Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUTE SOBRAL | ||
Descritores: | REVELIA CONFISSÃO FICTA FACTOS PROVADOS NULIDADE ARRENDAMENTO FORMALIDADES FORMALIDADE AD PROBATIONEM | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC): I – Não padece de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, b), CPC, a sentença proferida em caso de revelia da ré, quando, na fundamentação de direito, sejam expressamente mencionados tais factos, tornando inteligível o quadro factual em que assenta a decisão. II – Do silêncio da ré não contestante extrai-se o efeito probatório designado por confissão ficta, determinando que se considerem assentes os factos alegados, embora com as exceções previstas no artigo 568º, CPC. III – Não tendo sido junto aos autos documento que comprove a celebração de contrato de arrendamento, que constitui formalidade ad probationem, o seu apuramento não pode resultar de confissão ficta, exigindo-se, para o efeito, confissão expressa, nos termos do disposto no artigo 364º, nº 2, CC. IV – Não podem ser considerados factos invocados nas alegações de recurso da ré que não contestou a ação, relativos à transmissão de contrato de arrendamento originariamente celebrado com a sua falecida mãe, dado que é na contestação que devem ser deduzidos – e concentrados – os fundamentos de defesa, como resulta do disposto nos artigos 572º e 573º, CPC. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo: I - RELATÓRIO 1.1– A autora, Investejo, Ldª, identificado nos autos, instaurou em 20-06-2023 a presente ação comum contra a ré, A, também identificada nos autos, alegando ser proprietária de um prédio misto, cuja parte urbana havia sido dada de arrendamento pelo anterior proprietário à mãe da ré. Sucede que a inquilina faleceu em 03-11-2012, em França, facto que foi omitido pela ré, que sempre se apresentou perante a autora como procuradora da arrendatária, dado esta ser uma pessoa idosa e nem sempre estar em Portugal, e que continuou a fazer o pagamento do valor que seria devido a título de renda (através de depósitos bancários), de € 25,00 mensais. Ora, a morte da arrendatária originou a caducidade do direito de arrendamento, facto que a ré dolosamente ocultou, impedindo a autora de auferir valores correspondentes ao valor de mercado do arrendamento do prédio, que computou em € 40.275,56, a que acresce o valor mensal de € 400,00 desde 01-06-2023 até efetiva entrega do locado. Assim, concluiu a autora solicitando: - A declaração de que é a legítima proprietária do prédio misto, denominado Alto São Sebastião, sito na Estrada Nacional n.º …, na Moita, freguesia e concelho da Moita, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número …, da freguesia e concelho da Moita, cuja parte rústica é composta por terreno de cultura arvense, oliveiras e figueiras, inscrita na respetiva matriz predial rústica sob o artigo …da Secção U, e a parte urbana, com o n.º …, composto de r/c destinado a habitação, com a área coberta de 65,0000 m2, inscrito na matriz sob o artigo …; - A declaração da caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária, em 03/11/2012, nos termos do disposto na al. d) do artigo 1051.º do CC; - Que seja declarado que a ré não tem qualquer título para ocupar o imóvel sito no Alto de São Sebastião, Estrada Nacional n.º ..., n.º …, na Moita, e, consequentemente, seja a mesma condenada a desocupá-lo e a restituí-lo à autora livre e devoluto de pessoas e bens; e - A condenação da ré a pagar à autora a quantia de 30.275,56 € (capital e juros calculados desde 08/05/2013 a 05/06/2023 e já considerado o valor pago mensalmente pela ré durante aquele período), acrescida do valor mensal de 400,00 €, desde 01/06/2023 até à data da efetiva entrega do imóvel, a título de indemnização pela ocupação indevida, e a que acrescem juros de mora vincendos à taxa legal de 4%, desde a citação e até efetivo e integral pagamento. 1.2 –A ré foi citada, mediante carta registada com aviso de receção expedida em 27-06-2023. Em 27-07-2023, a ré apresentou pedido de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação de patrono, pedido esse que foi deferido e cuja decisão foi comunicada pelo Centro Distrital da Segurança Social de Setúbal por ofício remetido em 17-11-2023. Em 18-11-2023, a patrona nomeada à ré comprovou ter apresentado pedido de escusa/dispensa de patrocínio. Em 5-12-2023, a Ordem do Advogados informou ter nomeado patrono à ré em substituição do anterior. 1.3 - Em 25-01-2024 foi proferido o seguinte despacho: “A autora INVESTEJO LDA veio intentar a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a ré A. A Ré, citada pessoal e regularmente, não apresentou contestação. Não existem excepções dilatórias, nulidades processuais nem questões prévias de que cumpra conhecer. Consideram-se confessados os factos articulados na petição inicial, cuja confissão não seja inadmissível, por força do preceituado nos artigos 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 354.º do Código Civil. Notifique-se a Autora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.” 1.4 – A autora apresentou alegações, pugnando pela procedência da ação (requerimento de 14-02-2024, com a referência 47968149). 1.5 – Foi proferida sentença final, na qual, além do mais, em face da falta de contestação da ré, nos termos do disposto no artigo 567º, nº 1, do Código de Processo Civil, foram considerados assentes os factos alegados pela autora na petição inicial e foi julgada a ação procedente, constando do dispositivo: “Pelo exposto, julga-se a acção procedente e, em consequência: 1. Declara-se a Autora a legítima proprietária do prédio misto, denominado Alto São Sebastião, sito na Estrada Nacional n.º…, na Moita, freguesia e concelho da Moita, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número …, da freguesia e concelho da Moita, cuja parte rústica é composta por terreno de cultura arvense, oliveiras e figueiras, inscrita na respetiva matriz predial rústica sob o artigo … da Secção U, e a parte urbana, com o n.