Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4980/20.1T9LSB.L1-3
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO MIRANDA
Descritores: OFENSAS À HONRA
ARTICULADO
QUEIXA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A imputação a outrém de conduta que se consubstancie numa ofensa à honra e consideração praticada mediante factos vertidos num articulado processual, apresentado por advogado, no exercício do mandato forense, é da autoria do mandante e do seu advogado.
A apresentação de queixa apenas contra o mandante é configurada na lei como desistência, quer da queixa quer da acusação, que aproveita aos restantes.
Logo o procedimento criminal não podia prosseguir contra qualquer dos comparticipantes, por se verificar a falta da condição de procedibilidade prevista no nº. 3 do artigo 115º. do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA 3ª. SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - Relatório

No âmbito dos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, que correm termos sob o n.º 4980/20.1T9LSB.L1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal - Juiz14,  os assistentes VLP – Engenharia e Construções, Lda., Vilaplano - Construções, Lda.,  JS e LD deduziram acusação particular contra o arguido JS____, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, em concurso real, de dois crimes de difamação praticados contra o terceiro assistente; - três crimes de difamação praticados contra o quatro assistente; seis  crimes de ofensa à pessoa coletiva contra a primeira assistente e três crimes ofensa à pessoa coletiva contra a segunda assistente.
No dia 2/05/2022, foi proferido despacho judicial de não recebimento da acusação particular, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º, 2 al. a) e 3 al. d), do Código de Processo Penal.
Inconformados com essa decisão, os assistentes interpuseram recurso, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões, que passamos a transcrever:
“I. Nos casos em que estejam em causa afirmações difamatórias apostas em peças processuais – e são estes casos que aqui nos interessam, por serem os que estão aqui em análise –, o princípio da indivisibilidade da queixa deve ser analisado de forma cuidadosa.
II. Só podemos afirmar que existirão indícios de coautoria ou comparticipação da mandatária se pela leitura da peça processual se tornar evidente a comparticipação intelectual ou moral da advogada que a subscreve, o que, in casu, é de afastar por estarem em causa alegações estritamente de factos, cujo aporte coube exclusivamente ao Arguido.
III. O crime em causa prende-se com a falsidade das alegações, ou seja, as alegações não são, por si, crime, mas apenas por corresponderem a factos falsos.
IV. Esta questão assumiu particular relevância, quer doutrinal, quer ao nível da jurisprudência, na sequência da prolação do Acórdão da Relação de Coimbra de 01.03.1989 – in CJ, ano 1989, Tomo II, pág. 76. Desde o citado Acórdão os Tribunais Portugueses têm entendido que a problemática em torno do princípio da indivisibilidade do direito de queixa envolve três situações factuais distintas, a saber:
i) O advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer;
ii) O autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido;
iii) O cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.
V. A primeira das situações acima elencadas consubstancia uma comparticipação criminosa, ou seja, o advogado e o respectivo cliente são co-autores do crime de difamação.
VI. A segunda situação configura um caso de exclusiva responsabilidade do advogado, sendo este o único autor do crime de difamação, uma vez que o ilícito penal é praticado unicamente pelo profissional do foro.
VII. A terceira e última situação diz respeito aos casos de responsabilidade exclusiva do cliente, inexistindo por parte do advogado o propósito de atingir os bens jurídicos tutelados que a nossa ordem jurídica pretende proteger com a punição do crime de difamação.
VIII. Em causa no presente recurso está apurar se a conduta imputada apenas ao Arguido, ora Recorrido, JS____, pode ser igualmente imputada à Mandatária que subscreveu a petição inicial supra mencionada.
IX. Excecionando determinados casos que, pelos próprios indícios que lhes são subjacentes e que, por tal circunstancialismo, configuram notoriamente casos de comparticipação criminal do advogado e do seu cliente, entendemos que o que é normal e decorre da experiência comum, é que tais situações não configuram uma comparticipação criminosa.
X. O pressuposto em que assenta o despacho recorrido, não é aceitável, por corresponder a uma presunção da responsabilidade criminal do advogado, sempre que, da peça processual, se não retirasse ou não pudesse retirar conclusão em sentido contrário.
