Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2066/20.8T8LRS.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
ACÇÃO DE DESPEJO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Não é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir, a petição inicial em que se deduz um pedido de despejo fundado no reconhecimento da extinção  do arrendamento por caducidade resultante da morte do inquilino.
2. Se logo nesse articulado se discute a possibilidade de transmissão do direito ao arrendamento para um descendente do primitivo arrendatário, o qual ocupa esse locado e invoca a sua qualidade de atual inquilino, ainda que alegadamente de forma infundada, em causa está a cessação do contrato de arrendamento por caducidade, que é o objeto típico das ações de despejo.
3. Nestes casos é completamente indiferente o recurso à ação de despejo ou à ação de reivindicação, ainda que tenham causas de pedir diversas e pedidos distintos.
4. Em caso algum, nestas situações, o recurso à ação de despejo, e não à ação de reivindicação, poderia determinar a anulação de todo o processo, até porque não estando em causa o procedimento especial de despejo (regulado nos Art.s 15º e ss. da Lei n.º 6/2006 de 27/2 - NRAU), qualquer ação destinada a obter o reconhecimento da cessação de um contrato de arrendamento sempre seguirá os termos do processo declarativo comum (“ex vi” Art. 14.º n.º 1 do NRAU), tal como sucede com as ações de reivindicação (Art. 546.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.), sendo de ter sempre em consideração o disposto no Art. 193.º do C.P.C..
5. A impugnação genérica da decisão sobre a matéria de facto com o propósito de se fazer uma repetição completa do julgamento, sem especificação dos concretos segmentos de facto impugnados, nem indicação da decisão que com a prova reproduzida se pretende ver consagrada, é completamente contrária ao nosso sistema legal de recurso sobre a matéria de facto, constituindo uma violação do disposto no Art. 640.º n.º 1 al.s. a) e c) do C.P.C., que deve conduzir à rejeição nessa parte do recurso.
6. Não se provando que o descendente do primitivo inquilino no imóvel vivia no locado há mais de um ano até ao óbito do seu pai, nem que padecia de deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60 % (Cfr. Art. 57.º n.º 1 al. e) do NRAU), por força da morte do inquilino caduca o contrato de arrendamento (Art. 1051.º n.º 1 al. d) do C.C.).
7. A indemnização prevista no Art. 1045.º n.º 2 do C.C. aplica-se ao incumprimento pelo inquilino da obrigação de restituição do imóvel locado no fim do contrato de arrendamento, não podendo servir de limite máximo à indemnização devida por qualquer terceiro, ocupante do imóvel, sem título legítimo para esse efeito, quando se provem que os danos por este causados ao proprietário são de valor superior, pois quanto a este aplicam-se as regras gerais dos Art.s 483.º e ss., e 562.º e ss. do C.C..
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
AA veio intentar a presente ação de despejo, em processo declarativo comum, contra BB, pedindo que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado quanto ao imóvel por si identificado e a condenação da R. a entregar o locado livre e devoluto e no pagamento da quantia de €1.000,00 por cada mês que decorra desde a citação até à efetiva entrega do imóvel.
Para tanto, alega que celebrou com CC, na qualidade de inquilino, em 2 de abril de 1980, um contrato de arrendamento referente à fração autónoma correspondente ao 7.º andar, Letra A, do prédio sito na Avenida … n.º 14, Portela, pela renda mensal de €297,50.
Sucede que o inquilino faleceu em 23 de agosto de 2019, no estado civil de divorciado, arrogando a R. a qualidade de inquilina, por efeito da transmissão daquele arredamento, sem fazer prova dos factos que pudessem determinar tal transmissão.
Mais alegou que o inquilino já não habitava no imóvel há mais de dois anos, reportados à data do óbito e que, desde o seu divórcio, ali passou a residir sozinho, não habitando a R. no locado há mais de 15 anos, pois reside na Av. …, no Estoril.
Citada a R. contestou, alegando a ineptidão da petição, a ilegitimidade e a caducidade do direito de ação, sustentando que a A. litiga da má-fé, por alterar a verdade dos factos e deduzir uma pretensão ilegal, que a mesma não tem direito a indemnização superior à prevista no artigo 1045.º do CC pela não restituição do imóvel, sendo que a R. sempre residiu no imóvel com o seu pai, tendo o arrendamento sido transmitido para si por força do artigo 57.º do NRAU, uma vez que é filha do primitivo inquilino, convivia com este no imóvel, pelo menos desde 2016, e, além disso, padece de deficiência igual ou superior a 60%, pelo que não ocorreu a caducidade do contrato por força do óbito de CC.
Formulou ainda pedido reconvencional, pedindo a condenação da A. no pagamento de indemnização, invocando ter sofrido um acidente no locado devido ao estado de degradação do mesmo e que a A. nunca efetuou obras no imóvel que evitassem a sua degradação. Além disso foram feitas várias obras no imóvel ao longo dos anos, as quais rondaram a quantia de €50.000,00.
A A. veio a responder à contestação, pugnando pela improcedência das exceções alegadas e impugnando os factos alegados pela R., bem como os documentos juntos aos autos, designadamente quanto à sua idoneidade probatória do grau de incapacidade alegado, impugnando ainda os factos alegados como fundamento do pedido reconvencional.
Findos os articulados, veio a ser designada audiência prévia, onde se admitiu o pedido reconvencional, julgando-se ainda improcedentes as exceções dilatórias de ilegitimidade, de ineptidão da petição e a exceção de caducidade do direito de ação da A.. Na sequência, identificaram-se os temas da prova e o objeto do litígio, admitindo-se os meios probatórios e agendando-se a audiência final.
Realizada a audiência final, com produção da prova, após a discussão da causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação procedente, declarando a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e CC, referente ao Sétimo Andar A do prédio sito na Rua … n.º 14, Portela, condenando a R. a entregar esse imóvel à A., livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe a quantia mensal de €1.000,00 (mil euros) por cada mês que decorrer desde a data da citação para a ação até efetiva entrega do imóvel, descontando-se nesse valor as quantias que tenham sido pagas pela R. a título de “rendas”. Mais julgou improcedente a reconvenção e absolveu a A. da totalidade do pedido reconvencional.
É dessa sentença que a R. vem agora recorrer de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A. A Ré Recorre da douta Sentença, além do mais, de lhe negar o direito ao arrendamento por transmissão mortis causa do pai,
B. apesar de viver com o pai e ter grau de incapacidade 60% pré-existente, com meio probatório e automático “atestado multiuso”,
C. ao contrário do decidido, o litígio é pré-contratual e reivindicação,
D. pois, a ré para transmissão do arrendamento revindica obras à autora, esta não as faz e propõe a venda informal do imóvel à ré,
E. a ré acreditando na relação de confiança de 40 anos, custeia as obras e pela surdina a Autora interpõe ação de despejo por forma a recebe as rendas, o imóvel e as obras, vide os articulados.
F. Assim não entendeu o tribunal “a quo” condenando-a designadamente, por caducidade do contrato de arrendamento,
G. Ora desde logo deveria o tribunal se prenunciado e não se prenunciou, designadamente sobre o pedido formulado pela autora, designadamente sobre a legitimidade da Ré, quanto nós parte ilegítima para esta ação de despejo,
H. não sendo este o meio próprio mas sim ação de reivindicação, verifica-se contradição entre a causa de pedir e os pedidos e entres estes, consequente erro de direito e erro de julgamento
I. Contudo, a douta sentença ora em crise, configurada como tal de despejo, condenou a ré e absolveu de tudo a autora,
J. a fundamentação e aplicação do direito pelo douto Tribunal recorrido assenta, essencialmente, a sua conclusão na falta de credibilidade da prova apresentada pela ré, determinando a absolvição da autora, também do pedido reconvencional,
K. Ora, a petição inicial será inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (art.º 186º, n.º 2, alínea a) do CPC) como in casu,
L. Sendo que, a autora pede a legitimidade da ré numa ação de despejo, porém rejeita a transmissão por mortis causa do contrato de arrendamento objeto da ação,
M. na causa de pedir a autora alega por exemplo que a ré nunca viveu no imóvel, em contradição insanável, pede a entrega do imóvel e rendas, não sendo a ré arrendatária segundo a autora.
N. a incompatibilidade substancial de pedidos, é geradora de ineptidão da petição inicial, e verifica-se quando as pretensões se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, como in casu
O. mesmo que viesse a proceder a ação de despejo o que não se aceita, apenas a partir de 28/01/2023 se verificaria a caducidade do contrato de arrendamento mantendo-se a renda em 297,50€.
P. a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada, prevista no art. 1045º do Código Civil, limita-se pois a 600€ mês, sendo abusivo pedir renda de 1000€ mês,
Q. o tribunal “a quo” excedeu assim largamente o valor do pedido da autora, substituindo-se a esta em “contra lege”.
R. O tribunal a quo substitui-se à parte autora designadamente requerendo perícias “à la carte” ao INML em Lisboa,
S. Pois o douto tribunal refere o multiusos obtido no centro de saúde por residência em Cascais cuja competência é do IML de Oeiras,
T. residência de facto da Ré sempre foi no locado, não obstante ter residência fiscal em Cascais, não é concelho limítrofe de Loures,
U. verifica-se contradição entre a causa de pedir e o(s) pedido(s) deduzido(s), facto que inviabiliza qualquer tutela jurisdicional, deve ser a ação rejeitada e absolvida da instância a ré, ainda
V. quando a autora interpõe contra a Ré ação de despejo, pedindo, designadamente, que a ré nesta ação seja considerada parte legítima.
