Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19735/19.8T8LSB.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PAGAMENTO PELA SEGURADORA
INEXISTÊNCIA DE SEGURO
DIREITO DE REEMBOLSO JUNTO DO FGA
ANULABILIDADE DA APÓLICE
INOPONIBILIDADE JUNTO DO FGA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - À seguradora não é lícito opor aos lesados a anulabilidade do contrato fundada em falsas declarações quanto à indicação do proprietário – art.º 6/2 DL 291/2007 de 21/8.

- Tendo o Fundo de Garantia Automóvel satisfeito o pagamento dos custos decorrentes do acidente, tem direito a ser ressarcido junto da apelada/seguradora o valor por si despendido – art.º 49 e 50 DL 291/2007.

- Sendo inoponível ao Fundo de Garantia Automóvel, a anulabilidade da apólice, não há lugar a enriquecimento sem causa por parte deste, pelo facto da Apelada/Seguradora ter-lhe pago o valor de €9.269,29 (custos de reparação do veículo e despesas com a peritagem dos sinistros), podendo a Seguradora exercer o seu direito de regresso junto do tomador de seguro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Seguradoras Unidas, S.A. demandou Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação do réu no pagamento à autora da quantia de €9.269,29, acrescida dos juros legais, desde a citação até integral pagamento.
Invoca como fundamento o direito ao reembolso por parte do réu, alicerçado no instituto do enriquecimento sem causa, do valor da indemnização e despesas pagas ao réu, convencido ser sua obrigação fazê-lo, porquanto incorreu em erro quanto à validade do contrato de seguro, contrato este que fora anulado, em data anterior à ocorrência do acidente.
Na contestação o réu excepcionou a sua ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, a inoponibilidade da alegada invalidade do contrato de seguro, impugnou o alegado pela autora, concluindo pela procedência das excepções e, consequentemente, absolvição da instância e pela improcedência da acção com a consequente absolvição do pedido.
A autora pugnou pela improcedência das excepções.
Em sede de despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade, tendo sido elencados os temas de prova.
Após julgamento foi prolatada sentença que, julgando a acção procedente, condenando o réu, com fundamento no enriquecimento sem causa, a pagar à autora o montante peticionado.
Inconformado, o réu apelou formulando as conclusões que se transcrevem:
A) O Tribunal “a quo” julgou a acção procedente e condenou o Fundo de Garantia Automóvel a pagar à Autora Seguradoras Unidas, SA, agora denominada Generali Seguros, SA, a quantia de €9.269,29 acrescida de juros legais vincendos desde a citação, até integral e efectivo pagamento.
B) Tal condenação, resulta do entendimento de que o pagamento efectuado pela Autora ao Réu, preenche todos os requisitos do enriquecimento sem causa por parte do Réu FGA. Entendimento esse, que salvo o devido respeito, carece totalmente de qualquer cabimento legal.
C) Salvo o devido respeito, não se verifica, na situação em apreço, qualquer enriquecimento sem causa por parte do Réu FGA, por variadíssimas razões, sendo a primeira e mais evidente é que o FGA não é nem nunca poderá ser um responsável proprium senso, tendo sempre direito de regresso, de todas as quantias que houver pago e ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos.
D) As entidades que reembolsem o Fundo nos termos dos n.ºs 3 e 4 beneficiam de direito de regresso contra outros responsáveis, se os houver, relativamente ao que tiverem pago tudo conforme o disposto no art.º 54 DL 291/2007 de 21.08.
F) Ora, o que está na base da suposta anulação do contrato de seguro entre a Autora e o seu Tomador JS, é que este último terá declarado ser o condutor habitual, para que o seu amigo JJ viesse a beneficiar de um prémio de seguro mais barato.
G) Salientando-se que, resultou claro das declarações do prestadas em audiência de julgamento pelo tomador do seguro JS, que o carro se encontrava na sua garagem e que era utilizado “como se fosse da casa”, pela companheira, CS (condutora que deu causa ao acidente), para levar o “miúdo à escola”, como passaremos a demonstrar:
Do Depoimento da Testemunha JS.
