Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1811/12.0TYLSB-E.L2-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
DIREITOS DE RETENÇÃO
QUALIDADE DE CONSUMIDOR DO PROMITENTE COMPRADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1–Há tradição da coisa, gerando direito de retenção, quando se apurou que foi efetuada a entrega das chaves do imóvel prometido vender, autorizada a celebração de contratos de fornecimento e ainda que o promitente comprador, na sequência, passou a habitar no imóvel.

2–Provando-se a habitação do imóvel prometido vender pelo promitente comprador, pessoa singular que celebrou um contrato promessa de compra e venda com uma empresa que se dedicava à construção de imóveis e sua venda, está suficientemente estabelecida a qualidade de consumidor daquele.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa


1.Relatório


AC Lda, foi declarada insolvente por sentença de 07/02/2013, transitada em julgado.
Foi reclamada a verificação e graduação de créditos sobre a insolvente, nos termos e prazo estabelecidos para o efeito.
A Sra. Administradora da Insolvência apresentou as relações previstas no art. 129º do CIRE, nelas constando, entre outros:
como reconhecido um crédito ao Banco …., SA, no montante de € 1.413.176,15, garantido por hipoteca sobre os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob os nºs 2728, 2729, 2732, 2733, 2734, 2764, 2765, 2766, 2767, 2768, 2769, 2770, 2738 e 2759, todos da freguesia de … e sobre a fração autónoma designada pela letra B, do prédio urbano descrito na mesma Conservatória sob o nº 2730 da mesma freguesia;
como reconhecido um crédito a RSB e mulher, no valor de € 36.000,00, comum, proveniente de contrato promessa de compra e venda, com invocação de direito de retenção “que deverá ser apreciado pelo Tribunal”;
como não reconhecido um crédito a RSB e mulher, no valor de € 5.000,00, comum, proveniente de contrato promessa de compra e venda, por não prova do respetivo pagamento.
RSB e mulher, MRB impugnaram o não reconhecimento do crédito de € 5.000,00, alegando ter junto todos os documentos comprovativos de pagamentos de € 41.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento no âmbito de contrato promessa celebrado com a devedora relativo à compra e venda do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o art. 6201 da freguesia de … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2.../3....2, exceto a cópia de um cheque que não lograram obter e que ora juntam, pedindo o reconhecimento da totalidade dos créditos reclamados no valor de € 41.000,00.
Por requerimento de 20/03/2014, a administradora da insolvência veio “nos termos e para os efeitos do disposto no nº3 do art. 131º do CIRE, informar V. Exa de que mantém integralmente o teor dos fundamentos dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, que foram apresentados nos autos em 10 de Setembro de 2013, dando cumprimento ao disposto no art. 129º do CIRE.”
Por despacho de 11/07/2018 foi ordenada à Ilustre Mandatária dos credores RSB e mulher a junção de procuração forense outorgada a sue favor sob pena de ficar sem efeito todo o processado, bem como foi ordenado à administradora da insolvência que identificasse sobre que imóvel ou imóveis é invocado o direito de retenção por aqueles credores.
As procurações forenses em causa foram juntas em 26/07/2018, datadas de 25/02/2013.
Por despacho de 28/06/2019 foi dada sem efeito a impugnação apresentada pelos credores RSB e mulher e foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, na qual foi reconhecido a estes credores um crédito comum de € 36.000,00.
Inconformados apelaram RSB e mulher, pedindo a revogação do despacho e da sentença e outro.
Por decisão sumária deste Tribunal da Relação de 27/01/2020 foi decidido:
“Pelo exposto, na procedência da apelação interposta pelos recorrentes RSB e MRB, revoga-se o despacho recorrido, proferido em 28/06/2019, que se substitui por outro que determina, em face da procuração junta, que seja apreciada a impugnação deduzida pelos ditos apelantes, assim se anulando também todos os actos subsequentemente realizados que dele dependam absolutamente, aproveitando-se apenas aqueles cujos efeitos não se tenham como necessariamente prejudicados pela decisão agora proferida.
Em consequência o conhecimento dos recursos interpostos sobre a sentença proferida em momento posterior ao sobredito despacho, que agora se revoga, fica prejudicado.”
Após baixa do recurso foi proferido despacho do qual consta: “Obsta à graduação dos créditos a impugnação, respondida, supra referida, nos termos da qual RSB e MRB pugnam pelo reconhecimento de um crédito no valor de €41.000,00 e não apenas de €36.000,00, bem como pela qualificação do mesmo como garantido, por a sua satisfação se encontrar acautelada por direito de retenção sobre o imóvel apreendido para a massa insolvente descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2... da freguesia de …. e inscrito na respetiva matriz sob o artº 6...º.” e que ordenou a junção de documentos por parte dos credores RSB e MRB e a junção da reclamação de créditos apresentada por estes pela Sra. Administradora da insolvência.
Foram juntos os elementos e documentos em causa.
Em 07/03/2021 foi proferida decisão julgando verificados os créditos não impugnados e despacho saneador quanto ao crédito impugnado, tendo sido fixados o objeto do litigio e os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento e veio a ser proferida sentença, em 03/06/2022, nos termos da qual foi verificado aos credores RSB e MRB um crédito no montante de € 41.000,00 (quarenta e um mil euros), de natureza garantida por direito de retenção, graduando o mesmo em segundo lugar pelo produto da venda da verba nº 16.
Inconformada apelou Banco…, SA, pedindo seja alterada a decisão da matéria de facto, dando-se como não provado o facto 8 dos factos provados, e consequentemente a decisão de direito, qualificando-se o crédito dos impugnantes como comum, desprovido, portanto, de direito de retenção e formulando as seguintes conclusões:
I–Vem o presente recurso interposto do segmento da douta sentença de fls. (…) que, julgou procedente a impugnação formulada por RSB e MRB e, consequentemente, julgou serem os mesmos titulares de um crédito no montante de € 41.000,00 (quarenta e um mil euros), de natureza garantida, por direito de retenção, incidente sobre a descrição 2759 da Conservatória do Registo Predial de …, que corresponde à verba n.º 16 do auto de apreensão, prejudicando, desta forma, o crédito do ora Recorrente que beneficia de hipoteca voluntária sobre o indicado bem, para garantia do montante de capital de €1.500.000,00 e até um montante máximo de €1.993.800,00; cfr. as págs. 11 e 18 da douta sentença.
II–Com o que o ora Recorrente não se conforma, no que ao direito de retenção diz respeito.
III–Na perspectiva do Recorrente, a reapreciação/reponderação da matéria de facto conduzirá a diferente conclusão quanto à procedência da presente acção, no que concerne ao segmento decisório ora em crise.
IV–Assim, desde logo, para efeitos do disposto no artigo 640º do CPC, o Recorrente não se conforma que, da resposta dada à matéria de facto, conste como provado o facto 8), ao invés de constar como não provado.
V–Não se conformando, consequentemente, com a subsunção dos factos julgados provados às normas jurídicas aplicáveis ao caso sub judice; discordando, por consequência, da secção da decisão de mérito ora em crise.
VI–Com efeito, num primeiro momento, no que respeita à prova documental, os impugnantes não juntaram um qualquer documento comprovativo da efectiva vivência e habitação no imóvel objecto do direito de retenção que reclamam, como seja, por exemplo, comprovativos de pagamento de despesas de água, luz, gás, electricidade e/ou telecomunicações, bem como comprovativos de gastos com a montagem da habitação, como sejam eletrodomésticos e mobiliário, e, ainda, um registo fotográfico alusivo ao seu interior no período que nele alegadamente habitavam.
VII–O que se afigura relevante.
VIII–Por outro lado, caso assim se não entenda, por cautela e dever de patrocínio, sempre se dirá que os impugnantes afirmaram residir no imóvel em causa desde outubro de 2007, sendo que, porém, sob o doc. 13 do requerimento de 07/01/2021 vieram juntar uma carta da Caixa …, datada de 12/03/2008, referente à aprovação de uma operação de crédito proposta destinada a aquisição de habitação permanente dirigida ao impugnante RSB, para a seguinte morada: Av. …... - morada que, não respeita ao imóvel objecto dos autos, mas sim à morada que, desde sempre, foi indicada como a residência dos impugnantes, a qual o próprio impugnante, em declarações de parte, disse ter sido proprietário até 2011; cfr. a identificação dos impugnantes constante dos docs. 2, 8 e 10 juntos ao referido requerimento de 07/01/2021, e o excerto das declarações de parte do impugnante RSB ; cfr. declarações prestadas na audiência de julgamento de 10/05/2022, T_00.15.59.
IX–Depois, os impugnantes optaram por não arrolar uma qualquer testemunha – seja, um amigo, familiar, vizinho e/ou o gerente da insolvente à data dos factos - a qual podia, por exemplo, esclarecer se os visados, de facto, residiam em tal imóvel e desde quando; prova que, assim, optaram por não fazer.