º…, composto de r/c destinado a habitação, com a área coberta de 65,0000 m2, inscrito na matriz sob o artigo …; 2. Declara-se a caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária B, em 03/11/2012; 3. Condena-se a Ré a desocupar e restituir o prédio acima identificado à Autora, livre e devoluto de pessoas e bens; 4. Condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €28.360,00 (vinte e oito mil trezentos e sessenta euros), acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4%, desde a citação e até efectivo e integral pagamento; 5. Condena-se a Ré a pagar à Autora o valor mensal de €400,00 (quatrocentos euros), desde 01/06/2023 até à data da efectiva entrega do imóvel, quantias essas acrescidas de juros de mora vincendos à taxa legal de 4%, desde a data de vencimento de cada uma das prestações até efectivo e integral pagamento; 6. Absolve-se a Ré do demais peticionado pela Autora; 7. Condenam-se Autora e Ré nas custas processuais, na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se o da primeira em 12% e o da segunda em 88%.”. 2 – Não se conformando com a decisão proferida, a ré da mesma interpôs recurso de apelação, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que a absolva do pedido, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “A – Se uma determinada Sentença Impugnada não refere concretamente e de forma clara e separada os factos provados e não provados, essa Sentença é nula. A necessidade imposta pela decisão, no que respeita ao apuramento cristalino do completo elenco dos factos não provados, para lá de ser totalmente omissa a fundamentação quanto a eles, consubstancia nulidade, nos termos dos arts. 607º, nº4, e 615º, nº1, als. c) e d) do Código de Processo Civil. B - Por força do artigo 33.º e 34.º do CPC e artigo 1682.º-A do CC, ou seja, era um caso de litisconsórcio necessário, está em causa a casa de família da Recorrente e do seu marido e uma indemnização global que afeta o património de ambos. Tal erro resulta da incorreta análise da prova e dos documentos junto aos autos, pelo que, deve implicar a nulidade da citação e do demais processado ali se incluindo a Sentença, a qual não pode em caso algum produzir a plenitude dos seus efeitos e devia ter determinar a absolvição da instância da Recorrente. C – Se, não há nos autos nenhum contrato de arrendamento ou de outra natureza junto aos autos pela Recorrida. Com efeito o doc. n.º 5 junto com a PI é um assento de nascimento da mãe da Recorrente e não é nenhum contrato seja de que natureza for. Tal erro resulta da incorreta análise da prova e dos documentos junto aos autos, pelo que, deve implicar a nulidade da Sentença e a forçosa retificação da mesma nesta parte. Não deve ser dado como provado que: existia um contrato de arrendamento porque tal só se prova por documento, de igual modo “há várias décadas” não é um facto – em que data concreta foi assinado o documento e qual o seu clausulado era decisivo e tal facto só se prova por documento. Porquanto esta é uma realidade objetiva e não há nenhum documento nos autos, que tal demonstre. Não se podendo assim fazer os demais raciocínios, considerandos e deduções vertidos na Douta PI que a Douta Sentença ora impugnada abraçou. Ainda que se conceda que a Ré ora Recorrente, sucede num contrato não se sabe que contrato é esse, qual a sua data, ou cláusulas – e era à Recorrida que cabia demonstrar e provar tal facto para poder fazer as subsequentes deduções. Tal não resulta do doc. n.º 5, nem de nenhum outro e impede até que se saiba – se admitirmos estar em face de um contrato de arrendamento, qual o regime jurídico a aplicar. Assim só pode a ação improceder por falta de preenchimento do ónus da prova que cabia à Recorrida – artigo 342.º do CC. D – O direito da Recorrente a uma habitação condigna é um imperativo e um direito inscrito no artigo 65.º da Constituição República Portuguesa. «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar». Não é todavia um direito absoluto, dado que, a Apelada também goza de um direito constitucionalmente consagrado – o direito da propriedade. Se isto é verdade em geral e abstrato, não é menos verdade que no Direito e em Tribunal julgamos casos concretos. Cumpre pois descer do geral ao caso concreto. Ora, temos um contrato de arrendamento e/ou de comodato livremente celebrado entre a primitiva arrendatária e a primitivo senhorio em data indeterminada, pelas condições e nos termos que entenderam, os quais também desconhecemos. Portanto, Excelências um número indeterminado de anos. A Apelante salienta que ignoramos as cláusulas desse instrumento – que cabia à Recorrida juntar aos autos, pelo menos para extrair as consequências e os afeitos jurídicos que pretende. E - A aquisição do direito ao arrendamento por transmissão mortis causa opera automaticamente, ipso iure – não depende de comunicação Ao contrário do alegado pela Recorrida na sua D. PI e acolhido na D. Sentença ora impugnada, a falta de comunicação da Recorrente não prejudica a aquisição do direito ao arrendamento. Sendo que seria ainda relevante ver se era um contrato de arrendamento, qual o seu clausulado, se tinha também uma promessa de compra e venda, ou se era um comodato. E nem os valores que a Recorrente depositava religiosamente permite responder a estas questões. Era preciso ver o contrato que foi assinado e que cabia à Recorrida juntar já que o invoca. Qual a sua data. Natureza e clausulado – o que só se prova por documento – artigo 568.º, al. d) do CPC. F – Para os efeitos do artigo 640.º do CPC a matéria de facto impugnada é a que consta do corpo da alegação, com os fundamentos ali invocados e devem ser dados por não provados o FP 5.º. G – Para os efeitos do artigo 639.º, n.º 2 alíneas a) a c) do CPC as normas jurídicas que o Tribunal aplicou ou interpretou mal ou que não aplicou e devia ter aplicado são as seguintes: 57.º do NRAU, 342.º, 1106.º e 1682.º-A do CC, 33.º, 34.º. 153.º, 154.º. 253.º, 568.º, 607.º, 608.º e 615.º do CPC, 20.º e 65º da CRP.” 3. A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, transcrevendo-se as respetivas conclusões: “1. A Douta Sentença que deverá manter-se, na íntegra, já que não padece de qualquer nulidade, nem de erro de julgamento, nem de qualquer outro vício alegado pela Ré/Recorrente, ao julgar procedente a ação de reivindicação e, em consequência, declarar a Autora proprietária do prédio condenando a Ré a restituí-lo e a pagar a quantia de 28.360,00€, acrescido do valor mensal de 400,00€, desde 01.06.2023 até à data efetiva da entrega do imóvel. 2. A Ré/Recorrente não apresentou contestação, deram-se por confessados os factos, e só agora, notificada da Decisão, vem aproveitar as alegações para apresentar meios de defesa (impugnações e exceções), suscitar factos e questões novas, que não foram alegadas oportunamente e, por isso, não foram consideradas pelo Tribunal a quo. 3. A argumentação aduzida no recurso constitui uma manifesta ilegalidade e utilização abusiva do processo, nos termos do disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, não podendo ser levada em conta, estando, assim, vedada a sua apreciação ao Tribunal de Recurso. 