XI. Na peça processual em causa – uma petição inicial apresentada em juízo cível assinada pela advogada do Arguido, aqui Recorrido, cujos autos assumiram o n.º 222/20.8T8LSB, a correr termos no Juiz 10 do Juízo Central Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, conforme certidão junta ao presente processo como documento n.º 16 – são mencionados ou alegados factos que, por serem falsos,
devem ser considerados difamatórios e ofensivos, que fundamentaram a queixa-crime que veio ser formulada contra o Arguido JS____, ora Recorrido.
XII. Da peça processual em causa não resulta que a mandatária, ao reproduzir tais factos, soubesse que eram falsos e por isso difamatórios e ofensivos.
XIII. Da peça processual não decorre mais do que a simples conclusão que a mandatária se limitou a transpor os factos que lhe foram transmitidos pelo Arguido, JS____.
XIV. O que está em causa não é a verificação de um pressuposto legal, mas sim uma questão probatória, que naturalmente só pode ser decidida mediante uma análise crítica dos factos sujeitos a essa mesma prova, ou seja, em audiência de julgamento.
XV. A premissa em que assenta a decisão sub iudicio é aquela que entende que existe sempre a comparticipação criminal do mandatário, sendo reveladora de uma clara e evidente ameaça à liberdade do exercício da advocacia.
XVI. Não pode o Advogado, no exercício do mandato que lhe foi conferido pelo seu cliente, estar limitado relativamente à exposição factual e jurídica que faz daquilo que lhe foi transmitido pelo constituinte, ou por sempre em causa a veracidade dos factos que o Cliente lhe transmite.
XVII. A responsabilidade criminal dos advogados, deve (só pode!) revelar-se, desde logo, da própria pela processual em causa.
XVIII. A rejeição da acusação particular deduzida pelos Assistentes, aqui Recorrentes, não foi feliz, na medida em que foi fundada na inexistência de um pressuposto ou de uma presunção de responsabilidade criminal do advogado, o que não é aceitável, uma vez que, ao contrário do que consta da decisão sub iudicio, decorre da queixa-crime, das diligências de inquérito e por fim da acusação particular a alegação e demonstração de factos que indiciam, sem margem para dúvidas, a responsabilidade individual do Arguido JS____, na qualidade de representante legal da sociedades autora (cf. a este respeito os art.º(s) 16.º a 20.º da acusação particular).
XIX. Ora, como já dissemos, não se trata da verificação de um pressuposto, mas antes de uma questão probatória.
XX. No caso em apreço, não existem quaisquer elementos que nos permitam concluir por qualquer forma de comparticipação da Mandatária.
XXI. Pelo que, o facto de não ter sido apresentada queixa contra a Mandatária do Arguido, ora Recorrido, em nada obsta ao prosseguimento do procedimento criminal contra o mesmo.
XXII. Em suma, o Tribunal “não só desconsiderou o equilíbrio jurídico que deve estar patente entre as realidades que aqui estão em conflito, como também considerou como pressuposto ou presunção o que deve (só pode!) ser analisado em sede probatória.
XXIII. Ao decidir como decidiu o Tribunal “a quo” errou de direito na interpretação e aplicação do disposto nos art.º(s) 114.º a 116.º, do Código Penal.
Nestes termos e no mais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que receba a acusação, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA! (…)”

O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“1. O MINISTÉRIO PÚBLICO entende que não assiste qualquer razão aos Recorrentes VLP – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, LDA., VILAPLANO – CONSTRUÇÕES, LDA., JS e LD GONGO CARVALHEDA, pois que, a decisão em apreço não padece do vício invocado.
2. Ainda em sede de inquérito, foi proferido despacho pelo Magistrado do Ministério Público titular dos autos, no dia 13 de Novembro de 2021, onde se lê o seguinte: “Notifique os assistentes para, querendo e em 10 (dez) dias, deduzirem acusação particular – artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
Nos termos e para os efeitos do n.º 2 do referido artigo, consigna-se que não foram recolhidos indícios da prática do crime em apreço por parte do arguido. Com efeito, as expressões que os assistentes reputam como ofensivas da respectiva honra e consideração (no caso dos assistentes pessoas singulares) e credibilidade e prestígio (quanto às Sociedades assistentes) constam de peça processual subscrita exclusivamente por Mandatária forense, no âmbito de processo em que o aqui arguido não é parte – ainda que seja o legal representante da Sociedade que nesses autos figura como autora – não tendo sido recolhido nestes autos qualquer indício que permita concluir que o arguido determinou a referida Mandatária à utilização das expressões em causa. Nestas circunstâncias, e conforme tem sido entendimento unânime da jurisprudência dos Tribunais Superiores apenas poderia ser imputada à Ilustre Subscritora da petição inicial em causa a utilização das expressões em apreço sendo que, logo no momento da apresentação da queixa, os assistentes optaram por expressamente excluir aquela do âmbito do presente processo (cfr. fls. 165). Instrua com cópia do presente despacho.”
3. O facto de não ter sido apresentada queixa crime contra a Ilustre Mandatária que assinou a petição inicial cível do processo n.º 222/20.8T8LSB, do Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 10 – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, já havia motivado o não acompanhamento da acusação particular pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
4. Após a remessa dos autos para julgamento, a Mm.ª Juiz de Direito do tribunal “a quo”, indo de encontro à posição já manifestada nos autos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, rejeitou a acusação particular apresentada pelos Assistentes.
 5. Em face da bondade e acerto da posição plasmada na decisão sob recurso, o Ministério Público adere de forma integral ao entendimento manifestado, quer no despacho proferido nos autos no dia 13 de Novembro de 2021, quer na decisão sob recurso.
 6. A douta decisão em crise não merece qualquer reparo, não padecendo de qualquer vício, mormente o mencionado pelos Recorrentes.
*
Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes VLP – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, LDA., VILAPLANO – CONSTRUÇÕES, LDA., JS e LD GONGO CARVALHEDA e, consequentemente, ser mantida a douta decisão proferida nos autos, por a mesma não padecer do vício apontado nas conclusões de recurso.”

O arguido também respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido da respetiva improcedência e manutenção da sentença recorrida.
“I. A acusação particular, tal como está configurada pelos Assistentes, traduz uma autoria singular quanto a afirmações vertidas numa peça processual de que o Arguido nem é parte na relação jurídica controvertida, nem o seu autor e signatário;
II. Não existe no articulado da acusação particular dos Assistentes qualquer circunstância que estabeleça, sequer, indícios que permitam atribuir ao Arguido a responsabilidade exclusiva na elaboração e apresentação em juízo da petição inicial pela mandatária constituída pela sociedade autora;
III. A especificidade técnica da lide forense e as suas possíveis implicações, designadamente, ao nível da descrição dos factos vertidos nas respectivas peças processuais, afastam, por natureza, a mera transcrição mecânica por parte do mandatário do que é relatado pelo cliente;
IV. Porém, foi nesses termos que os Assistentes configuraram a alegada autoria singular dos ilícitos penais que imputam ao Arguido;
V. Desrespeitando claramente o princípio da indivisibilidade da queixa;
VI. A defendida transferência, na motivação do recurso dos Assistentes, da determinação da autoria para a fase de julgamento colide com o n.º 3 do art.º 115.º do C.P.
Nestes termos não deve ser dado provimento ao recurso (…)”

O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, concordando com a resposta do Ministério Público.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II– Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
De harmonia com o disposto no artigo 412.º n.º 1 do Código de Processo Penal, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
A motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
Nesta conformidade a única questão que ora se discute consiste em saber se a acusação podia ter sido rejeitada, como o foi, ou, pelo contrário, deveria ter sido recebida, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos.

III - A Decisão recorrida
Remetido o processo para julgamento e presente para o saneamento a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:
“Nos presentes autos, VLP – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, L DA., VILA PLANO – CONSTRUÇÕES, L DA., JS e LD GONGO CARVALHÊDA, deduziram acusação particular contra JS____, imputando-lhe a prática, em concurso real, de:
- dois crimes de difamação praticados contra o terceiro assistente;
- três crimes de difamação contra o quarto assistente;
- seis crimes de ofensa a pessoa coletiva contra a primeira assistente; e
- três crimes de ofensa a pessoa coletiva contra a segunda assistente.
