Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
872/18.2SILSB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: CARTA DE CONDUÇÃO ESTRANGEIRA
CADUCIDADE
CANCELAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: Resulta do disposto no nº 3 do art. 125º do CE que os títulos de condução estrangeiros englobados na previsão das als. c) e d) do nº 1 do mesmo normativo apenas são idóneos a habilitar o respectivo portador a conduzir veículos em território português, sem restrições, durante os primeiros 185 dias depois de ter fixado residência neste país (aparentemente, a questão não se coloca para os não residentes). O «destino normal» dos referidos títulos de condução reside na sua troca por cartas de condução nacionais, nos termos regulados pelo art. 128º do CE, operação que tem como pressuposto impreterível, de acordo com o prescrito no nº 1 deste artigo, que o documento trocado se encontre válido, designadamente, não tenha ultrapassado o seu prazo de caducidade.
- O regime de caducidade e cancelamento previsto nos nºs 1 a 6 do artigo 130º, do Código da Estrada, só tem aplicação aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, porquanto, a não se interpretar assim, seríamos conduzidos à solução incongruente de a condução de um veículo em território nacional por alguém munido de um título de condução brasileiro caducado há menos de cinco anos ser sancionada menos gravemente – com coima de 120 a 600 euros - do que a daquele que conduza sendo portador de um título estrangeiro válido, depois de esgotado o prazo de 185 dias subsequentemente a ter estabelecido residência em Portugal – cuja coima se fixa entre 300 e 1.500 euros.
- As carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) - actual alínea d), entenda-se - do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada”, de onde se conclui que as que tenham o prazo de validade ultrapassado não habilitam ao exercício dessa condução.
- O título de condução emitido por Estado estrangeiro, que tenha habilitado o seu portador à condução de veículos em Portugal, nos termos do estabelecido no artigo 125º, nº 1, alíneas c) e d), do Código da Estrada, uma vez ultrapassado o respectivo prazo de validade, deixa de ser passível de substituição por carta de condução portuguesa ou sequer de permitir a emissão a partir dele de um documento desta natureza, sem necessidade de aguardar o prazo de 5 anos previsto no artigo 130º, nº 3, alínea d), do mesmo Código.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos com o NUIPC 872/18.2SILSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 1, em Processo Especial Abreviado, foi o arguido A. condenado, por sentença de 14/01/2020, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, na pena de 70 dias de multa, à razão diária de, 6,50 euros, o que perfaz o montante global de 455,00 euros.
2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. O objecto primordial do presente recurso é a impugnação não só da matéria de direito com também da medida concreta da pena aplicada na condenação do Recorrente.
2. Da prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º n.º 1 e 2 do Decreto - Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro,
3. Neste sentido, o Recorrente não concorda com a douta decisão, não apenas por razões de forma, mas sobretudo por razões de fundo que se prendem com a avaliação da prova, e a falta dela, atendida nos presentes autos, a qual, sempre salvaguardando o devido respeito e consideração merecidos aos Meritíssimos Juízes a quo, foi incorrectamente avaliada, como se procurará demonstrar.
4. Assim, através do presente recurso, o Recorrente não apenas pretende impugnar a douto Sentença proferida na parte referente a este ponto concreto da sua condenação, o que suscita outras questões, não apreciadas ou tidas em consideração que motivam a sua discordância relativamente à decisão recorrida, na parte em que esta lhe é desfavorável e que infra se expenderão.
5. A decisão em crise não considerou factos que, na óptica do Recorrente e de acordo com a tese ora propugnada, se reputam primaciais para o enquadramento jurídico sustentado na decisão recorrida, do que resultou uma visão incorrecta da realidade, em desfavor do Recorrente.
6. Efectivamente, o presente processo teve a sua origem nos factos ocorridos no dia 14 de Setembro de 2018 pelas 21h 40 minutos.
7. De acordo com os órgãos de polícia criminal que o autuaram, o arguido conduzia um automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula 24- TC-87 sem licença de condução ou qualquer outro documento que legalmente o habilitasse a conduzir esse veículo.
8. No entanto, o arguido tinha esse título de condução de origem brasileira, sendo que o mesmo estava caducado podendo ser renovado novamente nos trinta dias subsequentes ao dia em que a mesma caducou, segundo a legislação daquele país.
9. Assim, o título de condução do arguido estava caducado mas não cancelado razão pela qual os factos integram a prática de uma contra-ordenação e não de ilícito penal.