Mandatária da Autora (8:10…) O senhor conhece uma senhora CS?
Testemunha: Era a minha antiga companheira.
Mandatária da Autora: Certo. Esta senhora teve um acidente em abril… com o carro do seu amigo?
Testemunha: Sim, sim, parece que sim.
Mandatária da Autora: Parece? O senhor não estava lá?
Testemunha: Não estava com ela, não.
Mandatária da Autora: Mas teve conhecimento que ela… portanto…sofreu um acidente, utilizando este veículo?
Testemunha: sim, sim.
Mandatária da Autora: O senhor já disse que não era o condutor habitual, mas fez esse favor ao seu amigo, não é?
Testemunha: sim, sim.
Mandatária Réu FGA (10:23…): (…) à data deste acidente, que a sua companheira teve com o carro do JJ, do seu amigo, onde estava o JJ a viver?
Testemunha: Nesta data estava na Suíça.
Mandatária Réu FGA: Na Suíça. E você, o Sr. JS onde estava na data do acidente?
Testemunha: Estava cá em Portugal.
Mandatária Réu FGA: Como é que é possível a sua companheira estar a conduzir o carro do JJ, se estava na Suíça?
Testemunha: O carro estava na minha garagem, o seguro estava em meu nome e o carro estava na minha garagem, para guardar.
Mandatária Réu FGA: E, porque é que a sua companheira usou o carro?
Testemunha: Porque o carro era da casa… e pegou nele.
Mandatária Réu FGA: O carro era da casa?
Testemunha: O carro estava lá em casa, para quando era preciso, ela pegava nele ou eu.
Mandatária Réu FGA: Você também conduzia quando era preciso, é isso?
Testemunha: Não, eu trabalho por minha conta e o carro estava lá em casa e punha a trabalhar, de vez em quando.
Mandatária Réu FGA: Portanto, naquela altura quem tinha a direcção efectiva do carro era você? O Sr. JS?
Testemunha: Era eu que o guardava na garagem.
Mandatária Réu FGA: E o utilizava quando fosse preciso?
Testemunha: Por a trabalhar de vez em quando.
Mandatária Réu FGA: E dar uma volta com ele. O Senhor acabou de dizer estava lá em casa, era da casa, era usado pela sua companheira e por si.
Testemunha: Era como se fosse, não é? Ela tinha que levar o miúdo à escola, às vezes.
H) Ora, se a Autora pretendia demonstrar a anulabilidade do contrato de seguro efectuado com o Sr. JS, afirmando que esta não era o condutor habitual como explanado no contrato de seguro, mas sim o seu Proprietário JJ.
E, de que tudo não passou de uma manobra para que o contrato de seguro ficasse mais barato, uma vez que o JJ tinha carta há menos de 2 anos. Efectivamente, apenas conseguiu demonstrar o seu contrário, por o Sr. JJ encontrava-se a residir na Suíça e, efectivamente, o veículo seguro, era utilizado pelo seu tomador e pelo seu agregado familiar.
Não se verificando as alegadas falsas declarações que viessem a influenciar, quer na decisão de contratar quer ainda no agravamento do prémio de seguro! Pois, efectivamente o veículo estava a ser utilizado pelo tomador do seguro, e o seu proprietário encontrava-se a residir na Suíça! 
I) Mas, por mera cautela e mesmo que assim não fosse, apesar de persistir alguma divergência doutrinal e jurisprudencial relativamente à aplicação deste preceito legal ao contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, actualmente e após a prolação do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 20.07.2017, a jurisprudência tem seguido a orientação que o artigo 43/1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (que correspondia ao actualmente revogado artigo 428/1 Código Comercial) encontra-se derrogado, pelo artigo 6/2 DL 291/2007, dado que, nos termos deste normativo, é permitido a celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel por terceiro que não aquelas sobre as quais recai tal obrigação de contratar. 