Para tanto, em síntese, invocam os assistentes que o arguido, ainda que em nome da sociedade que domina e que representa “Amazing Falcon” e ainda que tenha constituído mandatária, a quem deu instruções precisas para alegar os Factos em causa na acusação crime que deduziram, no âmbito da ação cível que interpôs com o n.º 222/20.8T8LSB que interpôs contra os assistentes e cuja petição inicial se mostra junta aos autos a Fls. 171 e seguintes, realizou na referida petição inicial afirmações relativamente aos assistentes que entendem consubstanciarem os crimes que ao arguido imputam nestes autos.
Cumpre apreciar:
Estando em causa nos autos afirmações supostamente difamatórias e ofensivas Feitas numa petição inicial elaborada e subscrita por Mandatária, constata-se que os assistentes apenas exerceram o seu direito de queixa (e de acusação particular) contra o arguido JS____ , o qual não é, de resto, sequer o autor da ação cível interposta contra os assistentes, não o tendo feito, nomeadamente contra a II. Mandatária que elaborou e subscreveu a petição inicial que deu origem à referida ação.
Importa, assim, atentar no disposto nos artigos 114.º a 116.º do Código Penal, que consagram o princípio da indivisibilidade do direito de queixa.
Com efeito, desde o acórdão da Relação de Coimbra de 1.03.1989 (in CJ, ano 1989, Tomo II, pág. 76), “nos casos em que eventuais afirmações difamatórias se mostram vertidas em peças processuais, como sucede na situação em apreço, a jurisprudência tem entendido que podemos estar perante três hipóteses distintas:
Uma em que o advogado transferiu para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse, após tê-lo advertido expressamente das consequências que daí podem advir, designadamente em termos penais;
Outra em que o autor do escrito na peça processual é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente;
Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros com o objetivo de que o advogado os verta na peça processual, convencido de que correspondem à verdade.
A primeira hipótese, configurará um exemplo de comparticipação criminosa. Ou seja, como é referido no Ac. TRE de 17.09. 2013[2], citado na sentença em crise, advogado e cliente são coa autores do crime de difamação, pois, «melhor do que ninguém o advogado deve saber em que consiste o crime de difamação e avaliar quando a prol ação de factos  suscetíveis de ofender a honra e a consideração de outrem não é necessária para a defesa da causa que lhe foi confiada». Compete-lhe, por isso, a função de filtrar aquilo que lhe é relatado pelo cliente, não deixando transparecer quaisquer expressões que se não contenham dentro das margens da veemência e da energia que a defesa dos interesses daquele exigem.
A segunda hipótese configurará um caso de responsabilidade exclusiva do advogado, dado que o ilícito é apenas cometido por ele.
A terceira e última hipótese configurará um caso de responsabilidade exclusiva do cliente, dado não haver por parte do advogado o propósito [intenção ou vontade] de atingir a honra ou consideração do visado, atuando, pois, sem dolo”- Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 14.04.2021, disponível em https://www.direitoemdia pt/search/show/0150921fc3a28b72d1397ed38ac134d2e0e8c7  568251810 c 6 49 e 0 6 79 b 1 bc 5 c 2 f.
No caso dos autos, tal como na situação analisada no acima citado acórdão da Relação de Évora de 17.09.2013, na participação feita pelos assistentes não consta nenhuma circunstância que permita concluir pela responsabilidade exclusiva de JS____ na apresentação em juízo da petição inicial assinada pela advogada da sociedade que aquele representa.
Assim sendo, encontrando-se afastada a responsabilidade exclusiva do arguido e  não tendo a acusação sido deduzida também contra a advogada da sociedade sua representada e mesmo contra esta, considerando o já referido princípio da indivisibilidade da queixa, constata-se que se encontra em falta o pressuposto positivo da punição, ou de condição legal de procedibilidade previsto no n.º 3 do art.º 115.º do Código Penal.