4. A sentença não é nula por omissão dos factos provados e não provados; já que, além de constar expressamente da sentença que todos os factos alegados na petição inicial pela Autora foram dados como provados, a coberto do disposto no n.º 3 do artigo 567.º do CPC, um dos efeitos da revelia é permitir que a sentença se limite à parte decisória, precedida apenas da identificação das partes e de uma fundamentação sumária do julgado; afastando-se, nestes casos, o disposto nos artigos 607.º e 615.º do CPC. 5. Todos os demais vícios indicados pela Ré/Recorrentes devem improceder considerando os factos dados como provados e porque, como se disse, aquela sustenta-os em factualidade, questões e fundamentos novos, que nunca foram anteriormente, e no momento próprio, invocados; pelo que, nos termos do disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, não podem ser levadas em conta, estando, assim, vedada a sua apreciação ao Tribunal de Recurso. 6. Contrariamente ao que a Ré pretende (agora) fazer crer ao Tribunal (i) não está em causa um contrato de arrendamento em que a Ré seja arrendatária; tal como (ii) é falsa a narrativa inventada (agora) de que a Ré vive com o marido naquele imóvel e, mais ainda, (iii) é fabulação pura que aquele imóvel seja a casa de família. 7. Além disto ser tudo falso, o que realmente interessa nesta fase processual é que nada disto foi, em devido tempo, alegado e provado pela Ré, pelo que, agora, é irrelevante e não pode ser considerado em fase de recurso. 8. Em função do princípio da concentração da defesa (artigo 573.º do CPC), todos os meios de defesa que a parte tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem ser deduzidos na contestação e do princípio da preclusão resulta que todos os meios de defesa que não forem invocados naquela altura própria ficam prejudicados, não podendo vir a ser alegados mais tarde; razão pela qual o decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato (artigo 139.º, n.º 3 do CPC). 9. É nos articulados que as partes expõem os factos e os fundamentos da ação e da defesa, formulam os pedidos e as suas pretensões para que, após o exercício do contraditório, o Tribunal possa dirimir o litígio concreto que foi trazido a juízo. 10. Considerando que a factualidade e fundamentos agora invocados pela Ré/Recorrente, no recurso, não foram oportunamente alegados e pedidos, o princípio do dispositivo obsta a que o Tribunal deles conheça, sob pena de nulidade, já que, nesse caso, haveria excesso de pronúncia ou pronúncia indevida, na medida em que o julgado não coincidiria com o alegado e peticionado pelas partes. 11. Além de provada toda a factualidade alegada pela Autora relativamente à existência de contrato de arrendamento anterior, sempre se dirá que esta matéria é instrumental relativamente aos pedidos principais de reivindicação e indemnizatórios. 12. Está em causa uma ação de reivindicação, em que a Autora, na qualidade de proprietária do imóvel, exige este ao detentor da coisa reivindicada sem que possua título válido, no caso à Ré, pelo que esta, sozinha em juízo, goza de legitimidade passiva, não sendo, por isso, a citação nula, conforme erradamente invocou a Ré/Recorrente. 13. O esquema da ação de reivindicação preenche-se através de duas finalidades, que correspondem aos pedidos que a integram e caracterizam: o reconhecimento do direito de propriedade e a restituição da coisa. 14. Ficou provado o reconhecimento do direito da propriedade da Autora sobre o imóvel (o que, aliás, a Autora não põe em causa no recurso) e a Ré, na qualidade de detentora não alegou (muito menos demonstrou) ser titular de algum direito licitamente constituído. 15. Esta sentença não merece qualquer reparo ou censura: o Tribunal a quo aplicou bem e não deixou de aplicar qualquer norma, além da correta e assertiva interpretação que fez da factualidade e das disposições legais aplicáveis. 16. A apresentação deste recurso não passa de uma autêntica e reprovável manobra dilatória que permita à Ré/Recorrente continuar na posse do imóvel avolumando diariamente o prejuízo da Autora; pelo que se requer a V. Exas. que, sem delongas, o julguem improcedente.” 4. Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo. 5. Remetidos os autos a este tribunal em 27-09-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir. II – QUESTÕES A DECIDIR O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC. Assim, são as seguintes as questões a decidir: A - Nulidade da sentença, arguida pela recorrente com base na falta de discriminação dos factos provados e não provados, na omissão da sua fundamentação e ainda por ter resultado provado o contrato de arrendamento invocado pela autora, sem que tenha sido junto documento que o comprove; B – Preterição de litisconsórcio necessário, dado que a decisão recorrida não ponderou que o direito ao arrendamento (ou outro) se transmitiu mortis causa à ré, casada, constituindo o prédio a casa de morada de família; C - Impugnação da decisão de facto, considerando a recorrente que o facto provado nº 5 (relativo ao contrato de arrendamento invocado pela autora) deve ser considerado não apurado por a sua prova obrigatoriamente ser feita por documento escrito que não foi junto aos autos. III – FUNDAMENTAÇÃO A - Da nulidade da sentença Como resulta do relatório antecedente, em 13-06-2023 foi proferido despacho pelo tribunal recorrido com o seguinte teor: “A autora INVESTEJO LDA veio intentar a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a ré A. A Ré, citada pessoal e regularmente, não apresentou contestação. Não existem excepções dilatórias, nulidades processuais nem questões prévias de que cumpra conhecer. Consideram-se confessados os factos articulados na petição inicial, cuja confissão não seja inadmissível, por força do preceituado nos artigos 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 354.º do Código Civil. Notifique-se a Autora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.” Assim, os factos “articulados na petição inicial, cuja confissão não seja inadmissível, por força do preceituado nos artigos 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 354.