J) Nesta linha, a situação prefigurada de falta de interesse digno de protecção legal será sancionada em sede de declarações inexactas na celebração do contrato de seguro, através do regime de anulabilidade, nos termos dos arts. 24 e 25 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
K) Ora, este sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.20179, que defende, «o indicado § 1º do art.º 428 deve ser tido por derrogado por efeito do preceituado no art.º 2/2 do DL 522/85, de 31/12, correspondente ao actual art.º 6/2 DL 291/2007, de 21-08, porquanto, nos termos deste normativo, no âmbito do regime especial do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é permitida a celebração do contrato de seguro por terceiro como modo de suprir a obrigação das pessoas a tal sujeitas».
Pois, a circunstância de o contrato de seguro ajuizado padecer de invalidade, na modalidade de anulabilidade, por falsas e inexactas declarações na declaração inicial de risco não implica, per si, que seja oponível aos terceiros lesados. A este respeito dispõe o artigo dispõe o art.º 22 DL 291/2007 que para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente.
Ora, atendendo que o vício que enferma o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que ora se cura, encontra-se previsto no artigo 25/1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e não no DL 291/2007, conforme impõe o aludido artigo 22, resta concluir que a invalidade em causa nos presentes autos é inoponível aos terceiros lesados.
K) É este, aliás, o entendimento que melhor se conforma com o teor da citada decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 20.07.2017, que afirma, «O artigo 3/1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2/1 da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.» (nosso sublinhado).
L) Assim, em conformidade com o teor do artigo 22 DL 291/2007 e com o Direito da União Europeia, decide-se que a invalidade (anulabilidade) que padece o contrato de seguro em debate não é oponível aos terceiros lesados, e concomitantemente e fruto do direito de sub-rogação legal, ou seja, o reembolso que a Autora efectuou ao aqui Réu, como lhe competia.
M) Perante isto, obviamente que o FGA era um terceiro lesado, a quem a Autora pagou em cumprimento da sub-rogação legal. Tendo agora, única e exclusivamente direito de regresso sobre o tomador de seguro que terá, eventualmente, prestado falsas declarações.
N) O que não se verifica, e nunca se poderia verificar, é uma situação de enriquecimento sem causa por parte do FGA, não só pelo atrás explanado como pelo disposto no art.º 474 C.C., em que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros meios de reacção.
O) A sentença recorrida violou, assim, o disposto nos art.ºs 473 e 474 CC, 22 e 54 do DL 291/2007 de 21.08.
P) Assim, revogando-se a sentença, no âmbito delimitado pelo objecto do presente recurso, deve ser o Fundo de Garantia absolvido do pedido.
Nas contra-alegações a apelada formulou as conclusões que se transcrevem:
a) Deve improceder a alegação do Recorrente de que não pode ser responsável proprio sensu pelo montante em que foi condenado, em razão do disposto no artigo 54/3 e 4 DL 291/2007, de 21 de Agosto, por não se discutir nos presentes autos a sua sub-rogação, mas antes o seu enriquecimento indevido, às custas da Recorrida.
b) Deve improceder, de igual modo, a alegação do Recorrente de que inexistiram falsas declarações na contratação da apólice de seguro n.º 00000, porquanto não resultou do depoimento da Testemunha JS que o veículo em apreço fosse por si utilizado, mas antes que meramente o guardava na sua garagem.
c) De facto, foi a apólice de seguro nº 00000 anulada sob o fundamento de prestação de falsas declarações, porquanto o condutor habitual do veículo em apreço era JJ, e não o Tomador de Seguro, o que sustenta a condenação do Recorrente, ao abrigo do disposto no art.º 49/1 b) do DL 291/2007, de 21 de Agosto, no reembolso do montante indevidamente despendido pela Recorrida, dado que garantirá, até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, as indemnizações por danos materiais, quando o responsável não beneficie de seguro válido e eficaz.
d) Deve, ainda, improceder a alegação do Recorrente de que deve ser havido como Terceiro Lesado e, como tal, não lhe oponível a invalidade da apólice de seguro nº 00000, sob a égide do disposto no artigo 22 DL 291/2007, de 21 de Agosto, porquanto tal norma jurídica não tem aplicabilidade ao caso sub judice, sendo-lhe oponível a anulação do contrato de seguro e as demais consequências que daí advieram, mormente o pagamento das despesas decorrentes do sinistro.
e) Não tendo procedido ao pagamento das despesas decorrentes do sinistro, impõe-se agora ao Recorrente o reembolso da Recorrida, que agiu na convicção que eram da sua responsabilidade, levando ao seu enriquecimento indevido, que sempre poderá exercer o direito de regresso, sob a alçada do art.º 54/3 e 4 DL 291/2007, de 21 de Agosto.
f) Termos em que, perante o exposto, a Recorrida pugna pela manutenção da sentença recorrida, devendo improceder o invocado pelo Recorrente, mormente a sua absolvição.