W. depois pede seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento, sub judice, com fundamento no falecimento do inquilino, que invoca na causa de pedir que já não habitava ali,
X. porem, depois de resolvido o contrato de arrendamento pelo senhorio, não há lugar a rendas vincendas mas que vem pedir,
Y. Aceitando o tribunal a ação assim interposta, fundamentando e dando especial credibilidade às Testemunhas apresentadas pela autora, até no pedido reconvencional, designadamente a testemunha AR, com cerca de 30 anos
Z. em detrimento da testemunha FC, porteira do prédio, onde se situa o locado, esta habita há mais de 30 anos,
AA. é que o tribunal estriba a Sentença dando credibilidade às contradições da Testemunha AR, técnica de farmácia, não trabalha no ramo imobiliário, não tem casa arrendada, é amiga da filha e da autora, a quem ouviu dizer o que relata,
BB. Mas a testemunha AR denota falta de credibilidade para avaliar arrendamentos, não sabendo se precisa de obras ou não, limita-se a reportar o que ouviu dizer, nada sabe de facto,
CC. mal andou pois o douto tribunal em considerar provados tais factos com base neste testemunho, a matéria de facto é nula.
DD. Sucede que o T3 dos autos, precisa de obras urgentes, e deveria ter douto tribunal oficiar inspeção ao local, o que não fez, para poder aferir a necessidade e determinar a renda aplicável, pois descurou irregularmente toda a prova apresentada pela ré.
EE. além de desvalorar a prova produzida pela ré, não se respondeu aos artigos em concreto, em contradição, julgou não provados os factos cuja prova foi corroborada pelas testemunhas e por documentos juntos,
FF. diz-se na Sentença que “a convicção do Tribunal para considerar a factualidade dada como provada decorre dos documentos juntos aos autos cuja força probatória plena permite dar como provada tal factualidade”
GG. porem, nenhuma prova foi feita de que : “A ré não entregou o imóvel à autora arrogando-se a qualidade de inquilina.” Dos articulados resulta que foi a autora que não quis receber o imóvel para se furtar mais uma vez às obras no locado,
HH. não pode o tribunal ser parcial e considerar a versão da autora e desconsiderar a versão da ré, aceitar como verdadeiros os depoimentos das testemunhas da autora e desconsiderar as da ré, o que inquina de nulidade a Sentença por falta de fundamentação da própria Sentença, pode ler-se ali, por exemplo,
II. se a Ré vive no locado há 43 anos onde tem o centro da sua vida familiar e profissional, o facto da porteira, o conhecer naquele prédio há 30 anos, é prova relevante, a ter em conta pelo tribunal,
JJ. O tribunal ao invés disso de forma parcial faz suposições: “o que leva a crer que a testemunha não foi credível e que tomou uma posição de parcialidade, pois é evidente que, pelo menos em dado período de tempo, a ré ali não terá residido…”
KK. o tribunal mais uma vez substitui-se à parte autora: primeiro ao afirmar que os Atestados Multiusos onde consta a incapacidade da 60%, pré-existente à data do óbito juntos pela ré e datado de 2018, não tem qualquer força probatória plena…” note-se que o documento foi certificado como autêntico
LL. E volta a substituir-se à parte ao impor à Ré se sujeite a perícias médicas, em consequência, em 11.03.2022 foi ordenado oficiosamente nova avaliação de incapacidade, onde consta que à data de 23.08.2019 a incapacidade era inferior a 60%,
MM. Mas o médico perito nunca seguiu a ré em consulta, a junta médica juntou ao relatório do perito novo atestado multiuso em 2022 com incapacidade da ré em 69%, o que sentença omite,
NN. deve prevalecer a incapacidade obtida por Junta médica em 2018 por pré-existente à data do óbito do arrendatário,
OO. esse mesmo sentido decidiu o TRL, pº 11726/20.2 T8LSB.L1-8, de 05-05-2022, disponível em http://www.dgsi.pt/
PP. A ré considera nula a prova obtida, pois resulta de uma intervenção não consentida ao tribunal nem ao perito, não sendo requerida pelas partes, é uma abusiva invasão da sua privacidade, saúde, liberdade de escolha e de vontade, ao invés,
QQ. a autora ao não comparecer em julgamento tendo sido pedido o seu depoimento de parte, prejudicou o contraditório de forma grave, sem que lhe fosse exigida perícia em igualdade de partes, tal violação do contraditório conduz à nulidade da decisão (art. 195º nº 1 do C.P.C.), inquinando a Sentença proferida RR. tendo a autora apresentado um relatório médico, que lhe diagnosticava doença demencial, uma declaração de médico psiquiatra que interdita por anomalia psíquica a autora de depor…
SS. Por isso, não podendo outorgar procurações.
TT. E não ter sido suscitado incidente de acompanhamento
UU. Donde se conclui que a representação não existe, pormenor que o douto tribunal “a quo” descurou e não sancionou.
VV. Assim, o Tribunal a quo, incorreu em erro de julgamento no que tange à matéria de facto e a aplicação do direito de forma errada à subsunção dos factos, ferindo de nulidade a Sentença.
Pede assim que sejam julgadas por procedentes as nulidades invocadas, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida, proferindo-se outra em substituição daquela, que absolva a R. e reconvinte e condene a A., com todas as consequências legais. Mas, caso assim se não entenda, que se corrija a Sentença, fixando a renda dentro dos limites legais, €297,50 sem obras, ou após estas em €600.
A A. respondeu e, mesmo não apresentando conclusões, pugnou pela improcedência do recurso assim apresentado.
O Tribunal a quo admitiu o recurso, não se pronunciando sobre as alegadas nulidades da sentença. Sem prejuízo, em face dos termos como a questão das nulidades foi colocada, não se nos afigura necessário mandar baixar os autos à 1.ª Instância para suprir esse vício (cfr. Art. 617.º n.º 5 “a contrario” do C.P.C.).
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5.º n.º 3 do C.P.C.). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A nulidade do processado por ineptidão da petição inicial;
b) A ilegitimidade passiva da R.;
c) A procuração emitida pela A.;
d) A nulidade da sentença recorrida por alegada falta de fundamentação e omissão, ou excesso, de pronúncia;
e) A nulidade relativa à produção de prova, nomeadamente pericial;
f) A impugnação da matéria de facto e sua rejeição;
g) A caducidade do contrato de arrendamento;
h) A indemnização pelo atraso na restituição do imóvel;
i) Os pedidos reconvencionais.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. Por escrito intitulado “Arrendamento”, assinado em 02.04.1980, pela A. na qualidade de senhoria e por CC na qualidade de inquilino, foi dado de arredamento a este o Sétimo Andar A do prédio sito na Portela, Lote 1…;
2. Esse imóvel corresponde ao imóvel sito na Rua … n.º 14, Portela;
3. A A. é proprietária deste imóvel desde 25.03.1980;
4. CC faleceu em 23.08.2019, no estado civil de viúvo;
5. A R. é filha de CC;
6. A R. não entregou o imóvel à A. arrogando-se a qualidade de inquilina;
7. Em caso de arrendamento atual valor locativo do imóvel descrito no ponto 1 é de, pelo menos, €1.000,00.
*
Foram ainda julgados por não provados os seguintes factos:
8. A R. vivia no imóvel com o pai no imóvel identificado no ponto 1 “supra” desde, pelo menos, o ano de 2016;
9. À data mencionada no ponto 3 “supra” a R. é padecia de deficiência com grau de incapacidade equivalente a 60 %;
10. A R. e o pai fizeram obras no locado no valor de €50.000,00, tendo a R. suportado a quantia de €41.075,00;
11. A R. e o pai solicitaram à A. a realização de obras de conservação do locado, o qual se encontrava degradado;
12. A R. sofreu um acidente no imóvel devido a esse estado de degradação.
*
Tudo visto, cumpre apreciar.
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões suscitadas na apelação cuja apreciação importará fazer, cumprirá então que sobre elas nos debrucemos, respeitando no seu conhecimento a sua ordem de precedência lógica.
1. Nulidade do processo por ineptidão.
A R., logo na sua contestação, de forma ínvia, parece que terá tentado alegar uma nulidade do processo por ineptidão. Diga-se que isso não é nada claro, mas o Tribunal a quo, “à cautela”, logo no despacho saneador, debruçou-se sobre essa questão nos seguintes termos:
«iv. Ineptidão:
«A ré invoca ainda a ineptidão da petição inicial, sem, no entanto, invocar qualquer vício concreto suscetível de integrar o conceito de ineptidão.
«De acordo com o artigo 186.º n.º 2 do CPC, a petição é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir ou quando se cumulem causas de pedir substancialmente incompatíveis.
«Neste caso, verifica-se, pois, que a autora alega factos concretos e precisos que consubstanciam a sua causa de pedir quanto à ré, não existindo qualquer contradição ou incompatibilidade, pelo que a petição inicial não padece de qualquer vício.
«Inexistem quaisquer nulidades, exceções dilatórias ou questões prévias de que cumpra apreciar e que obstem ao conhecimento do mérito da ação».
Agora nas alegações de recurso, a Recorrente volta à carga, defendendo que a petição seria inepta, o que faz de forma que só podemos caracterizar como “muito atabalhoada”.