º do Código Civil” foram considerados assentes, posição reiterada na sentença, aí se consignando: “A Ré, citada pessoal e regularmente, não apresentou contestação. Em consequência, foram considerados confessados os factos articulados na petição inicial, por força do preceituado no artigo 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e foi notificada a Autora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.” Sendo manifesto que na sentença recorrida não foram enunciados, de forma discriminada, os factos provados e não provados, já quanto à respetiva motivação, resulta inequívoco da decisão recorrida que a factualidade considerada provada resultou da confissão da ré (por ausência de contestação). O dever de fundamentação das decisões dos tribunais constitui imposição constitucional, como decorre do artigo 205º, nº1, da Constituição da República, sendo relevante para que possa ser exercido controlo, relativamente ao julgamento da matéria de facto e de direito. A ausência de indicação expressa dos factos provados e não provados poderá enquadrar-se no vício de nulidade da sentença previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 615º, CPC (e não nas alíneas c e d daquele mesmo preceito como, por lapso manifesto, refere a recorrente). Assim, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b), Código de Processo Civil: “1. É nula a sentença, quando: (…) b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. A propósito do enunciado vício da sentença, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1] reportar-se a uma situação de anulabilidade, que respeita à própria estrutura da sentença. Assim, segundo aqueles autores: “Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607º, nº ,3). Há nulidade (no sentido lato de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito”[2]. No entanto, no caso em análise, afigura-se não poder apontar-se à sentença recorrida a falta, em absoluto, da indicação dos fundamentos de facto. Na realidade, constata-se que na fundamentação de direito da sentença recorrida foi expressamente reproduzida, pelo menos em parte, a factualidade alegada pela autora, referindo-se, designadamente: “No caso sub judice, a Autora logrou provar, através da certidão de registo predial juntas aos autos, que se encontram registado a seu favor o imóvel objecto dos autos, concretamente o prédio misto, denominado (…), sito na Estrada (…), na Moita, freguesia e concelho da Moita, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número (…)41, da freguesia e concelho da Moita, cuja parte rústica é composta por terreno de cultura arvense, oliveiras e figueiras, inscrita na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…) da Secção (…) e a parte urbana, com o n.º (…), composto de r/c destinado a habitação, com a área coberta de 65,0000 m2, inscrito na matriz sob o artigo (…). A Autora beneficia, assim, da respectiva presunção legal derivada do registo, decorrente do disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial. O artigo 1311.º, n.º 2, do Código Civil estabelece que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só poderá ser recusada nos casos previstos na lei. Desta forma, no que respeita ao pedido formulado de restituição desse imóvel, importa considerar se resulta a existência de título que legitime a ocupação do mesmo pela Ré. A resposta é negativa, até porque a Ré, regularmente citada, não apresentou qualquer contestação, cabendo-lhe a si alegar factos que pudessem sustentar juridicamente a sua ocupação do imóvel em causa. A tal acresce que a própria Autora invocou a existência de um contrato de arrendamento com terceira, mãe da Ré, mas a caducidade desse mesmo contrato por morte da arrendatária. (…) Ora, quanto ao pedido de declaração de caducidade do contrato de arrendamento (…) No entanto, a Autora alega e prova (através das certidões de nascimento juntas com a petição inicial) que a Ré é filha e, consequentemente, herdeira de B, pelo que a mesma tem legitimidade para esse pedido enquanto legal representante da herança aberta por óbito de B(…) Também nessa qualidade, a que acresce a qualidade de detentora de facto do locado, a Ré tinha a obrigação decorrente da lei de entrega do locado no prazo de seis meses após a caducidade do mesmo, com o falecimento da sua mãe. Não o tendo feito, e tendo, inclusive, conduzido a Autora a acreditar no contrário, é a mesma responsável pelos danos daí advenientes, correspondentes à diferença de valor entre as rendas que a Autora poderia ter recebido e as que efectivamente recebeu, conforme alegado e peticionado, valores esses contabilizados até à efectiva entrega do locado (…) Para além da reivindicação do prédio sua propriedade, requereu a Autora que a Ré fosse condenada no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos sofridos, no valor correspondente à diferença de valor entre as rendas que poderia ter recebido e as que efectivamente recebeu, tendo alicerçado o quantitativo peticionado no facto da Ré ter-lhe omitido durante vários anos o falecimento da anterior arrendatária, sua mãe (…) Também nessa qualidade, a que acresce a qualidade de detentora de facto do locado, a Ré tinha a obrigação decorrente da lei de entrega do locado no prazo de seis meses após a caducidade do mesmo, com o falecimento da sua mãe. Não o tendo feito, e tendo, inclusive, conduzido a Autora a acreditar no contrário, é a mesma responsável pelos danos daí advenientes, correspondentes à diferença de valor entre as rendas que a Autora poderia ter recebido e as que efectivamente recebeu, conforme alegado e peticionado, valores esses contabilizados até à efectiva entrega do locado. (…)”. Significa o acabado de expor que embora a sentença recorrida não tenha sido elaborada de harmonia com o estatuído no artigo 607º, números 3 e 4, CPC, com expressa discriminação dos factos provados (sendo certo que não tendo considerado quaisquer factos não provados era inviável a sua discriminação), dado que a fundamentação de direito foi elaborada por reporte à factualidade apurada (embora não enunciada de forma expressa), afigura-se não ocorrer o vício mais grave legalmente enquadrado na nulidade do artigo 615º, nº 1, alínea b), CPC. Efetivamente, da sua leitura, é possível apreender qual o acervo factual que lhe esteve subjacente. Ao invés, a sentença padece de uma deficiente especificação dos fundamentos de facto, que pode ser suprida pelos poderes de substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, nos termos do artigo 665º, CPC. Na realidade, a sentença foi precedida de despacho que julgou “(…) confessados os factos articulados na petição inicial, cuja confissão não seja inadmissível, por força do preceituado nos artigos 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 354.