Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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Relator: | ROSA RIBEIRO COELHO | ||
Descritores: | LIVRANÇA INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/03/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | I – Mesmo depois da normalização do modelo e características das letras e livranças, imposta pelo Dec. Lei nº 387-G/87, de 30 de Dezembro, e concretizada pela Portaria nº 142/88, de 4 de Março (e outras que se lhe seguiram), nada impede que seja usado o anterior impresso de letra, já que tais modelos não podem ser vistos como constituindo elementos essenciais daqueles títulos. II – A inclusão da expressão “aliás, livrança” num impresso de letra, acompanhada da aposição de um “aval à firma subscritora”, conjugadas com um documento onde as partes verteram um acordo de preenchimento de título que denominaram de livrança, demonstram ter sido vontade real daquelas, relevante nos termos do art. 238º, nº 2 do C. Civil, a de ser emitida uma livrança, apesar de ter sido omitida a substituição da expressão “pagará(ão)” pelo usual dizer “pagarei(emos)”. III – Mesmo que se desconhecesse essa vontade real, a substituição de “letra” por “livrança” e o uso dos termos “firma subscritora” e “subscritor” apontariam de forma inequívoca para a realidade “livrança”, assim se interpretando o título à luz dos arts. 236º, nº 1 e 238º, nº 1 do C. Civil. (Sumário da Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA 7ª SESSÃO CÍVEL I – A e B deduziram oposição à execução que B, Lda., lhes move a eles e a outros, alegando, em síntese, a inexistência de títulos executivos, já que os apresentados foram elaborados em modelos de letras, nos quais se inscreveu a expressão “aliás livrança”, mantendo-se, porém, o dizer “pagará(ão)”; daí que, não contendo a promessa de pagamento que é requisito essencial da livrança, não possam os mesmos valer como livranças. Contestou a exequente, pugnando pela improcedência da oposição. Foi proferido saneador onde, conhecendo-se do mérito da causa, se julgou a oposição improcedente, declarando-se que nada obstava ao prosseguimento da execução. Contra tal decisão recorreu o executado/oponente B, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões: a) A exequente transformou letras de câmbio em livranças, mas manteve a expressão “pagará(ão)”, em vez de “pagarei(emos)”. Manteve-se a ordem de pagamento, característica das letras, em vez da promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada, nos termos do disposto no nº 2 do art. 75º da LULL; b) A promessa pura e simples de pagar uma quantia é requisito essencial da validade formal das livranças, pelo que a decisão recorrida viola as normas contidas no nº 2 do art. 75º da LULL; c) O juiz “a quo” decidiu, no saneador, sem julgamento, que a conversão das letras em livranças resultou da vontade inequívoca das partes. No entanto, o pacto de preenchimento não se confunde com o título de crédito, dada a natureza literal e abstracta deste. O conteúdo da obrigação cambiária só pode ser aquele que o título revela e não o que poderá emergir e quaisquer outros documentos; d) O pacto de preenchimento não dispensa o título de crédito de respeitar todos os requisitos previstos no art. 75º da LULL; e) Para além disso, atentos os articulados, esta “vontade das partes” constitui facto controvertido (art. 11º da contestação e 3º da resposta); f) Uma coisa é a autorização de preenchimento de uma livrança. Outra coisa, bem diversa, é a autorização e o conhecimento da transformação de uma letra em livrança, depois de aceite e avalizada. g) Ao decidir no saneador, o juiz “a quo” violou a norma contida no art. 511º, nº 1, do CPC, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 712º, pode ser ordenada a baixa dos autos para ser elaborada base instrutória e proferida decisão em conformidade. Nas contra-alegações apresentadas a exequente sustenta a improcedência da apelação. Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pelo apelante nas suas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso. II - Na sentença descrevem-se como provados os seguintes factos: 1. A execução a que estes autos se encontram apensos tem por base os documentos constantes de fls. 13-22 do processo de execução, no valor de, respectivamente, € 24.:46,32, € 24.843,96, € 23.849,91, € 23.802,42, € 22.033,25, € 21.924,79, € 22.529,63, € 22.526,98, € 22.522,14 e € 22.449,52, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e que correspondem a impressos que normalmente funcionam como letra e dos quais consta, respectivamente, «No seu vencimento pagará(ão) por esta única via de letra, aliás livrança a Asfaga Serviços de Aluguer e Gestão Auto, Lda.». 