 A 1ª instância considerou apurados os seguintes factos: 
1 - A Autora, anteriormente denominada “Companhia de Seguros Tranquilidade, SA”, incorporou, por fusão, as sociedades “Açoreana Seguros, S.A.” (NIPC 512.004.048), “Seguros LOGO S.A.” (NIPC 508.278.600) e “T - Vida, Companhia de Seguros, S.A.” (NIPC 507.684.486), passando, na sequência da mencionada incorporação, a denominar-se “Seguradoras Unidas, S.A.”  
2 - A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade seguradora.
3 - No exercício da sua actividade comercial, a Autora celebrou um contrato de seguro automóvel com JS, relativo ao veículo ligeiro, da marca “Peugeot”, modelo 106, com a matrícula ..-..-.., titulado pela Apólice nº 00000.
4 - No dia 03.06.2016, pelas 23:30 horas, na Estrada Nacional 310, Rua …, Freguesia de ..., no Concelho de Póvoa de Lanhoso, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes: - O “veículo ..-..-..”, conduzido por CS e propriedade de JJ; - O veículo agrícola, marca Lawdiwi, matrícula 00-00-00, conduzido por FF.
5 - A Estrada Nacional 310 constitui uma via, dividida por duas hemi - faixas de rodagem, com sentidos de trânsito opostos, delimitada por uma linha longitudinal contínua, sendo descontínua no entroncamento ali existente.
6 - A Estrada Nacional 310 encontra-se bem iluminada.
7 - Nas circunstâncias de tempo e lugar acima explicitadas, o veículo agrícola circulava na sua faixa de rodagem, no sentido Póvoa de Lanhoso – Santo Emilião, quando, subitamente, o condutor do veículo ..-..-.., que circulava no sentido Santo Emilião – Póvoa de Lanhoso, perdeu o controlo da sua viatura, despistando-se e indo embater no primeiro, invadindo a faixa de rodagem a esta destinada.
8 - Em face do acidente supra descrito, os condutores de ambos os veículos intervenientes preencheram a DAAA.
9 - O número de apólice e o tomador de seguro indicados pela condutora do “veículo ..-..-..”, não correspondiam ao número de apólice de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel referido em 3 supra.
10 - O proprietário do veículo agrícola recorreu aos serviços do Fundo de Garantia Automóvel (doravante designado por “FGA”), aqui Réu, de molde a ser ressarcido dos danos no seu veículo.
11 - O ora Réu solicitou um pedido de informações à Autora (com a referência CRT/29611/16/FGA |), questionando se lhe tinha sido participado algum sinistro ocorrido no dia 03.06.2016, relativa à matrícula ..-..-.. que figurava na DAAA.
12 - Por carta datada, de 09 de Junho de 2016, a Autora respondeu ao referido pedido, comunicando que não havia sinistro reportado que envolvesse o veículo de matrícula ..-..-..; A apólice de seguro que cobre o veículo com a matrícula ..-..-.., encontrava-se anulada, desde 26.02.2016. E que, por essa razão não havia contrato de seguro válido para o veículo de matrícula ..-..-.., à data do sinistro ocorrido no dia 03.06.2016. 
13 - Por carta datada, de 14 de Julho de 2016, e no sentido de serem dissipadas quaisquer dúvidas, a Autora ainda informou o ora Réu que a apólice indicada na DAAA (nº 00000) nunca segurou o veículo com a matrícula ..-..-..; A tomadora do seguro, indicada na DAAA como CS, nunca esteve associada a contrato que segurasse o veículo com a matrícula ..-..-..; O Tomador do Seguro associado ao veículo com a matrícula ..-..-.. era o senhor JS.