º do Código Civil (…)”. Em face de tal despacho, a conclusão lógica a retirar é a de que os factos alegados, relativamente aos quais não opere qualquer exceção ao efeito cominatório da revelia, nos termos que decorrem do artigo 568º, CPC, foram considerados assentes. Acresce não dever apontar-se à sentença falta de motivação, no que se reporta à matéria de facto, porque resulta dos seus próprios termos que os factos assentes resultaram da ausência de contestação, razão pela tal decisão não se mostrava carecida de qualquer valoração autónoma, ali se tendo entendido não operar qualquer exceção aos efeitos cominatórios da revelia da ré. Consequentemente, também não se verifica qualquer vício da sentença decorrente da falta de motivação da matéria de facto. Salienta-se que a jurisprudência vem admitindo, em casos de revelia e de manifesta simplicidade, a inexigibilidade da enunciação expressa dos factos provados. Nesse sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 07-01-2019[3], constando do respetivo sumário: “I. Na situação de revelia, a sentença pode ser constituída apenas pela identificação das partes, fundamentação sumária e dispositivo. II - A norma do art. 567º/3 do CPC afasta a dos arts. 607.º/3 e 615.º/1 b) CPC quando a causa revista manifesta simplicidade”. No mesmo sentido, recusando a existência do vício da nulidade em situações de revelia operante em que não houve enunciação expressa dos factos provados e não provados e da sua motivação, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 24-02-2020,[4] considerando tratar-se de deficiência suscetível de ser suprida pelo Tribunal da Relação, sintetizando-se no ponto VI do respetivo sumário: “Verificada uma situação de revelia operante, os factos essenciais alegados na petição inicial são tidos por confessados pelo réu, salvo os que estiverem abrangidos pelo disposto nas alíneas c) e d) do artigo 568.º do CPC, o que significa que tais factos passam a estar assentes por mero efeito legal daquela situação de revelia, não carecendo de qualquer valoração probatória”. Em sentido similar, o acórdão da Relação de Guimarães de 11-07-2024[5]. Não se duvida que nos termos do artigo 567º, nº 1 do CPC, sendo o réu regularmente citado na sua pessoa e não contestando, se devem considerar confessados os factos alegados pelo autor na petição inicial, resultando do nº 3 daquela norma que se a resolução da causa se revestir de manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado, julgando-se a causa conforme for de direito. Porém, nos termos do preceito constitucional já citado, impõe-se que o destinatário da decisão judicial apreenda claramente os fundamentos de facto que lhe estão subjacentes, desiderato este que apenas será plenamente obtido com clara enunciação dos factos provados e não provados. Aceita-se ainda que a falta de enunciação dos factos que o tribunal recorrido considerou como provados e não provados é suscetível de colocar às partes e ao Tribunal da Relação a dificuldade de apurar qual o acervo factual que esteve subjacente à prolação da decisão. No entanto, a nulidade da sentença por falta de fundamentação ocorrerá apenas perante uma “(…) absoluta falta de fundamentação”, não se reconduzindo a tal vício a sua “insuficiência” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2016[6]- podendo apenas afirmar-se a existência de tal vício “(…) quando, na sentença, se omite ou é, de todo, ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar” – Acórdão da Relação de Lisboa de 19-03-2019[7]. Em face do exposto, afigura-se que no caso vertente não se verifica o vício de nulidade por falta de fundamentação de facto, dado que a subscritora da sentença recorrida, na fundamentação de direito, reproduziu ainda que sumariamente os factos provados, subsumindo-os ao direito. Por outro lado, no despacho proferido em 25-01-2024, considerou confessados os factos articulados na petição inicial, não subsistindo, pois, dúvidas quanto ao acervo factual ponderado na decisão. E o certo é que a ré apreendeu a factualidade provada, como se extrai da impugnação da decisão da matéria de facto que deduziu, bem como das suas alegações de recurso. Conclui-se, pois, que a ausência de enumeração, um por um, dos factos provados, in casu não se reconduz ao vício da nulidade da sentença, previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b), CPC, estando apenas em causa a sua mera deficiência, suscetível de ser suprida com base na regra de substituição ao tribunal recorrido, consagrada no artigo 665º, CPC. Consequentemente, suprindo tal deficiência, serão enunciados, nesta decisão, os factos provados. Acresce que a recorrente apontou ainda o vício da nulidade à sentença por ter considerado apurado o contrato de arrendamento invocado pela autora, sem que tenha sido junto documento que o comprove. Porém, contrariamente ao que alega a recorrente, não se verifica qualquer deficiência de motivação. Efetivamente, é afirmado na sentença que os factos provados resultaram da plena aplicação dos efeitos da revelia, consagrada no artigo 567º, CPC. Consequentemente, a discordância da recorrente quanto a tal motivação (designadamente por considerar que alguns dos factos alegados careciam de prova documental, nos termos do artigo 568º, alínea d), CPC), sendo suscetível de fundamentar a impugnação da matéria de facto, não constitui, em rigor, fundamento de nulidade da sentença. Pelo exposto, indefere-se a arguição da nulidade da sentença por falta de especificação dos factos que justificam a decisão e de motivação. B – Do litisconsórcio necessário passivo No que se reporta à apontada preterição de litisconsórcio necessário passivo, é manifesta a falta de razão da recorrente. Efetivamente, as situações de litisconsórcio, seja voluntário ou necessário, reportam-se a hipóteses em que são vários os titulares da relação material controvertida em debate (cfr. artigos 32º e 33º do Código de Processo Civil). Com vista à resolução definitiva do litígio, e à produção do seu efeito útil normal, a ação deve reunir, quer no seu lado ativo, quer no seu lado passivo, os titulares da relação material em causa. Porém, como resulta do artigo 26º, nº 1, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo o réu parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. A legitimidade constitui assim um pressuposto processual que se traduz «numa situação concreta das partes» em relação a um processo determinado – José João