10. Ainda se encontrava a decorrer o prazo para a renovação, tanto mais que as entidades brasileiras competentes para a emissão de títulos de condução não só não cancelaram a carta por não ter sido renovada no tempo certo, como aceitaram a sua revalidação em data posterior.
11. Ora, o arguido nunca devia ter respondido por um processo crime mas apenas por um processo de contra-ordenação, dado que ainda estava no prazo legal para conduzir em Portugal com título estrangeiro.
12. Em virtude dessa infracção, foi o mesmo presente ao tribunal onde lhe foi proposta a aplicação da suspensão provisória do processo na condição de entregar à APCL - Associação Portuguesa Contra a Leucemia a quantia de 200,00 € (duzentos euros) no prazo de 90 dias.
13. Valor este que o arguido, aqui recorrente efectivamente pagou.
14. A quando da sua apresentação perante o tribunal o mesmo não foi assistido por advogado, o que desde já lamenta não ter acontecido, uma vez que não ficou ciente de que teria que vir ao processo fazer prova de tal pagamento.
15. O arguido, aqui recorrente, visitava o nosso país pela primeira vez, tendo dado entrada no aeroporto de Lisboa no dia 13 de Junho de 2018.
16. Ora, até à data da prática dos factos haviam decorrido apenas três meses, não sendo o tempo suficiente para ter contacto com o ordenamento jurídico português nomeadamente do seu funcionamento.
17. Não quer isto dizer que desconhecia que conduzir sem habilitação legal não era crime, o que quer dizer é que o sistema penal brasileiro trata este crime de forma diferente sem recurso a tribunal, daí o arguido pensar tratar-se da mesma forma.
18. No sistema penal brasileiro, no que diz respeito aos condutores que conduzem sem habilitação legal, refere no seu Código de Trânsito no “Art. 162. Dirigir veículo: I - sem possuir Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir: Infração - gravíssima; Penalidade - multa (três vezes) e apreensão do veículo;
19. Daí que, todo este processo de multa e apresentação em tribunal era desconhecido para o recorrente.
20. Acontece porém que, não obstante tais factos, o arguido após ter liquidado o valor à Associação a que foi obrigado, pensou que o processo estaria extinto não sendo necessário efectuar mais nada.
21. Daí que desde essa altura tenha feito a sua vida normal, tendo inclusivamente mudado a sua residência para a ... - 2005-111 Almoster STR.
22. Morada esta que o tribunal de que se recorre teve conhecimento em 02 de Dezembro de 2019 após uma consulta à base de dados on-line da Segurança Social.
23. Dia em que, de acordo com o processo, foi enviada notificação por via postal simples, da data de audiência de julgamento, mas noutra morada diferente.
24. No próprio dia de julgamento, e uma vez que o arguido não estava presente, e às 10h42 foi efectuada nova consulta on-line à base de dados da segurança social relativa ao arguido e onde, mais uma vez constava a morada, actual do arguido.
25. Mesmo sabendo que o arguido não estava na morada indicada aquando da suspensão do processo, e sabendo que o arguido tinha uma nova morada, o tribunal decidiu fazer o julgamento na ausência do arguido.
26. Julgamento esse que não tinha de ser realizado pois o arguido cumpriu com todas as injunções que lhe foram impostas.
27. Tendo sido realizado o julgamento na sua ausência, foi o mesmo condenado numa pena que, salvo o devido respeito por melhor opinião é excessiva quer em relação ao número de dias quer mesmo à taxa diária que foi aplicada tendo em conta que nunca cometeu qualquer crime.
28. Após proferir sentença foi por esse tribunal ordenado a notificação da mesma ao arguido através do posto territorial da PSP de Santarém.
29. E, pasme-se, no ofício enviado, consta a pessoa a identificar bem como os seus elementos de identificação e a sua morada, a saber a Rua do …2005-111 Almoster Str.
30. A morada em que o arguido reside desde Outubro de 2019, pelo que, tendo o tribunal ad quo conhecimento desta nova morada que consta em todos os documentos e bases de dados relativas ao arguido desde Segurança Social, Autoridade Tributária e até mesmo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sempre podia/devia ter notificado novamente o mesmo ao invés de efectuar o julgamento na sua ausência.
31. Caso o arguido tivesse comparecido teria provado que o processo não deveria ter prosseguido pois o mesmo para além de ter pago a injunção que foi obrigado também já tem a sua habilitação legal devidamente actualizada.
32. Entende o arguido que deve ser relevado o facto de não ter comunicado a sua morada ao processo já que no seu entendimento e conhecimento o processo já se teria extinguido.
33. Deve ainda ser atendido o facto do arguido, à data dos factos, ser recém chegado a Portugal e não conhecer o nosso ordenamento jurídico e ainda ao facto de no seu país de origem ser o "assunto” ser tratado de forma diferente.
34. Esteve mal, salvo devido respeito por melhor opinião, o Tribunal ad quo que, tendo conhecimento de que o arguido tinha nova morada, não fez diligências de notificação para essa morada para que o mesmo estivesse presente na audiência de julgamento.
35. Também esteve mal ao condenar o arguido em multa por ter faltado pois, na verdade ao ter conhecimento da mudança da morada teve conhecimento que a notificação não lhe tinha sido entregue.
36. Entende o arguido que tal julgamento deve ser anulado dando-se como provado o cumprimento das injunções e absolvendo o arguido do pagamento quer da multa pela falta de comparência quer da multa penal a que foi condenado.
37. O Exmos. Juiz do tribunal a quo fundamentou a sua decisão no conjunto da prova produzida, a qual foi apreciada à luz das regras da experiência comum.
38. Do cotejo da prova produzida, permite ao Tribunal a quo julgar a prova livremente.
39. Prova esta que condenando o arguido na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz montante global de € 455,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco euros), e a que correspondem 46 (quarenta e seis) dias de prisão subsidiária caso a pena de multa não seja paga voluntária ou coercivamente.
40. Medida da pena e consequente condenação que, para além de manifestamente injusta, atenta a já referida prova que não foi produzida nos autos por o arguido não estar devidamente notificado, bem como os fatos, que erradamente, foram considerados como provados, ou seja, o incumprimento da suspensão.
41. Isto porque, para a obtenção da verdade material, foi o Recorrente condenado, salvo o devido respeito, e melhor opinião em contrário, de forma injusta face aos factos que se teriam provado na audiência de julgamento.
42. Assim, dúvidas não restam que a decisão quanto à matéria de facto proferida na sentença recorrida deve ser alterada.
43. Porquanto deve ser substituída por douto Acórdão proferido por Vossas Excelências, decidindo-se pela absolvição do arguido ou caso assim não se entenda seja ordenando novo julgamento a fim de se provar tudo quanto se expôs.
44. Porquanto, ser substituída por douto Acórdão proferido por Vossas Excelências, no mínimo, decidindo-se pela absolvição do Recorrente.
Termos em que,
Nos melhores de direito e com o sempre Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, deve ser o presente recurso declarado procedente e julgando em conformidade com as precedentes conclusões, modificando a Sentença proferida pelo Tribunal Colectivo “a quo”, absolvendo-se o arguido da pena de multa que lhe foi aplicada.
3. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.
4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo recorrente em que reitera o explanado na sua motivação de recurso.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Não notificação do arguido para a audiência de julgamento.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente.
Dosimetria da pena aplicada.
2.   A Decisão Recorrida
Ouvida a gravação da audiência, onde consta a sentença oralmente proferida (artigo 389º-A ex vi artigo 391º-F, do CPP), constata-se que o tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:
1. No dia 14/09/2018, cerca das 21:40 horas, na Rua Albert Einstein, junto ao CC Colombo, em Lisboa, o arguido conduzia o motociclo com a matrícula 24-TC-87, sem ser titular de título de condução que o habilitasse para o efeito.
2. Agiu com o propósito conseguido de conduzir o veículo acima referido, bem sabendo que não lhe era permitida condução de motociclos sem a titularidade de um título de condução válido.
3. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
4. O arguido encontra-se inscrito como trabalhador por conta de outrem, tendo como mês da última remuneração Dezembro de 2019, no valor de oitocentos e setenta e cinco euros.
5. Apresentou a última declaração para efeitos fiscais como trabalhador dependente no ano de 2018.
6. Não consta dos autos que o arguido tenha quaisquer antecedentes criminais.
Quanto aos factos não provados, inexistem.
Fundamentou a formação da sua convicção na análise crítica conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento globalmente considerada.
O arguido não compareceu à audiência de julgamento e nem justificou a sua falta.
Atendeu-se aos esclarecimentos prestados pela testemunha Luís Parreira, agente da PSP responsável pela abordagem, fiscalização e detenção do arguido, que depôs em audiência de julgamento de forma absolutamente objectiva, circunstanciada e credível, confirmando que a isenção em face das funções que exerce e do conhecimento prévio do arguido lhe deverá ser cometida.
Descreveu as circunstâncias em que efectivamente fiscalizou e constatou o arguido a exercer a condução de um motociclo sem que tivesse apresentado qualquer documento válido para o efeito e que o habilitasse à condução daquele veículo na via pública.
Disse-nos também que o arguido se identificou através de passaporte, não lhe tendo suscitado quaisquer dúvidas na sua identificação.
A corroborar e suportar os esclarecimentos prestados pela testemunha Luís Parreira consideramos ainda a prova documental junta aos autos, atente-se ao teor do auto de notícia de fls. 1 no que diz respeito à identificação das circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram e do motociclo conduzido por o arguido; a pesquisa efectuada aos dados do IMT de fls. 13; a cópia da licença de condução emitida pela República Federativa do Brasil de fls. 38 e 39 e a cópia da mensagem de correio trocada com a congénere brasileira do IMT de fls. 50 através de cujas informações se atesta e se confirma que o arguido não era titular de carta de condução ou licença válida que lhe permitisse a condução daquele tipo de veículo na via pública.
No que diz respeito à intenção subjectiva do arguido, ela resulta atestada e decorre do funcionamento das regras da experiência comum quando confrontadas com os dados objectivos tipos como assentes, uma vez que é presunção natural que quem exerce a condução de veículo automóvel na via pública o faz de forma livre, voluntária e consciente, sendo certo que qualquer cidadão mediano sabe que é crime conduzir em território nacional sem carta de condução ou qualquer outro documento válido para o efeito, nada nos autos nos indicia diferente entendimento por parte do arguido.
Os factos atinentes às condições económicas e financeiras do arguido, resultam da análise das pesquisas efectuadas na base de dados da Segurança Social e do Serviço de Finanças, que se encontram junto aos autos.
A ausência de antecedentes criminais do arguido prova-se com recurso à análise do seu certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 80.
Apreciemos.
Questão prévia
Com a motivação de recurso o recorrente junta dois documentos, visando comprovar que pagou atempadamente a quantia fixada a título de injunção a que estava sujeita a suspensão provisória do processo (200,00 euros) e bem assim que entrou em Portugal no dia 13 de Junho de 2018.
A finalidade do recurso é que o Tribunal Superior aprecie a decisão recorrida e não que se pronuncie sobre questões novas.
E a decisão recorrida tem de ser apreciada tomando em consideração o direito aplicável ao caso concreto e bem assim os elementos existentes nos autos quando da sua prolação, pois ao tribunal de recurso não compete proferir decisões que não tenham sido colocadas perante o tribunal recorrido, mas analisar as decisões por este proferidas e aferir da sua conformidade com as provas e com a lei e este juízo terá que se circunscrever aos elementos a que o tribunal a quo teve acesso.
É que, conforme tem sido uniformemente entendido pelos nossos tribunais superiores e mormente pelo Supremo Tribunal de Justiça, os recursos destinam-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições, posto que, como remédios jurídicos que são, com eles não se visa o conhecimento de questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso (cfr., por todos, Ac. do STJ de 26/09/2007, Proc. nº 07P1890, em www.dgsi.pt) e, para tanto, é manifesto que terão de se considerar apenas os elementos a que o tribunal recorrido teve acesso no momento em que foi proferida a decisão.
Daí que estes elementos devam manter-se inalterados.
Ora, aquilo que o arguido pretende com a junção dos documentos é a alteração da decisão com recurso a novos elementos não acessíveis no momento da prolação da decisão, o que a lei não contempla.
Face ao que, os documentos juntos com a motivação não serão levados em linha de conta.
Não notificação do arguido para a audiência de julgamento
Sustenta o recorrente que não foi notificado para comparecer na audiência de julgamento, porquanto mudou a sua residência para a Quinta… Almoster, o que era do conhecimento do tribunal a quo, por ter consultado a base de dados on-line da Segurança Social aos 02/12/2019 e também no próprio dia da audiência, mas a notificação foi enviada para uma diferente morada.
O que dos autos resulta é que o arguido prestou Termo de Identidade e Residência aos 14/09/2018, tendo indicado como local de residência para efeitos de notificação a Rua …, Odivelas.
Do dito Termo, que assinou, constam as obrigações a que ficava sujeito, de que teve conhecimento, figurando, entre elas, a de “não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado”, a de “as posteriores notificações ser-lhe-ão feitas via postal simples para a morada acima indicada ou outra que entretanto venha a indicar, através de requerimento, entregue ou remetida via postal registada à Secretaria onde o processo corre nesse momento” e ainda que “o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores, legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente; e bem assim a realização de audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333º do Código de processo Penal”.
Ora, não se extrai dos autos que tenha o recorrente informado o tribunal recorrido, antes da data designada para a audiência de julgamento, de que tinha alterado a morada para onde deviam ser enviadas as notificações processuais.
Daí que, não obstante constar da base de dados da Segurança Social uma morada diferente, tal não significaria, necessariamente, que aquela em que receberia as notificações do processo tinha mudado, desde logo, porque o arguido nada impetrou nesse sentido e o tribunal não tem poderes divinatórios para assim concluir.
E, vero é, o arguido foi notificado da data da audiência por via postal simples com prova de depósito, para o endereço constante do Termo de Identidade e Residência, pelo que se tem de considerar a notificação como efectuada regularmente.
Assim, ainda que a audiência de julgamento se tenha realizado na ausência do arguido (que não compareceu, nem justificou a falta) não se verifica a nulidade prevista no artigo 119º, alínea c), do CPP, ou qualquer outra.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento
Critica ainda o recorrente a matéria de facto dada como assente pela 1ª instância, pretendendo a sua alteração.
Quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, fora do caso de apelo aos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do mesmo Código, têm de descriminar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas (no caso de se pretender essa renovação).
Pois bem, não especifica ele na motivação de recurso (corpo) ou suas conclusões, quais os concretos pontos de facto dados como assentes que considera incorrectamente julgados, antes pugnando pelo aditamento de factualidade nova (no sentido de que nunca antes foi por si alegada, nem em contestação, nem sequer em sede de audiência de julgamento) à matéria de facto dada como provada na sentença revidenda.
Só que, trata-se de matéria fáctica que não consta do elenco dos factos provados (ou não provados) da decisão recorrida; pelo que não pode ser objecto de apreciação por este Tribunal em sede de impugnação da matéria de facto, como decorre da conjugação do estabelecido nos artigos 410º, nº 1, 412º, nº 3 e 428º, do CPP.
Na verdade, tal fundamento de recurso – como se salienta no Ac. do Tribunal Constitucional nº 312/2012, de 20/06/2012, disponível no sítio respectivo - já não se situa em sede de apreciação da correcção do julgamento da instância inferior que não incluiu tais factos, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso da prova produzida na primeira instância
Podíamos, porém, estar perante a nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, que sanciona a sentença (ou acórdão) que não contenha as menções referidas no nº 2 do artigo 374º, incluindo a enumeração dos factos provados e/ou não provados que resultaram da discussão da causa.
Contudo, tal factualidade não resulta inequivocamente da discussão da causa.
Não obstante, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do arguido sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Vejamos então as razões da discordância do recorrente.
Aduz ele que era possuidor de título de condução emitido pelas autoridades brasileiras e que este, embora caducado, podia ser renovado nos trinta dias subsequentes ao dia em que caducou, de acordo com a legislação do seu país natal.
Antes de mais, importa apurar se o arguido possuía ou não título que o habilitava ao exercício da condução do veículo que tripulava, pois foi dado como provado que o não tinha, explicitando o tribunal recorrido que a pesquisa efectuada aos dados do IMT de fls. 13; a cópia da licença de condução emitida pela República Federativa do Brasil de fls. 38 e 39 e a cópia da mensagem de correio trocada com a congénere brasileira do IMT de fls. 50 através de cujas informações se atesta e se confirma que o arguido não era titular de carta de condução ou licença válida que lhe permitisse a condução daquele tipo de veículo na via pública.
Pois bem, da análise dos referidos documentos resulta que o recorrente era titular de “Carteira Nacional de Habilitação” – categorias A e B, o que engloba a condução de motociclos -, documento equivalente à carta de condução nacional, com validade até 03/09/2018, sendo certo que os factos ora em causa ocorreram aos 14/09/2018.
Estabelece-se no artigo 130º, do Código da Estrada (cujas normas transcritas se reportarão sempre à versão vigente à data da prática dos factos):
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.”
E, de acordo com o artigo 125º, do mesmo:
“1 - Além dos títulos referidos nos n.ºs 4 e 5 do artigo 121.º são ainda títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
(…)
c) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
d) Títulos de condução emitidas por Estado estrangeiro, desde que este reconheça idêntica validade aos títulos nacionais;
(…)
2 - A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.
3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor, em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
(…).
8 - Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 e 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.”
A República Federativa do Brasil e a República Portuguesa subscreveram a Convenção de Viena de 1968 sobre circulação rodoviária e vero é, também, que pelo Despacho nº 10.942/2000 (publicado em Diário da República, 2ª Série, de 27/05/2000) o Estado Português reconheceu os documentos brasileiros equivalentes às cartas de condução (“Carteira Nacional de Habilitação” brasileira).
Por seu lado, consagra o artigo 128º, do Código da Estrada, que gere “para a troca de títulos de condução”:
1 - A carta de condução pode ser obtida por troca de título estrangeiro válido, que não se encontre apreendido ou tenha sido cassado ou cancelado por determinação de um outro Estado.
2 - Se o título estrangeiro apresentado for um dos referidos nas alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 125.º, a troca está condicionada ao cumprimento pelo titular de todos os requisitos fixados no RHLC para obtenção de carta de condução, com exceção da submissão a exame de condução (…)”.
Ora, como se diz no Ac. R. de Évora de 22/10/2019, Proc. nº 126/18.4GBPTM.E1, consultável em www.dgsi.pt, “resulta indubitável do disposto no nº 3 do art. 125º do CE que os títulos de condução estrangeiros englobados na previsão das als. c) e d) do nº 1 do mesmo normativo apenas são idóneos a habilitar o respectivo portador a conduzir veículos em território português, sem restrições, durante os primeiros 185 dias depois de ter fixado residência neste país (aparentemente, a questão não se coloca para os não residentes).”
Sendo que, acrescenta-se, “na verdade, aquilo a que poderemos chamar o «destino normal» dos referidos títulos de condução reside na sua troca por cartas de condução nacionais, nos termos regulados pelo art. 128º do CE, operação que tem como pressuposto impreterível, de acordo com o prescrito no nº 1 deste artigo, que o documento trocado se encontre válido, designadamente, não tenha ultrapassado o seu prazo de caducidade.”
Da conjugação dos aludidos normativos resulta, pois, ainda seguindo na esteira do aludido Ac. R. de Évora, que o regime de caducidade e cancelamento previsto nos nºs 1 a 6 do artigo 130º, do Código da Estrada, só tem aplicação aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, porquanto, a não se interpretar assim, seríamos conduzidos à solução incongruente de a condução de um veículo em território nacional por alguém munido de um título de condução brasileiro caducado há menos de cinco anos ser sancionada menos gravemente – com coima de 120 a 600 euros - do que a daquele que conduza sendo portador de um título estrangeiro válido, depois de esgotado o prazo de 185 dias subsequentemente a ter estabelecido residência em Portugal – cuja coima se fixa entre 300 e 1.500 euros.
E, vero é que o que consta do referenciado Despacho nº 10.942/2000 é que “as carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) - actual alínea d), entenda-se - do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada”, de onde se conclui que as que tenham o prazo de validade ultrapassado não habilitam ao exercício dessa condução.
Destarte, acompanhando ainda o entendimento explanado no referido Acórdão, rematamos que o título de condução emitido por Estado estrangeiro, que tenha habilitado o seu portador à condução de veículos em Portugal, nos termos do estabelecido no artigo 125º, nº 1, alíneas c) e d), do Código da Estrada, uma vez ultrapassado o respectivo prazo de validade, deixa de ser passível de substituição por carta de condução portuguesa ou sequer de permitir a emissão a partir dele de um documento desta natureza, sem necessidade de aguardar o prazo de 5 anos previsto no artigo 130º, nº 3, alínea d), do mesmo Código.
Afirma igualmente o recorrente desconhecer que ao conduzir em Portugal com a “Carteira Nacional de Habilitação” com o prazo de validade expirado estaria a cometer uma infracção criminal que o sujeitaria a um julgamento em tribunal.
Mas, tal argumentação não merece acolhimento, pois do “auto de notícia por detenção” de fls. 1, que o tribunal a quo teve em conta para a formação da sua convicção quanto à materialidade que veio a considerar provada e cujo teor foi confirmado pela testemunha Luís Parreira, agente da PSP seu subscritor, consta que “o detido confessou de livre e espontânea vontade que não se encontrava habilitado para a condução de qualquer veículo a motor”, sendo certo que se identificou com o passaporte e não apresentou o título de condução a que agora faz apelo.
Alias, atente-se que mesmo o recorrente assume nas conclusões da motivação de recurso que “não quer isto dizer que desconhecia que conduzir sem habilitação legal não era crime, o que quer dizer é que o sistema penal brasileiro trata este crime de forma diferente sem recurso a tribunal”.
Ou seja, quer tendo em atenção o ordenamento jurídico nacional, quer o brasileiro, estava o arguido ciente de que o seu comportamento integrava infracção criminal, pelo que não merece censura ter a 1ª instância dado como provada a factualidade integradora dos elementos do dolo, quer do dolo do tipo, quer do da culpa, onde se inclui a consciência da ilicitude, sendo irrelevante para o efeito que o mesmo eventualmente desconhecesse, antes de ser interceptado pelas autoridades policiais, que seria presente a tribunal.
Refere ainda o recorrente que cumpriu a injunção da entrega de 200,00 euros à Associação Portuguesa contra a Leucemia, que condicionava a suspensão provisória do processo, no prazo estabelecido.
Antes de mais, cumpre se diga, qualquer problemática relacionada com a suspensão provisória do processo não tem aqui cabimento, porque ultrapassada.
Não se pode deixar de afirmar, porém, para sossego das consciências que, de acordo com a decisão de suspensão provisória do processo, que mereceu a concordância da MMª Juíza de Instrução Criminal, estava ela condicionada, entre o mais, ao “cumprimento e consequente comprovação nos autos da injunção de entregar à IPSS APCL – Associação Portuguesa contra a Leucemia, no prazo de 90 dias a contar da notificação para o efeito, a quantia de 200, juntando documento comprovativo, do qual conste que se trata de injunção aplicada em processo criminal”.
A notificação foi feita ao arguido por contacto pessoal nas instalações do tribunal, pelo que dela ficou perfeitamente ciente.
Decorrido o prazo respectivo, o arguido não juntou aos autos documento comprovativo da entrega da quantia da injunção. E, notificado que foi para tanto, também não procedeu a essa junção.
Daqui resulta que, efectivamente, não cumpriu a injunção, pois integrava esta não só a entrega da quantia, como a junção aos autos do documento comprovativo da mesma.
Assim sendo, cumpre negar provimento ao recurso neste segmento e, por conseguinte, considerar definitivamente assente a matéria de facto provada como consta da decisão recorrida.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01.
Como já ficou dito, a circunstância de ser ele possuidor, à data da prática dos factos, de um título de condução emitido pela República Federativa do Brasil que se encontrava caducado, não tem o mérito de afastar o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos deste tipo legal de crime.
De onde, não merece censura a sua condenação.
Dosimetria da pena aplicada
O arguido discorda igualmente da medida da pena de multa aplicada.
Ao crime em causa corresponde pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
O recorrente foi condenado na pena de 70 dias de multa, não criticando ele a opção por esta pena não detentiva.
Conforme resulta do estabelecido no artigo 40º, do Código Penal, toda a pena tem como finalidades “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” – nº 1; sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” – nº 2.
Nos termos do artigo 71º, do mesmo, para a determinação da medida da pena tem de se atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.
A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.
Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 227 e segs.
Ou, dito de outra forma, opera através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa - Claus Roxin, Derecho Penal-Parte Especial, I, Madrid, Civitas, 1997, pág. 86.
Da conjugação das duas mencionadas normas resulta que a pena concreta, numa primeira fase, é encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.
Assim, daquela primeira aproximação decorrem duas regras basilares: a primeira, explícita, consiste em que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda, que está implícita, é que se impõe ter em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido no seio da comunidade e da necessidade desta dele se defender, mantendo a confiança na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.
Analisando a sentença recorrida, como gravada está, verifica-se que atendeu o tribunal a quo para a determinação da medida concreta da pena:
Ao grau de ilicitude do facto, que se afigura mediano, em nada distinto dos demais casos idênticos presentes quotidianamente neste tribunal.
A intensidade do dolo que é alta, uma vez que actuou com dolo directo, a forma mais gravosa.
A circunstância de nada nos autos nos indiciar que o arguido não esteja inserido social e familiarmente, sendo certo que dos factos provados resulta que estará laboralmente activo.
Favoravelmente ao arguido também a sua conduta anterior e posterior ao facto, atendendo a que não tem antecedentes criminais, sendo certo que estão em causa factos datados de Setembro de 2018, decorrendo mais de um ano, sendo que não existe notícia de que o arguido terá voltado a praticar qualquer outro ilícito criminal, tudo nos indiciando então que este terá sido um comportamento isolado e imponderado no seu percurso de vida e portanto sem réplicas conhecidas deste tribunal.
O tribunal não deixa de valorar também a circunstância de não ter sido possível valorar favoravelmente ao arguido qualquer outra circunstância que poderia aqui diminuir a sua culpa, uma vez que o arguido não esteve presente em audiência de julgamento, nada vez para reparar, ainda que simbolicamente, a sua imagem perante o tribunal, não permitindo a valoração desde logo de uma postura de arrependimento e de reconhecimento do carácter ilícito do seu comportamento.
(…) são ainda abaixo da média as exigências de prevenção especial.
São elevadas as necessidades de prevenção geral, uma vez que é um crime praticado com muita frequência na sociedade actual, especialmente nesta Instância Local de Lisboa.
Face ao que supra ficou transcrito, é patente que a sentença revidenda levou em linha de conta, com fundamentação bastante, os factores relevantes para a determinação concreta da pena, nos termos estabelecidos no artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, em termos que não merece crítica, atentos os factos que provados se encontram.
Sopesando todos os factores acima apontados, na sua globalidade, conclui-se que excessiva se não mostra a medida da pena de multa aplicada, não se verificando também desrespeito aos critérios que a lei manda observar, pelo que inexiste fundamento para a alterar.
Analisemos agora se a taxa diária da multa fixada é desproporcionada, importando a sua alteração.
De acordo com o estabelecido no nº 2, do artigo 47º, do Código Penal, o montante diário da multa pode variar entre 5,00 euros e 500,00 euros, sendo fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Na ponderação do quantitativo ajustado ao caso concreto não entram unicamente em linha de conta os rendimentos mensais, apurados ou declarados, mas também todos os outros rendimentos, bens e encargos que definem uma situação económica e que permitem avaliar a repercussão que nela vai ter a pena encontrada, de forma a poder-se concluir se a mesma é, efectivamente e como deve ser, adequada para sancionar a concreta gravidade do facto.
Ora, provado se mostra que o arguido encontra-se inscrito como trabalhador por conta de outrem, tendo como mês da última remuneração Dezembro de 2019, no valor de oitocentos e setenta e cinco euros.
Ponderando esta factualidade, fixou a sentença a razão diária da multa em 6,50 euros.
Conforme salientado nos Acs. do STJ de 02/10/1997, in CJ/STJ, 1997, III, pág. 183 e da Relação de Coimbra de 17/04/2002, CJ, 2002, II, pág. 57, a aplicação de uma pena de multa deve sempre significar a verdadeira função de uma pena e, nessa medida, tem que constituir um real sacrifício para o condenado. Só assim este poderá sentir o juízo de censura que a condenação significa, bem como só assim se dará satisfação às exigências de prevenção, realizando as finalidades da punição, sendo certo que, por outro lado, não pode deixar, quanto à pessoa singular, de lhe ser assegurado o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar.
Ora, se bem que o recorrente aufira remuneração acima do ordenado mínimo nacional, não resulta da factualidade dada como provada quais as suas despesas ou encargos.
De onde, se impõe reduzir o valor diário da multa para o limite mínimo de cinco euros.
Em face do referido, o recurso merece provimento nesta parte.
Manifesta também o recorrente a sua discordância por ter sido condenado em duas UC, nos termos do estabelecido nos artigos 116º, nº 1 e 117º, do CPP, conforme despacho judicial de 14/01/2020, fundando-se em que não foi notificado para comparecer em audiência de julgamento.
Mas, este despacho, que o condenou em tal montante por não ter comparecido à audiência de julgamento, para o que se encontrava regularmente notificado, nem justificado a falta, não se confunde com a sentença.
E, certo é que o arguido, de acordo com o requerimento de fls. 104, apenas manifestou a sua vontade de interpor recurso da sentença, pelo que esta questão não pode ser aqui conhecida.
De qualquer modo, sempre se reitera que, como ficou explicitado, tem de se considerar que foi regularmente notificado para comparecer à audiência de julgamento.
O recurso merece, pois, parcial provimento.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido A. e, em consequência:
A) Condenam o arguido A. na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de 5,00 (cinco) euros, o que perfaz o montante global de 350,00 (trezentos e cinquenta) euros, revogando a decisão do tribunal de 1ª instância na parte em que a condenou na pena de setenta dias de multa, à razão diária de seis euros e cinquenta cêntimos;
B) No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Sem tributação.

Lisboa, 20 de Outubro de 2020
Artur Vargues
Jorge Gonçalves