Aparentemente, a questão para a R., aqui Recorrente, está fundamentalmente ligada ao problema do erro do meio processual utilizado, considerando que a ação deveria ser de “reivindicação” e não de “despejo”, porquanto a A. demandou a R. com fundamento num contrato de arrendamento que caducou por óbito do inquilino, peticionando que a R. seja reconhecida como “parte legítima” apesar de não reconhecer esta como inquilina, identificando assim uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, uma ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir e uma incompatibilidade de pedidos relacionados com o peticionado despejo e pagamento de “rendas vincendas”, quando não existe qualquer obrigação de pagamento de rendas.
Diga-se que, na contestação, a questão foi sempre colocada mais em termos de erro no meio processual utilizado e não tanto nos termos agora “explicitados” nas alegações de recurso.
Na verdade, não há como dizê-lo doutra forma, esta alegação sobre a nulidade do processo por ineptidão, não tem fundamento algum.
A A. alegou a existência dum contrato de arrendamento, celebrado em 2 de abril de 1980, entre a A., na qualidade de senhoria, e CC, na qualidade de inquilino (artigo 1.º da petição inicial). Depois alega que o inquilino faleceu a 23 de agosto de 2019 (artigo 6.º da petição inicial) e que esse facto não lhe foi transmitido pela R., filha daquele (artigo 7.º da petição inicial). Sendo que esta última, no entanto, se intitulou arrendatária, perante o condomínio do prédio onde o locado é sito (artigos 7.º a 9.º da petição inicial). Assim, estaria em causa um contrato de arrendamento, em que a R. se intitula filha do anterior inquilino e atual arrendatária, embora, alegadamente, não fizesse prova dessa situação (artigos 22.º e 23.º da petição inicial). Pede assim o reconhecimento da caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do Art. 1051.º al. d) do C.C., por óbito do arrendatário (artigo 28.º da petição inicial). Sustentando ainda que a R. nem sequer reside no locado (artigo 30.º da petição inicial), sendo que o valor locativo da fração é de pelo menos €1.000,00 (artigo 32.º da petição inicial).
Em função do assim alegado pede que seja a R. reconhecida parte legítima, que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento por óbito do inquilino e a R. condenada a entregar o locado, livre de pessoas e bens, e a pagar €1.000,00 por mês, contados da citação até efetiva entrega do locado.
Dito isto, não vemos que haja contradição entre pedido e causa de pedir, nem que a petição seja ininteligível quanto ao pedido e causa de pedir, nem que haja pedidos substancialmente incompatíveis. Veja-se, desde logo, quanto a este último ponto, que a A. nem sequer peticiona o pagamento de “rendas”, pois pretende tão somente ser indemnizada pela ocupação ilícita da fração de que é titular.
Não há maneira nenhuma de enquadrar esta petição inicial, assim resumida, em nenhuma das alíneas do n.º 2 do Art. 186.º do C.P.C..
Já quanto à questão do meio processual adequado, ou eventual “erro na forma de processo”, que é vício que não se pode confundir com a “ineptidão da petição inicial”, temos de ter em conta que, nos termos do Art. 14.º n.º 1 do NRAU, a ação de despejo é o meio processual adequado a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação, sendo que essa ação segue a forma de processo comum declarativo.
No passado já foi muito discutido se a ação de despejo era meio adequado para obter o reconhecimento da cessação do contrato de arrendamento por caducidade, nomeadamente por óbito do inquilino.
Assim, por exemplo, no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/4/2002 (in C.J. 2002 Tomo II, pág. 98) é dito: «I- Não é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir, a petição inicial em que se deduz um pedido de despejo e se usa como causa de pedir a caducidade do arrendamento. II- Discutindo-se a possibilidade de transmissão do arrendamento ou a constituição do direito a novo arrendamento, não faz sentido o recurso à ação de reivindicação, porque está em causa o arrendamento, embora caducado».
Concordamos com o assim exposto de forma resumida, embora, para nós, continuemos a julgar ser completamente indiferente o recurso nestas situações à ação de despejo ou à ação de reivindicação.
Como já o dissemos no acórdão de 8 de fevereiro de 2022 (Proc. n.º 19864/15.7T8LSB.L1), em repetição do que também já havíamos dito no acórdão de 23 de outubro de 2018 (Proc. n.º 657/14.5TBFUN.L1), atualmente, já não importa discutir se este tipo de ações deveria ser uma ação de despejo, como resultava dos revogados Art.s 55.º e 56.º do R.A.U., ou uma ação de reivindicação, pois o que agora releva é apenas que não está em causa o procedimento especial de despejo (regulado nos Art.s 15º e ss. da Lei n.º 6/2006 de 27/2 - NRAU), considerando que qualquer outra ação destinada a obter o reconhecimento da cessação de um contrato de arrendamento sempre seguirá os termos do processo declarativo comum (“ex vi” Art. 14.º n.º 1 do NRAU), tal como sucede com as ações de reivindicação (Art. 546.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
O propósito final desses dois tipos de ações acaba na prática por ser fundamentalmente o mesmo, embora fundados em causas de pedir diversas e com pedidos distintos. Mas se dúvidas houvessem sobre a adequação da ação de despejo a estes casos, sempre poderíamos ter em conta o disposto no Art. 1053.º do C.C., que tem por epígrafe “Despejo do prédio”, o qual está inserido na Subsecção II, relativa à “caducidade” dos contratos de locação, regulando aspetos concretos da obrigação de restituição do imóvel na sequência da caducidade do contrato de arrendamento, aplicável num quadro típico duma “ação de despejo”.
Acresce que, seguindo ambas essas ações a forma de processo declarativo comum, nunca estaríamos perante uma típica situação de “erro na forma de processo” ou de “erro no meio processual”, que nos termos do Art. 193.º n.º 1 a n.º 3 do C.P.C. também nunca poderia determinar a anulação de todo o processado, mas sim, e apenas, a ordem de realização dos atos necessários a aproximar o processo à forma aplicável, ou a correção oficiosa do meio aplicado, aproveitando-se todos os atos já realizados.
Certo é que, se a A. admite, logo na petição inicial, discutir a possibilidade de transmissão do direito ao arrendamento, mesmo não aceitando que se verifiquem os respetivos pressupostos, então a ação de despejo é meio processual idóneo para fazer cessar uma situação de arrendamento fundada na caducidade por óbito do arrendatário e suportada na alegação de que não houve transmissão desse direito para a pessoa demandada que se intitula legítima arrendatária, sem que daí resulte qualquer contradição assinalável que obste à apreciação dos pedidos, nomeadamente por “ineptidão da petição”.
Em conformidade, improcedem todas as conclusões que sustentam a ineptidão da petição inicial.
2. A ilegitimidade passiva da R.
A R. já havia suscitado a questão da ilegitimidade processual na sua contestação, sendo que no despacho saneador essa exceção dilatória foi julgada improcedente e, portanto, a R. logo aí foi tida como parte legítima.
Nas alegações do presente recurso, volta a sustentar a procedência dessa exceção, o que faz com base nos mesmos argumentos com fundamento nos quais defendeu a ineptidão da petição inicial.
Em causa está que a A., logo à partida, não reconhece a R. como arrendatária, sustentado que o contrato de arrendamento já caducou, logo não pode pedir que a mesma seja reconhecida como parte legítima. Pedido sobre o qual, aliás, conforme alega, não houve sequer pronúncia na sentença recorrida.
Apreciando, com todo o devido respeito, não podemos acompanhar este raciocínio.
De facto, a R. já foi julgada parte legítima no despacho saneador e é quanto basta, sendo que em abono da verdade a Recorrente não impugnou aqui diretamente o despacho saneador, como era devido, apesar de parecer pretender insistir na procedência desta exceção dilatória, tal como na anteriormente invocada e já apreciada.
Mais, para que dúvidas não subsistam, a R. era efetivamente a única pessoa com legitimidade passiva para se opor aos pedidos formulados pela A., porque alegadamente se intitulou arrendatária do locado e era a pessoa que, ocupando-o, impedia a A. de obter a restituição do imóvel objeto da ação de despejo, sem ser com recurso à via judicial. Logo, era parte legítima (cfr. Art. 30.º do C.P.C.), improcedendo todas as conclusões de que pudesse resultar o contrário.
3. A procuração emitida pela A.
Nas suas alegações, a Recorrente vem suscitar uma questão nova relacionada com a incapacidade da A., pois foi junto aos autos um atestado donde resulta que a mesma tem doença demencial, que a impossibilitaria depor. Logo conclui que “não poderia outorgar procurações”, sendo que também não teria sido suscitado o incidente de acompanhamento de maior.
Apreciando, diga-se que a A. juntou procuração forense por si assinada com o requerimento de 27/2/2020 (Ref.ª n.º 9412912 – p.e.), não tendo o seu mandatário suscitado, nem então, nem depois, qualquer questão relacionada com a saúde mental da sua constituinte.
O processo desenrolou-se assim sem ter sido alegada qualquer incapacidade mental da A. para compreender o que lhe era dito ou expressar a sua vontade de forma livre e consciente, de tal modo que a emissão da procuração pudesse ser tida como um ato inválido, nos termos do Art. 257.º do C.C..