Batista[8]. Assim, e de acordo com o critério legal supra mencionado, tal situação concreta deve ser aferida de acordo com o interesse direto que as partes têm no objeto do processo. Por outro lado, havendo dúvidas quanto à legitimidade das partes, haverá que lançar mão do critério consagrado no artigo 26º, nº 3, do Código de Processo Civil, segundo o qual «... são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor». Não sendo suprida, a ilegitimidade configura exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – cfr. artigos 576º e 577º, alínea e), CPC. O certo é que nos presentes autos, a autora configurou a relação material controvertida de forma clara, definindo o litígio que a opõe à ré, sem intervenção de qualquer outro sujeito, designadamente do seu marido. Efetivamente, a autora não reconheceu qualquer transmissão do contrato de arrendamento para a esfera da ré que demandou na presente ação, configurada como reivindicação, alegando que ela se encontra na posse do imóvel, sem título que a legitime. Consequentemente, de acordo com a configuração conferida pela autora à lide, o marido da ré é absolutamente alheio à relação material controvertida. E o certo é que, tendo-se mantido a ré em revelia, não trouxe ao processo quaisquer factos que abalem tal configuração (nem é processualmente admissível que o faça por via das alegações de recurso). Designadamente, não foi alegado nem demonstrado que a ré vivesse no locado com o marido, à data do óbito da arrendatária– 06-11-2012 - em moldes que, nos termos do disposto nos artigos 57º e 58º NRAU pudessem justificar a por si pretendida transmissão do direito ao arrendamento, de forma a impedir a caducidade do contrato de arrendamento. Assim, a relação material controvertida nos autos define-se entre a ré (detentora do bem reivindicado) e a autora (proprietária), não sendo necessária a intervenção do marido da primeira para que a decisão produza o seu efeito útil normal. E tanto basta para se concluir pela legitimidade de ambas as partes, quer no domínio processual, quer substancial. Pelo exposto, indefere-se a arguição da exceção de preterição de litisconsórcio necessário passivo C - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto Alegou a recorrente que a sentença recorrida considerou apurado o contrato de arrendamento, que constitui facto cuja prova sempre teria que ser feita por meio de documento, não se revelando suficiente a mera confissão. Apreciando a questão suscitada, verifica-se que foi alegado que o contrato de arrendamento em causa terá sido celebrado em data concretamente não apurada, situada segundo a autora “há várias décadas”. Estamos perante um facto não totalmente concretizado no tempo, mas que, no entanto, permite determinar que o contrato foi celebrado pelo menos há 20 anos (pelo plural de décadas). As “condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos” devem ser aferidas pela lei vigente ao tempo em que o contrato foi celebrado – cfr artigo 12º, nº 2, 1ª parte do Código Civil, e Pires de Lima e Antunes Varela[9]. Assim, porque se desconhece a data precisa da celebração do contrato de arrendamento invocado pela autora, sempre se dirá que no domínio da Lei nº 2030 de 22-06-1948, conforme dispunha o seu artigo 36º, não sendo exigível a forma escrita para a celebração de contrato de arrendamento urbano, o arrendatário apenas do mesmo poderia fazer prova desde que exibisse recibo de renda assinado pelo proprietário ou pelo seu representante – cfr. Pinto Furtado, Jorge Henrique da Cruz[10]. Naquele diploma foi ainda conferida ao arrendatário a possibilidade de provar a existência do contrato pelo depósito da renda, referindo-se no artigo 36º, nº 1: “Equivale ao recibo do depósito feito dentro dos três meses posteriores ao vencimento da primeira renda, quando não seja impugnado ou a oposição improceda”, assim acautelando uma eventual fraude do senhorio. Tal solução, no essencial, foi transposta para o Código Civil de 1966, que entrou em vigor no dia 01-06-1967 (cfr artigo 2º, nº 1 do Dl 4734/66, de 25/11), estipulando o artigo 1088º, do Código Civil, na sua versão originária: “Se o arrendamento for válido, independentemente de título escrito e este não existir, o arrendatário só pode provar o contrato desde que exista recibo de renda”. Nos termos do disposto no artigo 7º RAU na versão do Dl 321-B/90, de 15/10, o contrato de arrendamento urbano deveria ser celebrado por escrito, e a inobservância de tal prova poderia ser suprida pela exibição do recibo de renda, regime que se foi mantendo ao longo das sucessivas alterações operadas ao RAU. Atualmente, o artigo 1069º do Código Civil, embora consagre que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito, permite que o arrendatário, caso não lhe seja imputável a não redução a escrito do contrato, possa provar a sua existência demonstrando a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses. O certo é que, perante o regime legal vigente há, pelo menos, duas décadas (como se provou no caso em apreço – “décadas”) nada obsta à validade do contrato de arrendamento invocado pela autora, independentemente de ter sido ou não reduzido a escrito. Na verdade, segundo os diversos regimes legais que se sucederam no tempo, a omissão da forma legal escrita não determinava a invalidade substancial do contrato de arrendamento. Apenas ao nível da prova (ou demonstração) da existência, celebração ou vigência do contrato de arrendamento, o legislador exigia um meio de prova específico, de natureza documental (o recibo de renda). Estava, portanto, em causa apenas uma formalidade ad probationem. A propósito da distinção doutrinal entre formalidades ad substanciam e formalidades ad probationem, refere Mota Pinto[11] que: “as primeiras são insubstituíveis por outro género de prova, gerando a sua falta a nulidade do negócio, enquanto a falta das segundas pode ser suprida por outros meios de prova mais difíceis de conseguir (confissão…)”. A este propósito, estabelece o artigo 364º, nº 2 do Código Civil: “Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório”. Ora, podemos afirmar que a exigência de forma escrita do contrato de arrendamento constitui (e tem constituído) formalidade ad probationem – neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2022[12]. Assim sendo, a prova da celebração do contrato de arrendamento não pode fazer-se por testemunhas ou por presunção judicial, mas, nos termos do disposto no artigo 364º, nº 2 do Código Civil, pode ser feita por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, desde que conste de documento de igual ou superior valor probatório. In casu, haverá que indagar se, perante a ausência de escrito que comprove a celebração do contrato de arrendamento invocado, o seu apuramento pode resultar do efeito preclusivo da falta de contestação por parte da ré. A propósito dos efeitos da revelia dispõe o artigo 567º, nº 1 do Código de Processo Civil: “Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”. A este propósito esclarecem Lebre de Freita e Isabel Alexandre[13]: “Segundo o nº 1, consideram-se confessados os factos alegados pelo autor. Trata-se, portanto, de prova (os factos ficam provados em consequência do silêncio do réu) e, aparentemente, duma ficção (ficciona-se uma confissão inexistente, equiparando os efeitos do silêncio do réu aos da confissão, de que tratam os artigos 352º e ss CC); de facto, fala-se tradicionalmente de confissão ficta (ficta confessio) para designar o efeito probatório extraído do silêncio da parte sobre a realidade de um facto alegado pela parte contrária (…) Mas este meio de prova (que em outros sistemas jurídicos é antes tido como dispensa de prova) tem um regime que não coincide inteiramente com o da confissão, que é uma declaração expressa de reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao declarante (…)pelo que, constituindo uma figura autónoma é mais adequado distingui-lo, reservando para ele o termo admissão. (…) Contrariamente à confissão, a admissão não exige que o facto admitido seja desfavorável ao admitente (cfr. art. 352 CC); não joga quanto a factos para cuja prova a lei exija documento escrito (...) Esta prova, desconhecida nos sistemas ditos de ficta litis contestatio, ou contestação ficta, em que a omissão de contestar não tem o valor de prova legal e mantém incólumes as normas sobre a distribuição do ónus da prova, fica, entre nós, definitivamente adquirida no processo, não podendo o réu vir posteriormente negar os factos sobre os quais se manteve silencioso (…) tem assim o tratamento duma presunção inilidível” (…) Quando a lei (artigo 364º CC) ou as partes (artigo 223º CC) exijam documento escrito como forma ou para a prova dum negócio jurídico (…) esse documento não é dispensável (…) neste caso, o âmbito de inoperância da revelia é mais restrito (…): a falta de contestação implica a confissão de todos os factos articulados pelo autor (…) salvo daqueles que careçam de prova documental”. Por aplicação do já citado artigo 364º, nº 2, CC, apenas a confissão expressa permitiria comprovar a celebração do contrato de arrendamento, não podendo este ficar demonstrado por confissão ficta. Significa o acabado de expor que a celebração do contrato de arrendamento não deverá constar dos factos provados, em face da inexistência de documento que o comprove ou de expressa confissão. Dir-se-á ainda que a posição manifestada pela ré nas alegações de recurso, defendendo que para si se transmitiu o contrato de arrendamento celebrado com a respetiva progenitora, mas considerando que o mesmo não resultou provado, ainda que insubsistente nos seus próprios termos, não corresponde a uma confissão expressa que permita o apuramento de tal vínculo contratual. Efetivamente, constando das alegações que: “(…) Ainda que se conceda que a Ré ora Recorrente, sucede num contrato não se sabe que contrato é esse, qual a sua data, ou cláusulas” não pode, com segurança, afirmar-se que a ré confessa o contrato de arrendamento. Por outro lado, o não apuramento deste vínculo não invalida o apuramento da factualidade alegada quanto à utilização e detenção do prédio reivindicado pela mãe da ré e, após o seu óbito, por esta, bem como o pagamento dos montantes mensais alegados. Procede, pois, a impugnação da matéria de facto, no que se reporta ao não apuramento do contrato de arrendamento invocado pela autora. E – Em face da decisão que antecede que julgou procedente a impugnação da matéria de facto e suprindo a deficiência da decisão, relativa à ausência de indicação expressa dos factos provados, ao abrigo dos poderes de substituição do Tribunal da Relação, procede-se, de seguida, à sua enunciação: FACTOS PROVADOS - Mediante a Ap. …, de 2009/01/26, mostra-se registada a aquisição, por compra, a favor da autora, do prédio misto, denominado (…), sito na Estrada Nacional n.º …, na Moita, freguesia e concelho da Moita, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número …, da freguesia e concelho da Moita, e cuja parte rústica é composta por terreno de cultura arvense, oliveiras e figueiras, inscrita na respetiva matriz predial rústica sob o artigo … da Secção (…); - Mediante a mesma Ap., mostra-se também registada a aquisição, por compra, a favor da autora dos prédios urbanos situados naquele prédio misto, nomeadamente o prédio urbano, sito no (…), Estrada Nacional n.º …, com o n.º …, composto de r/c destinado a habitação, com a área coberta de 65,0000 m2, inscrito na matriz sob o artigo …, que faz parte daquela descrição n.º …, do prédio misto acima identificado, daquela freguesia e concelho da Moita; - A utilização deste prédio urbano foi, há várias décadas, cedida, pelo anterior proprietário, a B, nascida em 28.04.1938, filha de C e de D, que funcionava como uma segunda habitação, já que esta passava parte do ano em França, mediante acordo cujos contornos precisos não foi possível apurar; - Posteriormente, por escritura pública de compra e venda, a autora adquiriu aqueles imóveis, facto de que deu conhecimento a B, por carta, enviada por correio registado com aviso de receção, identificando-se como sendo a nova proprietária e senhoria e informando dos novos dados bancários para onde os valores das contrapartidas mensais devidas pela cedência do prédio deviam passar a ser depositadas; - Nessa sequência, os valores mensais no valor de 25,00€, passaram a ser depositadas, mensalmente, na conta da autora; - Nos últimos anos, a autora tentou contactar B, mas foi verificando que quem recebia as cartas era a ré, sua filha – e que, invocando essa qualidade, apresentava-se junto do gerente da senhoria, ora autora, como procuradora de sua mãe, pelo facto de esta ser uma pessoa idosa e de nem sempre estar em Portugal; - B faleceu em França em 03-11-2021, facto que a ré omitiu à autora, aproveitando-se do facto de o óbito não se encontrar averbado na respetiva certidão de nascimento no ordenamento jurídico português; - Além de não ter comunicado o óbito de sua mãe, a ré também não desocupou e entregou o prédio urbano