14 - O Réu ordenou que fosse realizada peritagem ao veículo agrícola tendo o perito concluído ser necessário reparar/substituir as seguintes peças:
Cabeçalho;
Cilindro hidráulico
Moinho;
Dentes;
Barras;
Chapa;
Protecção;
Chá pequena;
Fechadura;
Suporte;
Bujões;
Correntes;
Chassis apanhador;
Guias;
Sem-fim;
Rolamentos,
Veios;
Protecções;
Chapa;
Roletes;
Molas, parafusos e fêmeas.  
15 - A reparação do veículo agrícola consignou-se, assim, ao montante global de €9.104,47.
16 - O ora Réu transferiu para FF, condutor do veículo terceiro, a quantia orçada para reparação da aludida viatura (€9.104,47).
17 - A 11 de Janeiro de 2017, o Réu apresentou à Autora um comprovativo de Carta Verde referente à apólice de seguro nº 00000 que alegadamente cobria o “veículo ..-...-..”, reclamando junto da Autora o montante pago ao condutor do veículo agrícola a título de ressarcimento dos danos causados pelo condutor do “veículo ..-..-..”, os quais, como atrás se referiu, se cifraram em €9.269,29.
18 - Perante a apresentação do referido comprovativo de Carta Verde e mencionada interpelação efectuada pelo Réu, a Autora formou a convicção de que existia contrato de seguro válido e eficaz à data do acidente e que, por essa razão, estaria a Autora obrigada a pagar ao Réu as despesas inerentes à regularização do sinistro sub-judice.  
19 - No dia 14 de Março de 2017, a Autora pagou ao Réu a quantia de 9.269,29€, que incluía os custos da reparação do veículo €9.104,47) e despesas com peritagem do sinistro efectuada pelo Réu (€60,27), acrescido de juros.
20 - Por via de um relatório de averiguação realizado pelos seus serviços de peritagem, relativo a um sinistro ocorrido, a 23 de Dezembro de 2015 (anterior ao sinistro em apreço), envolvendo, igualmente, o “veículo ..-..-..”, a Autora constatou que o condutor habitual declarado na proposta contratual não correspondia ao condutor que efectivamente utilizava o veículo.
21 - O condutor e proprietário do “veículo ..-..-..”, JJ, declarou perante aqueles serviços que tinha licença de condução há poucos meses, e que efectuou o contrato de seguro em nome do seu amigo, JS, para o contrato ficar mais barato.
22 - Assim, JS aceitou figurar como tomador do seguro em questão e como condutor habitual do “veículo ..-..-..”.  
23 - A Autora, por carta registada e datada de 11 de Fevereiro de 2016, remetida para a morada contratualmente indicada por JS, sito na Rua …, nº .., 4830- 812 Póvoa de Lanhoso, informou-o de que o condutor habitual declarado na proposta contratual não correspondia ao condutor que efectivamente utiliza o veículo, pelo que, face a novas circunstâncias de risco, o prémio de seguro seria reajustado e por consequência emitido um aviso - recibo suplementar para pagamento, no valor de €180,23, relativo ao período de vigência de contrato entre 23.12.2015 a 23.12.2016.  
24 - A Autora comunicou a JS que este montante deveria ser pago até à data limite de 26.02.2016, sendo que, como expressamente então comunicou, o não pagamento teria como consequência a anulação da apólice em causa nessa mesma data.  
25 - Da supra-mencionada missiva, a Autora não recebeu qualquer contraproposta, resposta ou pagamento.
 Colhidos os vistos, cumpre decidir
Atentas as conclusões do apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – art.ºs 639 e 640 CPC – as questões que cabe decidir consistem em saber, se a anulabilidade do contrato de seguro é ou não oponível a terceiros e se se verifica ou não enriquecimento sem causa.
Vejamos, então.
a) Questão da anulabilidade do contrato de seguro é ou não oponível a terceiros
Sustenta o apelante que a anulabilidade do seguro fundada em falsas declarações prestadas pelo tomador de seguro/segurado à seguradora visando um valor do prémio mais barato, não é oponível a terceiros.
A legislação aplicável, tendo em conta a data da celebração do contrato de seguro e a data do acidente, consta dos DL 72/2008 de 12/4, com entrada em vigor, em 1/1/2009 (art.º 7) - (Regime Jurídico do Contrato de Seguro, regime este que revogou os art.ºs 428 e 429 CCom – art.º 6/2 a) e o DL 291/2007 de 21/8 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil que revogou o regime anterior plasmado no DL 522/85 de 31/12), cuja entrada em vigor ocorreu, em 20/10/2007 (art.º 94/2).
Sob a epígrafe “Obrigação de Seguro”, estipula o art.º 4 DL 291/2007 que:
1 – Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre…com estacionamento em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente DL.
Sob a epígrafe “Sujeitos da obrigação de segurar” dispõe o     art. 6 o seguinte:
1 – A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.
2 – Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no nº anterior.
Estipula o art.º 24 do DL 72/2008 de 12/4 quanto aos deveres de informação que: O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
E o art.º 25 (omissões ou inexactidões dolosas) que:
1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no nº 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
No que ao interesse concerne estipula o art.º 43 que:
1 - O segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato.
Por seu turno o art.º 22 DL 291/2007 (Oponibilidade de excepções aos lesados) que:
Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do art.º anterior (alienação de veículo.. salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo), ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro.
Ora, da leitura destes preceitos, conclui-se que à seguradora não é lícito opor aos lesados a anulabilidade do contrato.
In casu, o contrato foi anulado com fundamento em falsas/inexactas declarações, a fim de obter um prémio mais barato - cfr. factos 20 a 25.
As falsas declarações quanto à indicação do proprietário subsumem-se ao regime da nulidade ou anulabilidade?
Chamando à colação o histórico relativamente a esta questão, dir-se-á que, ainda na vigência dos art.ºs 428 e 429 CCom, a jurisprudência não era unânime, havia quem defendesse que a nulidade fundada na falta de interesse do tomador do seguro era oponível a terceiros lesados e quem defendesse que o art. 428 CCom fora derrogado pelos art.ºs 2/2 DL 522/85 de 31/12 e actual 6/2 DL 291/2007 de 21/8, porquanto, este normativo permite (no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil) a celebração do contrato de seguro por terceiro como modo de suprir a obrigação das pessoas sujeitas a tal.
Perante esta divergência jurisprudencial foi suscitado o reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nos termos do art.º 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nos seguintes termos:  
O art.º 3/1 da Directiva 72/166/CEE, o art.º 2/1 da Directiva 84/5/CEE, e o art.º 1, da Directiva 90/232/CEE, relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros, respeitantes ao seguro da responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, opõem-se a uma legislação nacional que comine com a nulidade absoluta o contrato de seguro, em consequência das falsas declarações sobre a propriedade do veículo automóvel, assim como sobre a identidade do seu condutor habitual, sendo o contrato celebrado por quem não tem interesse económico na circulação do veículo e estando subjacente o intuito fraudulento dos intervenientes (tomador, proprietário e condutor habitual) de obter a cobertura dos riscos de circulação, mediante: (i) a celebração de contrato que a seguradora não celebraria se conhecesse a identidade do tomador; (ii) o pagamento de um prémio inferior ao devido, em razão da idade do condutor habitual?»
Em resposta à questão prejudicial, aquele Tribunal de Justiça proferiu acórdão, em 20/07/2017, no processo C-287/16, reproduzido a fls. 421, com a seguinte teor dispositivo:
«O artigo 3/1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑ Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2/1 da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.»
Face ao exarado nas Directivas e ao preceituado na legislação nacional (art.º 6/2 DL 291/2007), o entendimento maioritário do STJ é a de que as declarações inexactas na celebração do contrato de seguro é sancionado com o regime da anulabilidade – cfr. Acs. STJ de 2/11/2017, relatora Maria da Graça Trigo e de 30/11/17, relator Tomé Gomes, entre outros, in www.dgsi.pt.
Tendo em atenção o preceituado nos art.ºs 6/2 DL 291/2007 e 24 e 25 DL 72/2008 de 12/4, a sanção aplicável às declarações inexactas na celebração do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil é o regime da anulabilidade e não já o da nulidade (entendimento semelhante no âmbito da legislação anterior conforme supra extractado).
Assim sendo, ainda que a anulação da apólice tenha ocorrido em momento anterior ao acidente, como sucedeu in casu, esta anulabilidade não é oponível aos terceiros lesados, nomeadamente, ao apelante Fundo Garantia Automóvel.
Destarte, procede a pretensão.
b) Enriquecimento sem causa
Defende apelante a inexistência de enriquecimento sem causa uma vez que o pagamento (reembolso) efectuado pela apelada/seguradora foi efectuado em cumprimento da sub-rogação legal, tendo o direito de regresso sobre o tomador do seguro.
O enriquecimento sem causa pressupõe que alguém se tenha locupletado injustificadamente à custa alheia.
A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que se não verificou – art.º 473 CC.
A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, pressupõe a verificação de três requisitos: a) existência de enriquecimento - obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual a forma que essa vantagem revista, nomeadamente aumento de activo patrimonial, diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária, na poupança de despesas;
b) que o enriquecimento careça de causa justificativa; c) que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.       
No enriquecimento sem causa, verifica-se uma deslocação patrimonial, resultante de acto jurídico não negocial, ou de mero acto material, em consequência do qual o “accipiens” aumenta o seu património à custa de outrem sem qualquer causa, obrigacional ou negocialmente clausulada, que a justifique.
À vantagem patrimonial do enriquecido contrapõe-se o empobrecimento do que foi privado do bem ou do património.
A causa da deslocação patrimonial só releva para os efeitos do art.º 473/1 CC, no caso de ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada – cfr. Ac. STJ de 14/7/2009, relator
Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt, Prof. Vaz Serra, “Enriquecimento sem Causa”, BMJ 81-5 e 82-5, Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 10ª ed. – 470, Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 5º ed.-161.
Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento – art.º 474 CC.
In casu, a autora/apelada pede a condenação do Fundo de Garantia Automóvel no pagamento de uma quantia, quantia essa que alega ter sido indevidamente paga face à anulação da apólice, com fundamento em falsas declarações do tomador de seguro.
O Fundo defendeu-se arguindo a inoponibilidade da alegada invalidade do contrato de seguro.
In casu, tendo o Fundo de Garantia Automóvel satisfeito o pagamento dos custos decorrentes do acidente, tem direito a ser ressarcido junto da apelada/seguradora o valor por si despendido – art. 49 e 50 DL 291/2007.
Sendo inoponível ao Fundo de Garantia Automóvel, a anulabilidade da apólice, não há lugar a enriquecimento sem causa por parte deste, pelo facto da Apelada/Seguradora ter-lhe pago o valor de €9.269,29 (custos de reparação do veículo e despesas com a peritagem do sinistro), podendo a Seguradora exercer o seu direito de regresso junto do tomador de seguro.
Assim, procede a pretensão.
Concluindo:
- À seguradora não é lícito opor aos lesados a anulabilidade do contrato fundada em falsas declarações quanto à indicação do proprietário – art.º 6/2 DL 291/2007 de 21/8.
- Tendo o Fundo de Garantia Automóvel satisfeito o pagamento dos custos decorrentes do acidente, tem direito a ser ressarcido junto da apelada/seguradora o valor por si despendido – art.ºs 49 e 50 DL 291/2007.
- Sendo inoponível ao Fundo de Garantia Automóvel, a anulabilidade da apólice, não há lugar a enriquecimento sem causa por parte deste, pelo facto da Apelada/Seguradora ter-lhe pago o valor de €9.269,29 (custos de reparação do veículo e despesas com a peritagem do sinistro), podendo a Seguradora exercer o seu direito de regresso junto do tomador de seguro.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando-se a sentença, absolve-se o Fundo Garantia Automóvel do pedido.
Custas pela Seguradora.

Lisboa, 17/11/2022
Carla Mendes
Rui da Ponte Gomes
Luís Correia de Mendonça