2. Nesses impressos consta, no lugar da assinatura do sacador, uma assinatura e no lugar destinado à identificação do sacado a menção «D, Lda., Rua …, no lugar destinado ao nome e morada/carimbo do sacador o carimbo da exequente e no lugar destinado ao aceite o carimbo da executada D, Lda.- A gerência, seguido de duas assinaturas. 3. No verso dos referidos documentos constam as assinaturas dos executados/oponentes, precedidas, cada uma, da expressão «Dou o meu aval à firma subscritora» e «Dou o meu aval ao subscritor» 4. Nos referidos documentos consta, ainda, no lugar destinado ao local e data de emissão o dizer «Porto, 06.03.06» e no lugar destinado ao vencimento a data «2006-03-16» e o dizer «Contrato n.° » seguido do número de cada contrato respectivamente, a saber contrato n.° …6, nº …5, nº ….4, nº ….3, nº ….2, nº …1, nº …5, nº …3, nº ….2, nº …..1, respectivamente. 5. Encontram-se juntos aos autos, a fls. 40-49, uns documentos intitulados «Termo de Autorização Para Preenchimento de Livrança», cujo teor se dá por integralmente reproduzido, contendo uma assinatura aposta sob um carimbo da executada D, Lda., e as assinaturas dos executados/opoentes, enquanto avalistas, referentes aos Contratos de Aluguer de Longa Duração nº ….2, …2, ….3, …5, …1, …2, …3, …4, …5,…6, autorizando a exequente a «preencher a livrança (...) pelo valor que corresponderá ao montante em dívida por força de eventual incumprimento do referido contrato calculado nos termos das suas cláusulas.» E está ainda provado que: 6. Em cada um desses termos “de Autorização Para Preenchimento de Livrança”, juntos aos autos em cópia a fls. 40-49, consta a menção de que é remetida pela executada à exequente uma livrança em branco, por ela subscrita, bem como a declaração, subscrita pelos executados, ora apelantes, e dirigida à exequente, no sentido de conhecerem “as condições contratuais do Contrato de Aluguer de Longa Duração nº (…), nomeadamente, que tal Contrato foi objecto de subscrição pelo Adquirente de uma livrança em branco, por nós avalizada, que vos foi entregue.” III – Nas suas linhas essenciais, os fundamentos que subjazeram à decisão emitida foram os seguintes: - A livrança distingue-se, na sua essência, da letra por configurar uma promessa de pagamento a determinada pessoa ou à sua ordem, enquanto a letra constitui uma ordem de pagamento. - Daí que nela tenha de constar a expressão “pagarei”, enquanto na letra deve figurar o dizer “pagará” que exprimem, respectivamente, as referidas promessa e ordem de pagamento. - Constando dos documentos dados à execução o descrito nos nºs 1 e 2 dos factos provados, mostram-se preenchidos os requisitos essenciais da livrança, nada obstando que os títulos valham como tal se essa tiver sido a vontade real das partes. - A intenção das partes de, efectivamente, se servirem de uma livrança resulta do facto de ter sido aposta a expressão “aliás livrança” no título, a qual, por si só, exprime uma promessa de pagamento e não uma ordem de pagamento e, ainda, do facto de os avales terem sido prestados expressamente a favor da subscritora. - A mesma intenção é ainda revelada pelo teor dos documentos de fls. 40-49, contendo uma assinatura aposta sob um carimbo da executada “Vinertes” e as assinaturas dos executados/oponentes, enquanto avalistas, e referentes aos contratos de aluguer aludidos nos títulos. São argumentos que, pela sua correcção, merecem a nossa total concordância. A isto contrapõe o recorrente a tese já invocada no requerimento de oposição segundo a qual, constando do título a expressão “pagará(ão)” em vez do dizer “pagarei”, não pode o mesmo valer como livrança por dele não constar a promessa pura e simples de pagamento, requisito essencial da validade formal de títulos dessa natureza. Em nosso entender, não lhe assiste razão. É certo que, por exigência do art. 75º, nº 2 da LULL, a livrança deve conter, além do mais que aqui não está em causa, uma promessa pura de pagar uma quantia determinada. E também é verdade que a expressão “pagará(ão)”, mantida no título, sendo própria da ordem de pagamento ínsita na letra, não é expressão cabal daquela exigida promessa, que melhor será traduzida pelo usual dizer “pagarei(emos)” e que no caso dos autos não substituiu aqueloutra expressão constante do impresso usado. Certo ainda que, originariamente, o art. 118ºdo Regulamento do Imposto de Selo estabelecia que as livranças eram passadas no papel das letras, exactamente porque então não havia, entre nós, um modelo oficial de impressos para livranças. Foi na sequência da alteração introduzida pelo art. 1º do Dec. Lei nº 387-G/87, de 30 de Dezembro, que este preceito passou a dispor que o modelo e características das letras e das livranças seriam estabelecidas em Portaria do Ministro das Finanças, na sequência do que veio a ser publicada a Portaria nº 142/88, de 4 de Março[1], em cujo preâmbulo se indicava o tratamento informático das letras e livranças como sendo o objectivo da normalização destes títulos, concretizada naquele Dec. Lei. E antes da referida normalização, para emissão de uma livrança era habitual substituir a palavra “letra”, inserta no único impresso existente, pela expressão “livrança”, substituir o dizer “pagará (ão)” pela expressão “pagarei(emos)”, apondo o subscritor a sua assinatura no espaço destinado à assinatura do sacador, palavra que era riscada.[2] Então, entendia-se correntemente que, sendo substituída pelas partes a expressão “letra” por “aliás, livrança”, o título respectivo valia como livrança por satisfazer os requisitos deste título; já quando se não emendava a expressão “pagará” por “pagarei”, duas teses opostas se desenhavam, uma no sentido de que o documento assim elaborado não valia como livrança – art. 76º da LULL – por não satisfazer os requisitos formais deste título, e outra, maioritária a nível jurisprudencial, segundo a qual se impunha, em tais casos, dar relevância determinante à vontade real das partes, em detrimento do rigor formal legalmente estabelecido para os títulos de crédito, nos termos dos arts. 236º e 238º do Código Civil.[3] Temos como indubitavelmente mais correcto o segundo destes entendimentos. Na verdade, integrando as obrigações cambiárias um negócio formal, vale quanto a elas a disciplina do mencionado art. 238º, segundo o qual, em negócios dessa natureza a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – nº1; todavia, esse sentido pode valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a tal validade – nº 2. Tudo está, pois, em saber qual terá sido essa vontade real. E, caso se conclua que a mesma foi no sentido da emissão de uma livrança, à validade do título como tal não obstará uma eventual expressão que dele conste em dissonância com a promessa pura e simples de pagamento da quantia nele referida.[4] A questão acabada de enunciar põe-se nos mesmos termos quando, como acontece no caso dos autos, havendo já modelos normalizados, as partes usam, fazendo perdurar prática seguida durante muitos anos, o impresso da letra, pois os modelos e impressos criados pelas referidas Portarias não podem, de modo algum, ser vistos como constituindo requisitos essenciais da livrança (ou da letra) – estes estabelecidos no art. 75º da LULL -, cuja falta seja sancionada pelos arts. 76º (ou 2º) da mesma Convenção. Retornando ao caso dos autos, entendemos que dos elementos de facto já apurados, supra descritos sob os nºs 1 a 6, se extrai, sem margem para dúvidas razoáveis, que a vontade real da executada e da exequente foi a de emissão de livranças, subscritas pela primeira a favor da segunda e avalizadas pelo ora apelante e por outro, como garantia de cumprimento por aquela de contratos de aluguer de longa duração celebrados pelas partes e aos quais se faz expressa referência em cada um dos títulos. Só assim se entende a substituição da expressão “letra” pelo dizer “livrança” – operada através da colocação da expressão “aliás livrança”, a seguir ao dizer “letra” -, substituição essa que, mesmo a ter sido feita pela exequente, foi inequivocamente aceite pelo executado, ora apelante, quando apôs a sua assinatura no verso dos títulos, por baixo dos dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora”. Igualmente a referência expressa, feita pelo apelante, à subscritora, revela à saciedade que a vontade dos intervenientes no título era a de emissão de livranças, já que a figura do subscritor, sendo própria deste título, é absolutamente estranha à letra; e isto, sendo do conhecimento geral no mundo dos negócios, era certamente sabido pelo recorrente. E, finalmente, o intuito inequívoco das partes no sentido da criação de livranças é também manifestado, de modo claro, no acordo de preenchimento de cada um dos títulos, em cujo âmbito, tanto a executada como os executados, entre os quais o ora apelante, declararam, de modo expresso e com referência concreta a um contrato de aluguer de longa duração, que autorizavam a exequente a «preencher a livrança (...) pelo valor que corresponderá ao montante em dívida por força de eventual incumprimento do referido contrato calculado nos termos das suas cláusulas.» - facto nº 5. Acresce que os títulos, desse modo qualificados pela executada, por ela subscritos e avalizados pelos executados, foram remetidos por aquela à exequente com o conhecimento do ora apelante que assim os denominou também, como se vê do facto nº 6, tudo isto relevando, claramente e sem margem para dúvidas, que a real vontade das partes foi a de emitir e avalizar livranças. Disto resulta a falta de razão do apelante nas críticas que dirige à sentença nas conclusões 2. a 7. Dir-se-á que, em face do declarado pelos executados nos ditos documentos de fls. 40-49, no sentido de serem livranças os títulos que, subscritos pela executada e avalizados por eles, foram enviados pela executada à exequente para garantir o bom cumprimento dos contratos de aluguer de longa, mal se entende – raiando até a má fé – que se continue a defender que não foi vontade das partes criar títulos de tal natureza e se alegue não ter havido autorização e conhecimento dos executados quanto à “transformação” das letras em livranças. É que o executado apelante apôs a sua assinatura no verso dos títulos em causa que, então, como agora, se mostravam corporizados em impressos de letras e, ainda assim, declarou que dava o seu aval à firma subscritora, o que pressupõe tratar-se de livranças, para o que necessariamente se imporia, se a mesma não tivesse sido já realizada, proceder à transformação efectivamente levada a cabo nos títulos. E continuou a referir-se aos títulos como livranças quando autorizou o seu preenchimento, o que revela o seu conhecimento no sentido de que os impressos de letras onde apôs o seu aval, para valerem como livranças haviam sofrido já ou teriam de sofrer a dita alteração. Daí que não faça o menor sentido pretender que os autos prossigam seus termos para averiguação da “vontade das partes”, que diz ser controvertida – conclusão 5. -, já que a vontade real destas se mostra apurada, não só em face do teor dos títulos, como em face das declarações prestadas pelos executados nos “termos de autorização para preenchimento de livrança” citados. Diga-se, por acréscimo, que uma outra ordem de razões sempre nos levaria a um resultado final idêntico, caso se não tivesse como demonstrada a vontade real das partes no sentido apontado. Na verdade, a desconhecer-se essa vontade real, seria de aplicar o disposto nos art. 236º, nº1 e 238º, nº 1 do C. Civil, considerando-se o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia deduzir do comportamento da contraparte. Dentro desta orientação deveria entender-se que a substituição de “letra” por “livrança” e o uso dos termos “firma subscritora” e “subscritor” apontariam de forma inequívoca para a realidade “livrança”, como já atrás se disse. Por isso os títulos em causa nunca poderiam, em bom entendimento, deixar de ser tidos como livranças incorporadoras de promessas de pagamento. Trata-se do único sentido que, embora expresso com alguma imperfeição facilmente superada pela interpretação do documento, poderia ser razoavelmente retido perante tais títulos, o que é bastante para que se tenha como observado o disposto no citado nº 1 do art. 238º. Impõe-se, pois, a improcedência do recurso. IV – Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, mantendo-se a sentença recorrida. Custas a cargo do apelante. Lisboa, 3 de Novembro de 2009 Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho Maria Amélia Ribeiro Graça Amaral ----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Seguida das Portarias nºs 545/88, de 12 de Agosto, 233/89, de 27 de Março, e 28/2000, de 27 de Janeiro [2] Cfr. o acórdão do STJ de 3.12.98 (Relator Ferreira Ramos), acessível em www.dgsi.pt. e citado na sentença impugnada. [3] Cfr. o mesmo acórdão do STJ e demais arestos nele mencionados, nomeadamente o Ac. do STJ de 31.01.1996 (Relator Sousa Inês), BMJ nº 453, pág. 509 e segs.. [4] Ainda no mesmo sentido, cfr. o acórdão do STJ de 13.03.2003 (Relator Moitinho de Almeida), acessível em www.dgsi.pt, proc. 02B4686 |