Sem prejuízo, é verdade que, por requerimento de 14 de maio de 2021 (Cfr. “Requerimento” de 14-05-2021 – Ref.ª n.º 10905459 – p.e.), já em pleno decurso da produção da prova na 1.ª instância, a A., através do seu mandatário, juntou um atestado médico onde é dito que a mesma «se encontra num processo demencial com componente persecutório encontrando-se incapaz de prestar depoimento na audiência de discussão e julgamento do dia 27/05/2021 (…)».
Evidentemente que esse requerimento tinha um fito único: que a A. não prestasse depoimento na audiência em causa. Embora aí também se tenha alegado que: «quando a Autora tomou conhecimento da contestação e reconvenção da Ré, o estado de saúde da mesma foi muito abalado, com internamento no hospital de Santa Maria devido a grande instabilidade emocional e desorientação traduzido na convicção que lhe querem tirar o andar, não tendo a mesma dinheiro exigido pela Ré».
Ainda assim, só com base neste documento e nestas alegações, que nem sequer foram atendidas no despacho do tribunal recorrido datado de 25 de maio de 2021 (Ref.ª n.º 148627922 – p.e.), não existem elementos de facto, nem de prova segura, para sustentar que a A. não se encontra devidamente patrocinada por advogado (cfr. Art. 40.º n.º 1 al. a) do C.P.C.) e a procuração junta aos autos não seja válida e não corresponda à vontade expressa de forma livre e consciente pela constituinte aí outorgante.
Na verdade não sabemos sequer se existe fundamento para apresentação de processo especial de maior acompanhado, nos termos dos Art.s 891.º e ss. do C.P.C., nem que concretas limitações à capacidade de exercício da A. dele poderiam resultar (cfr. Art. 145.º do C.C.). Pelo que, nada nos pode levar à conclusão que não está a ser cumprido o pressuposto processual do patrocínio judiciário obrigatório, subsistindo a validade da instância, nomeadamente quanto aos atos praticados pelo mandatário subscritor das alegações de recurso.
E é tudo quanto a este respeito poderemos dizer.
4. Da nulidade da sentença recorrida.
Aqui chegados, e apesar de tudo o já exposto, não podemos deixar de criticar veementemente a forma caótica como as alegações de recurso foram apresentadas pela Recorrente que, de forma completamente desorganizada e desestruturada, vai lançando argumentos em catadupa, ao longo da motivação do recurso, sem qualquer esforço mínimo de sistematização, o que dificulta em muito a apreciação dos temas do presente recurso. De facto, a propósito e a despropósito, aparecem fundamentos relativos a alegadas nulidades da sentença, misturados com questões de impugnação da matéria de facto, com nulidade do processo e exceções dilatórias e perentória, numa imensa confusão que raia a ineptidão.
Sem prejuízo, com algum esforço interpretativo, consegue-se discernir que, entre as questões suscitadas, nesta amálgama informe e confusa de apresentação de alegações e conclusões, a Recorrente pretende ver reconhecido que a sentença é nula por alegada falta de fundamentação e por omissão e até, aparentemente, excesso de pronúncia, ou por condenar em objeto diverso do pedido.
Assim, no artigo 8.º das alegações invoca que: «8. O tribunal não se prenunciou designadamente sobre o pedido formulado pela autora, designadamente sobre a legitimidade da Ré, quanto nós parte ilegítima para esta ação de despejo, questão essencial que descorou».
No artigo 15.º diz que: «o tribunal condena em objeto diferente do pedido».
No artigo 48.º alega que: «O tribunal em concreto entendeu sem o referir, como matéria irrelevante, de mera impugnação, repetida, conclusiva ou de direito, os restantes artigos da petição inicial, os artigos 1º a 140º da contestação e 141º ao 153.º do pedido reconvencional, bem como a réplica e a resposta a esta, o que não deixa de ser no mínimo estranho». E nos artigos 53.º a 55.º que: «53. São muitos os factos provados em julgamento que não constam na Sentença, nem dos fatos provados, nem dos factos não provados, por exemplo que a autora prometeu vender o imóvel a uma testemunha e à ré por 95.000,00€; isto sucedeu na sequência da comunicação à autora da morte do pai da ré; pois a ré nunca teve a intenção de ficar com o arrendamento sem as necessárias obras pois está inabitável de tão degradado que se encontra; a autora é que recusou receber o imóvel e pediu documentos e veio com ação de despejo (artigo 1 a 21 da PI, artigos 86.º, 96.º contestação doc 5, 56.) corroborado pelas testemunhas»; «54. O douto tribunal não refere quais os tipos de articulados onde funda a fundamentação do ponto 6, sendo que todos eles são contrários entre si»; «55. Os factos não se podem considerar provados sem prova e só porque foram articulados pelas partes, como parece verter-se da douta sentença».
Visto isto, não se fazendo sequer qualquer menção ao Art. 615.º do C.P.C., não admira que nas contra-alegações não se tenha respondido diretamente a qualquer nulidade da sentença, nem o despacho que admitiu o recurso se tenha debruçado sobre a matéria das nulidades, tendo em atenção o disposto no n.º 1 do Art. 617.º do C.P.C..
Apreciando, a sentença é nula, nos termos do Art. 615.º n.º1 al. b) do C.P.C., quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Por outro lado, é igualmente nula, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, tal como decorre da al. d) do n.º 1 do Art. 615.º do C.P.C., ou condene em objeto diverso do pedido, atento ao disposto no Art. 615.º n.º 1 al. e) do C.P.C..
Em qualquer dos casos trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Mas, quanto ao primeiro caso, como ensinava Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil  Anotado”, Vol. V, pág. 140): «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. / Por falta absoluta de motivação deve entender-se, portanto, a ausência total de fundamentos de direito e de facto».
Nas palavras de Tomé Gomes (in “Da Sentença Cível”, pág. 39): «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão».
Conforme se refere de forma lapidar no acórdão do S.T.J. de 26/4/1995 (Relator: Raul Mateus, in CJ 1995 – Tomo II, pág. 58): «(...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância».
Em suma, só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do Art. 615.º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento (cfr. Ac. do S.T.J. de 2/6/2016 – Relatora: Fernanda Isabel Pereira, Proc. n.º 781/11, disponível em www.dgsi.pt).
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (cfr. Ac. do T.R.L. de 17/5/2012 – Relator: Gilberto Jorge, Proc. n.º 91/09, disponível em www.dgsi.pt).
Quanto ao segundo caso de nulidade, relativo à omissão ou excesso de pronúncia, essa nulidade está diretamente relacionada com o Art. 608.º n.º 2 do C.P.C., segundo o qual «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Mas há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava Alberto dos Reis (in Ob. Loc. Cit., pág. 143: «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (Cfr. Ac.s do S.T.J. de 7/7/1994, Relator: Miranda Gusmão, in BMJ n.º 439, pág. 526 e de 22/6/1999, Relator: Ferreira Ramos, in CJ 1999 – tomo II, pág. 161; e Ac.s do T.R.L. de 10/2/2004, Relatora: Ana Grácio, in CJ 2004 – Tomo I, pág. 105, de 4/10/2007, Relatora: Fernanda Isabel Pereira, de 6/3/2012, Relatora: Ana Resende, Proc. n.º 6509/05, acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl).
Esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir pedido e exceções e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas.
A questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem. Deste modo, não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação (cfr. Ac. do T.R.L. de 23/4/2015, Relatora: Ondina Alves, Proc. n.º 185/14).
Não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes (cfr. Ac. do T.R.P. de 9/6/2011, Relator: Filipe Caroço, Proc. n.º 5/11).  O juiz não tem que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (cfr. Ac. do S.T.J. de 30/4/2014, Relator: Belo Morgado, Proc. n.º 319/10).  
Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deve conhecer (Art. 608.º n.º 2 do C.P.C.) à exceção daqueles cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros. O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui.
No que concretamente tange ao excesso de pronúncia (segunda parte da al. d) do Art. 615º do C.P.C.), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objeto do litígio.
Conforme se refere no acórdão do S.T.J. de 6/12/2012 (relator: João Bernardo, Proc. n.º 469/11), à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integra nulidade (cfr. Ac. do S.T.J. de  15/12/2011, Relator: Pereira Rodrigues, Proc. n.º 2/08).
Finalmente, quanto à condenação em objeto diverso, esta também conduz à nulidade da sentença, nos termos da al. e) do n.º 1 do Art. 615.º do C.P.C..
Esta norma articula-se com o disposto no Art. 609.º n.º 1 do C.P.C., nos termos do qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Em causa está também o princípio dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e o princípio do contraditório, segundo os quais o tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedido por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Explicitando o sentido desta norma, escrevia Alberto dos Reis (in Ob. Loc. Cit., pág.s 67/68): «O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, Não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. (...) Também não pode condenar em objeto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a presta um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo)».
Em todo o caso, tem-se entendido que a regra do n.º 1 do Art. 609.º do C.P.C. deve ser interpretada em sentido flexível de modo a permitir ao tribunal corrigir o pedido, quando este traduza mera qualificação jurídica, sem alteração do teor substantivo, ou quando a causa de pedir, invocada expressamente pelo autor, não exclua uma outra abarcada por aquela (cfr. Ac. do S.T.J. de 18/11/2004, Relator: Ferreira Girão, Proc. n.º 04B2640).
Voltando-nos para o caso concreto, é claro que não podemos falar em falta de fundamentação, no sentido supra exposto, de falta absoluta de fundamentação, porque a sentença mostra-se fundamentada de facto e de direito, discriminando os factos provados e não provados e fazendo a consequente subsunção dos mesmos às normas jurídicas que aplicou, fazendo assim o devido enquadramento jurídico das pretensões formuladas.