supra identificado à autora, mantendo-o em seu poder, embora ali não resida; - Após o óbito de sua mãe, a ré continuou a pagar o montante mensal de € 25,00, a apresentar-se perante a autora como representante de sua mãe alegando estar munida de uma procuração para o efeito e que aquela não estava a habitar em permanência no imóvel porque continuava a residir, parte do ano, em França; - A autora e a ré têm tentado, através de mandatários judiciais, uma resolução deste assunto, que não se revelou ainda viável, não tendo a ré procedido à entrega voluntária do imóvel; - E, com este comportamento da ré, a autora tem-se visto impossibilitada de colocar aquele imóvel no mercado de arrendamento e com isso auferir rendimentos provenientes de uma renda mensal de valor atualizado; - A autora tem como objeto social “investimentos imobiliários, nomeadamente o aluguer, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim”; - Atualmente, o valor de renda mensal, daquele imóvel, ronda o valor médio entre 300,00€ a 400,00€; no ano de 2022, o valor de renda mensal, daquele imóvel, foi de 320,00€; no ano de 2021 foi de 290,00€; no ano de 2020 foi de 270,00€; no ano de 2019 foi de 250,00€; no ano de 2018 foi de 220,00€; no ano de 2017 foi de 200,00€; no ano de 2016 foi de 190,00€; no ano de 2015 foi de 180,00€; no ano de 2014 foi de 170,00€ e no ano de 2013, o valor de renda mensal, daquele imóvel, foi de 160,00€. F – Do enquadramento jurídico dos factos A recorrente pretendeu alterar a decisão proferida, tendo por base quer os fundamentos de nulidade que lhe apontou, quer a impugnação da matéria de facto. Porém, não se verificam os fundamentos de nulidade invocados. E no que se reporta ao não apuramento da celebração do contrato de arrendamento, dir-se-á que não convoca qualquer alteração à decisão recorrida. Na realidade, a existência de tal contrato e a sua eventual transmissão para a ré poderia configurar um título suscetível de impedir a entrega do imóvel, à autora, sua atual proprietária, que se apresenta nestes autos exercendo o direito de sequela de tal bem – cfr. artigo 1311º, CPC. Adere-se, por isso, à fundamentação jurídica da decisão recorrida, no que se reporta à demonstração do direito de propriedade da autora, com base na presunção derivada do registo predial, consagrada no artigo 7º do Código do Registo Predial. E demonstrado tal direito de propriedade, forçosa é a conclusão de que a ré, por seu turno, não demonstrou qualquer título que legitime a ocupação do prédio. Efetivamente, a ré impugnou o apuramento do contrato de arrendamento alegado pela autora, embora, de forma contraditória com tal atitude processual, tenha invocado ser beneficiária da sua transmissão (ou de qualquer outro vínculo celebrado entre o anterior proprietário e a sua falecida mãe, legitimador da detenção do prédio por esta). Certo é que lhe estava vedada, por via de recurso, a alegação de qualquer título legitimador da utilização do prédio da autora, sendo a contestação (que não apresentou) o articulado próprio para apresentar e concentrar a sua defesa – cfr. artigos 572º e 573º, CPC. Acresce que em face da factualidade apurada não pode concluir-se que a decisão de entrega do imóvel em causa afete, por qualquer forma, o direito à habitação da ré, cuja tutela constitucional radica no artigo 65º CRP. Consequentemente, a ré está obrigada a entregar à autora o prédio por esta reivindicado na presente ação, nos precisos termos constantes da decisão recorrida. E, atenta a sua qualidade de detentora do prédio, está ainda obrigada a indemnizar a autora, nos montantes em que foi condenada, relativos à diferença entre as contrapartidas mensais pela cedência do prédio que esta poderia ter auferido e que auferiu efetivamente, como decidido em primeira instância. De facto, evidencia a factualidade apurada que a autora se dedica a negócios imobiliários, designadamente arrendamentos, e que ficou privada de o fazer quanto ao prédio reivindicado por ação da ré, pelo menos no período considerado na decisão recorrida, e, consequentemente de auferir o valor da renda atualizada do mesmo. Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 20-06-2024[14], (relatado pelo 1º adjunto desta decisão): “I – A privação de uso de bem imóvel, sendo um facto ilícito, “configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito. Para tanto, bastará, […], que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa.” Consequentemente, acorda este coletivo na manutenção da decisão recorrida, da qual se suprime apenas a declaração de caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária B em 03-11-2011. No que se reporta à responsabilização por custas do recurso, verifica-se que não obstante o não apuramento do alegado contrato de arrendamento, os efeitos visados pela autora com a interposição da ação (reivindicação do prédio e indemnização) obtiveram total procedência. Consequentemente, de harmonia com o critério da causalidade consagrado no artigo 527º, nº 1, CPC, a ré deverá ser responsabilizada pelas custas do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga. * III – DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida no segmento relativo à declaração de caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária B, mantendo, no demais, tal decisão, nos seus precisos termos. Custas pela ré, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC D.N. Lisboa, 24 de outubro de 2024 Rute Sobral Pedro Martins Ana Cristina Clemente _______________________________________________________ [1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 735 [2] Autores e ob. Cit. Páginas 735 e 736. [3] Proferido no processo 7896/17.7T8PFR.P1, disponível em www.dgsi.pt [4] Proferido no processo 6516/18.5T8CBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt [5] Proferido no processo nº 79/24.0T8VVD.G1, disponível em www.dgsi.pt [6] Proferido no processo nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt [7] Proferido no processo nº 1314/08-2, disponível em www.dgsi.pt [8] Processo Civil I, pág. 148. [9] Código Civil anotados, Vol. I, 4ª edição pág. 61. [10] Manual do arrendamento urbano, Vol. I, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2007, pág. 437 e ss [11] Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 435 [12] Proferido no processo nº 9175/19.9T8LRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt [13] Ob. Cit. Pág. 533, 534 e 543 [14] Proferido no processo nº 5516/22.5T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt |