15.09.2023 (req. ref. 46519105 retificado por req. ref.46519193, este último deferido no despacho de 22.01.2024) recurso de apelação, apresentando alegações com as seguintes conclusões: “A. O Despacho Saneador proferido pelo Tribunal a quo julgou improcedentes, entre outras, as exceções deduzidas pelas Rés: (i) de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses em razão das regras de competência internacional (e territorial); e (ii) de incompetência absoluta em razão da matéria. B. No que respeita à Decisão a quo sobre a exceção de incompetência internacional em razão das regras de competência internacional e territorial, as Recorrentes não se conformam com a mesma, entendendo que os tribunais Portugueses e, especificamente, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, são internacionalmente (e territorialmente) incompetentes para julgar os presentes autos. C. É facto assente que estamos perante um litígio plurilocalizado com conexão com pelo menos dois Estados-Membros da União Europeia: Alemanha e Portugal. A competência internacional dos tribunais portugueses deve ser in casu aferida à luz do Regulamento (UE) n.º 1215/2012. D. O único fator de conexão do presente litígio com Lisboa e, por conseguinte, com a jurisdição do Tribunal a quo reporta-se à sede da Recorrida IUS OMNIBUS, que foi considerado pelo Tribunal a quo como suficiente para se considerar competente internacional e territorialmente para julgar os presentes autos – porém, sem razão. E. Essencialmente, o douto Tribunal a quo excluiu a aplicação do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, considerando apenas a aplicação do n.º 2, considerando que o TJUE tem vindo a considerar que a expressão “lugar onde ocorreu ou deverá ocorrer o facto danoso” tanto abrange o lugar onde se verificou o evento causal, como aquele onde se verificou a materialização do dano, e que “o lugar de materialização do prejuízo é o local em que o facto gerador (…) produziu efeitos danosos em relação à vítima” – concluindo que a Recorrida IUS OMNIBUS poderia propor a ação junto dos tribunais alemães mas também dos tribunais portugueses. F. O Tribunal a quo procurou sustentar a sua interpretação com base no acórdão do TJUE no caso VKI, decidindo que no presente caso se suscitaria questão análoga e considerando desnecessário suscitar a questão da interpretação das normas perante os tribunais europeus. G. Quanto à questão suscitada pelas Recorrentes relativa à não aplicabilidade do disposto no n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento UE n.º 1215/2012 às ações populares do tipo opt out, o Tribunal a quo considera que, (i) “não fazendo a norma em causa qualquer distinção entre tipos de ações, não deve igualmente o intérprete fazê-lo”; e que (ii) “para a decisão sobre a competência internacional do tribunal confluem diversos fatores, conforme decisões já proferidas sobre o assunto pelo TJUE, em nenhuma delas se abordando como relevante o tipo de ação proposta”. H. O Tribunal a quo julgou ainda a questão da competência jurisdicional interna, considerando ser de deduzir das alegações da Recorrida IUS OMNIBUS que as vendas e supostos danos respeitam a consumidores domiciliados em numerosos locais do território nacional e não só em Lisboa, e considerando que a jurisprudência europeia teria já decidido, a propósito dos direitos de personalidade, que o tribunal competente é aquele onde se situa o centro de interesses do lesado. I. Quanto à questão do domicílio plurilocalizado dos potenciais lesados, o Tribunal a quo invocou, por um lado, que no caso de ações em que uma associação de consumidores representa os interesses de um conjunto de consumidores, “a Lei permite a interposição de uma única ação em prol dos interesses de todos os representados, independentemente do seu local de residência, desde que este se situe em Portugal.”. E, por outro lado, procurou suportar-se no vertido no acórdão do STJ do caso Volkswagen de 14 de novembro de 2021, utilizando ainda o acórdão para afirmar a desnecessidade de realizar um reenvio prejudicial para o TJUE a este respeito. J. O Tribunal a quo acabou por julgar improcedente a exceção de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses invocada pelas Rés, julgando-se como tribunal competente para conhecer da ação interposta pela Recorrida, com o fundamento em que Portugal seria “o lugar onde ocorreu o facto danoso” nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 – no entanto, esta norma não é aplicável ao presente caso, antes o sendo a regra geral constante do artigo 4.º do referido Regulamento. K. Conforme considerou a Decisão a quo, o conceito de “lugar onde ocorreu o facto danoso”, na aceção do artigo 7.o, n.º 2, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, tem sido interpretado como referindo-se “simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem deste dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes dois lugares”, conforme referido no caso VEB/BP (C-709/19). Todavia, tal conceito não pode ser objeto de uma interpretação extensiva, também conforme referido pelo TJUE no caso VEB/BP (C-709/19). L. Neste sentido, o único fator de conexão com o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é o domicílio da Recorrida MB PORTUGAL – que nunca poderia servir de elemento de conexão pertinente nos termos do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, uma vez que não apresenta qualquer relação com o locus delicti. M. A Recorrida IUS OMNIBUS não teve nem tem qualquer relação com as Recorrentes e com a Recorrida MB PORTUGAL, nem nunca sofreu quaisquer danos – alegando apenas representar os interesses dos consumidores adquirentes de veículos da marca “Mercedes-Benz” que podem residir em muitos lugares diferentes, em Portugal ou até noutros países, mas não necessariamente em Lisboa. N. Para que os tribunais portugueses e o Tribunal a quo em concreto pudessem ser jurisdicionalmente competentes à luz do disposto no n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, seria necessário concluir que Lisboa constitui efetivamente, (i) o lugar do (alegado) evento causal; ou (ii) o lugar da (alegada) materialização do (alegado) dano. O. Quando aferido sob o prisma do “lugar do evento causal”, para efeitos de aplicação do critério especial previsto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) 1215/2012, dever-se-á considerar como o “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”, o lugar onde se teria verificado o suposto “facto danoso”, ou seja, o lugar onde se procedeu à conceção e produção dos veículos automóveis em apreço e à suposta conceção, fabrico, instalação, calibração, etc., dos ditos dispositivos manipuladores ilegais nos mesmos – que não seria certamente em Portugal e muito menos ainda em Lisboa, como a Decisão a quo indiretamente conclui. P. Neste sentido, aqui se recorda que (i) os veículos da marca “Mercedes-Benz” alegadamente em causa, bem como o software e o hardware correspondente aos alegados “Dispositivos Manipuladores Ilegais” e que, na tese da Recorrida IUS OMNIBUS consubstanciam os supostos factos danosos que provocaram os hipotéticos danos, foram fabricados fora de Portugal e certamente fora de Lisboa; (ii) as Recorrentes e a Recorrida MB PORTUGAL não dispõem nem nunca tiveram quaisquer fábricas no território correspondente à Comarca do Tribunal a quo (em Lisboa) – e nem sequer em qualquer outra parte do território nacional português; (iii) a Ré MB PORTUGAL, em particular, apenas importa e distribui junto dos concessionários as viaturas da marca “Mercedes-Benz” “chave-na-mão” a partir da sua sede em Sintra, sendo totalmente alheia quanto à conceção, integração ou manutenção dos veículos ou quaisquer partes dos mesmos; e (iv) as Recorrentes C e MERCEDES-BENZ, em particular, não tiveram nem têm qualquer atuação ou atividades em Portugal. Q. A crer no próprio TJUE e em caso que partilha algumas semelhanças com o presente – o caso VKI – tal lugar corresponderia e estaria localizado no Estado-Membro Alemanha, o que aliás a Decisão a quo acaba indiretamente por concluir, por referência à competência dos Tribunais Alemães por serem os tribunais do Estado-Membro “onde se encontram as fábricas dos veículos afetados, onde terão sido colocados os dispositivos manipuladores”. R. Já quanto ao local de materialização do dano, este tem que corresponder ao local em que o dano inicial foi causado, conceito este que também não pode ser interpretado de modo extensivo, pelo que tem que corresponder a um fator de conexão que atribui competência por razões de boa administração da justiça, obtenção de prova e de organização útil do processo, conforme amplamente sustentado pela jurisprudência europeia. S. Com efeito, o artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 confere não apenas jurisdição internacional a um (específico) tribunal nacional, mas também determina “direta e imediatamente tanto a competência internacional como a competência territorial ao tribunal do lugar onde ocorreu o dano”, conforme referido no caso RH/Volvo (C-30/20). T. Assim, apenas o tribunal em cujo território específico onde o dano (inicial) foi sofrido se encontra suficientemente próximo do caso em questão para que se justifique a sua especial jurisdição de acordo com o aludido artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012. U. No entanto, o critério relativo ao “lugar da materialização dos danos” é inadequado para ações coletivas do tipo opt-out, como a ação em apreço, uma vez que a apreciação deste tipo de ações é independente e abstrata de quaisquer danos individuais, o que faz com que a questão dos danos neste tipo de ações se traduza num elevado nível de abstração – pelo que os concretos danos que quaisquer sujeitos possam ter individualmente (e alegadamente) sofrido no território jurisdicional do tribunal não constituem um tema relevante. V. E o TJUE tem considerado que o exercício de verificação da aplicação do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, no que respeita à identificação do lugar da materialização do dano deve ser feita “para cada pretensa vítima individualmente considerada” – caso CDC Hydrogen Peroxide SA (C-352/13). W. Em conformidade e num caso como o presente, sempre seria substancialmente impossível para o Tribunal a quo determinar qual o local de materialização do dano para todos e cada um dos consumidores alegadamente representados pela Recorrida IUS OMNIBUS e, em particular, aferir se os mesmos se localizariam no âmbito da sua competência internacional e territorial – a Comarca de Lisboa. X. As ações coletivas como a presente ação popular diferem de ações em que os pedidos individuais são agrupados ou consorciados (tal como sucedeu no caso VKI), e em que é possível debater acerca da identidade das partes originalmente detentoras dos direitos invocados e o local em que estas terão sofrido os danos que alegam. Y. Em tais casos, uma análise individualizada do locus damni, tal como requerida pelo disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, pode e deve ter lugar – mas conforme supra referido, numa ação do tipo opt-out tal análise individualizada é simplesmente impossível de realizar. Z. A Recorrida IUS OMNIBUS não tem qualquer relação com as Rés e nem sequer sofreu ela própria quaisquer danos, uma vez que age (abstratamente) em representação dos consumidores que considera terem sido afetados com a alegada conduta ilegal das Rés – não se vislumbrando qualquer fator de conexão jurisdicional relevante que pudesse motivar a não aplicação da regra geral constante do artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012. AA. Ademais, as regras jurisdicionais consagradas no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 foram concebidas para as situações tradicionais em que um ou mais autores interpõem uma ação contra um ou mais réus, não incluindo qualquer categoria separada relativa a ações coletivas. BB. O disposto no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 não só não contém disposições específicas sobre as ações de tutela coletiva como, pelo menos o respetivo artigo 7.