A Recorrente “queixa-se” da circunstância da sentença não se ter pronunciado sobre a questão da ilegitimidade da R., mas isso não é verdade, no sentido de que essa questão já havia sido decidida no despacho saneador proferido em ata na audiência prévia (cfr. “Ata” de 07-10-2020 – “Ata (adiamento Continuação c/ data)” – Ref.ª n.º 145996079 – p.e.), conforme já havíamos feito notar.
Por outro lado, se a questão é colocada pela Recorrente em termos de insuficiência da matéria de facto, ou de insuficiência da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, tal não pode ser configurado como nulidade da sentença, nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. b) ou d) do C.P.C., mas sim como erro de julgamento, suprível pela impugnação dessa decisão, conquanto a Recorrente cumpra os ónus estabelecidos na lei, nomeadamente no Art. 640.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C..
Finalmente, no que se refere à condenação em objeto diverso do pedido, podemos constatar que a A. pedia que a R. fosse considerada parte legítima (pedido 1); que fosse declarada a caducidade do contrato de arrendamento com fundamento no falecimento do inquilino (pedido 2); e a R. condenada a entregar à A. o locado livre de pessoas e bens, e pagar o valor de €1.000,00 por mês, desde a citação até efetiva entrega do imóvel (pedido 3). Ora, a sentença recorrida não declarou a R. parte legítima, mas já havia decidido que a mesma era parte legítima no despacho saneador. No entanto, declarou a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e CC (que era o alegado falecido inquilino) e condenou a R. a entregar o imóvel à A., livre de pessoas e bens, mais a condenando a pagar-lhe a quantia mensal de 1.000,00€ por cada mês que decorrer desde a data da citação para a ação até efetiva entrega do imóvel, «descontando-se nesse valor das quantias que tenham sido pagas pela ré a título de “rendas”».
Dito isto, não vislumbramos como se possa concluir que houve condenação em objeto diverso do pedido. É evidente que a condenação coincide com o pedido, com a pequena exceção relacionada com o “desconto” dos valores pagos a título de “rendas”.
Em suma, só nos resta concluir que improcedem todas as conclusões donde se pudesse pretender ver reconhecida a nulidade da sentença, seja por falta de fundamentação, seja por omissão ou excesso de pronúncia, seja por alegada condenação em objeto diverso do pedido.
5. Das nulidades relativas à produção de prova.
A Recorrente veio ainda por em causa a produção de prova, invocando a nulidade da mesma, não só por alegada parcialidade na sua apreciação, muito particularmente no que se refere à prova pericial feita por iniciativa do tribunal quanto ao grau de incapacidade da R., mas também por não ter sido possível a produção de depoimento de parte da A., por não ter comparecido em audiência.
Quanto à prova pericial, ocorre que, nos termos do Art. 467.º n.º 1 do C.P.C., a perícia pode ser requerida por qualquer das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz, devendo ser requisitada pelo tribunal a estabelecimento ou serviço oficial apropriado. Mais, estando em causa uma perícia médico-legal, ela deveria ser obrigatoriamente realizada pelos serviços médico-legais, nos termos do diploma que as regulamenta (cfr. n.º 3 do Art. 467.º do C.P.C.), o que no caso corresponde ao Instituto de Medicina-Legal e Ciências Forenses (Cfr. Art. 27.º da Lei n.º 45/2004 de 19/8).
Mais ainda, a R. alegou sofrer de incapacidade igual ou superior a 60% no artigo 3.º da petição inicial, tendo junto para o efeito prova documental, sendo que a A. impugnou esse facto, bem como os respetivos documentos, nos artigos 2.º a 6.º da réplica.
Entretanto, só por requerimento de 9 de fevereiro de 2021 é que a R. vem a juntar aos autos um “atestado médico” (Doc. 1 junto com o “Requerimento” de 09-02-2021 – Ref.ª n.º 10570154 – p.e.), consistente num “atestado médico de incapacidade multiusos”, com data de 29/1/2021, que fixa a incapacidade da R. em 70%, suscetível de futura reavaliação no ano de 2022, sendo que de acordo com documentos arquivados nesses serviços, em 15/5/2018 tinha um grau de incapacidade de 60%.
Ora, na ata de julgamento de 27/5/2021 (Ref.ª n.º 148679265- p.e.), vem a ser proferido o seguinte despacho:
«Produzida a prova nas duas sessões de audiência, constata-se que não foi produzida por qualquer das partes, qualquer prova ou contra prova sobre um dos temas fixados em sede de audiência prévia, designadamente sobre as circunstâncias de vida e de saúde da Ré.
«Com efeito, para além de um documento intitulado atestado médico de incapacidade multiusos, que foi junto ao processo aquando dos articulados, documento esse que foi objeto de impugnação pela Autora, nada mais foi apresentado ao longo do processo, designadamente à luz do art. 423º, nº 2 do C.P.C., com vista ao apuramento dos factos alegados e da comprovação por parte de quem beneficia com essa prova da incapacidade de 60%, passível de enquadrar na norma jurídica que possibilitará a transmissão do direito ao arrendamento.
«Ora, entendendo o Tribunal, que neste caso concreto, importa apurar a verdade e a justa composição do litígio, tanto mais que mais nenhuma prova foi apresentada ou requerida pelas partes a esse respeito, ao abrigo no disposto no art. 411º do C. P. C., determino a realização de prova pericial.
«Com efeito ao apuramento da incapacidade a que alude o art. 57º, do novo regime do arrendamento urbano, deverá ser objeto de conhecimentos técnicos e científicos, que apenas os senhores peritos médicos poderão atestar, sendo absolutamente essencial a realização desse meio de prova ainda a constituir.
«Assim sendo, antes de mais, e ao abrigo do disposto no art. 415º do C.P.C., concedo a palavra às partes para neste momento, se pronunciarem, em primeiro lugar à Autora e em segundo lugar à Ré». (sublinhado nosso).
Logo de seguida ficou consignado na mesma ata o seguinte:
«Dada a palavra ao Ilustre Mandatário da Autora, uma vez no seu uso, pelo mesmo foi dito, que Autora nada tem a opor ao sugerido pelo Tribunal, afim da descoberta da verdade.
*
«Dada a palavra ao Ilustre Mandatário da Ré, uma vez no seu uso, pelo mesmo foi dito, que a Ré nada tem a opor ao promovido pelo Tribunal». (sublinhados nossos).
Nessa sequência é proferido o seguinte despacho:
«Conforme já enunciado pelo Tribunal e por se entender absolutamente essencial para a justa composição do litígio, atendendo a que tal juízo de incapacidade apenas no processo pode e deve ser comprovado, tanto mais que o documento apresentado apenas confere força probatória ao declarado pelo seu subscritor, não fazendo prova quanto aos factos materiais nele atestados.
«Determino que se solicite a realização de perícia médico legal, ao Instituto Nacional de Medicina Legal, com vista a determinar-se o seguinte:
«- se BB, padecia de deficiência, à data de 23 de Agosto de 2019, bem como à presente data,
«- apuramento de alguma incapacidade decorrente dessa deficiência, com fixação do respetivo grau, igualmente reportada às datas respetivas».
O Relatório do INML de 14 de maio de 2022 veio a apresentar os seguintes resultados:
1- O coeficiente de incapacidade da R. em 23/08/2019 é de 25,314%;
2- O coeficiente de incapacidade da R. em 11/03/2022 é de 22,955%.
As partes foram notificadas desse relatório (cfr. “ Not relatório pericial” de 18-03-2022 – Ref.ª n.º 152068452 / 3 – p.e.) e não apresentaram qualquer reclamação.
Dito isto, pergunta-se: que nulidade foi cometida?
Como vimos logo de início, estamos perante um poder conferido por lei ao juiz, que foi exercido mediante o cumprimento de contraditório prévio, tendo inclusivamente merecido o apoio de ambas as partes. No entanto, só agora se pretende ver reconhecido que esse meio de prova é nulo, o que só se compreende na estrita medida em o seu resultado não satisfaz uma das partes.
Como é evidente, não há nulidade alguma.
Aliás, se nulidade houvesse, teria de ser invocada perante o Tribunal a quo, no quadro legal do Art. 195.º a 199.º do C.P.C..
Efetivamente, tratando-se de nulidade secundária, tem de ser arguida pela parte através de reclamação (Art. 196.º do C.P.C.), no momento em que ocorrer a nulidade, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário. Caso não esteja presente, o prazo geral de arguição de dez dias conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade o quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. n.º 1 do Art. 199.º e Art. 149.º n.º 1 do C.P.C.).
Na verdade, mantém-se a atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.
Conforme explicam Luís Mendonça e Henrique Antunes (in “Dos Recursos”, Quid Juris, pág. 52): «A reclamação por nulidade e o recurso articulam-se, portanto, de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação. / Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário. / Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis».
Também Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, pág. 372, afirma que: «(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão».
Em suma, a decisão proferida sobre a arguição de nulidade é que é suscetível de recurso. Pelo que, cabia à Recorrente, no momento próprio, arguir tal nulidade, o que não fez, razão pela qual a mesma se sanou. Não tendo arguido a nulidade apontada, não pode a apelante vir agora erigi-la em fundamento específico do recurso de apelação.
No que se refere à prova por depoimento de parte da A., ela foi efetivamente requerida pela R. na sua contestação, sob a alínea “C” do seu requerimento probatório, onde se pretendia ouvir a A. à matéria dos factos constantes dos artigos 97.º, 101.º, 123.º, 128.º, 138.º, 139.º e 145.º desse articulado.
Em audiência prévia não houve despacho explícito a admitir esse concreto meio de prova, mas consta da ata de audiência final de 3 de maio de 2021 (cfr. “Ata” de 03-05-2021 – Ref.ª n.º 148292732 – p.e.), o seguinte: «Ausentes: A Autora, bem como MS, a qual foi prescindida». (sublinhado nosso).
Ora, não foi invocada a falsidade desta ata. Não foi invocada a nulidade do ato relacionado com a não audição da A. nessa audiência de julgamento. Não mais foi requerido que a A. fosse ouvida em depoimento de parte até ao encerramento da discussão da causa em 1.ª instância. A produção de prova encerrou em 28 de junho de 2022 (cfr. “Ata” de 28-06-2022 – Ref.ª n.º 153313191 – p.e.), sem que a R. tenha suscitado qualquer nulidade relacionada com a omissão de produção de qualquer meio probatório, sendo que só em 18 de outubro de 2022 vem a interpor recurso, suscitando pela primeira vez a nulidade relativa a esta alegada omissão (cfr. “Requerimento (Início de Processo)” de 18-10-2022 – Ref.ª n.º 12905599 – p.e.).
Como é evidente, tudo o que se disse atrás sobre o dever de reclamação prévia perante o tribunal de 1.ª instância, tem aqui plena aplicação. Pelo que, a ter havido nulidade, o que não se vislumbra em face do que consta da ata de 3 de maio de 2021, ela já se mostra há muito sanada.
Quanto à alegação genérica de parcialidade do juiz que terá presidido ao julgamento, não temos elementos nos autos que nos permitam concluir nesse sentido.
As atas são juntas ao processo são enxutas, sem incidentes, sendo que a apreciação da prova, feita em sentença, resulta da expressão da livre convicção a que o julgador chegou, sendo normal que, havendo prova contraditória, seja exteriorizada essa convicção através da identificação dos meios de prova que julgaram mais credíveis.
Em face de todo o exposto, só nos resta julgar improcedentes todas as conclusões que sustentam a nulidade de atos probatórios realizados ou omissos no julgamento.
4. Da impugnação da matéria de facto e sua rejeição.
Uma vez mais, na amálgama confusa em que se traduzem as alegações de recurso, parece que a Recorrente pretende também impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Só que o faz de forma excessivamente genérica, sem identificar os concretos factos que pretende impugnar, sem especificar que concreta decisão pretende que o Tribunal da Relação tome relativamente a cada facto impugnado, isto sem prejuízo de tecer considerações sobre a imparcialidade do tribunal recorrido, por ter dado prevalência a certas testemunhas em detrimento doutras, de ter promovido a realização de prova pericial unilateralmente, quando já constava do processo um atestado de incapacidade multiusos, e de queixar-se não ter sido possível ouvir a A. em depoimento de parte.
Estabelece o Art. 662º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Nos termos do Art. 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo um dos fundamentais o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Mas isso só não basta, pois como vimos, decorre do Art. 640.º do C.P.C. que importa que sejam sempre identificados os factos que concretamente são postos em causa (n.º 1 al. a) do citado preceito) e, bem assim, indicar qual a decisão que deveria ser proferida sobre cada um desses factos impugnados (n.º 1 al. c) do citado preceito), ou seja descrevendo com precisão e sem margem para dúvidas os que devem ficar provados, ou não provados, e quais os concretos meios probatórios que devem conduzir a essa conclusão (idem, al. b) do n.º 1).
É completamente contrário ao nosso sistema legal recursivo, no que se refere à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apresentar uma apelação em termos de tal modo vagos e imprecisos, ou em que se pretenda uma reapreciação geral da prova, que coloque o Tribunal de Recurso na dificuldade de saber que factos concretos são postos em causa e que decisão concretamente se pretende que seja tomada.
Conforme refere Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4.ª Ed., pág. 153) o legislador recusou soluções que: «pudessem conduzir-nos a uma repetição de julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto», o legislador optou por: «restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (idem, no mesmo sentido: Ac. do T.R.L. de 13/11/2001 in C.J. – Tomo V, pág. 84; e Ac. do T.R.P. de 19/9/2000 in C.J. – Tomo V, pág. 186).
Neste sentido, é explicitado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/4/2016 (Relator: Abrantes Geraldes - disponível em www.dgsi.pt) que deve falar-se aqui de um ónus multifacetado cujo cumprimento não é fácil, mas que tem diversas justificações, entre as quais:
«- A Relação é um Tribunal de 2.ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
«- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
«- O sistema não admite recurso genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam resultado diverso;
«- Importa que seja feito do sistema uso sério, de forma a evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais» (negrito e sublinhados nossos).
No mesmo sentido também o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/01/2018 (Revista n.º 1869/12.1TYLSB.L1.S1 - 6.ª Secção – Relator: Fonseca Ramos – disponível em “sumários de acórdãos” no sítio: www.stj.pt): «III - A exigência legal imposta ao recorrente de especificar os pontos de facto que pretende impugnar constitui corolário do princípio do dispositivo no que respeita à identificação e delimitação do objeto do recurso, pelo que não pode deixar de ser avaliada sob um critério de rigor, mas sem se reconduzir a um rigorismo formalista que desconsidere os aspetos substanciais constantes das alegações, que não se coaduna com o espírito do sistema radicado na necessidade de preservar o uso sério do regime do recurso da matéria de facto por forma a impedir a utilização abusiva de instrumentos processuais com efeitos dilatórios».
Já no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2018 (Revista n.º 67/09.6TBVPA.P1.S1 - 7.ª Secção – Relator: Salazar Casanova – disponível no mesmo sítio: www.stj.pt) é dito que: «II- A inobservância desse ónus leva a que o tribunal não possa deitar a adivinhar, calcular ou supor, a partir de uma impugnação insuficiente, o sentido a impugnação que o recorrente teria porventura em vista. Assim procedendo, o tribunal infringe o Art. 685.º-B do C.P.C. (Art. 640.º do NCPC (2013)), que dita um comando legal – ónus de impugnação –, que obriga o juiz ao seu escrupuloso respeito, não havendo lugar, nestes casos, à possibilidade de uma intervenção oficiosa subsidiária do tribunal».
Do mesmo relator, no acórdão do S.T.J. de19/5/2015 (Revista n.º 267287/10.3YIPRT.L1.S1 – 6.ª Secção – disponível no mesmo sítio), resulta que se deve entender que, face ao estatuído nos artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2, parte inicial e 639.º do NCPC (2013), devem necessariamente constar das conclusões «a questão concreta consistente nessa impugnação da matéria de facto determinada».
No Acórdão do S.T.J. de 2/2/2016 (Revista n.º 2000/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção – Relator: Mário Mendes – sempre no mesmo sítio da “dgsi”) especifica-se que: «II- A delimitação concreta dos pontos de facto considerados incorretamente julgados e demais ónus impostos pelo Art. 640.º do CPC, há-de ser efetuada no corpo da alegação. III- Nas conclusões bastará fazer referência muito sintética aos pontos de facto impugnados, e às razões porque se pretende a sua alteração, sem necessidade de transcrever ou repetir o que a respeito se escreveu no corpo da alegação sobre a mesma matéria».
Mas o Supremo também já decidiu que os Recorrentes que pedem na apelação a reapreciação da matéria de facto, mas não indicam os meios de prova que impõem decisão diversa, não cumprem o ónus previsto no Art. 640.º n.º 1 do C.P.C. (vide: Ac. S.T.J. de 8/10/2019 – Proc. n.º 3138/10.2TJVNF.G1.S2 – Relatora: Maria João Vaz Tomé). Tal como o não cumprem se também não indicarem qual a decisão que no seu entender deveria ser proferida (Idem: Ac. do S.T.J. de 6/11/2019 – Proc. n.º 1092/08.0TTYBRG.G1.S1 – Relator: Chambel Mourisco), nem fizerem referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença que pretendam ver alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, devendo por isso ser rejeitados (Vide: Ac. S.T.J. de 13/11/2019 – Proc. n.º 4946/05.1TTLSB-C.L1.S1 – Relator: António Leones Dantes). Não sendo suficiente que nas conclusões se limite o recorrente a «consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada, mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados» (Ac. S.T.J. de 16/5/2018 – Proc. n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1 – Relator: Ribeiro Cardoso  – todos estes disponíveis em www.dgsi.pt).
A impugnação genérica e a manifestação do propósito de se fazer uma repetição completa do julgamento, sem especificação dos concretos segmentos de facto impugnados ou dos meios de prova que justificam a impugnação, é completamente contrária ao nosso sistema legal de recurso sobre a matéria de facto.
Acresce que o não cumprimento desses ónus de impugnação dos factos é insuscetível de despacho de aperfeiçoamento, por ser o recurso a este expediente processual restrito à matéria de direito e nunca à matéria de facto (Vide: Ac. S.T.J. de 13/9/2016 - Revista n.º 166472/13.7YIPRT.P1.S1 – Relator: Hélder Roque – disponível em sumário do S.T.J.; e Ac. S.T.J. de 18/6/2019 – Proc. n.º 152/18.3T87GRD.C1.S1 – Relator: José Rainho – disponível em www.dgsi.pt).
Quanto à inserção sistemática do cumprimento dos ónus de impugnação estabelecidos no Art. 640.º n.º 2 do C.P.C., o Supremo Tribunal de Justiça já decidiu que a rejeição da apelação respeitante à impugnação da matéria de facto pode radicar na falta de especificação, nas conclusões do recurso, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, pois os demais ónus relativos à falta de especificação dos meios de prova e sentido da decisão a proferir, apenas se revelam indispensáveis na “motivação” ou “corpo alegatório” (Vide: Ac. S.T.J. de 19/6/2019 – Proc. n.º 7439/16.8T8STB.E1.S1 – Relator: Hélder Almeida – disponível em www.dgsi.pt).
No entanto, no acórdão do S.T.J. de 31/10/2018 (Proc. n.º 2820/15.2T8LSB.L1.S1 – Relator: Chambel Mourisco) defendeu-se que da conjugação do Art. 640.º n.º 1 al.s a) e c) e Art. 639.º n.º 1 do C.P.C. resulta que para impugnar a matéria de facto devem constar das conclusões os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar e a decisão que no entender do recorrente deverá ser proferida (no mesmo sentido: Ac.s STJ de 18/2/2016 – Proc. n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1 e de 13/11/2019 – Proc. n.º 4946/05.1TTLSB-C.L1.S1 – em ambos os caso o Relator foi o Senhor Conselheiro António Leones Dantas).
Seja como for, também está firmemente assente no Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que não se deverá ser excessivamente formalista na apreciação do cumprimento dos ónus de impugnação estabelecidos na lei processual.
Assim, no acórdão do S.T.J. de 11/9/2019 (Proc. n.º 42/18.0T8SRQ.L1.S1 – Relator: Ribeiro Cardoso) defende-se que é nas conclusões que deverá o recorrente indicar os concretos pontos de facto cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração, mas «o cumprimento dos referidos ónus não pode redundar na adoção de entendimentos formalistas do processo por parte do Tribunal da Relação, devendo aquela ser moderada por princípios de proporcionalidade e razoabilidade». Assim, «tendo a recorrente procedido, no corpo das alegações, à indicação discriminada dos factos que considerava incorretamente julgados e consignado a decisão que entendia dever ser proferida relativamente a cada um deles, decisão que reproduziu nas conclusões, mas sem repetir aí aquela indicação discriminada, limitando-se a referir os pontos da fundamentação em que procedera àquela especificação, cumpriu suficientemente os ónus impostos pelo Art. 640.º n.º 1 al.s a) e c) do Código de Processo Civil».
Na mesma senda, o acórdão do Supremo de 12/9/2019 (Proc. n.º 1238/14.9TVLSB.L1.S2 – Relatora: Rosa Ribeiro Coelho), julgou que cumpre suficientemente esses ónus de impugnação quando a recorrente elabore as suas alegações em termos tais que não deixem dúvidas sobre aquilo que pretende ver sindicado, assim definindo o objeto do recurso nessa parte, através da enunciação suficientemente clara da questão que submete à reapreciação do recurso.
De igual modo, no Acórdão do STJ de 11/7/2019 (proc. n.º 334/16.2T8CMN-G1.S2 – Relator: Ricardo Costa) se defendeu que não poderá ser extraído o efeito gravoso da rejeição ou não conhecimento da impugnação da matéria de facto «se o julgador compreenda o tema recursivo para a apreciação do mérito do recurso, tendo em conta e desde que o mesmo seja percetível e/ou dedutível das Conclusões apresentadas, ainda que com prejuízo para o intuito de a parte recorrente inverter a decisão recorrida». Embora se deva acrescentar que este acórdão expressou o entendimento de que deveria ser rejeitado o recurso quando, ainda que se identificassem os concretos pontos de facto julgados incorretamente, se manifestasse apenas discordância quanto à valoração de um certo meio probatório, sem oferecer com exatidão meio de prova alternativo para se obter o resultado pretendido e sem se especificar a decisão diversa sobre a questão de facto impugnada.
O Supremo Tribunal de Justiça também tem defendido de forma recorrente que os Art.s 640.º e 662.º do C.P.C. impõem ónus de impugnação diversos que importa distinguir. Por um lado, haveria “ónus primários”, que são os estabelecidos nas alíneas do n.º 1 do Art. 640.º do C.P.C., relativos à exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, à especificação dos concretos meios probatórios convocados e à indicação da decisão a proferir. Mas, por outro, haveria os “ónus secundários”, estabelecidos no n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C., que visariam apenas facilitar o acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. Por regra, só a violação dos primeiros implicaria a rejeição automática do recurso. Já a violação dos “ónus secundários” só poderia levar a rejeição se a omissão ou inexatidão das alegações for de tal modo grave que dificultasse fortemente o exercício do contraditório e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso (vide: Ac. STJ de 3/10/2019 – Proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2 – Relatora: Maria Rosa Tching e Ac.s STJ de 29/10/2015 e de 2/6/2016 – Proc.s n.º 233/09.4TBVNBC.G1.S1 e n.º 725/12.8TBCHV.G1.S1 – ambos relatados pelo Senhor Conselheiro Lopes do Rego).
Os mesmos argumentos foram utilizados no acórdão do S.T.J. de 17/3/2016 (Proc. n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1 – Relator: Tomé Gomes) quando nele se afirma que a impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação não visa propriamente um novo julgamento da causa, mas apenas a reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida, ficando a apreciação do erro de julgamento «circunscrita aos pontos impugnados». É esse o sentido da imposição ao recorrente do ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre tais pontos, sob pena de rejeição do recurso na parte afetada, nos termos do Art. 640.º n.º 1 al.s a) e c) do C.P.C.. Por isso, nesse acórdão também se decidiu que não observa esse ónus quando o impugnante se limita a convocar e analisar determinados meios de prova, nomeadamente depoimentos de parte e de testemunhas, sem especificar, de forma inteligível quais os pontos concretos da decisão de facto que impugna, nem que decisão sobre eles deve ser proferida, concluindo-se que «não compete ao tribunal de recurso inferir, sem mais, dos depoimentos assim convocados, quais os pontos de facto que o recorrente pretende impugnar, sob pena de violação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da imparcialidade do julgador, como corolários que são do princípio latitudinário do processo equitativo».
Ora, no caso concreto dos autos, como já sumariámos, a Recorrente não cumpriu de todo estes ónus, sendo o presente recurso um mero exercício de inconformismo  relativamente ao julgamento da matéria de facto pelo tribunal recorrido, não sustentado na observância do que é disposto nos n.º 1 e 2 do Art. 640.º do C.P.C..
Não sabemos os factos que se pretendem em concreto impugnar. Não foram indicados, na maior parte dos casos os concretos meios de prova que poderiam justificar decisão diversa. Não foi sequer indicada qual a decisão que se pretendia ver tomar pelo Tribunal da Relação relativamente a cada concreto facto dado por provado ou não provado na sentença recorrida. Não se reproduziram sequer depoimentos gravados em segmentos de que pudesse resultar a demonstração de determinados factos provados ou não provados, havendo apenas a transcrição de segmentos de depoimentos para “provar” uma alegada maior credibilidade de certa testemunha em relação a outra.
Praticamente só quanto à questão da prova pericial é que se faz uma extensa crítica, nomeadamente quanto à opção pela sua realização. O que, na verdade, não invalida o resultado pericial dela constante e a consequente dúvida fundada sobre a incapacidade da R. ser efetivamente igual ou superior a 60%, não havendo fundamento bastante para dar prevalência cega ao “atestado de incapacidade multiusos”, num caso em que a A. claramente impugnou, desde o princípio, que a R. reunisse as condições para a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do Art. 57.º do NRAU e, portanto, que tivesse uma incapacidade igual ou superior a 60%.
Também se falou vagamente em omissão na seleção dos factos provados e não provados de matéria articulada na contestação, sem, no entanto, se demonstrar alguma vez qual a sua relevância específica para o conhecimento do mérito da causa.
Veja-se que, certamente, numa ação de despejo fundada na caducidade por morte do inquilino, não vemos no que relevaria, por exemplo, que a A. teria prometido vender o imóvel a uma testemunha e à R., por €95.000,00 (cfr. artigo 53.º das alegações supra transcritas).
Em suma, sem necessidade de maiores considerações, só poderemos rejeitar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por manifesto incumprimento dos ónus estabelecidos no Art. 640.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C..
6. Da caducidade do contrato de arrendamento.
Chegamos assim finalmente ao conhecimento do mérito da causa, começando pela pretensão principal da A., que se refere ao reconhecimento da caducidade do contrato de arrendamento dos autos por força do falecimento do inquilino.
Não há dúvida que o único contrato de arrendamento que se provou ter por objeto o imóvel dos autos foi o celebrado em 2 de abril de 1980 entre a A., na qualidade de senhoria, e CC, na qualidade de inquilino (cfr. doc. de fls. 6 - facto provado 1).
Nos termos desse documento escrito, a A. dava de arrendamento o dito imóvel, para habitação do inquilino, pelo prazo de 6 meses, renováveis, com início em 1 de abril de 1980 e pela renda mensal de Esc.: 18.000$00, a ser paga no 1.º dia útil do mês anterior àquela a que disse respeito (cfr. cit. doc.).