Neste mesmo sentido, veja-se a jurisprudência plasmada no acórdão da relação de Lisboa, de 17.05.2016:
«- A responsabilidade exclusiva do cliente deve ser liminarmente excluída quando na peça processual elaborada por advogado seja relatado um facto ofensivo da honra de outrem, porque o advogado, profissional forense com a responsabilidade de conduzir técnica e processualmente a lide, em nome e em representação dos seus constituintes, está vinculado por um dever geral de urbanidade (art.º 89.º do Estatuto da Ordem dos Advogados), devendo, no exercício da sua actividade, evitar a prol ação de factos susceptíveis de ofender a honra e a consideração de outrem. -Segundo as regras da experiência comum, não sendo, in casu, a arguida uma técnica de direito, esta, terá transmitido ao seu ilustre mandatário os factos que, na sua perspectiva das coisas, sucederam, e que poderiam ser pertinentes em relação à litigância em que se mostrava envolvida, sendo mais do que provável que desconheça as regras próprias da tramitação processual, dos seus limites e consequências específicas, bem assim como a possibilidade concreta de incorrer na responsabilidade criminal, que ora se lhe imputa. -Se tais articulados se afiguravam ofensivos da honra do assistente, não tendo sido alegado, mesmo na peça acusatória, que o Exmo. Advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pela cliente, ora arguida, correspondiam à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos. -No sistema processual penal português consagrou-se o chamado “princípio da indivisibilidade”, quando, no art.º 115º, n.º 3 do Código Penal, estipula que: “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”».
Em face de tudo o exposto, importa concluir que estamos no caso dos autos perante uma situação que conduz à extinção do procedimento criminal contra o arguido.
Constata-se, assim, que a acusação particular proferida nos autos é manifestamente improcedente.
O artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, prevê que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Ora, manifestamente infundada é a acusação que não contenha a identificação do arguido; a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituem crime.
No caso vertente, dúvidas não restam de que não se mostra preenchida uma condição de procedibilidade, não sendo a acusação, assim, suscetível de, a mostrar-se provada, permitir a condenação do arguido pelos crimes de que vem acusado.
Pelo exposto, de harmonia com o acima indicado artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, do Código de Processo Penal, rejeito a acusação deduzida a Fls. 579 a 598, por manifestamente infundada. (…)”

IV Apreciação do mérito do recurso
O recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido que julgou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido, por considerar ter havido renúncia do direito de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes, a saber a advogada do arguido, subscritora do articulado de petição inicial onde consta a factualidade que os assistentes reputam de ofensiva da sua honra e consideração.
 Estipula o artigo 311.º do Código de Processo Penal que:
“1- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”
Assim, sempre que, perante os termos da acusação, que define o tema de debate e demarca os limites da função jurisdicional, for evidente que, a acusação não tem condições de viabilidade deve a mesma ser rejeitada, evitando-se que o arguido seja submetido a um julgamento inútil.
Dispõe artigo 50º. do Código de Processo Penal que:
“1- Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”.
Segundo o disposto no artigo 49.º, nº 1 do Código de Processo Penal “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
Os crimes imputados ao arguido revestem natureza particular, portanto, para a instauração do procedimento criminal é necessária a queixa, que é condição de procedibilidade do inquérito, e, posteriormente, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular.
Analisados os autos verifica-se que os assistentes apresentaram queixa contra o arguido, imputando-lhe a prática de crimes de difamação e ofensa a pessoa coletiva que alegadamente este teria praticado numa peça processual, subscrita pela mandatária, a Sra. Dra. SC, que em nome da sociedade “Amazing Falcon”, instaurou uma ação cível, que correu termos sob o n.º 222/20.8T8LSB,  contra os ora assistentes, sendo que no respectivo articulado de petição inicial dessa ação foram vertidas afirmações que reputam de ofensivas da honra e considerações.
No seguimento dessa queixa apresentada contra o ora arguido JS____, os ofendidos constituíram-se assistentes e deduziram acusação particular contra o mesmo com fundamento na factualidade articulada na petição inicial apresentada na sobredita ação n.º 222/20.8T8LSB.
A acusação particular não foi acompanhada pelo Ministério Público por não ter sido recolhido qualquer indício que permita concluir que o arguido determinou à Mandatária a utilização das expressões em causa, assim, apenas poderia ser imputada a prática dos factos à Mandatária subscritora da peça processual, no entanto, no momento da apresentação da queixa, os ora Assistentes optaram por expressamente excluir esta do âmbito deste processo.
Como já dissemos, na situação vertente, os factos alegadamente suscetíveis de integrar ilícitos criminais, no entender dos recorrentes, foram praticados no âmbito de uma ação judicial, concretamente as afirmações difamatórias foram vertidas no articulado de petição inicial.
Com efeito,  nas situações em que está  em causa alegadamente a prática de um facto ilícito,  por meio de peça processual subscrita por um advogado, a jurisprudência tem entendido que se poderá configurar três hipóteses, a saber: a) uma situação de responsabilidade criminal exclusiva de Advogado  - (os factos são descritos sem interferência do cliente )-; b) do mandante - (o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros com o objetivo de que o advogado os verta na peça processual, convencido de que correspondem à verdade) – c) ou responsabilidade conjunta – (o advogado transferiu para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse, após tê-lo advertido expressamente das consequências que daí podem advir, designadamente em termos penais).
A este propósito, importa ter presente que a peça processual foi subscrita por advogada, e não pelo próprio arguido,  sendo a advogada que redigiu o texto que corporiza o articulado de petição inicial onde se se integram as afirmações a que se alude na acusação, diga-se, além do mais, que algumas dessas afirmações que os assistentes consideram alegadamente ofensivas da honra e consideração - (tais como, entre outras sublinhadas a bold na acusação: tinha a intenção de fugir e abandonar a subempreitada;  tinha a intenção de fugir com os valores cobrados; tentou ludibriar a Autora; tinha clara intenção de para proveito próprio prejudicar e lesar patrimonialmente a requerente ignorando os princípios da boa-fé e do direito e o que estabeleceu e assinou; usou a sua intenção de enriquecimento ilícito para receber dinheiro e não cumprir obrigações,  justifica os atrasos com um monumental conjunto de mentiras) - são inócuas e irrelevantes para a defesa da pretensão da demandante, numa ação de responsabilidade civil contratual com fundamento no incumprimento de uma empreitada.
Mais importa ter em consideração que o advogado tem o dever de articular os factos necessários e úteis para a defesa da pretensão do cliente e, além disso,  efetuar a destrinça, análise e seleção da informação e dos dados que lhe são transmitido pelo cliente -(em bom rigor,  optar pelos factos concretos, pertinentes e integradores da causa de pedir em que estriba a pretensão) – com vista a estruturar a peça processual e também não usar linguagem menos correta ou com conteúdo alegadamente ofensivo da honra e consideração dos demais intervenientes nos autos.
Efetivamente, nos presentes autos não existem elementos que indiciem a responsabilidade exclusiva do arguido pelo ato produzido e praticado pela sua mandatária que o patrocinou nessa ação cível e escreveu o texto inserto nas peças processuais e as afirmações alegadamente ofensivas da honra e consideração.
Assim, a admitir-se que as alegadas expressões são suscetíveis de integrar um ilícito a autoria é da advogada e também da sua responsabilidade, na medida em que esta não podia desconhecer o eventual teor ofensivo das afirmações vertidas no articulado,  ou, então,  desta e do mandante, desde que tenha sido este a transmitir ao advogado tais afirmações no intuito de serem levados ao processo e ali inscritos.
Decorre da análise dos autos que não foi apresentada queixa contra a mandatária forense, que, reitere-se, teve intervenção direta e pessoal na elaboração e subscrição da peça processual, ocorrendo, portanto,  uma situação de comparticipação criminosa nos termos do artigo 26 do Código Penal, que estabelece que “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Prescreve o artigo 115.º n.º 3 do Código Penal que o “não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.
Esta norma é um reflexo da indivisibilidade da queixa, que se traduz em negar-se a titular do direito de queixa, em caso de comparticipação criminosa, a faculdade de escolher a pessoa que há-de ser punida.
Assim, no caso em apreço, também a advogada que subscreveu o articulado de petição inicial deveria ter sido visada na queixa, configurando a lei esta omissão como desistência, quer da queixa quer da acusação, que aproveita aos restantes, de onde resulta que o procedimento criminal não podia prosseguir contra qualquer dos comparticipantes conforme se extrai da norma do artigo 115.º n.º 3 do Código Penal.
Assim sendo, o despacho recorrido não merece, pois, censura.

V - Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes mantendo-se o decidido na 1ª instância nos seus precisos termos.
                                   
Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.
Notifique-se.

Lisboa, 9 de Novembro de 2022
Maria da Conceição Miranda
Rui Gonçalves
Isabel Ferreira de Castro