º, n.º 2, não é suficiente para servir de base a ações coletivas transfronteiras na União Europeia – o que foi, aliás, confirmado pelo legislador europeu aquando da redação da Diretiva (UE) n.º 2020/1828, de 25 de novembro de 2020 que manteve inalterado o regime de competência judiciária internacional do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, tal como o respetivo projeto de Decreto-Lei de transposição da referida Diretiva para o ordenamento jurídico português. CC. Em suma, é notório que o critério do lugar da materialização dos (alegados) danos, previsto no n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, não é um critério adequado para constituir elemento de conexão para determinação da jurisdição competente no que respeita a ações coletivas como é o caso da presente ação popular. DD. Apenas o critério relativo ao domicílio do demandado, previsto no artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, se afigura como o único adequado para determinação da jurisdição internacionalmente competente – o que impõe que não sejam os tribunais portugueses os competentes para julgar uma ação como a ora proposta pela Recorrida IUS OMNIBUS. EE. As Recorrentes C e Btêm a sua sede social, administração central e estabelecimento principal na Alemanha – devendo ser demandadas perante os tribunais Alemães – ao passo que a Ré MB PORTUGAL tem a sua sede em Sintra e, portanto, fora da área de competência jurisdicional territorial do Tribunal a quo. FF. Também nenhuma das exceções ao critério geral do domicílio da sede social decorrentes do artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 se verificam, pelo que não podem os tribunais portugueses – e, em particular e mais especificamente, o Tribunal Judicial da Comarca deLisboa – considerar-se internacionalmente e territorialmente competentes para julgar as pretensões da Recorrida IUS OMNIBUS. GG. De resto, também não se pode considerar que o acórdão do TJUE no caso VKI teria esclarecido a questão relativa à aplicabilidade da determinação do local de materialização do dano a respeito de ações coletivas do tipo opt-out. O caso Volkswagen é diferente e não soluciona um caso como o presente, tendo o STJ procedido a uma interpretação errónea do mesmo. HH. A jurisprudência do TJUE é, pela sua própria natureza, específica e influenciada pelos factos particulares do caso que julga, bem como pelo teor e forma das questões prejudiciais que lhe são colocadas pelos tribunais nacionais de reenvio. II. Ora, no presente caso, é manifesto que os principais factos e circunstâncias jurídicas são substancialmente diferentes dos que foram apreciados e decididos pelo TJUE no referido caso VKI, o que, por si, sempre militaria contra a sua aplicação tout court: (i) o caso VKI não tinha por base uma ação coletiva como sucede no presente caso; (ii) a VKI atuava no processo nacional austríaco em seu próprio nome, apenas representando consumidores após e na sequência de uma cessão dos respetivos direitos para o efeito; (iii) podendo até dizer-se que a situação em causa estaria mais próxima de um sistema de opt-in. JJ. Tal como exigido pelos termos do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 e consistentemente confirmado pela jurisprudência do TJUE, no caso VKI era possível às partes e ao tribunal determinar concreta e especificamente “o lugar onde ocorreu o facto danoso” relativamente a cada um dos pedidos, mas no presente caso, tal não acontece, desconhecendo-se inclusivamente uma série de elementos relacionados com os alegados Veículos Afetados ou que permitem identificar os ditos consumidores. KK. O Tribunal a quo sempre estaria impedido de substancialmente determinar o lugar da materialização de quaisquer dos supostos danos (a supor sem conceder a respetiva existência) relativa e individualmente a cada um dos supostos lesados. LL. E nem se pretenda sustentar que se trataria de aplicar um qualquer tratamento diferenciado às ações coletivas ou de distinguir onde a norma não distingue – tratar-se-ia antes de reconhecer as respetivas diferenças e particularidades que podem e devem motivar certas especificidades quanto à concreta aplicação das regras jurisdicionais constantes do Regulamento (UE) n.º 1215/2012. MM. Em todo o caso, a Lei de Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de agosto) não determina qual o tribunal competente para analisar as situações aí descritas, ao contrário do que a Decisão pretendeu indiretamente fazer crer. NN. E mesmo que assim não fosse, por aplicação direta do artigo 288.º do TFUE e do princípio do primado do direito da União Europeia sobre o direito nacional, bem como do disposto nos artigos 7.º e 8.º da Constituição da República Portuguesa, a Lei de Ação Popular portuguesa não poderia contrariar ou ser aplicada contrariando as regras estabelecidas no Regulamento (UE) n.º 1215/2012, em particular o seu artigo 7.º, n.º 2, se considerado aplicável. Se assim fosse, a Lei de Ação Popular deveria ser simplesmente afastada ou interpretada à luz do disposto no Regulamento (UE) n.º 1215/2012. OO. Também a referência do STJ relativa ao acórdão Henkel se encontra descontextualizada. PP. E mais se refere que, ao contrário do que o STJ considerou, não se afigura irrelevante a questão de se os veículos se mantêm ou não em Portugal, porque tal será naturalmente pertinente para aferir se quaisquer danos se teriam materializado em Lisboa, bem como para calcular os mesmos. QQ. Por estes motivos, todas as referidas diferenças militam em desfavor de uma aplicação precipitada e acrítica do entendimento do TJUE no referido caso VKI e do acórdão do STJ no caso Volkswagen aos presentes autos. RR. Também não seria o facto de a MB PORTUGAL estar domiciliada em Portugal suficiente para determinar a competência do Tribunal de Lisboa ao abrigo de outras normas, nomeadamente do artigo 8.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012. SS. O artigo 8.º, tal como o artigo 7.º, atribui competência internacional e territorial, pelo que o Tribunal a quo apenas poderia ser competente através do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 se fosse um tribunal “do lugar onde qualquer um deles [isto é: uma das Recorrentes] tenha o seu domicílio” – e não tendo nenhuma das Recorrentes domicílio em Lisboa, o Tribunal a quo nunca poderia basear a sua competência nesta norma. TT. A disposição legal pretende evitar situações em que vários réus de diferentes países estão a ser julgados em relação à mesma série de factos ou entre diferentes processos instaurados por um mesmo autor contra vários réus, ou seja, evitar decisões inconciliáveis, e não situações como a do caso em apreço ou da ação popular em geral. UU. Não se coloca a questão da inconciliabilidade das decisões, na medida em que a situação de facto e de direito das referidas Rés, aqui Recorrentes, é diferente devido às diferentes atividades que cada uma delas exerceu, incluindo em diferentes localizações geográficas – o que de imediato afasta a existência de qualquer nexo estreito entre pedidos que se pudesse pretender extrair do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012. VV. Mesmo que a Recorrida MB PORTUGAL estivesse localizada no território correspondente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – que não está –, a competência jurisdicional internacional desse douto Tribunal apenas poderia ser extensível a pedidos apresentados com base nas mesmas alegações factuais e de direito contra a Recorrida MB PORTUGAL. WW. Nada obsta a que a alegada responsabilidade das Recorrentes seja aferida separadamente e nos tribunais dos seus respetivos domicílios, nos termos do disposto na regra geral do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, uma vez que também o artigo 8.º desse Regulamento também não poderia ser considerado aplicável. XX. O Tribunal a quo está ainda impossibilitado de criar novos fundamentos para a atribuição da jurisdição internacional – o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 não deixa qualquer margem para que os tribunais nacionais possam criar novas bases para atribuição de competência internacional, particularmente no caso de ações coletivas, conforme aliás confirmado pelo TJUE no caso Schrems I (C-498/16), bem como pelo Advogado-Geral Campos Sánchez-Bordona na sua Opinião no caso VEB/BP. YY. Conforme referiu o Advogado-Geral Sánchez-Bordona na sua Opinião no caso VEB/B, “o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012 fixa a competência territorial em simultâneo com a competência internacional”. ZZ. Além disso, a Recorrida IUS OMNIBUS (i) não é uma “empresa que se considera lesada” e que tenha adquirido bens afetados, de que fala o acórdão do TJUE citado pelo STJ – e por conseguinte pelo Tribunal a quo –, para justificar a atribuição de competência aos tribunais da área jurisdicional onde tais bens teriam sido adquiridos, e (ii) não adquiriu bens afetados em vários lugares, para que se pudesse extrapolar e concluir pela jurisdição da sede da demandante, à completa revelia das regras do Regulamento (UE) n.º 1215/2012. AAA. Caso se possibilitasse a aceitação de competência jurisdicional do modo entendido pelo Tribunal a quo, estar-se-ia a permitir um verdadeiro forum shopping. BBB. Em todo o caso e considerando todos os motivos expostos, consideram as Recorrentes que não poderão ser demandadas perante os tribunais portugueses, e mais concretamente perante o Tribunal a quo. CCC. Assim, a parte da Decisão que considerou que o Tribunal a quo era internacionalmente competente à luz das regras de competência internacional (e territorial) deve ser revogada e substituída por uma decisão que julgue procedente a exceção de incompetência do Tribunal a quo, por violar o artigo 7.º, n.º 2 e o artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, o artigo 288.º do TFUE e os artigos 7.º e 8.º da Constituição da República Portuguesa, devendo as Recorrentes ser absolvidas da instância. DDD. No Despacho Saneador, o Tribunal a quo julgou ainda improcedente a exceção de incompetência em razão da matéria que tinha sido arguida pelas Recorrentes na ação. EEE. Entendeu o Tribunal a quo que o objeto da presente ação não respeita à homologação dos veículos da marca Be que o Tribunal foi apenas chamado a pronunciar-se sobre um pedido que foi formulado com base numa violação, por parte das Recorrentes (e Ré MB PORTUGAL), das condições em que os veículos foram homologados (e das suas consequências para o ambiente, para a saúde pública e para os interesses dos consumidores) e nenhum comportamento ativo ou omissivo por parte da KBA contribuiu para essa violação. Pelo que o Tribunal a quo considerou que a decisão a proferir nesta ação não é suscetível de pôr em causa a homologação dos referidos veículos. FFF. O Tribunal a quo errou na apreciação e decisão da exceção de incompetência em razão da matéria, porquanto não atendeu ao objeto da ação e ao regime jurídico que lhe é aplicável. GGG. A causa de pedir da pretensão da Recorrida IUS OMNIBUS baseia-se na alegada infração, resultante da alegada instalação, utilização e manutenção, por parte das Recorrentes (e MB PORTUGAL), de dispositivos manipuladores ilegais, nos termos do n.º 10 do artigo 3.º do Regulamento Emissões (artigo 4.º da Petição Inicial). HHH. Com base nesta causa de pedir, a Recorrida IUS OMNIBUS pediu ao Tribunal a quo que declarasse que as Recorrentes (e MB PORTUGAL) instalaram e mantiveram dispositivos manipuladores ilegais nos Veículos Afetados, implicando assim um aumento das emissões de NOx superior aos limiares legais, e que as Recorrentes (e MB PORTUGAL) fossem condenadas a reconhecer este facto (sendo os restantes pedidos formulados na ação dependentes destes outros). III. Considerando o quadro legal aplicável, o Tribunal a quo não tem competência para apreciar e avaliar se um determinado veículo ou um determinado grupo de veículos contém dispositivos manipuladores (ilegais) e não pode executar os procedimentos técnicos que o legislador entendeu deverem ser atribuídos às entidades homologadoras. JJJ. O Regulamento Emissões estabelece os termos técnicos da homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6), e tem por objetivo harmonizar esses requisitos, a fim de evitar requisitos diferentes de um Estado-Membro para outro. KKK. Cabe à KBA avaliar e determinar se estão ou não instalados dispositivos manipuladores nos chamados Veículos Afetados devidamente homologados, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 10, do Regulamento Emissões e, em caso afirmativo, se são ou não abrangidos pelas exceções previstas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 5º do Regulamento Emissões, caso em que os referidos dispositivos seriam legalmente admissíveis. LLL. Embora a concessão da homologação CE pela KBA constitua um ato administrativo de direito alemão, o mesmo produz efeitos e vincula os demais Estados-Membros por força do mecanismo de reconhecimento mútuo constante da Diretiva n.º 2007/46/CE, a não ser que o mesmo venha a ser impugnado de acordo com os mecanismos disponíveis na lei alemã para esse efeito. MMM. Tanto as ordens de recall emitidas pela KBA como as homologações são atos administrativos e o §35 do Código de Processo Administrativo Alemão define ato administrativo como qualquer ordem, decisão ou outra medida soberana adotada por uma autoridade para regular um caso individual na esfera do direito público e destinada a ter um efeito jurídico direto e externo. NNN. Por seu turno, o §43 para. 2 do Código de Processo Administrativo alemão estabelece que um ato administrativo se mantém eficaz enquanto não for revogado, anulado, cancelado ou expirar por razões de decurso do tempo ou por qualquer outro motivo, podendo ser impugnados em tribunal de acordo com a Sec. 42 para. 1 do Código de Processo Administrativo Alemão. OOO. As ordens de recall emitidas pela KBA foram impugnadas pelas Recorrentes perante o Tribunal Administrativo de Schleswig-Holstein, na Alemanha, encontrando-se pendentes. PPP. Ao apreciar e decidir a presente ação, o Tribunal a quo apreciaria e decidiria se as homologações originais dos veículos em questão tinham violado o n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 715/2007 e se as ordens de recall da KBA são justificadas, ambas em violação da jurisdição exclusiva dos tribunais administrativos alemães e do mecanismo de reconhecimento mútuo constante da Diretiva 2007/46/CE. QQQ. Ao contrário do que foi decidido na Decisão a quo, a alegação da Recorrida IUS OMNIBUS pressupõe, assim, que o Tribunal a quo analise e aprecie o comportamento ativo ou omissivo por parte da KBA, uma vez que as homologações dos veículos afetados foram emitidas pela KBA, são definitivas, não foram revogadas e não há qualquer objeção ou recurso contra elas; o pedido da IUS OMNIBUS implicaria uma decisão (explícita ou implícita) de que as homologações emitidas pela KBA não deveriam ter sido emitidas ou deveriam ter sido alteradas/revogadas. RRR. A Decisão a quo violou, assim, os artigos 3.º, n.º 10, 5.º, n.º 2, do Regulamento Emissões, §35 e §43 para. 2 do Código de Processo Administrativo Alemão, e a Diretiva n.º 2007/46/CE. SSS. Em consequência, a Decisão a quo deverá ser revogada na parte em que julgou improcedente a exceção de incompetência em razão da matéria e, em consequência, deverão as Recorrentes ser absolvidas da instância, nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a), todos do CPC. TTT. Por último e a título subsidiário, as Recorrentes estão convictas da interpretação que propugnam do direito da União Europeia aplicável nos presentes autos, em particular das relevantes disposições legais supra citadas. Sucede que essa interpretação não é partilhada pela Recorrida IUS OMNIBUS, nem foi acolhida pelo Tribunal a quo. UUU. Caso este Douto Tribunal ad quem tenha dúvidas sobre o entendimento perfilhado nas presentes Alegações, o mesmo deverá recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial (para o que se sugerem desde já as respetivas questões), referido na alínea b) e segundo parágrafo do artigo 267.º do TFUE, o qual deverá, se assim o entender, ter em conta os termos previstos nas Recomendações do Tribunal de Justiça a esse mesmo respeito64, expondo adequadamente o quadro factual e jurídico do caso em análise. “ Terminam nos seguintes termos: “Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos por V. Exas., Juízes Desembargadores: “a) deverá a parte da Decisão que considerou que o Tribunal a quo tem competência internacional (e territorial) ser revogada e substituída por uma decisão que julgue procedente a exceção de incompetência internacional do Tribunal a quo, em razão das regras de competência internacional (e territorial) e, em conformidade, deverão as Recorrentes ser absolvidas da instância nos termos do disposto nos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a) do CPC; e, b) deverá a parte da Decisão que considerou que o Tribunal a quo é competente em razão da matéria ser revogada e substituída por uma decisão que julgue procedente a exceção de incompetência do Tribunal a quo em razão da matéria e, em conformidade, deverão as Recorrentes ser absolvidas da instância nos termos do disposto nos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a) do CPC; Subsidiariamente e no que respeita à competência internacional dos tribunais portugueses à luz das regras de competência internacional (e territorial), deverá ser determinado o reenvio prejudicial nos termos da alínea b) e segundo parágrafo do artigo 267.º do TFUE. “ *** A Autora Associação Ius Omnibus, notificada do requerimento de recurso e respetivas alegações das Rés C AG e BAG veio apresentar a suas contra-alegações, as quais termina com o seguinte “Sumário”: “1) A competência é aferida pela causa de pedir tal como conformada pelo Autor, sendo decidida de acordo com a factualidade alegada pelo Autor, considerando-se assentes as alegações pertinentes do demandante quanto aos requisitos da competência. 2) Alegando-se numa ação popular para defesa dos consumidores, que se fundamenta em responsabilidade contratual e extra-contratual, que o local de cumprimento das obrigações era em todo o território nacional, e que o local da materialização do dano foi em todo o território nacional, são internacionalmente competentes os Tribunais nacionais, conforme resulta dos arts. 7º, nº 1 al. a) e b) e nº 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro. 3) Numa ação popular em que a competência territorial se afira pelo local da materialização do dano ou do local do cumprimento da obrigação, são sempre competentes todos os Tribunais com competência territorial no local que integre o âmbito geográfico delimitado pelo Autor, que correspondam à delimitação da materialização dos danos alegados pelo Autor ou da delimitação do local do cumprimento da obrigação. 4) Neste caso, pode o Autor escolher propor a ação em qualquer um dos Tribunais territorialmente competentes. 5) Tendo sido efetuada a opção por um dos Tribunais competentes com recurso a um elemento de conexão relevante - o local da sede da Autora, na qualidade de representante de todos os consumidores – é este Tribunal internacionalmente competente e territorialmente competente. 6) O artigo 18.º, n.º 1, o artigo 26.º, n.º 1, e o artigo 46.º da Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, alterada pelo Regulamento (CE) n.º 385/2009 da Comissão, de 7 de maio de 2009, lido em conjugação com o artigo 5. º, n. º 2, do Regulamento (CE) n.º 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007), protegem além de interesses gerais, os interesses particulares do comprador individual de um veículo a motor face ao seu fabricante quando este veículo está equipado com um dispositivo manipulador proibido. 7) Os Tribunais Judiciais são os materialmente competentes para apreciar pedidos de responsabilidade civil contratual ou extra-contratual a favor de consumidores, formulados em ação popular (proposta por associação de defesa dos consumidores) contra sociedades comerciais construtoras ou distribuidores de viaturas, com fundamento na violação das disposições de Direito da União supra referidas (art. 144º e art. 40º da LSOJ, art. 64º do CPC e art. 4º do ETAF). 8) Existindo decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia que resolve a questão da interpretação do art. 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, reforçada pela Diretiva (UE) 2020/1828, não existem dúvidas que justifiquem um reenvio prejudicial, que apenas levaria à repetição da jurisprudência já formada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. 9) Pelo contrário, existe uma obrigação dos tribunais nacionais de interpretarem aquela norma em conformidade com o que foi esclarecido na jurisprudência do TJUE, por força do princípio da cooperação leal, pelo que é com essa interpretação que a mesma deve ser considerada. Deve, como tal, ser julgado improcedente o presente recurso, mantendo-se o douto despacho saneador em crise, com todas as legais consequências. “ *** A Associação Ius Omnibus, Autora, notificada do requerimento de recurso e respetivas alegações da Ré BPortugal, SA, apresentou contra-alegações que terminam com o seguinte sumário: “1) A competência é aferida pela causa de pedir tal como conformada pelo Autor, sendo decidida de acordo com a factualidade alegada pelo Autor. 2) O artigo 18.º, n.º 1, o artigo 26.º, n.º 1, e o artigo 46.º da Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, alterada pelo Regulamento (CE) n.º 385/2009 da Comissão, de 7 de maio de 2009, lido em conjugação com o artigo 5. º, n. º 2, do Regulamento (CE) n.º 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007), protegem além de interesses gerais, os interesses particulares do comprador individual de um veículo a motor face ao seu fabricante quando este veículo está equipado com um dispositivo manipulador proibido. 3) Os Tribunais Judiciais são os materialmente competentes para apreciar pedidos de responsabilidade civil contratual ou extra-contratual a favor de consumidores, formulados em ação popular (proposta por associação de defesa dos consumidores) contra sociedades comerciais construtoras ou distribuidores de viaturas, com fundamento na violação das disposições de Direito da União supra referidas (art. 144º e art. 40º da LSOJ, art. 64º do CPC e art. 4º do ETAF). Deve, como tal, ser julgado improcedente o presente recurso, mantendo-se o douto despacho saneador em crise, com todas as legais consequências.” *** Por requerimento de 04.10.2023 (Referência: 95827) o Ministério Publico também apresentou contra-alegações ao recurso interposto pelas rés C AG e BAG, nas quais formula as seguintes conclusões: II- CONCLUSÕES 1. Não se verificam os pressupostos para o reenvio prejudicial. Tal reenvio para o TJUE só se justifica quando o julgador tenha dúvidas quanto ao sentido e alcance de alguma disposição do direito da União Europeia. 2. Atento o efeito erga omnes do caso Verein für Konsumenteinformation c. Volkswagen AG, C-343/19 de 9/7/2020, não só não se justifica a formulação de um novo pedido de decisão prejudicial sobre a interpretação do art. 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, como também se impõe respeitar a interpretação dada a esta norma pelo TJEU. 3. De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, o conceito de «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», contido no art. 7º, nº 2 do Regulamento nº 1215/2012, refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que as rés podem ser demandadas, à escolha do autor, perante o tribunal de um ou outro destes lugares. 4. A competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pejo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido. 5. Na lógica da configuração oferecida pela autora à sua pretensão, não está em discussão a homologação das viaturas ou qualquer ação ou omissão dessa entidade alemã. 6. Decidindo como decidiu, a Mª Juiz a quo fez uma adequada e correta aplicação do Direito. 7. A decisão proferida nos autos, encontra-se, assim, devidamente fundamentada e resolveu todas as questões arguidas pelas rés. 8. Pelo exposto, deverá ser mantida a douta decisão recorrida, julgando-se o presente recurso improcedente.” *** Por requerimento de 04.10.2023 com ref. 95829, o Ministério Publico apresentou novo requerimento de contra-alegações, com conclusões de teor idêntico aquele que havia apresentado com a ref. 95827. *** Foi admitido o recurso interposto pelas Rés, deferindo o requerimento apresentado em 15/09/2023 (46519193), como apelação, com subida imediata, em separado dos autos principais, com efeito meramente devolutivo. *** Já neste Tribunal da Relação de Lisboa foi em 31.05.2024 proferido despacho que indeferiu a pretensão apresentadas pelas recorrentes em requerimento de 12.02.2024 no sentido de que os presentes autos aguardassem pela decisão do TJUE relativamente ao reenvio prejudicial realizado pelo Tribunal de Amesterdão no caso das Fundações e Empresas Apple (processo C-34/24). *** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** Objeto dos recursos: Em face das conclusões apresentadas nas alegações dos recursos, são as seguintes as questões a decidir: - Competência internacional dos tribunais portugueses para apreciarem e decidirem a ação interposta pela Autora contra as Rés (recurso interposto pelas RR. C AG e BAG). - Competência material dos tribunais judiciais portugueses para apreciarem e decidirem a ação interposta pela Autora contra as Rés (recurso interposto pela Ré BPortugal, SA e recurso interposto pelas RR C Ag e BAg). *** Fundamentação de facto: Os factos a considerar são aqueles referidos em sede de Relatório. *** Fundamentação de Direito: Estão em causa dois recursos de apelação do saneador sentença proferido pelo tribunal a quo, um apresentado pela Ré B Portugal, SA, e outro apresentado pelas RR C Ag e B Ag. O recurso apresentado pela Ré B Portugal, SA incide sobre o segmento do saneador sentença que aprecia a competência material dos tribunais judiciais portugueses para apreciarem e decidirem a ação interposta pela Autora contra as Rés. Já o recurso apresentado pelas RR C Ag e B Ag incide tanto sobre o segmento do saneador sentença que aprecia a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciarem e decidirem a ação interposta pela Autora contra as Rés como sobre o segmento que aprecia a competência material dos tribunais judiciais portugueses para apreciarem e decidirem a mesma ação. Comecemos por analisar o recurso apresentado pelas RR C Ag e B Ag, pois o conhecimento da questão relativa à competencia internacional dos tribunais judiciais portugueses precede logicamente o conhecimento da questão referente à competencia material dos mesmos tribunais (art 608 nºs 1 e 2 do CPC aplicável, com as necessárias adaptações, ex vi do art 663 nº2 do CPC). Passemos então a apreciar o recurso destas RR sobre a decisão da 1ª instância que julgou improcedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses. No âmbito do recurso, as RR C AG e B AG consideram que os tribunais portugueses, e designadamente o Tribunal de Lisboa, são incompetentes para julgar a causa, na parte que a elas respeita, por terem o seu domicílio fora de Portugal, requerendo a sua absolvição da instância. Alicerçam a sua posição no critério geral de competencia jurisdicional previsto no art. 4 nº1 do Reg. 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, refutando a aplicação ao caso dos critérios especiais previstos nos arts 7º e 8º do mesmo Regulamento. Sobre a questão pronunciou-se o tribunal a quo nos seguintes termos: “A incompetência internacional é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição da instância – art.s 96º, a) 97º, nº1, 98º, 576º e 577º, a) CPC. Dispõe o art. 59º CPC: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º. No caso em análise, as próprias Rés aceitam que estamos perante um litígio plurilocalizado, que envolve dois Estados Membros da União Europeia, o Alemão, onde as primeiras Rés estão estabelecidas e o Português, onde residem os consumidores alegadamente prejudicados. Resulta, desde logo, da norma supra referida que, para a determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, é prevalecente o que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais. A competência fixa-se no momento da propositura da acção e afere-se nos termos em que a acção é proposta e à luz dos factos ou razões aduzidas pelo Autor. Assim, a determinação do tribunal internacionalmente competente está condicionada à natureza da relação jurídica configurada pelo Autor, ou seja, da causa de pedir por este invocada e ao pedido formulado. Segundo a versão dos factos apresentada pela Autora, esta imputa às Rés uma conduta intencionalmente violadora de normas destinadas a proteger interesses alheios, nomeadamente, a violação do art. 10º, nº3 do Regulamento (CE) n.º 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2007, através da instalação nos veículos do tipo dos identificados, de dispositivos manipuladores alegando que, em consequência dessa conduta, os consumidores dos veículos afectados sofreram danos na sua esfera jurídica pelo menor valor dos veículos adquiridos nestas circunstâncias, representando a Autora, nesta acção, os interesses dos consumidores prejudicados. São normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais de um Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações transnacionais. Na ordem jurídica portuguesa vigoram normas de fonte interna e normas de fonte supra estadual, destacando-se com interesse para o caso dos autos: - O Regulamento (CE) nº1215/12 de relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 15/01/2015, sendo directamente aplicável a todos os Estados Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (artigos 1°, 68° e 76° e, em Portugal, o artigo 8° da Constituição da República Portuguesa) Estas normas de direito internacional prevalecem sobre as normas internas reguladoras da competência internacional dos tribunais portugueses. As partes não discutem a aplicabilidade ao caso do Regulamento, divergindo antes sobre o âmbito de aplicação das regras de competência que resultam, designadamente, dos arts 4º e 7º, nº1 e 2, 8º, 17º e 18º. Em conformidade com os Considerandos 13. e 15. do regulamento, o art. 4º estabelece que, independentemente da sua nacionalidade, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro. Esta regra geral do domicílio do réu é reforçada pelo art. 5º, nº1, nos termos do qual “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”. O art. 7º insere-se precisamente na secção 2 do regulamento, estabelecendo uma regra especial de competência, que, além do mais, permite que “as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso” (nº 2); podendo ainda ser demandadas noutro Estado- Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão (nº1). De acordo com as referidas normas, o autor tem a possibilidade de escolher entre propor a acção nos tribunais do Estado-Membro do domicílio do réu ou nos tribunais do Estado-Membro que sejam competentes à luz do critério especial. Deixamos aqui já expresso que, considerando a causa de pedir invocada, tratamos nesta acção, de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito imputado aos Réus a título de culpa, ou seja, não se pretende o exigir das Rés o cumprimento de obrigações contratuais nem se torna necessário analisar os contratos celebrados entre os consumidores portugueses e as Rés para decidir o litígio, pretendendo-se, sim, efectivar a responsabilidade civil das Rés, por factos ilícitos causadores de dano. Deste modo, devemos atender ao disposto no art. 7º, nº2 do Regulamento para aferir a existência de competência internacional dos Tribunais Portugueses. Conforme se decidiu no Ac. do TJUE de 18/7/2013, P. C-147/12, “o conceito de matéria extracontratual na acepção do art. 5º, ponto 3, do Regulamento nº 44/2001 (anterior diploma regulador competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, revogado e substituído pelo Regulamento 1215/2012, ao qual se aplica a decisão aqui mencionada, por conter o referido diploma, neste mesmo âmbito, disposições equivalentes), abrange qualquer acção que tenha em vista pôr em causa a responsabilidade do demandado e que não esteja relacionada com a matéria contratual (…) Como se vê, o que seja matéria extracontratual é uma questão tratada com grande amplitude. Para melhor delimitação do conceito, esclareceu o acórdão do TJUE de 24 de novembro de 2020, processo C-59/19, que “quando o demandante invoca, na sua petição, as regras da responsabilidade extracontratual, a saber, a violação de uma obrigação imposta por lei, e não se afigura indispensável examinar o conteúdo do contrato celebrado com o demandado para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento censurado a este último, uma vez que tal obrigação se impõe ao demandado independentemente desse contrato, o fundamento da ação enquadra-se na matéria extracontratual, na aceção do artigo 7º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012” Por outro lado, sobre o que se deva entender por “lugar onde ocorreu ou deverá ocorrer o facto danoso” o TJUE tem vindo a considerar que esse lugar tanto abrange o lugar onde se verificou o evento causal, como aquele onde se verificou o facto danoso. Com efeito, aquilo que é relevante é que exista uma forte ligação entre o litígio e o tribunal. Permite-se, dessa forma, julgar o litígio com maior proximidade em relação ao lugar onde ocorreu efectivamente o dano». Pode dizer-se que nos termos que a jurisprudência do TJUE tem vindo a fixar que o lugar de materialização do prejuízo é o local em que o facto gerador, implicando a responsabilidade extracontratual do seu autor, produziu efeitos danosos em relação à vítima. Por isso, mais uma vez, o Autor pode propor a acção perante os Tribunais Alemães, ou seja, perante os tribunais do Estado-Membro no qual se encontram sediadas as Rés construtoras e onde se encontram as fábricas dos veículos afectados, onde terão sido colocados os dispositivos manipuladores mas também nos tribunais do Estado Membro onde se verificaram os danos, neste caso, Portugal, com referência aos consumidores domiciliados em Portugal que adquiriram os veículos afectados em território nacional ou que aqui os matricularam para com eles circular. Elucidativo da bondade desta interpretação é o teor do acórdão do TJUE de 09/preferido no processo de reenvio prejudicial C-343-19, que, na parte que interessa aos presentes autos proclama: “25 Por outro lado, quanto ao lugar da materialização do dano, há que determinar onde esse lugar se situa em circunstâncias como as do litígio no processo principal, ou seja, quando as consequências danosas só se manifestaram depois da aquisição dos veículos em causa e noutro Estado‑Membro, no caso, na Áustria. 26 A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio declarou, precisamente, que, segundo jurisprudência constante, o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» não pode ser interpretado objeto de uma interpretação de tal modo extensivo que englobe qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um dano efetivamente ocorrido noutro lugar. Por conseguinte, este conceito não pode ser interpretado no sentido de que inclui o lugar onde a vítima alega ter sofrido um dano patrimonial subsequente a um dano inicial ocorrido e sofrido por ela noutro Estado (Acórdãos de 19 de setembro de 1995, Marinari, C‑364/93, EU:C:1995:289, n.os 14 e 15, e de 29 de julho de 2019, Tibor‑Trans, C‑451/18, EU:C:2019:635, n.o 28 e jurisprudência referida). 27 O Tribunal de Justiça já declarou igualmente, em relação ao artigo 5.o, ponto 3, da Convenção de Bruxelas, que um dano que constitui apenas a consequência indireta do dano inicialmente sofrido por outras pessoas que foram diretamente afetadas pelo dano concretizado num lugar diferente daquele onde o lesado indireto veio depois a sofrer o dano não pode fundar a competência jurisdicional ao abrigo dessa disposição (v., neste sentido, Acórdão de 11 de janeiro de 1990, Dumez France e Tracoba, C‑220/88, EU:C:1990:8, n.os 14 e 22). 28 Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça já declarou que as consequências lesivas posteriores não são suscetíveis de fundar uma atribuição de competência com base no artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012 (v., neste sentido, Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor‑Trans, C‑451/18, EU:C:2019:635, n.o 27 e jurisprudência referida). 29 Assim, no processo principal, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, sem prejuízo da apreciação dos factos que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, que o dano alegado pela VKI consiste numa menos‑valia dos veículos em causa resultante da diferença entre o preço que o adquirente pagou por esse veículo e o seu valor real em razão da instalação de um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape. 30 Por conseguinte, apesar de esses veículos se encontrarem afetados por um vício desde a instalação desse programa informático, há que considerar que o dano invocado só se materializou no momento da compra dos referidos veículos, pela sua aquisição por um preço superior ao seu valor real. 31 Esse dano, que não existia antes da compra do veículo pelo adquirente final, que se considera lesado, constitui um dano inicial na aceção da jurisprudência recordada no n.o 26 do presente acórdão e não uma consequência indireta do dano inicialmente sofrido por outras pessoas na aceção da jurisprudência referida no n.o 27 do presente acórdão. 32 Por outro lado, contrariamente ao que o órgão jurisdicional de reenvio considera, este dano também não constitui um prejuízo puramente patrimonial. 33 É certo que a ação de indemnização em causa no processo principal visa obter uma compensação da redução do valor dos veículos em causa estimada em 30% do seu preço de compra, ou seja, uma compensação financeira quantificável. Todavia, como salientou a Comissão Europeia nas suas observações escritas, o facto de o pedido de indemnização ser expresso em euros não significa que se trate de um prejuízo puramente patrimonial. Com efeito, contrariamente aos processos que deram origem aos Acórdãos de 10 de junho de 2004, Kronhofer (C‑168/02, EU:C:2004:364); de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37); e de 12 de setembro de 2018, Löber (C‑304/17, EU:C:2018:701), nos quais certos investimentos financeiros tinham provocado uma diminuição dos ativos financeiros das pessoas em causa sem nenhuma ligação com um bem material, no processo principal, está em causa um vício que afeta veículos, que são bens materiais. 34 Assim, mais do que um dano puramente patrimonial, trata‑se, no caso presente, de um dano material resultante de uma perda de valor de cada veículo em causa e decorrente do facto de, com a revelação da instalação do programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, o pagamento efetuado para a aquisição desse veículo ter como contrapartida um veículo afetado por um vício e, portanto, com um valor inferior. 35 Há que concluir, portanto, que, no caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, o dano sofrido pelo adquirente final não é indireto nem puramente patrimonial e materializa‑se no momento da aquisição desse veículo a um terceiro. 36 Em circunstâncias como as referidas nos n.os 34 e 35 do presente acórdão, essa interpretação do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012 respeita o objetivo de previsibilidade das regras de competência, referido no considerando 15 deste regulamento, na medida em que um construtor automóvel estabelecido num Estado‑Membro que se dedique a manipulações ilícitas sobre veículos comercializados noutros Estados‑Membros pode razoavelmente esperar ser demandado nos órgãos jurisdicionais desses Estados (v., por analogia, Acórdãos de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 56, e de 12 de setembro de 2018, Löber, C‑304/17, EU:C:2018:701, n.o 35). 37 Com efeito, ao violar conscientemente as prescrições legais que lhe são impostas, esse construtor deve esperar que o dano se produza no lugar onde o veículo em causa foi adquirido por uma pessoa que podia legitimamente considerar que esse veículo estaria em conformidade com essas prescrições e que, em seguida, verifica que dispõe de um bem defeituoso e de menor valor. 38 Esta interpretação está igualmente em conformidade com os objetivos de proximidade e de boa administração da justiça, referidos no considerando 16 do Regulamento n.o 1215/2012, na medida em que, para determinar o montante do dano sofrido, o tribunal nacional pode ter de avaliar as condições do mercado no Estado‑Membro em cujo território esse veículo foi comprado. No entanto, os tribunais deste último Estado‑Membro podem ter mais facilmente acesso aos meios de prova necessários à realização dessas avaliações (v., neste sentido, Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor‑Trans, C‑451/18, EU:C:2019:635, n.o 34). 39 Por último, essa interpretação está em conformidade com as exigências de coerência previstas no considerando 7 do Regulamento Roma II, uma vez que, de acordo com o seu artigo 6.o, n.o 1, o lugar onde ocorreu o dano num processo que envolva um ato de concorrência desleal é o lugar onde «as relações de concorrência ou os interesses coletivos dos consumidores sejam afetados ou sejam suscetíveis de ser afetados». Um ato como o que está em causa no processo principal, que, sendo suscetível de afetar os interesses coletivos dos consumidores enquanto grupo, constitui um ato de concorrência desleal (Acórdão de 28 de julho de 2016, Verein für Konsumenteninformation, C‑191/15, EU:C:2016:612, n.o 42), pode afetar esses interesses em qualquer Estado‑Membro em cujo território o produto defeituoso seja comprado pelos consumidores. Assim, segundo o Regulamento Roma II, o lugar onde ocorreu o dano é o lugar onde o produto é comprado (v., por analogia, Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor‑Trans, C‑451/18, EU:C:2019:635, n.o 35). 40 Em face do exposto, há que responder à questão que o artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado‑Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado‑Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado‑Membro.” Analisada a petição inicial, podemos concluir que nos autos se suscita questão análoga àquela que foi dirimida pelo referido acórdão, pelo que, não só se aplica ao caso a jurisprudência fixada em tal acórdão, como se mostra desnecessário suscitar novamente a questão da interpretação correcta das normas aqui mencionadas, perante os Tribunais da União. Quanto à questão de saber se a norma prevista no art. 7º, nº2 do Regulamente se aplica ou não às acções populares como a presente, do tipo opt out, ou seja, aquelas que abrangem todos os consumidores não expressamente excluídos, não fazendo a norma em causa qualquer distinção entre tipos de acções, não deve igualmente o interprete fazê-lo. De resto, para a decisão sobre a competência internacional do tribunal confluem diversos factores, conforme decisões já proferidas sobre o assunto pelo TJUE, em nenhuma delas se abordando como relevante o tipo de acção proposta. E, finalmente, tratando-se de acção colectiva proposta por uma associação que representa os consumidores afectados domiciliados no território nacional, põem os Réus em causa que o tribunal territorialmente competente seja este tribunal de comarca de Lisboa, por não ser este o único local onde se materializaram os danos. Com efeito, não alega o Autor que os veículos afectados tenham sido vendidos em Lisboa ou respeitem a consumidores apenas aqui domiciliados. Aliás, pode deduzir-se das alegações do Autor que tais vendas terão ocorrido em vários locais do território nacional em que existam estabelecimentos que tenham tais veículos à venda e os danos verificados respeitem a consumidores domiciliados em numerosos locais do território nacional. Considerando tal pressuposto e decorrendo do disposto no art. 7º, nº2 do Regulamente, que o tribunal competente é o tribunal onde se materializa o dano, o que dizer quanto à competência do tribunal quando os danos se materializam em vários locais? A jurisprudência da União já analisou este problema a propósito dos direitos de personalidade, tendo decidido que o tribunal competente é aquele onde se situa o centro de interesses do lesado – vd Acórdão do TJUE de No presente caso, além da materialização de danos em vários locais temos igualmente um conjunto de lesados que terão a sua residência em vários locais do território nacional. Poderá esse facto retirar competência aos tribunais portugueses, nos termos expostos supra? Cremos que não. Nas acções populares do tipo da presente, em que o Autor é uma Associação de Consumidores que representa os interesses de um conjunto de consumidores, a Lei permite a interposição de uma única acção em prol dos interesses de todos os representados, independentemente do seu local de residência, desde que este se situe em Portugal. A Autora propôs a acção em Lisboa, lugar onde tem a sua sede. Assim quer em termos de competência internacional, quer em termos de competência territorial, consideramos o Tribunal de comarca de Lisboa competente para conhecer a presente acção. Foi essa a decisão do STJ (Acórdão de 14/10/2021 referido nos articulados das partes) em caso análogo ao presente e em que igualmente se considerou desnecessário o reenvio prejudicial para os tribunais da União para dar resposta à invocada dúvida de interpretação. Considerando o teor da referida decisão e não sendo o reenvio prejudicial obrigatório para o tribunal de 1ª instância, invocamos aqui os argumentos ali expendidos para recusar o reenvio prejudicial para dar resposta à questão concreta de saber qual o tribunal territorialmente competente nos casos em que os danos se materializam em vários pontos do território nacional e o Autor é uma entidade representativa de um conjunto de pessoas afectadas. Pelo exposto, julgo improcedente a excepção de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, julgando este tribunal competente para conhecer a presente acção. Notifique.” Como resulta do exposto supra a questão central a apreciar prende-se com a aplicabilidade ao caso dos autos do critério especial de atribuição de competência jurisdicional, no âmbito de litígios plurilocalizados, previsto no art. 7 nº2 do Regulamento EU 1215/2012, critério que foi o acolhido pelo tribunal a quo para justificar a competencia internacional dos tribunais portugueses para a apreciação da ação. Apreciemos. É incontroverso que nos encontramos perante litígio com partes domiciliadas em Portugal (autora e uma das Rés) e partes domiciliadas na Alemanha (as outras duas RR). Ou seja, perante litígio plurilocalizado, com conexão com dois Estados-Membros da União Europeia, Portugal e Alemanha. É, pois, aplicável o Regulamento (UE) nº 1215/2012 de 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciaria, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Este Regulamento Comunitário prevalece sobre a legislação nacional ordinária referente à competencia internacional. É o que resulta do art. 8º nº 4 da Constituição da Republica Portuguesa - que refere que as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático -, e do art. 288 do Tratado de Funcionamento da União Europeia - que refere que para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres, sendo os regulamentos, que têm caracter geral, obrigatórios em todos os seus elementos e diretamente aplicáveis em todos os Estados-Membros. O próprio art. 59 nº1 do CPC, norma nacional que define a competência internacional dos tribunais portuguesa, ressalva e salvaguarda o que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais. Veja-se que as recorrentes e a recorrida não questionam a aplicação do Regulamento (UE) nº 1215/2012 de 12 de dezembro à situação sub judice. Diferem apenas quanto às normas do Regulamente que consideram concretamente aplicáveis, sendo que as recorrentes consideram aplicável o disposto no art. 4 nº1, critério geral de atribuição de competência jurisdicional, afastando a aplicação das regras especiais previstas nos arts 7º e 8º, enquanto que a recorrida defende a aplicabilidade de tais regras especiais. O art. 4º nº1 do referido Regulamento dispõe que: “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.” Por sua vez, dispõe o art. 5º nº1 do Regulamento que: “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente Capítulo.” Entre essas regras encontra-se, na secção 2, o art. 7º, cuja redação, na parte pertinente para os autos se passa a reproduzir: “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: 1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será — no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, — no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado- -Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados; c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a); 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso; 3) (…) 4 (…) 5 (…) 6 (…) 7 (…).” Encontra-se também nessa secção 2 o art. 8º, que passamos a reproduzir: “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode também ser demandada: 1) Se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer um deles, desde que os pedidos estejam ligados entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente; 2) Se se tratar de chamamento de um garante à ação ou de qualquer incidente de intervenção de terceiros, no tribunal onde foi intentada a ação principal, salvo se esta tiver sido proposta apenas com o intuito de subtrair o terceiro à jurisdição do tribunal que seria competente nesse caso; 3) Se se tratar de um pedido reconvencional que derive do contrato ou do facto em que se fundamenta a ação principal, no tribunal onde esta última estiver pendente; 4) Em matéria contratual, se a ação puder ser apensada a uma ação em matéria de direitos reais sobre imóveis dirigida contra o mesmo requerido, no tribunal do Estado-Membro em cujo território está situado o imóvel.” Assim, da conjugação dos arts 4º nº1 e 5º nº1 resulta que o critério geral para atribuição de competência jurisdicional é do domicílio do reu, independentemente da sua nacionalidade. Pelo que o réu deverá ser demandado nos tribunais do Estado Membro onde se encontra domiciliado. Todavia, nos casos especialmente previstos nas regras enunciadas nas secções 2 a 7 do mesmo Capítulo do Regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado Membro podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro. Trata-se aqui de uma faculdade que pode ou não ser exercida pelo respetivo demandante. Na decisão recorrida descreveu-se a versão dos factos apresentada pela Autora como imputação às Rés de uma conduta intencionalmente violadora de normas destinadas a proteger interesses alheios, nomeadamente, a violação do art. 10º, nº3 do Regulamento (CE) n.º 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2007, através da instalação nos veículos do tipo dos identificados, de dispositivos manipuladores, sendo que, em consequência dessa conduta, os consumidores dos veículos afectados sofreram danos na sua esfera jurídica pelo menor valor dos veículos adquiridos nestas circunstâncias, representando a Autora, nesta ação, os interesses dos consumidores prejudicados. E nessa sequência, entendeu-se que, considerando a causa de pedir invocada, a ação trata de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito imputado aos Réus a título de culpa, não se pretendendo exigir das Rés o cumprimento de obrigações contratuais, nem se tornando necessário analisar os contratos celebrados entre os consumidores portugueses e as Rés para decidir o litígio, pretendendo-se, sim, efetivar a responsabilidade civil das Rés, por factos ilícitos causadores de dano. E assim sendo o Tribunal a quo concluiu que se deve atender ao disposto no art. 7º, nº2 do Regulamento para aferir a existência de competência internacional dos Tribunais Portugueses, concluindo pela sua aplicabilidade ao caso. No âmbito do recurso, as recorrentes não questionam o entendimento do tribunal a quo no sentido de que na ação não se pretende exigir das Rés o cumprimento de obrigações contratuais, nem se torna necessário analisar os contratos celebrados entre os consumidores portugueses e as Rés para decidir o litígio. Discordam “apenas” da aplicabilidade ao caso do artigo 7 nº2 do Regulamento, mais defendendo que o art. 8º do Regulamento também não é aqui aplicável. Não se cuida assim, no recurso, de analisar a potencial aplicabilidade de outras regras especiais invocadas nas secções 2 a 7 do Capítulo II do Regulamento, mas tão só do artigo 7 nº2 e do art. 8º do Regulamento. Comecemos por analisar a aplicabilidade ao caso do art. 7º nº2 do Regulamento. Está em causa nos autos, segundo a p.i., a responsabilidade extra-contratual das RR decorrente de facto ilícito, a instalação e ocultação de dispositivos manipuladores ilegais nos veículos vendidos aos consumidores, gerador de dano para os consumidores lesados equivalente a, pelo menos, 10% do preço base de venda dos modelos respetivos (na medida em que um veículo com Dispositivos Manipuladores Ilegais tem um valor base de venda em novo, pelo menos, 10% mais baixo do que um veículo equivalente, mas sem Dispositivos Manipuladores Ilegais). O art. 7º nº2 do Regulamente possibilita a dedução de ação referente a matéria extracontratual perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso. O local onde se verificou o facto danoso não abrange somente o local da prática do facto, abrangendo também o local da materialização do dano. Sendo que na jurisprudência do TJUE o lugar da materialização do dano é aquele em que os efeitos danosos de um facto se manifestam concretamente. O Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu em 09.07.2020 no processo C-343/19 (processo que tinha por objeto um pedido de decisão prejudicial) Acórdão onde declarou que: “O artigo 7º, ponto 2, do Regulamento (EU) nº1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competencia judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado- Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos ás emissões dos gazes de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado- Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado- Membro.” A decisão recorrida baseou-se nesse Acórdão para concluir pela competência internacional dos Tribunais Portugueses. As recorrentes discordam, por considerarem que o critério relativo ao “lugar da materialização dos danos” é inadequado para ações coletivas do tipo opt-out, como a ação em apreço, uma vez que a apreciação deste tipo de ações é independente e abstrata de quaisquer danos individuais, o que faz com que a questão dos danos neste tipo de ações se traduza num elevado nível de abstração – pelo que os concretos danos que quaisquer sujeitos possam ter individualmente (e alegadamente) sofrido no território jurisdicional do tribunal não constituem um tema relevante. E que as ações coletivas como a presente ação popular diferem de ações em que os pedidos individuais são agrupados ou consorciados (tal como sucedeu no caso do referido Acórdão do TJUE), e em que é possível debater acerca da identidade das partes originalmente detentoras dos direitos invocados e o local em que estas terão sofrido os danos que alegam. E, para o caso de o Tribunal de recurso ter dúvidas sobre a interpretação pugnada pelos recorrentes, ou seja, que o critério de materialização do dano previsto no art 7º nº2 do Regulamento não é adequado a ações coletivas do tipo opt out, requerem que o mesmo Tribunal recorra ao mecanismo de reenvio prejudicial (à semelhança, lembramos nós, do que já haviam sugerido na contestação). A recorrida e o Ministério Publico, em face do referido Acórdão de 09.07.2020 proferido pelo TJUE no processo C-343/19 entendem desnecessário qualquer reenvio prejudicial, considerando que a interpretação efetuada nesse Acórdão é obrigatoriamente aplicável ao caso. O reenvio prejudicial está previsto no art. 19 nº3 al. b) do Tratado da União Europeia, onde se prevê que o Tribunal de Justiça da União Europeia decide, nos termos do disposto nos Tratados, a título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições, e no art. 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, onde se prevê que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.) Nos termos do art. 267 do Tratado de Funcionamento da União Europeia, sempre que uma questão desta natureza (interpretação dos tratados/ validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União) seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. Sendo que sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. A interpretação do Direito da União é, pois, da competência do Tribunal de Justiça da União Europeia, cujas orientações interpretativas são vinculativas para os tribunais nacionais. Visa-se com o reenvio prejudicial garantir a uniformidade da interpretação e aplicação das normas comunitárias. Assim sendo, a interpretação feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, no âmbito de um processo de reenvio prejudicial, sobre determinada norma comunitária é uma interpretação genérica e abstrata sobre o sentido da norma e não uma interpretação puramente casuística. É uma interpretação que é independente da concreta identificação das partes envolvidas no processo de reenvio prejudicial, visando antes estabelecer um padrão de interpretação da norma a ser seguido tanto naquele caso como em casos futuros. A esta luz, não podemos deixar de concluir que a interpretação feita no Acórdão do processo C-343/19 se impõe em todos os casos de interpretação do art. 7º nº2 do Reg. 1215/2012 em ações referentes a matéria extracontratual em que estejam em causa veículos ilegalmente equipados num Estado Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gazes de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado- Membro, devendo considerar-se que o lugar de materialização do dano se situa neste último Estado- Membro. A interpretação dada ao artigo pelo TJUE é clara e está feita. Saber se na presente ação se verificam os pressupostos contidos em tal interpretação genérica e abstrata é questão diversa. Pressupostos esses que são, conforme expressamente resulta da interpretação declarada pelo Tribunal, a montagem ilegal em veículos de um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gazes de escape ocorrida num Estado Membro, e a subsequente aquisição a terceiros desses veículos noutro Estado Membro. E não quaisquer outros referentes ao tipo de ação em causa (opt in ou opt out), ou à eventual necessidade de prévia identificação dos consumidores representados por Associações de Defesa de Consumidores que intentem tais ações, pois o Acórdão nada refere a esse respeito. E, como tal, o Acórdão não restringe a sua interpretação da norma, designadamente em função do tipo de ação proposta (opt in ou opt out) ou em função da possibilidade de identificação concreta dos consumidores afetados. O novo envio prejudicial sugerido pelas Rés/recorrentes serviria, então, não para interpretar a norma do art. 7 nº2 do Regulamento quanto ao local da materialização do dano, mas antes para restringir a interpretação já efetuada no Acórdão do processo C-343/19. Entendemos, pois, que não se justifica qualquer novo reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, sendo certo que este Tribunal da Relação não está obrigado a proceder a tal reenvio, por haver ainda possibilidade de recurso para o STJ da decisão fundada em violação de regras de competencia internacional, conforme resulta das disposições conjugadas do art 629 nº2 al a) e art 671 nº3, primeira parte, ambos do CPC (cf António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe ires de Sousa in CPC Anotado, 3ª ed, Almedina, pag 872, nota 13, onde se refere que a restrição fundada na dupla conformidade não existe nas situações excecionais em que os recurso de revista é sempre admissível, remetendo-se para o disposto no art. 629 nº2 do CPC). Assim sendo, não podemos deixar de concluir que na presente ação, na qual a autora atua em representação de consumidores ainda não individualmente identificados, mas que são consumidores domiciliados em Portugal, e que, conforme expressamente alegado na p.i (designadamente nos arts. 33 e 49), aqui compraram os veículos alegadamente viciados pelas Rés (duas delas sediadas na Alemanha) se verificam os pressupostos contidos na interpretação genérica e vinculativa do art. 7º nº2 do Regulamento no identificado Acórdão do TJUE. Nessa sequência, à luz da interpretação do art. 7º nº2 do Regulamento 1215/2012 adotada por tal Acórdão de 09.07.2020 no processo C-343/19, o local da materialização do dano corresponderá a todo o território português, incluindo, obviamente Lisboa, local onde foi instaurada a ação. O que confere competencia internacional para apreciar a ação aos tribunais portugueses, incluindo ao de Lisboa. Estabelecida tal competencia internacional dos tribunais portugueses com base no art. 7º nº2 do Regulamento 1215/2012, prejudicada fica a apreciação da mesma competência ao abrigo do art. 8º do referido Regulamento (sendo certo que a própria decisão recorrida não se debruçou sobre tal art. 8º). Improcede, pois, nesta parte, o recurso interposto pelas referidas RR. Passemos agora a apreciar a parte do mesmo recurso que incide sobre o segmento do saneador sentença que julgou improcedente a exceção de competencia material arguida na contestação. Escreveu-se na decisão recorrida, a esse respeito, o seguinte: “Invocam ainda as Rés a incompetência do tribunal em razão da matéria alegando que se encontram pendentes quatro ações administrativas de anulação das decisões da KBA relativas a alegados dispositivos manipuladores ilegais, que correm termos no Tribunal Administrativo de Schleswig- Holstein, na Alemanha e que a impugnação das decisões da KBA é da competência exclusiva dos tribunais administrativos. Acrescentam as Rés que os pedidos apresentados pela Autora, a saber, a) declarar que as Rés instalaram e mantiveram nos por si denominados Veículos Afetados dispositivos manipuladores ilegais que implicam um aumento das emissões de NOx para além dos limites legais, devendo as Rés ser condenadas a reconhecê-lo; b) declarar quais são os referidos Veículos Afetados, com indicação dos tipos de motores afetados, modelos abrangidos e respetivos anos, com indicação da identificação de homologação respetiva e da norma de emissões respetiva; exigem que o tribunal aprecie e decida se as homologações originais dos veículos em questão tinham violado o n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento (CE) 715/2007 e se as ordens de recall da KBA são justificadas, o que faria em violação da jurisdição exclusiva dos tribunais administrativos alemães. Deste modo, concluem as Rés não ter este Tribunal competência em razão da matéria para decidir os pedidos acima referidos. À mencionada excepção respondeu a Autora pugnando pela sua improcedência. Cumpre decidir: A presente acção configura uma acção popular. O art. 52º nº 3 da CRP confere a todos o direito de acção popular, nomeadamente para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural e assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais. A Lei de Acção Popular, aprovada pela Lei 83/95 de 31/8, estabeleceu o respectivo âmbito quanto ao direito de participação popular em procedimentos administrativos e também quanto aos casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (art. 1º nº 1), esclarecendo que, sem prejuízo dos bens consagrados em tal comando constitucional, são «designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público» (art. 1º nº 2). O art. 2º da LAP estipula que são titulares do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda. E o seu art. 12º refere-se às formas processuais respeitantes à acção popular administrativa (nº 1) e à acção popular civil (nº 2). Nos termos da CRP, os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º ), competindo aos tribunais administrativos o julgamento dos procedimentos «que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas» (art. 212º nº 3) Como é consensualmente aceite, a competência do tribunal afere-se pela pretensão do autor, compreendidos os respectivos fundamentos: a determinação da competência do tribunal para o conhecimento da pretensão deduzida pelo autor afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelo modo como esta pretensão se apresenta estruturada, tanto quanto ao pedido em si mesmo, como aos respectivos fundamentos, sendo irrelevante, para esse efeito, o eventual juízo de prognose sobre a viabilidade ou o mérito da mesma. Da análise do pedido e da causa de pedir acima expostos resulta claramente que a Autora acciona as Rés com vista a conseguir a reparação do vício que alega existir nos veículos produzidos e comercializados pelas Rés no território nacional e o pagamento da indemnização compensatória pela perda de valor dos veículos em que foram instalados os dispositivos manipuladores, aos lesados. Ora, na lógica da configuração oferecida pela Autora à sua pretensão, o que está em causa não é a homologação dos veículos, não tendo o tribunal que ajuizar se os mesmos foram correcta ou erradamente homologados, não tendo a decisão a tomar qualquer repercussão sobre a homologação dos veículos. O que se pede ao tribunal é diferente, é saber se apesar da homologação, a conduta adoptada pelas Rés viciou os veículos, permitindo-lhes circular em condições diferentes daquelas que foram objecto da homologação, causando com isso danos ao ambiente, à saúde pública e aos interesses dos consumidores. Trata-se, pois, de julgar uma pretensão fundada na violação por parte das Rés das condições em que os veículos foram homologados, sem que, atendendo ao modo como a Autora a estrutura, se configure qualquer comportamento, activo ou omissivo, adoptado pela entidade homologadora Alemã que tenha concorrido para essa violação. Além disso a decisão de homologação não está em apreciação nesta acção, não sendo a mesma impugnada ou pedida a sua revogação, nem sendo a decisão que vier a ser tomada na presente acção susceptível de a pôr em causa. Ora, nestes termos, a competência material para o conhecimento de tal pretensão cabe aos tribunais judiciais, nomeadamente, aos tribunais cíveis. Pelo exposto, julgo improcedente a excepção de incompetência material do tribunal para o conhecimento da presente acção.” Não podemos deixar de concordar com estas considerações. A competência do tribunal é um pressuposto processual. Enquanto tal, a competência do tribunal afere-se em função do pedido e da causa de pedir nos termos que vêm configurados na p.i. Veja-se que o Artigo 38.º nº1 da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) prescreve que a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei. Ou seja, a competência fixa-se no momento da propositura da ação, ou seja, aquando dá entrada no tribunal a petição inicial, pelo que é aferida em função do que consta nessa petição inicial. Importa ainda ter em conta que, nos termos do art. 37 nº1 da LOSJ, na ordem jurídica interna a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território. A competência material é, pois, um tipo de repartição da competência interna, ou seja, repartição da competência entre os tribunais portugueses. Nos termos do artigo 40.º nº1 da LOSJ, os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Por sua vez, o art. 144º nº1 da LOSJ dispõe que aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. Em conformidade, aliás, com o disposto no art 212 nº3 da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe que: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.” Cumpre ainda relevar o disposto no art 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativo e Fiscais. Dispõe o nº1 deste preceito que: Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto. Por sua vez, dispõe o art 4º que: 1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública; d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso; h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público; i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime; j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal; k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas; l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias; m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal; n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração; o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. 2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade. 3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de: a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa; b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal; c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões. 4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso; b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público; c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente; d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça; e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.” Em suma, o critério para aferir a competência dos tribunais administrativos deve ser o da natureza da relação jurídica concreta subjacente ao litígio, devendo essa relação jurídica assumir a natureza administrativa e caber na previsão do artº. 4º do ETAF. Assim, como se refere no Ac. do TRC de 12.09.2019, proferida no Proc. 1021/16.7T8GRD.C1, “Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa”. Mais se acrescenta que: “Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração». O caso dos autos é singular, na medida em que as recorrentes invocam a incompetência material dos tribunais judiciais portugueses para conhecer a ação, não por atribuir tal competência aos tribunais administrativos portugueses, mas antes por atribuí-la aos tribunais administrativos alemães. Ora, como já se disse, a competência material é um tipo de repartição da competência interna (competência dos tribunais portugueses). Do que resulta, desde logo, que a tese das RR/recorrentes, ao atribuir a competência material para o conhecimento de questões em discussão na presente ação aos tribunais administrativos alemães, não pode proceder. Acresce que, segundo a configuração da ação dada na p.i., não está em causa nos presentes autos qualquer relação jurídica de natureza administrativa com a entidade administrativa alemã KBA. Essa entidade não é sequer demandada, pelo que a decisão a proferir nos presentes autos não lhe será oponível, e os pedidos formulados nos autos não visam a impugnação dos atos de homologação de veículos que terá levado a cabo nem a responsabilização da mesma por qualquer ação ou omissão relativa a posteriores ações de recall. O que está em causa, segundo o enquadramento dado à ação na p.i., é a responsabilização das RR pelas ações de viciação dos veículos de modo a que eles apresentassem características diferentes daquelas que terão sido pressupostas na homologação dos mesmos. Não está, pois, em foco o próprio ato de homologação dos veículos, mas antes a alteração dos mesmos veículos à revelia desse ato de homologação. Não sendo demandada a KBA (entidade administrativa) nem se formulando pedido relativo ao próprio ato de homologação dos veículos ou a qualquer ação de recall (atos administrativos da competência daquela) não há fundamento para se considerar que a relação a que respeita o litígio é uma relação de natureza administrativa. A alegada viciação, pelas RR, dos veículos que produziram e comercializaram e que terão sido adquiridos pelos consumidores representados pela Autora constitui questão de direito de privado e não de direito administrativo. Estamos perante relações entre entidades privadas, porquanto, segundo a p.i., a Autora propõe a ação em representação dos consumidores (pessoas singulares) domiciliados em Portugal, que, cumulativamente, sejam ou tenham sido titulares de um direito que conceda o uso de um ou mais Veículos Afetados que tenham sido afetados a uso não profissional, e as RR são sociedades comerciais. E, assim sendo, a competência material para o conhecimento da ação, que, recorde-se, é aferida face ao pedido e causa de pedir que constam da p.i., é dos tribunais judiciais (portugueses). Improcede, pois, também esta parte do o recurso apresentado pelas RR C AG e B AG . Passemos então à apreciação do recurso apresentado pela Ré BPortugal, SA., recurso que, recorde-se, incide sobre a parte do saneador sentença que julgou improcedente a exceção de incompetência material do tribunal para o conhecimento da ação. Ora, verifica-se que os fundamentos do recurso coincidem com os que foram invocados no recurso interposto RR C AG e B AG na parte respeitante ao mesmo segmento decisório do saneador - sentença (cf. Conclusões do recurso interposto pela B Portugal, SA. e conclusões DDD a SSS do recurso interposto pelas RR C AG e BAG. Ou seja, defende a recorrente BPortugal, SA precisamente o mesmo que as RR C AG e B AG defenderam no respetivo recurso: que a competência material para a apreciação das questões suscitadas na presente ação recai sobre os tribunais administrativos alemães e não sobre os tribunais judiciais portugueses. E com os mesmos argumentos, em suma, que a concessão da homologação CE pela KBA constitua um ato administrativo de direito alemão, bem como as ordens de recall emitidas por aquela, impugnáveis perante os tribunais administrativos alemães. Assim sendo, dá-se aqui por integralmente reproduzido o que se acima se expôs quanto ao recurso interposto pelas RR C AG e B AG, na parte em que incide sobre a decisão do tribunal a quo relativa à improcedência da exceção de incompetência material, e, como tal, improcede, o recurso intentado pela Ré B Portugal, SA . As custas dos recursos são a cargo das apelantes, por terem ficado vencidas (art. 527 nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil). *** VI. DECISÃO: Pelo exposto acordam as Juízes desta 8ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa em: - Julgar improcedente a apelação apresentada pelas Recorrentes C AG e B AG, mantendo a decisão recorrida; - Julgar improcedente a apelação apresentada pela recorrente B Portugal, SA, mantendo a decisão recorrida. Custas das apelações pelas apelantes (cada apelante suportará as custas da apelação que apresentou). Notifique. Lisboa, 11.07.2024 Carla Matos Ana Paula Olivença Teresa Sandiães |