X–Preferiram, pois, limitar a sua prova, oral, às declarações de parte do impugnante RSB, o qual, desde logo, afirmou algo que nos suscita as maiores dúvidas quanto à procedência do invocado direito de retenção: 1) ter duas habitações: a dos autos e a sita na Av. ….., onde alegadamente residiu até 2007, pese embora a tenha alegadamente vendido em 2011 – portanto durante alegadamente 4 anos manteve dois imóveis, não tendo sido feita prova inequívoca sobre qual dos dois constituiu, em tal período, a sua casa morada de família; 2) ter ido à assembleia de credores da insolvente e, depois, não ter efectuado o acompanhamento dos autos, designadamente no que concerne à liquidação do passivo.
XI–Por outro lado, a Sra. Administradora de Insolvência disse que: 1)- nunca ter reunido com os impugnantes; 2)- nesta concreta insolvência houve requerimentos de pessoas que queriam cumprir o contrato-promessa, e que não foi o caso dos impugnantes, pelo que nunca reuniu com os visados; 3)- apenas viu os impugnantes na assembleia de credores; 4)- os impugnantes pediram o valor em singelo – ou seja, nunca reclamaram o cumprimento do contrato-promessa; 5)-deslocou-se ao local, aquando da apreensão do bem, e não estava ninguém; 6)- acha muito estranho que a casa estivesse ocupada porque fez um auto de apreensão de pelo menos 4 casas que foram apreendidas pela polícia por estarem habitadas e que, para esta, tal intervenção não foi necessária, o que sugere que a mesma não estava ocupada; 7)- só há mudança de fechadura quando as casas não estão habitadas; de outro modo há sempre o auxílio da força pública; 8)- pediu o auxilio da força pública para as casas habitadas em 2013/2014; 9)- acha muito estranho que os impugnantes não a tenham conseguido contactar, dado que à data tinha um escritório com 6 pessoas, onde alguém teria que ter dado o recado; cfr. declarações prestadas na audiência de julgamento de 10/05/2022, T_00.12.26.
XII–Aqui chegados, afigura-se não ter sido feita prova inequívoca quanto à tradição material do imóvel em causa pelos impugnantes, com efectiva apreensão por parte destes.
41- Acresce que não resultou igualmente provado que os impugnantes tenham destinado o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda, nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa. Com efeito, durante o período de 2007 a 2011 foram alegadamente titulares de dois imóveis, não tendo resultado provado que, de facto, tenham passado a residir no imóvel dos autos e, nessa medida, que o fim da pretendida aquisição tenha, de facto, sido habitação própria e permanente. Sendo que, nas palavras do impugnante havia uma preocupação de reinvestimento, para obtenção de benefícios fiscais.
XIII–Logo, dever-se-á dar como não provado o facto 8) dos factos provados.
XIV–Deste modo, não resultou também demonstrado serem os impugnantes consumidores, nos termos previstos no art.º 2.º, n.º 1 da Lei 24/96, de 31/07 e no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2014, de 20/03/2014.
XV–Não se encontrando, portanto, pelo menos, preenchidos dois dos requisitos cumulativos a que alude o art.º 755.º, n.º 1, alínea f) do CC: a tradição – material - da coisa referida no contrato-promessa e a qualidade de consumidor do promitente-comprador.
XVI–Ao assim não decidir, o tribunal a quo violou os art.ºs 342.º e 755.º, n.º 1, alínea f) do CC, 2º, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31-07 e a jurisprudência ínsita no acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 20-03-2014.
XVII–Pelo que, deve proceder o presente recurso, sendo alterada a decisão sobre a matéria de facto, dando-se como não provado o facto 8 dos factos provados, e consequentemente a decisão de direito, qualificando-se o crédito dos impugnantes como comum, desprovido, portanto, de direito de retenção.
RSB e mulher MRB contra-alegaram, formulando as seguintes conclusões:
1.º–Vêm os reclamantes / impugnantes apresentar resposta ao recurso e alegações apresentados pelo Recorrente / reclamante Banco …., S.A., com o qual não se conformam.
2.ºO recorrente/reclamante Banco ….., S.A., formulou as conclusões constantes de fls., e supra transcritas como forma de facilitar a análise das mesmas.
3.ºAs conclusões das alegações delimitam o objeto do recurso, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de questões nelas não incluídas, exceto as de conhecimento oficioso (art.º 608.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
4.ºDas conclusões apresentadas decorre que o recurso incide sobre:
Matéria de facto
Ora incidindo o recurso sobre matéria de facto, deve aplicar-se, “ex vi” do art.º 17.ºdo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 639.º do Código de processo Civil, ou seja, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso… indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.
5.ºOra salvo melhor entendimento, o recurso não merece provimento.
6.ºO recorrente impugna o segmento da douta sentença de fls. (…) que, julgou procedente a impugnação formulada por RSB e MRB e, consequentemente julgou serem os mesmos titulares de um crédito no montante de € 41.000,00 (quarenta e um mil euros), de natureza garantida, por direito de retenção, incidente sobre a descrição 2... da Conservatória do Registo Predial de …., que corresponde à verba n.º 16 do auto de apreensão..
7.ºSendo certo que esta decisão prejudicou o Recorrente, pelo que veio impugnar os factos dados como provados sob o ponto 8 da matéria dada como provada:
8)- Com o consentimento da ora insolvente, desde, pelo menos, o início do mês de outubro de 2007, os promitentes-compradores passaram a habitar o imóvel prometido vender, usando o fruindo do mesmo constituindo aí a sua habitação conjuntamente com as suas duas filhas, de forma exclusiva, sem oposição de ninguém, como coisa sua.
8.ºNa verdade o Recorrente não concorda com a decisão por esta lhe ser desfavorável, e faz uma análise desenquadrada dos factos, o recorrente vem pôr em causa o depoimento de parte do impugnante RSB e a análise da prova documental como forma de impugnar o ponto 8 da matéria de facto dada como provada, e aí caímos na análise e valoração da prova.
9.ºHá que ter em conta que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre art.º 607 n.º5.º do Código de Processo Civil e 396.º do Código Civil, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido.
10.ºSegundo se pode ler da fundamentação da sentença:
A convicção do tribunal relativa à matéria de facto provada teve por base a análise dos documentos constantes dos autos e para os quais se remeteu, em conjugação com as declarações de parte do impugnante e da Sra. Administradora de Insolvência prestadas em audiência de julgamento. De modo particular, importa referir que o impugnante RSB prestou declarações de forma espontânea, pormenorizada, coerente, segura, circunstanciada e, por conseguinte, mereceu credibilidade. Acresce que as suas declarações não foram infirmadas pelas declarações prestadas pela Sra. Administradora de Insolvência, atendendo a que esta explicou não se recordar concretamente se a moradia em apreço se encontrava ou não habitada, crendo que não estivesse pois caso contrário teria solicitado a intervenção policial para tomar posse da mesma, mas não afirmando expressamente não poder garantir que assim tenha sido.
11.ºO tribunal a quo tem perante si os “os participantes” com uma proximidade que lhe permite obter uma perceção própria e total dos elementos probatórios com vista à decisão, o Tribunal à quo viu e ouviu as testemunhas, apreciou os seus comportamentos não-verbais, formulou as perguntas que achou pertinentes e confrontou-as com as provas pré constituídas.
12.ºOra, salvo melhor entendimento, as declarações do impugnante que mereceram a credibilidade do tribunal foram analisadas em conjunto com os restantes elementos de prova, “os depoimentos das testemunhas não devem ser valorados isoladamente, mas sim em conjunto com a demais prova existente nos autos e referente á factualidade em apreciação, em obediência ao preceituado nos art.ºs 515.º e 653.º a 655.º do C.P.C. apreciadas ainda assim livremente pelo Tribunal ad quem” (entre outros, o Ac. R. Guimarães, de 13/02/2012-Proc.º 3592/03.9TBBRG-B.G1-dgsi.pt)”.
13.ºDúvidas não existem que a resposta à matéria de facto se encontra conforme à prova produzida e portante inexiste fundamento para a sua alteração.
14.ºAssim, tal como decorre da gravação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, face aos elementos de facto, constantes da sentença ora sob recurso, entende-se que o tribunal a quo fez a mais correta interpretação dos factos, segundo as regras da ciência, lógica e da experiência, bem como a melhor integração jurídica dos mesmos, à luz do princípio da livre apreciação da prova, da livre convicção, mas sem arbitrariedade ou discricionariedade, tendo especificado e motivado tal convicção, devendo o recurso ser considerado improcedente e a sentença mantida na integra.”
O recurso foi admitido por decisão deste Tribunal da Relação de 22/02/2023 (decisão ref.ª 19704219 proferida no apenso J).
Foram colhidos os vistos.
*

2.Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas, são as seguintes as questões a decidir:
impugnação da matéria de facto;
se se encontram reunidos os requisitos necessários para que se possa considerar que o crédito dos recorridos, relativo a contrato promessa celebrado com a insolvente, goza de direito de retenção.
*

3.Fundamentação de facto:
O Tribunal de 1ª instância proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto[1]:
“Realizada a audiência de discussão e julgamento, resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da impugnação apresentada nos autos por RSB e MRB:
1)Por escrito particular denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda e Recibo de Sinal”, datado de 16-06-2006, outorgado por ALC na qualidade de legal representante de AC, Lda. (como promitente vendedora) e RSB e MRB (como promitentes compradores), declararam os mesmos, designadamente:

Primeira
A promitente vendedora é dona e legítima proprietária de uma moradia unifamiliar em construção no lote 32, em …, constituída por um fogo do tipo T3, 2 pisos, cave e sótão a que corresponde o Processo Camarário nº AE.004.03 (H), o prédio está descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2.../3....2, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº 5... da freguesia de …, que promete vender aos promitentes compradores.

Segunda
A promitente vendedora promete vender, livre de quaisquer ónus ou encargos aos promitentes compradores, a referida moradia pelo montante de 280.000,00 Euros (duzentos e oitenta mil euros), descrito na cláusula primeira.

Terceira
Como sinal e princípio de pagamento, os promitentes compradores entregam à promitente vendedora, no ato da assinatura deste contrato, a quantia de 10.000,00 euros (dez mil euros).
Ficando acordado mais três reforços de sinal no valor de 5.000,00 Euros/cada, sendo o 1º reforço para o dia 16/08/2006; 2º reforço para o dia 16/10/2006; 3º reforço para o dia 16/12/2006.

Quarta
O restante valor em dívida, no montante de 255.000,00 euros (duzentos cinquenta e cinco mil euros), serão entregues no ato da escritura de compra e venda.
cfr. escrito junto aos autos a 07-01-2021, constante de fls. 252 verso e seguintes, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2)No ato da assinatura do referido contrato promessa de compra e venda, os promitentes compradores entregaram a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de € 10.000,00 – cfr. cópias dos cheques juntas a 07-01-2021, constantes de fls. 253 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3)Em 17-08-2006, os promitentes-compradores entregaram a título de sinal e reforço de pagamento a quantia adicional de € 5.000,00 – cfr. documentos juntos a 07-01-2021, a saber escrito denominado “Declaração Reforço de Sinal” datada de 17-08-2006 constante de fls. 254 e cópia do cheque constante de fls. 254 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4)Em 17-10-2006, os promitentes compradores entregaram mais € 5.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento – cfr. documento nº 6 junto a 07-01-2021, a saber escrito denominado “Declaração Reforço de Sinal” datada de 17-10-2006 e cópia do cheque constantes de fls. 255 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5)Em 18-12-2006, os promitentes compradores entregaram mais € 5.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento – cfr. documento nº 1 junto com a impugnação a 19-09-2013, a saber, cópia do cheque constante de fls. 83, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e documento nº 7 junto a 07-01-2021, a saber escrito denominado “Declaração Reforço de Sinal” datada de 15-12-2006, constante de fls. 255 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
6)Em 14-07-2007 foi acordado entre as partes prorrogar o contrato promessa de compra e venda até 28-02-2008, data prevista para a realização da escritura de compra e venda do imóvel identificado em 1) e, nesse sequência, em 08-08-2007, os promitentes compradores entregaram mais € 10.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento – cfr. documento nº 8 junto a 07-01-2021, a saber escrito denominado “Prorrogação de Contrato e Reforço de Sinal” datada de 14-07-2007, constante de fls. 256 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e cópia do cheque constantes de fls. 256 verso, constante de cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
7)Em 30-08-2007, a sociedade AC, Lda., representada pelo seu gerente ALC, na qualidade então de promitente vendedora, entregou aos promitentes compradores a chave do imóvel e autorização para que o promitente comprador RSB efetuasse contrato de abastecimento de água referente à moradia em causa – cfr. documento nº 11 junto a 07-01-2021, constante de fls. 257 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8)Com o consentimento da ora insolvente, desde, pelo menos, o início do mês de outubro de 2007, os promitentes compradores passaram a habitar o imóvel prometido vender, usando o fruindo do mesmo constituindo aí a sua habitação conjuntamente com as suas duas filhas, de forma exclusiva, sem oposição de ninguém, como coisa sua.
9)A ora insolvente através do seu gerente foi adiando a realização da escritura de compra e venda, continuando os ora impugnantes a aguardar.
10)Assim, em 12-05-2011, os promitentes-compradores entregaram a título de sinal e princípio de pagamento mais € 6.000,00 à promitente vendedora, ora insolvente, e fizeram novo aditamento ao contrato promessa de compra e venda – cfr. documentos nºs 14, 15 e 16, juntos a 07-01-2021, constantes de fls. 259 a 260 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
11)A Sra. Administradora de Insolvência procedeu à venda do imóvel prometido vender em sede de Liquidação no âmbito do processo de insolvência da AC, Lda.
*

Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa, relegando-se para sede própria as meras asserções de direito ou conclusivas.
*

A convicção do tribunal relativa à matéria de facto provada teve por base a análise dos documentos constantes dos autos e para os quais se remeteu, em conjugação com as declarações de parte do impugnante e da Sra. Administradora de Insolvência prestadas em audiência de julgamento.
De modo particular, importa referir que o impugnante RSB prestou declarações de forma espontânea, pormenorizada, coerente, segura, circunstanciada e, por conseguinte, mereceu credibilidade. Acresce que as suas declarações não foram infirmadas pelas declarações prestadas pela Sra. Administradora de Insolvência, atendendo a que esta explicou não se recordar concretamente se a moradia em apreço se encontrava ou não habitada, crendo que não estivesse pois caso contrário teria solicitado a intervenção policial para tomar posse da mesma, mas não afirmando expressamente não poder garantir que assim tenha sido.
*

Para a verificação e graduação de créditos a efetuar importa ainda atender a que os autos revelam a seguinte factualidade relevante:
A) Por sentença proferida a 07-02-2013 e transitada em julgado a 04-03-2013, foi a sociedade AC, Lda. declarada insolvente, tendo a sua insolvência sido requerida pelo Banco …., S.A. por petição inicial apresentada em juízo em 12-10-2012.
B)Nessa sequência, prosseguiram os autos para liquidação do ativo, tendo sido apreendidos os seguintes bens (cfr. auto de apreensão junto ao Apenso A):
(…)

Verba 16
Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o nº 2... e inscrito na matriz sob o artigo 6...º, sobre o qual incide:
IMI no montante de € 983,64
hipoteca voluntária registada pela Ap. 4, de 21-09-2005, para garantia do montante de capital de € 1.000.000,00 e até um montante máximo garantido de € 71.329.200,00, a favor de Banco …., S.A. (que incorporou por fusão o Banco …., S.A.).”
*

Resulta ainda provado dos termos dos autos, com interesse para a decisão do recurso:
I–A insolvente tem o objeto social de: construção civil, compra e venda e revenda de prédios rústicos, urbanos ou mistos, no todo ou em parte (cfr. certidão do registo comercial junta aos autos principais em 16/10/2012).
II–O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ….. com o nº 2... e inscrito na matriz sob o artigo 6...º foi apreendido para a massa insolvente, como verba nº 16 em 08/03/2013 (cfr. auto de apreensão junto ao apenso A em 12/03/2013).
*

4.Fundamentos do recurso
4.1.Impugnação da matéria de facto
O atual CPC introduziu o duplo grau de jurisdição também quanto à matéria de facto havendo que aferir, relativamente a cada uma das impugnações deduzidas se estão preenchidos todos os requisitos enunciados nos n.ºs 1 e 2, alínea a) do art.º 640.º do CPC.
Na reapreciação da decisão de facto cumpre à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do CPC, devendo formar a sua própria convicção, para o que lhe cumpre avaliar todas as provas carreadas para os autos, sem ter que estar sujeita às indicações dadas pelo recorrente e pelo recorrido.
Nos termos do disposto no art.º 341.º do Código Civil as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Não se podendo exigir que esta demonstração conduza a uma verdade absoluta (objetivo que sempre seria impossível de atingir), quem tem o ónus da prova de um facto terá de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”. 
Há que atentar não apenas nas regras sobre o ónus da prova que constam dos art.ºs 342º a 346.º do CC mas também no disposto no art.º 414.º do CPC, que estabelece que na dúvida acerca da realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, tal dúvida se resolve contra a parte à qual o facto aproveita.
Importa recordar que o apenso de verificação e graduação de créditos em insolvência não se encontra abrangido pelo disposto no art. 11º do CIRE, ou seja, não vigora o princípio do inquisitório, aplicando-se, sim, nos termos do disposto no nº1 do art. 17º do CIRE a regra geral do CPC, ou seja, rege o princípio do dispositivo quanto aos factos e o princípio do inquisitório quanto às provas – cfr. art. 5º do CPC[2].
Assim, os factos essenciais terão que ter sido alegados pela parte para que se possam considerar, podendo o tribunal considerar ainda (art. 5º nº2 do CPC):
os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
os factos complementares ou concretizadores dos que as partes tenham alegado que resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; e
os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Há a notar que, num apenso de processo de insolvência, mesmo num apenso em que não seja aplicável o disposto no art. 11º do CIRE, como o presente, assumem grande relevância os factos de que o tribunal tem conhecimento devido ao respetivo exercício de funções e o princípio da aquisição processual (cfr. 412º e 413º do CPC), mas que tal não pode ser confundido com a aplicabilidade do princípio do inquisitório previsto no CIRE apenas para alguns dos apensos onde se discutem essencialmente interesses gerais e comuns aos credores.
Na verdade, ao chegar ao momento da prolação da sentença no apenso de verificação e graduação de créditos, o tribunal já processou a fase declarativa da insolvência, já decidiu a abertura de qualificação da mesma, já tem bens apreendidos e, eventualmente liquidados, ou seja, já sabe muitos factos sobre a insolvente e sobre as pessoas que à volta dela gravitavam. E se esses factos forem relevantes para a decisão da verificação e graduação, pode e deve usá-los, independentemente da respetiva proveniência, desde que observadas as demais regras aplicáveis.
É neste enquadramento que devem ser analisadas as impugnações da decisão relativas à matéria de facto.
Nos termos do disposto no nº1 do art. 640º do CPC, aplicável  ex vi nº1 do art. 17º do CIRE, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do nº2, al. a), do referido preceito legal, no caso previsto na alínea b), deve também o recorrente, quando os meios probatórios tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de transcrição dos excertos considerados importantes, sob pena de imediata rejeição.
Nos termos da alínea b) do mesmo nº2, cabe ao recorrido desenvolver a mesma indicação em sentido inverso, ou seja, indicar as concretas passagens que infirmam as conclusões do recorrente, e querendo proceder à sua transcrição, sem prejuízo, porém, dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
Como refere Abrantes Geraldes[3] a verificação das exigências previstas neste preceito deve ser feita à luz de um critério de rigor, já que decorre do princípio da autorresponsabilidade das partes e apenas assim se impede que este tipo de impugnação resvale no mero inconformismo. Importa, porém, não exponenciar os requisitos formais em violação do princípio da proporcionalidade, denegando a reapreciação da matéria de facto “…com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.”
É, pois, um exercício de equilíbrio que se pede, sendo necessário rigor ancorado no texto da lei, mas sem excessivo formalismo, garantindo o efetivo conhecimento em impugnação de matéria de facto, sempre que as partes cumpram, efetivamente o seu ónus.
Tal como se refere no Ac. STJ de 17/12/19[4] é “…orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo. Cfr., a este respeito, entre muitos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08-02-2018 (proc. n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt, e os acórdãos de 17-04-2018 (proc. n.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1) e de 24-04-2018 (proc. n.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1), cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt.”
Recorde-se que, relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o art. 640º já citado, tem como solução para o seu incumprimento (diversamente da previsão do art. 639º nº3) a rejeição do recurso, total ou parcialmente, não existindo possibilidade de despacho de aperfeiçoamento - cfr. arts. 635º nº4, 640º nº2, al. a) e 641º nº1, al. b), ambos do CPC.
Analisando a alegação do recorrente à luz das exigências do artigo 640º do CPC e mantendo presente que a menção à impugnação da matéria de facto e a identificação dos concretos pontos de facto erradamente julgados devem constar das conclusões [cfr. 635º nº4, 641º, nº2, al. b) e 640º nº1, al. a), todos do CPC] e que a especificação dos meios probatórios, a indicação das passagens da gravação e a posição expressa sobre o resultado pretendido devem constar da motivação[5], constatamos que:
o recorrente identifica nas conclusões a menção da impugnação da matéria de facto e identifica o ponto de facto que, no seu entender foi erradamente julgado – conclusões III e IV;
indica, na motivação e nas conclusões, os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão, omissão de prova documental, um documento e omissão de prova testemunhal – cls. VI, VIII e IX; e na motivação transcreve e identifica as passagens dos depoimentos/declarações de parte que, no seu entender impunham resultado diverso (nºs 34 e 35 da motivação);
indica, na motivação e nas conclusões, qual a decisão que no seu entender deve ser proferida - cls. IV.
O recorrente cumpriu, assim, integralmente o seu ónus, no que respeita à impugnação da matéria de facto, pelo que cumpre apreciar a mesma.
O recorrente indica como incorretamente julgado o facto dado como provado sob o nº8, que refere, deveria ter sido dado como não provado.
8)Com o consentimento da ora insolvente, desde, pelo menos, o início do mês de outubro de 2007, os promitentes compradores passaram a habitar o imóvel prometido vender, usando o fruindo do mesmo constituindo aí a sua habitação conjuntamente com as suas duas filhas, de forma exclusiva, sem oposição de ninguém, como coisa sua.”
O tribunal fundamentou a sua convicção na “análise dos documentos constantes dos autos e para os quais se remeteu, em conjugação com as declarações de parte do impugnante e da Sra. Administradora de Insolvência prestadas em audiência de julgamento.”
E particularizando, precisamente quanto ao facto nº 8 referiu “que o impugnante RSB prestou declarações de forma espontânea, pormenorizada, coerente, segura, circunstanciada e, por conseguinte, mereceu credibilidade. Acresce que as suas declarações não foram infirmadas pelas declarações prestadas pela Sra. Administradora de Insolvência, atendendo a que esta explicou não se recordar concretamente se a moradia em apreço se encontrava ou não habitada, crendo que não estivesse pois caso contrário teria solicitado a intervenção policial para tomar posse da mesma, mas não afirmando expressamente não poder garantir que assim tenha sido.”
Essencialmente, a matéria de facto constante de “8” foi dada como provada com base nas declarações do reclamante RSB, que o tribunal considerou credíveis, e na ausência de prova em sentido contrário.
O recorrente aponta a falta de prova documental habitual para este tipo de factos: pagamento de despesas de água, gás, eletricidade ou telecomunicações ou gastos com mobiliário e equipamentos. Aponta ainda que foi junto pelos recorridos uma carta, de aprovação de empréstimo, datada de 2008, dirigida a morada diversa, precisamente aquela que sempre indicou como sua (doc. 13 junto em 07/01/2021). Aponta também a falta de prova testemunhal. Analisa seguidamente o depoimento de RSB e põe em causa a sua credibilidade por ter entrado em contradição com as declarações da Sra. administradora da insolvência em dois pontos: quanto às tentativas de contacto com a administradora da insolvência e quanto à casa estar ou não ocupada aquando da apreensão.
Os recorridos alegam que a resposta à matéria de facto se encontra de acordo com a prova produzida, inexistindo fundamento para a sua alteração.
Começando pela análise dos documentos, verificamos que, pese embora a efetiva ausência de junção dos documentos que habitualmente comprovam o que foi alegado – os factos em causa foram alegados nos arts. 10º e 11º da reclamação de créditos, junta pela Sra. Administradora da insolvência mediante o requerimento referência 37415468 de 10/12/2020 – ou seja, contas de água, gás, eletricidade, telecomunicações, etc., não é verdadeira a total ausência de documentos dirigidos aos reclamantes para a morada do imóvel prometido vender.
O documento que o recorrente aponta, de forma correta, ser datado posteriormente a outubro de 2007 e ter ainda sido dirigido à morada anterior dos credores (Avenida ….), é um documento emitido por terceiro (Caixa ….), o que, para si demonstra que, na data do documento (12/03/2008), era ali, e não no imóvel prometido vender, que os credores residiam.
No entanto não é esse o único documento relevante junto aos autos.
Analisando a prova documental junta – e em cuja apreciação o tribunal também baseou a sua convicção - temos um documento emitido pela insolvente, datado de 14 de julho de 2007 (doc. 10 junto com a reclamação e com o requerimento de 07/01/2021) que indica os credores como residentes na Avenida …. e no qual acordam o seguinte “A pedido dos promitentes compradores e de acordo com ambas as partes o imóvel sito na Avenida …., com garagem e arrecadação na cave, propriedade dos promitentes compradores, caso os mesmos não consigam vender até 31/12/2007, a firma AC, Lda., compromete-se a ficar com o imóvel através de escritura de permuta com data prevista para a sua realização até 28/02/2008, no valor de 175.000,00 €, e ficando a firma AC, Lda. autorizada a comercializar o respectivo imóvel a partir de 01/01/2008, pelo preço que julgar conveniente.”
Ou seja, em julho de 2007 os credores viviam na casa da Avenida …., que tencionavam vender.
É apenas com data de 30/08/2007 -  que corresponde ao facto dado como provado em “7” da matéria de facto provada – que os credores recebem as chaves e autorização para efetuar o contrato de abastecimento de água relativo ao imóvel prometido vender.
O documento 12 é uma cópia parcial do registo predial do imóvel prometido vender, da qual consta o registo da aquisição por parte dos credores a título provisório, efetuado em 10 de abril de 2008 e onde consta a morada dos requerentes como sendo a Avenida ….
O documento 13, realçado pelo recorrente, datado de 12/03/2008, dirigido à Avenida …., é uma comunicação da Caixa …. indicando ter sido aprovado o pedido de crédito para aquisição de habitação permanente no valor de € 100.000, por 31 anos e as respetivas condições.
O documento 14, datado de 12/05/2011 é uma declaração de quitação da insolvente quanto a reforço de sinal pelos credores RSB e MRB e tem a indicação de que o imóvel prometido vender a estes, uma moradia, já se encontra concluída e recebeu os números de polícia nºs 51 e 53 da Urbanização ….
O documento 16 é novamente uma declaração de quitação emitida pela insolvente, datada de 12/05/2011, que identifica os credores como residentes na Rua …, nºs ... e ..., em …, volta a referir estar a moradia concluída, identifica a licença de utilização, declara que os promitentes compradores residem na moradia e que o local onde residiam foi vendido pelos próprios em 19/04/2011, por um preço inferior ao previsto, pelo que reduzem o preço em € 270.000,00.
E o documento 17 é um documento emitido por terceiro, de novo a Caixa …, dirigido ao credor RSB, datada de 02/06/2011, para a morada do imóvel prometido vender: Rua …, nº ..., Urbanização …, comunicando a aprovação de nova proposta de crédito (o nº é diferente da constante do doc. nº13).
O documento de quitação de 12/05/2011 é um primeiro indício, embora não mais que isso, dado que a insolvente não foi chamada a confirmar o seu teor e a respetiva razão de ciência, de que, nessa data os credores residiam no imóvel prometido vender (para eles comprar).
O doc. nº17 é um indício mais seguro, por ter sido emitido por terceiro à relação contratual e por ser um dos documentos habituais para prova de residência – um documento dirigido por terceiro, ao credor, para a morada indicada.
O que resulta indiciado dos documentos juntos é que os credores passaram a residir no imóvel prometido vender algures entre 2007 e 2008, no sentido em que temos alguns elementos que para tal apontam e nenhum elemento em contrário. Na verdade, faz sentido que existindo uma hipoteca sobre o andar dos credores que pretendiam vender, a correspondência continue a ser para ali dirigida, nomeadamente pelo banco mutuário.
Também das procurações forenses[6] juntas com a reclamação de créditos, apresentada pelos credores em março de 2013 junto da administradora da insolvência nos termos do art. 128º do CIRE, datadas de 25/02/2013, consta com domicílio de ambos a morada do imóvel prometido vender (cfr. o já mencionado requerimento da administradora da insolvência de 10/12/2020).
Até aqui, porém, apenas temos indícios, embora em sentido contrário ao alegado pelo recorrente.
Analisemos, assim, o argumento seguinte, que se centra na falta de credibilidade do depoimento do credor RSB, nomeadamente por contraditório com as declarações da Sra. Administradora da insolvência.
Ouvida integralmente a prova por depoimento e declarações produzida, incluindo a parte inicial do depoimento de parte do credor RSB[7], verificámos inexistirem razões para nos afastarmos do juízo do tribunal recorrido. O credor, não sendo uma testemunha e tendo interesse na causa, prestou um depoimento equilibrado e credível tendo esclarecido, com naturalidade e clareza, as circunstâncias nas quais foi residir para a moradia prometida vender antes da celebração da escritura – a conselho do gerente da insolvente com o argumento, lógico de que o seu andar vazio seria mais fácil de vender -, ali viveu e as circunstâncias em que saiu.
Disse espontaneamente ter celebrado todos os contratos – e que foi residir na moradia a partir do momento em que teve água – e interpelado disse com naturalidade que os tinha ali e se os queriam ver. O tribunal interveio, esclarecendo que a respetiva junção não havia sido pedida e, à menção informal da advogada do Banco … de que iria requerer a junção, o tribunal adiantou a sua posição quanto à respetiva legitimidade[8], não tendo ocorrido qualquer requerimento ou despacho.
Ou seja, os documentos estariam, aparentemente, disponíveis para consulta e junção aos autos, não o tendo sido. Não é essa a factualidade relevante e este tribunal não vai, por esse facto, ficcionar a sua existência e conformidade com a alegação dos recorridos. Mas a atitude espontânea e disponível do credor recorrido abona em favor da sua credibilidade.
Quer as circunstâncias relatadas de ida para a moradia prometida vender, quer as circunstâncias relatadas de saída da mesma e manutenção de duas casas são credíveis e revestem-se de uma aparência de normalidade, batendo certo com os indícios documentais já enumerados. O pormenor da necessidade de reinvestimento do produto da venda do andar – se não fosse reinvestido na aquisição de habitação teriam que ser pagas mais valias[9] - é uma explicação convincente da aplicação na compra de outra casa, também se compreendendo a necessidade de eliminar o stress diário de residir numa urbanização de uma empresa insolvente, sabido o ruído gerado pelas incertezas dos trabalhadores, dos demais promitentes compradores e dos demais credores.
Vejamos agora as apontadas contradições com as declarações da Sra. Administradora da insolvência – uma auxiliar da justiça desinteressada do desfecho da reclamação deste crédito e que, genericamente, e em abstrato, é merecedora de credibilidade de uma forma imediata.
Analisadas as declarações do credor recorrido RSB quanto à questão das tentativas de contacto com a administradora da insolvência acaba por se perceber que o próprio nunca fez qualquer tentativa pessoalmente, tendo antes sido a sua advogada. Ou seja, o depoente declarou o que ouviu a outra pessoa, não se sabendo exatamente se foram feitas tentativas de contacto e em que termos.
O credor declarou que estava interessado na aquisição da moradia, mas também que ficou a aguardar, o que, infelizmente, não é uma atitude invulgar. Afinal o credor estava representado por mandatária, não resultando de todo incredível que nunca tenha tentado contactar pessoalmente a administradora da insolvência.
No tocante à moradia estar ou não ocupada a administradora da insolvência foi muito clara no seu depoimento: não sabia. A si, não chegou notícia por parte dos credores e, não estando assinalada como ocupada, a mudança de fechaduras foi efetuada[10] pela encarregada da venda, sem que nada lhe tenha sido comunicado. Pese embora protestando veementemente que se tal chegasse ao seu conhecimento, nunca o permitiria, a verdade é que afirmou que não sabia e que não podia de forma alguma confirmar ou infirmar.
Não há assim, qualquer contradição entre o depoimento de parte do credor e as declarações da Sra. Administradora da insolvência, o que tem como resultado que apenas foram produzidos indícios corroborantes da versão dada pelo credor reclamante e aqui apelado RSB.
Não há, assim, motivo para a alteração do ponto 8 da matéria de facto provada, improcedendo a impugnação da matéria de facto deduzida.
*

4.2.Natureza do crédito verificado
Os credores reclamantes RSB e MRB reclamaram em 08/03/2013[11] nos termos dos arts. 128º e ss. do CIRE, no processo em que foi decretada a insolvência de AC, Lda um crédito global de € 41.000,00, correspondente aos montantes entregues à insolvente a título de sinal e princípio de pagamento no âmbito de contrato promessa de compra e venda de imóvel celebrado com a insolvente e não cumprido por esta. Alegaram tradição da coisa desde outubro de 2007, invocando o direito de retenção sobre o lote 32 sito em …, que veio a ser apreendido para a massa insolvente como verba nº 16.
O crédito não foi integralmente reconhecido pela administradora da insolvência, na lista do art. 129º, não reconhecimento impugnado pelos credores, tendo sido determinado o prosseguimento dos autos para aferição do montante do crédito, nomeadamente quanto à parcela não reconhecida de € 5.000,00 e à natureza garantida do crédito.
Não foi questionada a decisão recorrida quanto ao montante do crédito, mas apenas quanto à qualificação como garantido por direito de retenção.
O direito de retenção é, simultaneamente, um direito real de garantia, quando recaia sobre coisas imóveis e um “modo de compelir o devedor ao cumprimento.”[12]
A lei consagra o direito de retenção, em termos gerais, no art. 754º do CC[13] e enumera, no artigo 755º, um elenco de casos especiais.
O direito de retenção tem fonte legal, “dependendo ou da verificação dos requisitos da cláusula geral do art. 754º, ou do enquadramento nos outros casos de direito de retenção previstos na lei, em particular no art. 755º.”[14]
Para que se adquira o direito de retenção estão previstos em geral, no art. 754º, três requisitos cumulativos: “a detenção legítima de uma coisa que o devedor deva entregar a outrem, a existência de um crédito a favor do retentor e a necessidade de esse crédito resultar de despesas realizadas por causa da coisa ou de danos por ela causados.”[15]
O recorrente põe em causa o primeiro destes requisitos, tendo baseado a sua alegação na inexistência de prova quanto à tradição material do imóvel, mediante a impugnação do ponto 8 da matéria de facto dada como provada que, como vimos, improcedeu.
Ainda assim, sempre se dirá[16] que a traditiosignifica essencialmente entrega, podendo essa entrega corresponder a uma posse precária ou de mera detenção, pois é nesse sentido mais lato que tal expressão aparece no enunciado do artigo 442.º do CC.
A tradição da coisa prometida alienar, quando se trate de prédio urbano, pode manifestar-se através de diversificados modos de comportamento que revelem, à luz da sua significação social, segundo as regras da experiência, uma situação resultante de um elemento negativo traduzido no abandono da coisa pelo seu anterior detentor em correspondência com um elemento positivo consistente na apprehensio da mesma pelo novo detentor.
Nesse tipo de casos, tem sido considerada como tradição simbólica da coisa, por exemplo, a entrega das chaves de um prédio urbano, o que não significa, no entanto, que deva ainda assim ser entendido todo e qualquer ato de entrega de chaves, importando atentar no respetivo contexto, nomeadamente negocial[17].
Atentando nos factos dados como provados sob 7 (tradição simbólica) e 8 (tradição material) no contexto que resulta do acordo celebrado entre as partes (factos 1 a 6, 9 e 10) não temos qualquer dúvida em concluir, como o tribunal recorrido, pela existência de tradição relevante do imóvel prometido vender, o que implica a existência de direito de retenção.
O recorrente aborda, finalmente, em sede de recurso, um argumento que não foi alegado ou considerado nos autos e, consequentemente, na decisão recorrida: alega que não ficou provado que os credores impugnantes e ora apelados tenham destinado o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda nem o afetar a uma atividade profissional ou lucrativa. Entende que, tendo os credores sido titulares de dois imóveis entre 2007 e 2011 e não resultando provado que tenham passado a habitar no imóvel prometido vender, não provaram que o fim da aquisição tenha sido a habitação própria e permanente, aditando que “nas palavras do impugnante havia uma preocupação de reinvestimento, para obtenção de benefícios/isenções fiscais.”
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2019 de 12 de fevereiro de 2019 veio uniformizar jurisprudência no seguinte sentido: “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”[18].
Constatou-se a necessidade de clarificar o conceito de consumidor a seguir na aplicação da doutrina do AUJ nº 4/2014, identificando duas tendências subsequentes ao referido Acórdão Uniformizador, as decisões que adotaram um conceito restrito de consumidor, e as decisões que adotaram um conceito amplo de consumidor[19].
O AUJ nº 4/2019 optou pelo conceito restrito de consumidor excluindo deste “estatuto” para o efeito, as compras para revenda e a afetação a atividade profissional ou lucrativa, reservando-o apenas para o uso particular.
Apesar de não terem força obrigatória geral nem natureza vinculativa para os outros tribunais, os acórdãos de uniformização constituem um precedente qualificado, de carácter persuasivo, a merecer especial ponderação, que se julgou suficiente para assegurar a desejável unidade da jurisprudência. Os tribunais só devem afastar-se da jurisprudência uniformizada quando disponham de argumentação nova e convincente que ponha em causa a doutrina fixada, não sendo suficiente a discordância – cfr. Ac. STJ de 01/10/19 e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pgs. 464 a 466).
Já na fundamentação do AUJ nº 4/2019 se identificava a finalidade de locação como uma finalidade afastada do conceito de consumidor (amplo ou restrito)[20].

A jurisprudência tem vindo a apurar o conceito, num percurso que adivinhamos ainda longo, mas do qual já é possível retirar algumas diretrizes:
em princípio, ficam abrangidas pela noção de consumidor apenas as pessoas particulares (cfr. Acs. STJ de 17/12/19 (Raimundo Queirós), de 29/10/19 (Pinto de Almeida), de 27/11/19 (Ana Paula Boularot) e de 17/10/19 (José Rainho);
“De fora do conceito de “consumidor” ficam os promitentes-compradores que pretendem adquirir o bem para revenda, para o exercício de uma actividade profissional, ou lucrativa, como a locação” – Ac. STJ de 17/12/19 (Raimundo Queirós);
na prometida compra de duas frações, uma destinada a arrendamento e outra a residência permanente do legal representante da sociedade, tais finalidades não são identificáveis com o conceito restrito de consumidor – Ac. STJ de 17/12/19 (Raimundo Queirós), idem quanto a residência permanente do administrador Ac. STJ de 17/10/19 (José Rainho);
afetação da fração por sociedade comercial à sua actividade social e profissional, com escopo lucrativo não integra o conceito de consumidor - Ac. STJ de 29/10/19 (Pinto de Almeida);
cedência do uso para remunerar trabalhador, evidencia forte conexão entre a aquisição da fracção e a actividade da empresa, não podendo, por isso, dizer-se que a fracção se destinou a uso não profissional ou alheio ao exercício da actividade comercial da recorrente – Ac. STJ de 29/10/19 (Pinto de Almeida);
a pretensão de utilizar as fracções, objecto dos contratos-promessa, no mercado de arrendamento, não se integra no conceito de consumidor – Ac. STJ de 27/11/19 (Ana Paula Boularot);
recorrente que apenas provou ter o imóvel prometido vender arrendado há cinco anos – é um facto que traduz a finalidade da aquisição do imóvel não para uso próprio (habitação), mas para uma finalidade lucrativa, como seja a locação, não demonstrando a qualidade de consumidor ara os efeitos do AUJ 4/2019 - Ac. STJ de 01/10/19 (Raimundo Queirós);
não é qualificável como consumidor o promitente-comprador de um prédio destinado à construção de um edifício para a indústria – Ac. STJ de 01/10/19 (José Rainho);
são consumidores os promitentes compradores que tomam as suas refeições, pernoitam e recebem amigos na moradia prometida vender – Ac. STJ de 09/04/2019, posterior à prolação do AUJ 4/2019, mas anterior à publicação (Graça Amaral);
a não demonstração do uso e fruição dos imóveis nos termos alegados (e o apuramento de arrendamento de uma das fracções, inviabiliza a possibilidade de ver reconhecido o direito de retenção sobre os referidos imóveis por não estar demonstrada a qualidade de consumidor – Ac. STJ de 02/04/19, posterior à prolação do AUJ 4/2019, mas anterior à publicação (Graça Amaral);
Num contrato promessa de compra e venda celebrado entre particulares em que a insolvente, mero particular, que não se dedica à venda de imóveis, promete vender um prédio de que é proprietária ao recorrente, também mero particular, não está demonstrado o elemento subjetivo passivo do conceito jurídico de consumidor constante do art. 2.º/1 da Lei 24/96 (o elemento relativo ao sujeito passivo ou contraparte do ato de consumo); também se entendeu não preenchido o elemento subjetivo ativo por o credor não ter sequer alegado destinar o imóvel a habitação e os elementos de facto não serem suficientes para o demonstrar – Ac. STJ de 05/04/2022 (António Barateiro Martins);
uma sociedade comercial, que pela sua própria natureza, prossegue um escopo comercial, o que afasta a qualidade de consumidora, independentemente de, em determinado momento, poder afetar o gozo do imóvel à habitação de um seu gerente, de um trabalhador ou de qualquer outra pessoa singular não pode ser considerado consumidor – Ac. STJ de 05/07/2022 (Olinda Garcia).
Como vimos o arrendamento é visto, quase sem exceção, como enquadrando atividade lucrativa, não sendo exigido o exercício profissional, arredando os promitentes que destinem as frações prometidas vender a esta finalidade, da qualidade de consumidores para os efeitos do AUJ nº 4/2019.
Também as sociedades comerciais ficam, à partida, dadas a sua natureza e escopo, arredadas do conceito de consumidor.
No caso dos autos o recorrente funda a sua alegação na não prova da tradição material – essencialmente na não prova da habitação permanente por parte dos apelados – argumento que soçobrou com a improcedência da impugnação da matéria de facto e no facto de haver uma preocupação de reinvestimento para obtenção de benefícios/isenções fiscais.
Sendo este último o único argumento restante é evidente a não razão do apelante. O que foi referido pelo credor foi a necessidade de, vendida habitação própria, evitar a tributação de mais valias em sede de IRS mediante a aplicação do produto da venda na aquisição de habitação. Não se trata nem de reinvestimento puro e duro, nem de qualquer benefício ou isenção fiscal, como a leitura do art. 10º do CIRS ilustra. Além disso, face à impossibilidade de outorga da escritura prometida, o que o credor declarou foi que adquiriu uma outra habitação, mantendo esta (e separando temporariamente o agregado familiar), ou seja, esta factualidade, a ser relevante, não respeitou à fração prometida vender, relativamente à qual não existe qualquer indício de compra para atividade profissional ou lucrativa ou revenda.
Aqui chegados resta concluir que, efetivamente, à luz dos AUJ nº 4/2014 e 4/2019, ficou demonstrada a qualidade de consumidores dos promitentes compradores em causa, pelo que os créditos reconhecidos aos recorridos devem manter-se graduados como créditos garantidos por direito de retenção.
Não procede, assim, qualquer dos argumentos do recorrente, sendo a presente apelação integralmente improcedente.
*

O apelante, porque vencido, suportará integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[21].
*

5.Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
*
Custas de parte na presente instância recursiva pelo recorrente.
Notifique.


Lisboa, 16 de maio de 2023


Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes


[1]Da qual se selecionou apenas a matéria de facto relevante para a decisão do presente recurso.
[2]Cfr. neste sentido Ac. TRP de 28/03/2012, disponível in http://www.dgsi.pt/ e Ac. TRL de 18/12/2019, por nós relatado, disponível no mesmo local.
[3]Cfr. Abrantes Geraldes em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição, Almedina, 2022, pgs. 201 e 202.
[4]Relatora Maria da Graça Trigo, disponível, como todos os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[5]Abrantes Geraldes, local já citado, pgs. 197 e 198 e jurisprudência ali citada.
[6]Tratam-se das mesmas procurações que haviam sido juntas pelos credores na sequência do primeiro despacho que ordenou a sua junção, não estando, ao tempo, a reclamação de créditos junta aos autos.
[7]Não transcrita pelo recorrente.
[8]Entendimento que depois fundou a não admissão deste recurso, na decisão que veio a ser revogada em sede de reclamação.
[9]Cfr. art. 10º do CIRS.
[10]Houve mudança de fechaduras em todos os imóveis apreendidos, mesmo os não ocupados, dado que o gerente da insolvente nunca entregou à administradora da insolvência quaisquer chaves, segundo as declarações desta.
[11]Reclamação de créditos apresentada pelos credores, junta pela administradora da insolvência em 10/12/2020 sob a ref.ª 37415468.
[12]Miguel Pestana de Vasconcelos em Direito das Garantias, 3ª edição, Almedina, 2019, pgs. 386 e ss.
[13]Onde se estabelece: «O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.»
[14]Miguel Pestana de Vasconcelos, local citado, pg. 388.
[15]Miguel Lucas Pires em “Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, Almedina, 2002, pg. 153.
[16]Seguindo de perto o Ac. STJ de 28/9/22 (Henrique Araújo).
[17]O art. 1263º, al, b) do CC faz equivaler a tradição material e a tradição simbólica.
[18] Disponível em https://dre.pt/home/-/dre/123473735/details/maximized
[19]Tendo sido identificados como adotando o conceito restrito os Acs. STJ de 18/09/18, 13/07/17, 11/05/17 e de 17/11/15 e os Acs. TRC de 08/09/15 e TRG de 25/05/16 e de 23/11/17.
[20]Pode ler-se no texto (sublinhados nossos):
2— Do ponto de vista do controlo valorativo da opção técnica que se adote, chegar-se-á às seguintes conclusões:
I— Aplicando um conceito restrito de “consumidor”, o corte valorativo será estabelecido entre, por um lado, o promitente-comprador que destina o bem a uso particular (não profissional), que corresponde dominantemente ao sujeito que pretende adquirir habitação; e do outro lado todos os demais, ou seja, os promitentes-compradores de bens destinados a revenda, a uso comercial ou a qualquer outra finalidade lucrativa ou profissional. Apenas ao primeiro tipo de contratantes seria reconhecido o direito de retenção.
II— Aplicando um conceito amplo de “consumidor”, colocar-se-ão de um lado tanto os promitentes -compradores que destinem o bem a um fim particular (maxime habitação), como os que o destinem a um fim profissional (em sentido amplo), exceto aqueles que pretendem adquirir o bem para revenda ou para o destinarem a locação. Apenas a esta última categoria de promitentes-compradores não seria reconhecido o direito de retenção.
3— Balanço:
O conceito amplo de consumidor, quando aplicado em concreto, não é isento de dificuldades interpretativas, pois para efeitos de exclusão do direito de retenção nem sempre será fácil saber quando é que o bem prometido comprar se destina a revenda ou a locação, e em que momento essa intenção deve ser aferida.
Por outro lado, incluir no conceito de consumidor todos os promitentes-compradores com exceção dos que adquirem para revenda ou para locação, corresponde a uma delimitação do conceito que revela discriminação de um tipo de atividade em face de outras atividades económicas.
De um ponto de vista da identidade valorativa das soluções jurídicas, não se compreenderá muito bem a razão pela qual o promitente-comprador que pretenda destinar o imóvel prometido comprar ao mercado do arrendamento ou do alojamento de turistas, fazendo disso a sua atividade económica, não possa beneficiar do direito de retenção, mas qualquer outro que destine o imóvel a uma diferente atividade profissional já beneficie desse direito.
Adotar um conceito de consumidor tão amplo que coincida com o de qualquer promitente-comprador que não destine o bem a revenda ou locação seria consagrar, por esta via interpretativa, um âmbito de aplicação do direito de retenção quase tão abrangente como aquele que não foi acolhido pelo Acórdão n.º 4/2014.”
[21]Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.