Portanto, essas partes estavam vinculadas por um contrato de arrendamento, tal como o mesmo era definido no Art. 1022.º, conjugado com o Art. 1023.º, ambos do C.C..
Não se põe em causa a validade formal e substancial desse contrato, sendo de realçar que o mesmo foi celebrado muito antes do NRAU (Lei n.º 6/2006 de 27/2), do RAU (Dec.Lei n.º 321-B/90 de 15/10), ou até da Lei n.º 46/85 de 20/9, também conhecida pela Lei das Rendas.
Sucede que, o inquilino faleceu no dia 23 de agosto de 2019, no estado de divorciado (cfr. doc. de fls. 8 – facto provado 4) e agora a R. reclama para si a qualidade de inquilina dessa mesma fração arrendada (cfr. facto provado 6).
Em consequência, nos termos do Art. 1051.º n.º 1 al. d) do C.C., o contrato de locação caduca por morte do locatário. No entanto, nos termos do Art. 27.º do NRAU, as normas do capítulo II desse diploma, aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro. Sendo que, a esses contratos de arrendamento, por força do Art. 28.º do NRAU ficou estabelecido o seguinte:
«1 - Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26.º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.º a 37.º e 50.º a 54.º.
«2 - Aos contratos referidos no número anterior não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil (…)».
O Art. 26.º n.º 2, para o qual nos remete o n.º 1 do Art. 28.º do NRAU, veio a estabelecer que: “À transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57.º e 58.º».
Em suma, as regras aplicáveis à “transmissão por morte” do contrato de arrendamento dos autos são as que estão definidas no Art. 57.º do NRAU, onde se estabelece que:
«1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct..
f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho».
No caso, só poderia estar em causa a al. e) do n.º 1 do Art. 57.º do NRAU, considerando que a R. era filha do falecido inquilino.
Existe documentação nos autos da qual resulta que a R. nasceu no ano de 1961 e, portanto, teria 58 anos à data do óbito de seu pai.
Mas foi dado por não provado que a R. vivia no imóvel com o pai desde, pelo menos, o ano de 2016 (cfr. facto não provado 8), tal como foi dado por não provado que à data do óbito do inquilino a R. padecia de deficiência com grau de incapacidade equivalente a 60 % (cfr. facto não provado 9). Consequentemente, a R. não logrou provar, como era seu ónus (Art. 342.º n.º 2 do C.C.), os factos impeditivos do direito invocada pela A., no sentido de ver reconhecida a caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário (cfr. Art. 1051.º n.º 1 al. d) do C.C.). Pelo que, só podermos concordar com a sentença recorrida, quando julgou procedente a ação de despejo, reconhecendo a caducidade do contrato de arrendamento e condenou a R. no despejo do locado, que nos termos do Art. 1053.º do C.C. só poderia ser exigível à pessoa que ilegitimamente o ocupa, passados 6 meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade.
Logo a restituição do locado era exigível pela A. diretamente à R. a partir do dia 23 de fevereiro de 2020. Antes, portanto, da data da propositura da presente ação (cfr. “Petição” de 26-02-2020 – Ref.ª n.º 9407630 - p.e.)
A Recorrente nas suas alegações tece ainda várias considerações sobre uma alegada relação “pré-contratual” existente entre as partes e numa violação de deveres fundados no princípio da boa-fé, sustentada numa realidade completamente irrelevante, não provada e assente numa construção jurídica confusa que não se consegue aqui acompanhar, não podendo certamente com base nela obstar-se à procedência do pedido principal da A.. Pelo que, em face do exposto, improcedem todas as conclusões que sustentam a improcedência da ação relativamente aos pedidos de reconhecimento da caducidade do arrendamento e consequente condenação da R. a entregar à A. o imóvel a que os autos se reportam.
7. Da indemnização pelo atraso na restituição do locado.
A sentença também julgou a ação procedente relativamente ao pedido de condenação da R. no pagamento duma indemnização, à razão de €1.000,00 por mês, desde a citação daquela até à entrega efetiva do imóvel locado à A..
No entanto, entende a Recorrente que não poderia ser condenada em valor superior ao estabelecido no Art. 1045.º do C.C., devendo ser reduzida a €600,00 por mês, considerando que se mantinha a renda vigente de €297,50.
O problema é que o Art. 1045.º do C.C. regula a obrigação de restituição do imóvel devida pelo locatário, nos termos do Art. 1038.º al. i) do C.C., logo que finde o contrato de arrendamento. Nesse caso, se a coisa locada não for restituída logo que findo o contrato, o locatário é obrigado a pagar, a título de indemnização, até ao momento da restituição, a renda que as partes tenham estipulado (cfr. Art. 1045.º n.º 1 do C.C.), a qual é elevada ao dobro se se constituir em mora (cfr. Art. 1045.º n.º 2 do C.C.).
Não vemos qualquer problema em tornar extensivo o cálculo de indemnização por atraso na entrega da coisa previsto no Art. 1045.º do C.C. a terceiros, não locatários. Mas, o disposto no Art. 1045.º do C.C. aplica-se fundamentalmente aos locatários, não podendo servir de limite à obrigação de indemnização por danos causados por terceiros, em situações em que os prejuízos causados são superiores.
Ora, a R. não é locatária. A R. é terceira ao contrato de arrendamento, sendo certo que, sem título legítimo, ocupa um locado e não cumpre a obrigação de o entregar a quem legitimamente é o seu titular e reclama a sua restituição.
Portanto, a R. é uma mera detentora da coisa, ou possuidora precária (cfr. Art. 1253.º do C.C.), que não pode opor direito próprio à legítima possuidora que reclama a restituição do que lhe pertence.
Ao recusar a entrega da coisa que não lhe pertence, está a praticar um facto ilícito e culposo que causa danos à legítima proprietária, o que determina o nascimento da obrigação de indemnização pelos prejuízos assim causados (cfr. Art. 483.º do C.C.).
Entre esses prejuízos está a impossibilidade de a A. poder arrendar o locado a terceiros por valores de mercado (cfr. Art. 564.º do C.C.).
Como se provou que essa fração tem um valor locativo atual de €1.000,00 (facto provado 7), deve ser esse o valor da indemnização a considerar, por corresponder à reparação efetiva do dano causado (cfr. Art. 562.º do C.C.). Pelo que, não vemos motivo para deixar de confirmar a sentença recorrida também nesta parte, inclusive quanto ao “desconto”, destinado a evitar situações de enriquecimento ilegítimo.
8. Dos pedidos reconvencionais.
A sentença recorrida absolveu a A. de todos os pedidos reconvencionais.
A R., na sua contestação, pediu a condenação da A. a pagar-lhe o valor global de €191.075,00, que resulta da soma das seguintes indemnizações: €41.075,00, por benfeitorias realizadas no locado; e €150.00,00, por saber da incapacidade de 60% da R., sem ter possibilidades de arrendar outra casa com as mesmas características e nesse local face à profissão de médica que exerce no Hospital … e ainda por ter dado causa ao acidente de que foi vitima R..
O segundo segmento do pedido indemnizatório tinha fundamentalmente como pressupostos, por um lado, a demonstração de que o exercício do direito de ação pela A. seria ilegítimo e que, por outro, a R. teria direito à transmissão do arrendamento, por padecer de deficiência a que correspondia um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, como a A. bem sabia. Ora, como vimos atrás (ponto 6. do presente acórdão), tais pressupostos não se verificam, porque o exercício do direito pela A. é conforme à lei aplicável, sendo que não se provou sequer que a R. padecesse deficiência com grau de incapacidade que alegou (cfr. facto não prova 9), ficando prejudicada a consideração de que a A. disso pudesse saber.
Por outro lado ainda, havia a questão do acidente sofrido pela R. por causa do incumprimento da obrigação de fazer obras no locado. O que ficou igualmente dado por não provado nos pontos 11 e 12 da sentença recorrida.
Em suma, não foram assim cumpridos os ónus de prova dos factos constitutivos do direito pretendido fazer valer (Art. 342.º n.º 1 do C.C., conjugado com o Art. 483.º do C.C.).
Não há prova de facto ilícito e culposo, descartando-se consequentemente qualquer possibilidade de existência da obrigação de indemnização relativamente a danos, que igualmente não constam da matéria de facto provada.
Quanto ao primeiro segmento do pedido indemnizatório, a questão é exatamente a mesma. Não se provou que a R. e o seu pai tivessem feito obras no locado, no valor de €50.000,00, tendo a R. suportado a quantia de €41.075,00 (cfr. facto não provado 10). O que prejudica qualquer consideração sobre o direito a indemnização, mesmo no pressuposto de que a R. deveria ser equiparada a possuidora de má-fé, por aplicação analógica do Art. 1046.º n.º 1 do C.C., caso tivesse feito obras no locado.
Torna-se igualmente despiciendo discorrer sobre a natureza das benfeitorias, para os efeitos dos Art.s 1273.º a 1275.º do C.C., e a possibilidade  de compensação devida ao locatário, nos termos do Art. 1074.º n.º 5, do C.C., pois como não se provaram sequer as obras, inevitavelmente improcede o pedido reconvencional também nesta parte.
Em função de tudo o exposto, só poderemos confirmar a sentença recorrida, improcedendo todas as conclusões que sustentam o contrário.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente por não provada, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pela Apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 16 de maio de 2023
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva