Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3798/19.9T8LSB.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: I) Tendo os então sócios-gerentes da 1.ª autora, ora 2.ª autora e 2.º réu, pretendido que a sociedade autora efetuasse uma aplicação com capitalização, em modalidade de seguro de vida, em que o beneficiário do seguro de vida fosse a tomadora de seguro – a própria sociedade 1.ª autora - para assim ser obtido o benefício fiscal correspondente à aplicação efetuada (“LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”) foi subscrito um plano de poupança-reforma (PPR), de um fundo de poupança, na modalidade de seguro do ramo “Vida”.
II) Não se trata de um puro seguro de vida, mas de um contrato de seguro que tem características de aforro, uma forma de investimento de quantias existentes no participante tomador, tendo em vista a subscrição ou reforço de capital para um plano de poupança-reforma.
III) Aos contratos de seguro em questão são aplicáveis, para além das disposições legais e contratuais inerentes à subscrição de qualquer seguro, também, o regime jurídico do D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho (que aprovou o novo regime jurídico dos planos de poupança-reforma, dos planos de poupança-educação e dos planos de poupança- reforma/educação, revogando o D.L. n.º 205/89, de 27 de junho), alterado pelo D.L. n.º 125/2009, de 22 de maio, pela Lei n.º 57/2012, de 9 de novembro e pela Lei n.º 44/2013, de 3 de julho.
IV) Os certificados nominativos de um fundo de poupança, que constituem o PPR, “podem ser subscritos por pessoas singulares ou por pessoas colectivas a favor e em nome dos seus trabalhadores” (cfr. artigo 1.º, n.º 4, do D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho.
V) O seguro de vida em questão, enquanto modalidade respeitante à subscrição de um PPR, não tem autonomia da operação de aforro em que o mesmo se insere, mas sim, intrínseca conexão, sendo, aliás, a operação de aforro que delimita os termos em que o seguro de vida poderá operar.
VI) A previsão normativa, constante do n.º 4 do artigo 1.º do D.L. n.º 158/2002, tem inequívoco conteúdo injuntivo - é possível a subscrição de certificados nominativos de um fundo de poupança, por pessoas singulares ou por pessoas coletivas, mas, neste último caso, apenas “a favor e em nome dos seus trabalhadores” – mas a mesma, ao invés, inviabiliza ou veda legalmente, a subscrição de tais produtos, quando a subscrição não tenha lugar a favor e em nome dos trabalhadores da pessoa coletiva.
VII) Assim, por desrespeito do disposto no artigo 1.º, n.º 4, do D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho, mostra-se ser nula, por contrária à lei, a estipulação contratual atinente à designação da sociedade autora como beneficiária do PPR, na modalidade de seguro de vida.
VIII) A nulidade não afeta todo o negócio, que, em conformidade com o disposto no artigo 292.º do CC, deverá ser objeto de redução, por a isso não se opor a vontade hipotética das partes, nem ocorrendo factualidade que contenda com o respeito pela boa fé, por regras formais ou por quaisquer normas imperativas.
IX) Nessa situação, não podendo validamente subsistir a designação beneficiária da sociedade, atento o disposto no n.º 4 do artigo 12.º das condições gerais dos contratos em questão, será entendido como beneficiário, em caso de vida, a própria Pessoa Segura.
X) Muito embora a 1.ª ré tenha emitido, em 02-01-2013 e, depois, em 09-01-2013, condições particulares distintas - mencionando nas primeiras, como beneficiário as pessoas seguras que subscreveram as propostas e, nas segundas, como beneficiária, a tomadora do seguro – sociedade autora – não se pode inferir de tal emissão abuso de direito relativamente à invocação de nulidade da estipulação beneficiária constante das ulteriores condições gerais, desconhecendo-se os termos que determinaram uma tal alteração.
XI) Do mesmo modo, da circunstância de a 1.ª ré ter pago, anteriormente, valores de seguros análogos sem ressalva ou obstáculo e de ter recebido as entradas de capital, ao longo dos anos, não advém alguma circunstância que determine a paralisação, por exercício abusivo, do direito de invocação da nulidade da estipulação beneficiária por parte da 1.ª ré, sendo que, tal recebimento se insere no normal desenvolvimento da execução contratual correspondente, não existindo alguma tutela de confiança frustrada nesse período, por banda da sociedade autora que, apenas em sede de pedido de reembolso do PPR, se viu confrontada com a invocação de não pagamento por parte da 1.ª ré, não se mostrando violado o disposto no artigo 334.º do CC.
(Sumário elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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1. S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA., MN e JB, identificados nos autos, instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e AN, também identificados nos autos, pedindo a condenação da 1.ª Ré a cumprir o contrato de seguro, nos termos contratados na apólice de seguro, e assim sendo, a pagar à 1.ª Autora o valor de € 60.000,00, correspondentes aos valores das quatro apólices no valor unitário de € 12.500,00 cada, acrescidos do valor de juros à taxa de 4% anuais, num período de cinco anos, totalizando o valor de € 10.000,00, porquanto na apólice contratada era a sociedade 1.ª Autora, a tomadora no contrato a beneficiária do seguro em caso de vida, nos termos que constam das apólices emitidas pela 1.ª Ré (…/…, emitida em 09/01/2013, …/…, emitida em 09/01/2013, …/…, emitida em 09/01/2013 e …/…, emitida em 09/01/2013).
Subsidiariamente ao primeiro pedido, caso se demonstre que a cláusula contratual que estabelecia a 1.ª Autora como tomadora e beneficiária do seguro é nula por ser contrária a legislação imperativa e na medida em que a identificação da sociedade Autora como beneficiária do seguro era condição essencial para a sua celebração, requerem que, nos termos dos artigos 285.º e seguintes do Código Civil, seja aplicável o regime legal de nulidade do negócio jurídico, o que determina como consequência necessária a restituição à sociedade tomadora do seguro de todas as verbas prestadas no respectivo âmbito dos contratos de seguro celebrados, acrescidos dos respectivos juros de mora estes, contabilizados à taxa de juro supletiva aplicável às obrigações comerciais, desde a data da interpelação para pagamento, até à data de integral pagamento.
Subsidiariamente, caso o 2.º Réu haja praticado qualquer acto, na qualidade de gerente da 1.ª Autora, no sentido de alteração aos termos contratuais dos seguros ou de alguma forma ter tido conhecimento de qualquer alteração ao teor das apólices e não tendo dado conhecimento às cessionárias da consequente diminuição dos activos da sociedade, deve o 2.º Réu ressarcir as mesmas no valor de € 30.000,00 que recebeu da 1.ª Ré que omitiu nas negociações de cessão de quotas, porquanto diminuiu o valor do activos da sociedade sem dar conhecimento aos cessionários e que seja a 1ª Ré condenada a pagar à 2.ª Autora o valor referente ao capital e juros relativas às apólices em que esta é pessoa segura.
Para o efeito, alegaram, em suma, que:
- A sociedade 1.ª Autora, em Dezembro de 2012, pretendeu contratar um seguro de vida com capitalização;
- O 2.º Réu, à data, era sócio gerente da 1.ª Autora e era também mediador de seguros;
- A sociedade 1.ª Autora pretendia com o seguro ter um seguro de capitalização, em que o beneficiário em caso de vida fosse a tomadora do seguro, ou seja, a sociedade 1.ª Autora;
- Assim, o mediador de seguros e 2.º Réu apresentou à sociedade Seguradora 1.ª Ré, na qualidade de mediador de seguro, quatro propostas de seguro no valor unitário de € 12.500,00, onde constava como beneficiária do valor segurado, o tomador do seguro, ou seja, a própria sociedade;
- A sociedade 1.ª Ré aceitou a proposta apresentada;
- Em 03-01-2013, a sociedade Autora recebeu as apólices e reparou que, ao contrário do que constava da sua proposta contratual e que havia sido aceite pela 1.ª Ré, figurava na apólice como beneficiário do seguro em caso de vida, a pessoa segura e não o tomador de seguro;
- A sociedade Autora contactou a 1.ª Ré, apontando para a existência do lapso e solicitando que a apólice fosse corrigida de acordo com a proposta apresentada e que haviam sido acordados e assim a 1.ª Ré, confirmando que se tinha tratado de um lapso, reformou as apólices;
- À data do vencimento dos seguros, a 1.ª Ré, sem qualquer aviso, ia fazer o pagamento não ao tomador que era a beneficiária em caso de vida, mas às pessoas singulares identificadas como pessoas seguras;
- A 1.ª Ré procedeu ao pagamento do valor do seguro ao 2.º Réu;
- O 2.º Réu foi sócio gerente da sociedade 1.ª Autora e cedeu as quotas de que era titular às Autoras;
- Em sede de acordo de partilhas e cessão de quotas foi avaliado o valor da sociedade, que determinou o valor da cessão de quotas; e
- O 2.º Réu pode ter praticado algum acto ou ter tido conhecimento de alguma alteração contratual sem informar a co-gerente da sociedade, a 2.ª Autora.
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2. O réu AN contestou, alegando, em suma que:
- Jamais actuou como mediador de seguros, nem preencheu qualquer proposta e nem contratou ou alterou qualquer seguro à revelia da 2.ª Autora;
- Com a 2.ª Autora, como únicos sócios da 1.ª Autora, optaram pela contratação de quatro planos de poupança reforma, em lugar de procederem, entre eles, à distribuição de uma parte dos lucros gerados pela sociedade, opção que se deveu a razões de ordem fiscal, para além de proporcionarem um bom rendimento;
- A alteração dos beneficiários ficou a dever-se a um lapso da 1.ª Ré ou a 2.ª Autora, excedendo os seus poderes de representação e à revelia do 2.º Réu, a promoveu; e
- Não constituindo os seguros de vida um activo da sociedade 1.ª Autora, mas uma aplicação feita em benefício dos seus gerentes, os mesmos não foram tidos em conta no apuramento do valor das quotas do 2.º Réu no capital social da 1.ª Autora.
Concluiu pela improcedência da acção.
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3. A ré FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. contestou, alegando, em síntese, que:
- Das propostas em causa nos autos, consta expressamente, no topo superior direito de cada uma delas, que “Este seguro será subscrito ao abrigo do disposto no art.º 23 do CIRC” e também consta que “os benefícios atribuídos no âmbito deste contrato são considerados direitos adquiridos e individualizados da Pessoa Segura, e como tal sujeitos, nos termos do art.º 2.º do CIRS a tributação como rendimentos de trabalho dependente – Categoria “A” de IRS”;
- Nunca, quer nos termos legais, quer nos contratuais, os contratos de seguro poderiam ter por beneficiária a própria sociedade tomadora do seguro;
- Eventualmente, por erro, foram emitidas novas condições particulares, nas quais figura como beneficiária a Autora sociedade, mas tais condições particulares não podem ser havidas como vinculativas pois as mesmas violam a lei;
- No termo do prazo dos contratos de seguro, a Ré emitiu a favor da 2.ª Autora os recibos de pagamento, bem como os recibos de pagamento a favor do 2.º Réu; e
- A 2.ª Autora recusou recebê-los e o 2.ª Réu aceitou receber os valores respeitantes ao resgate das apólices de que era beneficiário.
Concluiu no sentido de serem os contratos declarados parcialmente nulos no que respeita ao conteúdo da cláusula beneficiária deles constante, a qual deve ser reduzida por forma a que o beneficiário em caso de vida de cada um deles seja o que deles é a pessoa segura e que seja a Ré absolvida dos pedidos formulados pelas Autoras, sem embargo de a 2.ª Ré ter direito a receber da Ré, em singelo e sem quaisquer juros moratórios, as prestações que lhe são devidas a título de resgate e lhe foram oferecidas a 8 de Janeiro de 2018.
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4. Realizou-se audiência prévia, na qual se procedeu à prolação de despacho saneador, julgando-se procedente a ineptidão quanto à 2.ª parte do pedido formulado em 3.º lugar e em consequência, foi absolvida a 1.ª Ré da instância nessa parte e foi proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.
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5. Teve lugar a realização de audiência de discussão e julgamento, após o que, em 18-02-2022, foi proferida sentença que decidiu “julgar procedente o pedido principal formulado” e, em consequência, condenar “a Ré FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar à 1.ª Autora S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA. o valor de € 60.000,00 (sessenta mil Euros)”.
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6. Não se conformando com a referida decisão, dela apela a ré FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, .S.A, pugnando pela revogação da mesma e substituição da decisão por outra que a absolvesse do pedido, tendo formulado as seguintes conclusões:
“(…) 1. no topo superior direito de cada uma das propostas de seguro “sub judice” expressamente consta que “Este seguro será subscrito ao abrigo do disposto no artº 23 do CIRC”
2. os contratos de seguro “sub judice”, nos quais a A. sociedade é tomadora, consubstanciam e têm a natureza de produtos financeiros submetidos ao regime legal previsto no CIRC (Código do Imposto de Rendimento das Pessoas Coletivas).
3. nos termos do disposto no artº 23, nº 2 do referido diploma legal, “são dedutíveis os custos da empresa sujeito passivo de IRC (no caso a Sociedade A.) com “os gastos de natureza administrativa, tais como remunerações, incluindo as atribuídas a título de participação nos lucros, ajudas de custo, material de consumo corrente, transportes e comunicações, rendas, contencioso, seguros, incluindo os de vida, doença ou saúde e operações do ramo «Vida», contribuições para fundos de poupança-reforma, contribuições para fundos de pensões e para quaisquer regimes complementares da segurança social, bem como gastos com benefícios de cessação de emprego e outros benefícios pós-emprego ou a longo prazo dos empregados”)
4. no campo 5 das propostas de seguro “sub judice” consta que, “os benefícios atribuídos no âmbito deste contrato são considerados direitos adquiridos e individualizados da Pessoa Segura, e como tal sujeitos, nos termos do artº 2º do CIRS a tributação como rendimentos de trabalho dependente – Categoria “A” de IRS”.
5. o Decreto-Lei nº 158/2002 de 2 de julho, diploma legal que estabelece o regime legal dos PPR e, por isso, vincula todas as partes na presente ação, incluindo a Ré seguradora, dispõe no seu artº 1º, nº 4 que “os certificados nominativos de um fundo de poupança podem ser subscritos por pessoas singulares ou por pessoas coletivas a favor e em nome dos seus trabalhadores.”…
6. … o que manifestamente significa que a Lei limita e impõe que tal tipo de produtos financeiros, como também o são os contratos de seguro que nos presentes autos se discutem, não possam em caso algum, ser emitidos (o que nos presente caso significa “subscritos”) por pessoas coletivas, por forma a que, os benefícios deles decorrentes venham, a final, a reverter a favor delas próprias, pessoas coletivas …
7 … Exigência essa que, no caso dos autos, para além de proibir que a A. sociedade possa ser beneficiária do contrato em caso de morte de qualquer das pessoas seguras (o que se não discute pois é essa mesma a previsão estabelecida nos contratos “sub judice”), de igual modo impõe para o caso de os respetivos resgates ocorrerem em caso de vida de cada uma das pessoas seguras (em razão da ocorrência da maturidade da aplicação),…
8 … Independentemente do que a tal respeito esteja plasmado nos textos contratuais, pelo que nunca a cláusula beneficiária poderia ser estabelecida a favor da A. sociedade, mas sim e somente a favor dos seus trabalhadores (expressão aí usada em sentido amplo, que no caso abrange necessariamente os respetivos gerentes, como o eram a A. MN e o Réu AN).
9. a sobredita cláusula, como tal constante da proposta, sempre e assim será nula nos termos do disposto no artº 280 do Código Civil (e até eventualmente simulado o negócio em que a mesma se consubstancia, igualmente nulo, nos termos do disposto no artº. 240 do referido Código).
10. nulidade essa oponível também à ora recorrente, se com ela compactuasse, pois que, nesse conspecto, configurava um negócio contrário à lei,
11. razão pela qual, nos termos do disposto nos artºs. 292 e 293 do Código Civil, que expressamente preveem e permitem a redução e convolação do negócio nulo, e em respeito pelas supra referidas normas legais, e contratuais, no momento da maturidade dos sobreditos contratos de seguro, e estando vivas as pessoas seguras, a Ré Fidelidade ora recorrente, uma vez que lhe estava legalmente vedada a entrega do “capital investido” (e respetivo rendimento), à Autora sociedade, propôs-se entregá-lo a cada uma das pessoas seguras, designadas pela dita A. sociedade, tendo procedido à retenção na fonte, do correspondente imposto por cada uma delas, única maneira que cumprir, com respeito pelo enquadramento legal aplicável, e como modo de evitar a prática de ato ferido de ilegalidade, os contratos de seguro que nos autos se discutem, dos quais a A. sociedade era a tomadora e de uns era pessoa segura a A. MN e do outro, AN.
12. ao decidir como decidiu, a douta sentença proferida violou as disposições legais referidas nas conclusões 1, 3, 4, 5, 9, 10 e 11 supra,
13. pelo que deve ser substituída por outra que, aplicando ao caso dos autos as supra citadas normas legais de natureza substantiva, considere nula a nomeação da A. sociedade como beneficiária em caso de resgate em vida, dos capitais aplicados e respetivos rendimentos, por referência às pessoas seguras A. MN e AN e em consequência absolva a Ré ora recorrente do pedido, com todas as consequências legais (…)”.
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7. Igualmente não se conformando com a referida decisão, dela apela o réu AN, pugnando pela revogação da mesma, tendo formulado as seguintes conclusões:
“(…) 1. LEGITIMIDADE DO APELANTE PARA RECORRER
a) Embora a, aliás douta, sentença recorrida, não o vise directamente (pois que o dispositivo limitou-se a condenar a Ré Companhia de Seguros Fidelidade a pagar à A. € 60.000,00 de capital e rendimento garantido de quatro apólices de seguros do ramo vida), o R. aqui apelante é prejudicado, directa e efectivamente, pela decisão ora posta em crise, uma vez que recebeu da 1ª. Ré o capital e rendimento de duas das apólices de seguro em causa nestes autos, pelo que dispõe de legitimidade para recorrer, por força do preceituado no nº. 2 do art. 631º. do Código de Processo Civil.
2. SINOPSE
b) Em 2012, a 2ª. A e o 2º. R. eram os únicos sócios e gerentes da S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares, Lda., ora 1ª. apelada, situação que se manteve até 21 de Setembro de 2017, data em que o ora apelante cedeu as quotas que nela detinha – factos provados 3, 15 e 16;
c) Em Dezembro de 2012, a ora 1ª. apelada celebrou com a 1ª. Ré quatro seguros de vida com capitalização, dois em que figurava como pessoa segura o ora apelante e dois em que figurava como pessoa segura a ora 2ª. apelada, encontrando-se esses contratos subscritos, dois a dois, pelas pessoas seguras e simultaneamente legais representantes da sociedade tomadora dos seguros – facto provado 6;
d) Por razões não apuradas nos autos, as quatro apólices emitidas em 2 de Janeiro de 2013, tendo como beneficiários, em caso de vida, as pessoas seguras (em duas delas o ora apelante e nas outras duas a ora 2ª. apelada), foram objecto de segundas vias (pois os números delas são os mesmos), datadas de 9 e 13 de Janeiro de 2013, constando destas que o beneficiário, em caso de vida, seria o “tomador do seguro”, isto é, a S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares, Lda., ora 1ª. apelada – factos provados 8 e 9;
e) Consta dos impressos dos contratos de seguro em causa, de que a 1ª. apelada foi tomadora, a menção de que os mesmos eram subscritos ao abrigo do art. 23º. do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – facto provado 18;
f) Nos quatro contratos de seguro sub judice, a S.E.E.C., Lda., ora 1ª. recorrida (representada em dois deles pelo aqui recorrente e nos outros dois pela ora 2ª. recorrida) declarou que: (i) a subscrição era feita ao abrigo do art 23º. do CIRC; (ii) na qualidade de tomadora do seguro tomara conhecimento de que os benefícios atribuídos no âmbito do contrato eram considerados “direitos adquiridos e individualizados das pessoas seguras ecomo tal sujeitos a tributação como rendimentos de  trabalho dependente” e (iii) existia “renúncia expressa à alteração da cláusula beneficiária” – facto provado 19;
g) Consta do art. 12º. das condições gerais dos contratos de seguro em apreço, além do mais, que, quando a subscrição é efectuada por uma pessoa colectiva a favor e em nome dos seus trabalhadores, a designação de beneficiários cabe à pessoa segura – facto provado 20;
h) No termo do prazo dos contratos de seguro, a Ré Fidelidade emitiu a favor da 2ª. A. os recibos para o pagamento de duas verbas no montante unitário de € 14.991,51, correspondente ao capital investido e juros contratualmente devidos, tendo emitido outros dois, semelhantes, em nome do ora apelante – factos provados 21 e 22;
i) O ora apelante recebeu os montantes correspondentes às duas apólices em que figurava como “pessoa segura”, tendo a 2ª. A. recusado o pagamento que a 1ª. Ré lhe ofereceu – factos provados 14 e 23.
j) A 1ª. A. intentou a presente acção peticionando, a título principal, a condenação da 1ª. Ré a pagar-lhe € 60.000,00, correspondentes ao capital e juros do conjunto das várias apólices em causa, alegando ser ela a beneficiária em caso de vida das pessoas seguras;
k) Subsidiariamente, as três AA. (na qualidade de cessionárias das quotas que o 2º. R. deteve no capital da primeira delas) peticionaram a condenação do ora apelante a entregar-lhes o montante que recebeu da Companhia de Seguros Ré, relativamente aos dois contratos em que era ele a pessoa segura.
3. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
l) Em face de duas versões antagónicas trazidas ao processo (a 2ª. A. sustenta que a 1ª. A. pretendeu, ao contratar os seguros, fazer uma aplicação financeira de que fosse beneficiária a própria sociedade, enquanto que o ora apelante defende que a contratação dos seguros em causa foi uma forma de distribuir lucros pelos dois únicos sócios da tomadora, com benefícios fiscais para esta de que aqueles aproveitavam, indirectamente), a Mma. Juiz a quo deu acolhimento à versão das AA.;
m) As AA. não arrolaram qualquer testemunha, tendo-se a prova pessoal por elas produzida cingido às declarações de parte da ora 2ª. apelada;
n) Na fundamentação da matéria de facto a Mma. Juiz a quo consignou que “as declarações de parte da 2ª. A. e do 2º. R. foram pouco esclarecedoras (…) não elucidando factos para além dos que provêm dos documentos juntos aos autos”;
o) As declarações de parte prestadas pelo ora apelante – transcritas e balizadas, na parte pertinente, no corpo das presentes alegações – em conjunto com as regras da experiência comum e as da repartição do ónus da prova (que cabia às AA.) impõem que se dê como não provado o facto 5, seja alterada a redacção do facto provado 2 e se dêem como provados os factos não provados i) e j) da, aliás douta, sentença recorrida.
4. DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO
p) A questão primordial de direito a decidir nestes autos é a de saber se era lícito à 1ª. A. – uma sociedade comercial – subscrever, como tomadora, seguros de vida de capitalização em que as pessoas seguras fossem trabalhadores seus, mas de que fosse ela a beneficiária;
q) Os seguros de vida em causa nestes autos estão sujeitos ao regime jurídico dos planos poupança reforma, regulados pelo Dec.-Lei nº. 158/2002, de 2 de Julho;
r) Nos termos do nº. 4 do art. 1º. do Dec.-Lei nº. 158/2002, os seguros de vida do tipo dos em causa nos autos apenas podem ser subscritos por pessoas colectivas a favor e em nome dos seus trabalhadores;
s) A 1ª. A., pessoa colectiva, não dispunha de capacidade jurídica para celebrar contratos de seguro de vida/PPR em que fosse ela própria a beneficiária;
t) A impossibilidade – legal – de uma pessoa colectiva serbeneficiária de um PPR obsta a que o trabalhador  beneficiário lhe atribua essa qualidade, comportamento que defraudaria a lei;
u) A ilicitude cometida não radica apenas na questão dos benefícios fiscais, em sede de IRC, concedidos às pessoas colectivas que tomem seguros de vida em nome e a favor dos seus trabalhadores;
v) O desrespeito pela norma por último citada determina a nulidade da cláusula contrária à lei, nos termos do nº. 1 do art. 280º. do Código Civil;
w) Não se encontrando provada (facto não provado e)) a essencialidade da cláusula nula para a formação da vontade de contratar da 1ª. A. – que era expressa e determinada pelos seus gerentes, ora apelante e ora 2ª. apelada –, a nulidade da cláusula em que é designada a 1ª. A. como beneficiária dos seguros de vida não determina a invalidade do contrato, por força do disposto no art. 292º. do Código Civil;
x) Quando os seguros foram contratados, era indiferente para a 2ª. A. que fosse ela ou a 1ª. A. a beneficiária, uma vez que era dona de metade do capital da S.E:E:C., Lda. e beneficiária de metade do investimento feito nos seguros de vida;
y) Nos contratos assinados pela 2ª. A. (também) em representação da 1ª. A. constavam as declarações  transcritas na conclusão f) supra, integrando a presente acção um clamoroso caso de abuso do direito, na modalidade venire contra factum proprium;
z) Devendo os contratos ser pontualmente cumpridos (C.Civil, art. 406º., nº. 1), a 1ª. Ré agiu correctamente quando ofereceu o pagamento do capital dos seguros a quem deles teria de ser beneficiário por força da lei;
aa) A Mma. Juiz a quo procedeu, na, aliás douta, sentença recorrida, a errado julgamento da matéria de facto e também a errada interpretação e aplicação do art. 1º., nº. 4, do Dec.-Lei nº. 158/2002, de 2 de Julho e dos arts. 342º., nº. 1, 280º., nº. 1, 292º. e 406º., nº. 1, do Código Civil”.
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8. A recorrida S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA. contra-alegou pugnando improcedência do recurso, com confirmação da sentença recorrida.
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9. Por despacho de 27-04-2022 foi admitido o requerimento recursório.
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10. Foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
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I) Impugnação da matéria de facto:
A) Se deve ser dado como não provado o facto 5, se deve ser alterada a redacção do facto provado 2 para: “A sociedade Autora S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA., em Dezembro de 2012, pretendeu contratar um seguro de vida com capitalização, em benefício dos seus gerentes” e se devem ser dados como provados os factos não provados i) e j)?
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II) Mérito dos recursos:
B) Se é nula, por contrária à lei, a cláusula que designou a autora sociedade, como beneficiária dos capitais seguros, em seguros de capitalização subscritos, em caso de resgate em vida, dos capitais aplicados e respetivos rendimentos, por referência às pessoas seguras A. MN e AN, nos termos dos artigos 1.º, n.º 4, do Decreto-Lei nº 158/2002 de 2 de julho e 280.º, n.º 1, do CC?
C) Se foi simulado, sendo nulo, o negócio dos autos, nos termos do disposto no artigo 240.º do CC?
D) Se o negócio deve ser reduzido e convolado, nos termos do artigo 292.º do CC, com entrega do capital investido e respetivo rendimento a cada uma das pessoas seguras?
E) Se relativamente aos contratos assinados pela 2.ª autora em representação da 1.ª autora a presente acção constitui abuso de direito, na modalidade “venire contra factum proprium”?
F) Se constitui abuso de direito a invocação de nulidade pela 1.ª ré?
G) Se procede a pretensão subsidiária de condenação do 2.º réu no pagamento do valor de € 30.000,00?
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3. Fundamentação de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1) A sociedade 1.ª Ré FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. resultou da fusão por incorporação da sociedade IMPÉRIO BONANÇA com a sociedade FIDELIDADE MUNDIAL.
2) A sociedade Autora S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA., em Dezembro de 2012, pretendeu contratar um seguro de vida com capitalização.
3) O 2.º Réu AN, à data, era sócio gerente da 1.ª Autora.
4) E à data era mediador de seguros, identificado com o n.º de agente 01724326.
5) A sociedade 1.ª Autora pretendia com o seguro ter um seguro de capitalização, em que o beneficiário em caso de vida fosse a tomadora do seguro, ou seja, a sociedade 1.ª Autora.
6) Para o efeito, foi apresentado à sociedade seguradora 1.ª Ré quatro propostas de seguro no valor unitário de € 12.500,00, sendo duas em que consta como Pessoa Segura a 2.ª Autora MN e assinadas por esta e outras duas em que consta como Pessoa Segura o 2.º Réu AN e assinadas por este.
7) Dessas propostas consta como beneficiária, em caso de vida, o tomador do seguro, ou seja, a própria sociedade.
8) A 1.ª Ré emitiu, em 2 de Janeiro de 2013, as seguintes apólices:
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura AN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura AN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura.
9) A 1.ª Ré emitiu, em 9 de Janeiro de 2013, as seguintes apólices:
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura AN e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura AN e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro.
10) Cada uma destas apólices no valor de € 12.500,00, no valor total de € 50.000,00, valor que à data do resgate seria acrescido dos juros respectivos, à taxa de 4% garantidos por ano de vigência do contrato, ou seja, € 500,00 por cada ano de vigência de contrato, por cada apólice.
11) A sociedade Autora cumpriu pontualmente as entregas de capital previstas nas condições de subscrição do seguro.
12) Em data não apurada, o Ilustre Mandatário da sociedade 1.ª Autora remeteu comunicação à 1.ª Ré, com o seguinte teor:
“Assunto: Contratos de seguro Levexpert PPR – Série X, com os números de apólice …/…, emitida em 09/01/2013, …/…, emitida em 09/01/2013, …/…, emitida em 09/01/2018, …/…., emitida em 09/01/2013,
Dirijo-me a V. Exas. na qualidade de mandatário constituído da sociedade tomadora dos seguros com as apólices acima referidas, a sociedade S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares Lda, sociedade (…).
A sociedade acima referida e tomadora dos seguros acima referidos, constituiu os seguros acima referidos, através de uma proposta subscrita pela sociedade e entregue ao mediador de seguros AN, titular do nº de agente …, em 31/12/2012.
Nesta proposta de seguro subscrita pela sociedade, foi indicada como beneficiária em caso de vida do seguro, o tomador, ou seja, a sociedade S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares, Lda,
Por outro lado, a sociedade tomadora, recebeu também as respectivas apólices emitidas por Império Bonança, de onde constava igualmente que, o beneficiário em caso de vida é o tomador do seguro ou seja a sociedade acima referida.
Contudo, chegou ao conhecimento da sociedade tomadora dos seguros acima referidos, que, apesar de inexistir qualquer óbito das pessoas seguras, V. Exªs, se encontram na iminência de proceder ao pagamento do capital não ao tomador do seguro, mas às pessoas singulares seguras.
Tal circunstância, porque não encontra qualquer suporte nos documentos subscritos pela sociedade, nem nas cópias das apólices em poder da sociedade tomadora, carece assim de fundamento.
Pelo que, se intima V. Ex.as a:
I – Não procederem a qualquer pagamento, até que esteja completamente esclarecido o regime aplicável aos seguros acima referidos, em caso de vida das pessoas singulares seguras,
II – Remeterem à sociedade tomadora cópias de todos os elementos documentais referentes aos seguros acima referidos, designadamente proposta de seguro, cópias de apólice e condições particulares.
(…)”.
13) Por carta de 15 de Março de 2018, veio a 1.ª Ré respondeu ao Ilustre Mandatário das Autoras, com o seguinte teor:
“Assunto: Apls …/… e …/… PSª NA Apls …/…. e …/… PSª MN
Exmo Senhor,
Em referência à comunicação recebida a 22 do mês findo, que mereceu a nossa melhor atenção, cumpre-nos esclarecer o seguinte:
Pagamento devido aos beneficiários em caso de vida
Nos termos da lei e das condições gerais dos contratos de seguro celebrados e acima referenciados, procedeu esta seguradora, no termo dos mesmos, ao pagamento das indemnizações devidas aos beneficiários (em caso de vida).
Efetivamente, esta seguradora está impedida de aceitar as alterações às condições contratuais solicitadas em 09.01.2013, no que se refere à substituição dos beneficiários pela própria tomadora de seguro, pelo facto de tal alteração ser contrária à lei, violando, entre outros, o disposto no D.L. 158/2002 de 2 de Julho.
Cópia dos elementos documentais referentes aos seguros referidos
Os documentos solicitados, encontram-se na posse da sua cliente, por, em devido tempo, e de acordo com as condições gerais da apólice terem sido remetidas à tomadora de seguro.
Não obstante tal facto, seguem em anexo as cópias das propostas de seguro; as condições particulares referentes à subscrição das apólices, emitidas em 02/01/2013; e as actas referentes aos pedidos de alteração dos beneficiários, com a ressalva de que as mesmas, apesar de emitidas por esta seguradora, são, efetivamente, inválidas e ineficazes, pelas razões acima referidas.
(…)”.
14) A 1.ª Ré procedeu ao pagamento do valor seguro ao 2.º Réu, em data não concretamente apurada.
15) O 2.º Réu é irmão da 2.ª Autora e foi sócio gerente da sociedade 1.ª Autora até 21 de Setembro de 2017.
16) Nessa data, o 2.º Réu cedeu as quotas de que era titular na sociedade 1.ª Autora às 1.ª, 2.ª e 3.ª Autoras.
17) Dos Considerandos constantes do “CONTRATO-PROMESSA DE DIVISÃO E CESSÕES DE QUOTAS, PERMUTA, DOAÇÃO, COMPRA E VENDA E PARTILHAS”, celebrado entre MN (Primeira Outorgante), AN (Segundo Outorgante), JB (Terceira Outorgante), S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA. (Quarta Outorgante) e CERRO DA MARINA – EXPLORAÇÕES TURÍSTICAS E HOTELEIRAS, LDA. (Quinta Outorgante), consta:
“(…)
B. A PRIMEIRA e o SEGUNDO OUTORGANTES são os únicos sócios da S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares Lda., aqui QUARTA OUTORGANTE, (…).
(…)
E. A QUARTA OUTORGANTE é proprietária dos seguintes imóveis:
(…)
F. A QUARTA OUTORGANTE é titular dos seguintes bens e direitos, para além dos imóveis identificados no Considerando E anterior:
1. Valores em caixa e depositados ou aplicados nos Bancos;
2. Créditos sobre clientes;
3. Títulos obrigacionistas, no valor nominal de € 100.000,00 (cem mil euros), emitidos pela sociedade Rio Forte, S.A., actualmente em estado de insolvência;
4. Bens móveis e equipamento afectos à exploração do Hotel do Cerro e outros activos corpóreos e incorpóreos relevados na escrita contabilística;
5. Veículos automóveis com as matrículas nºs …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, livres de quaisquer ónus ou encargos.
(…)”.
18) No topo superior direito de cada uma das propostas consta “Este seguro será subscrito ao abrigo do artigo 23.º do Código de IRC”.
19) Em cada uma das propostas consta no ponto 4 das “Declarações”, o seguinte:
“4. Subscrição ao abrigo do artigo 23.º do CIRC
- Na qualidade de Tomador de Seguro tomo conhecimento de que nos termos dos artigos 23.º do CIRC e 2.º do CIRS, os benefícios atribuídos no âmbito do contrato são considerados “Direitos Adquiridos e Individualizados” das Pessoas Seguras, e como tal, sujeitos a tributação como rendimentos de trabalho dependente (Cat. A do IRS): declaro ainda que, nos termos das Condições Gerais, existe renúncia expressa à alteração da cláusula beneficiária.
- Na qualidade de Pessoa Segura, declaro consentir na elaboração deste contrato e aceitar expressamente o benefício em vida a meu favor, conferindo-me assim o direito adquirido e individualizado, considerado rendimento de trabalho dependente nos termos do n.º 3 da alínea b) do artigo 2.º do CIRS e, como tal, sujeito a retenção na fonte.”.
20) Dispõe o artigo 12.º das Condições Gerais do contrato de seguro LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500, com a epígrafe “BENEFICIÁRIOS”:
“1. Os Beneficiários do contrato são designados na proposta pelo Tomador do Seguro, que os pode alterar em qualquer momento da vigência do contrato, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2. Quando a subscrição é efetuada por uma pessoa coletiva a favor e em nome dos seus trabalhadores a designação de beneficiários cabe à pessoa segura.
3. A alteração dos Beneficiários só será válida a partir do momento em que o Segurador tenha recebido a correspondente comunicação por escrito ou por outro meio do qual fique registo duradouro, devendo tal alteração constar de Ata Adicional.
4. Não havendo no contrato designação de Beneficiário, será Beneficiário, em caso de vida, a própria Pessoa Segura e, em caso de morte, serão Beneficiários os herdeiros da Pessoa Segura.
5. Sempre que o Tomador do Seguro e a Pessoa Segura sejam pessoas distintas, é necessário o acordo escrito da Pessoa Segura para a transmissão da posição de Beneficiário, seja a que título for.
6. O direito de alterar os Beneficiários cessa no momento em que estes adquiram o direito ao pagamento das importâncias seguras.
7. A cláusula beneficiária será considerada irrevogável sempre que exista aceitação do benefício por parte do Beneficiário e renúncia expressa, por parte do titular do direito a nomear beneficiários, a alterar a designação.
8. A renúncia ao direito de alterar a cláusula beneficiária, bem como a aceitação do Beneficiário, deverão constar de documento escrito cuja validade depende da efetiva comunicação ao Segurador.
9. Sendo a cláusula beneficiária irrevogável, será necessário o acordo prévio do Beneficiário para o Tomador do Seguro ou a Pessoa Segura, esta última quando a subscrição é efetuada por uma pessoa coletiva a favor e em nome dos seus trabalhadores, proceder ao exercício de qualquer direito ou faculdade de modificar as condições contratuais ou de resolver o contrato, sempre que tal modificação tenha incidência sobre os direitos do Beneficiário.
10. O Tomador do Seguro ou a Pessoa Segura, esta última quando a subscrição é efetuada por uma pessoa coletiva a favor e em nome dos seus trabalhadores, pode readquirir o direito pleno ao exercício das garantias contratuais se o Beneficiário Aceitante comunicar por escrito ao Segurador que deixou de ter interesse no benefício.”
21) No termo do prazo dos contratos de seguro, a Ré emitiu a favor da 2.ª Autora MN os recibos para pagamento das quantias de € 14.991,51 e de € 14.991,51, correspondentes à entrega à mesma, do capital investido e juros contratualmente devidos e vencidos, deduzido do valor respeitante à retenção de IRS.
22) De igual modo, a 1.ª Ré procedeu à emissão dos recibos para pagamento a favor do 2.º Réu AN.
23) A 2.ª Autora recusou receber os valores.
24) Consta dos Balancetes Analíticos da sociedade 1.ª Autora, nos anos de 2013 a 2017, o activo financeiro correspondente ao “Seguro Império Bonança / Levexpert PPR – Série X”, no valor de € 50.000,00.
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
a) Que tenha sido o 2.º réu, como mediador de seguros a apresentar à 1.ª Ré as quatro propostas de seguro.
b) Em 3 de Janeiro de 2013, a sociedade Autora reparou que, ao contrário do que constava da sua proposta contratual e que havia sido aceite pela 1.ª Ré, figurava como beneficiário do seguro em caso de vida, a pessoa segura e não o tomador de seguro.
c) A sociedade Autora, dando-se conta do lapso, contactou de imediato a 1.ª Ré, apontando para a existência do lapso e solicitando que a apólice fosse corrigida de acordo com os termos da proposta apresentada e que haviam sido acordados.
d) E assim sendo, a 1.ª Ré confirmou que se tinha tratado de um lapso.
e) A 1.ª Ré em momento algum podia ignorar a essencialidade para a 1.ª Autora da cláusula que indica como beneficiário, em caso de vida, o tomador de seguro.
f) Em sede de acordo de partilhas e cessão de quotas foi avaliado o valor da sociedade e considerados os valores depositados e aplicados em Bancos, créditos, e demais bens que se encontraram vertidos na contabilidade como activos, para determinação do valor da sociedade e que determinou igualmente o valor da cessão de quotas.
g) Aquando da cessão de quotas, a sociedade foi avaliada com base, entre outros elementos, no valor dos activos presentes e futuros de que era titular como se encontravam reflectidos na contabilidade.
h) O valor de cessão de quotas seria inferior, caso fosse do conhecimento dos cessionários que a sociedade não receberia o valor do prémio, aquando do vencimento da apólice.
i) A 2.ª Autora e o 2.º Réu, como únicos sócios que eram da 1.ª Autora, optaram pela contratação de quatro Planos de Poupança Reforma, em lugar de procederem, entre eles, à distribuição de uma parte dos lucros gerados pela sociedade.
j) Essa opção deveu-se a razões de ordem fiscal, para além de proporcionarem um bom rendimento.
k) Sempre foi entendido entre a 2.ª Autora e o 2.º Réu que o benefício colhido desses PPR seria para distribuir por eles, em partes iguais.
l) Os seguros de vida não foram tidos em conta na avaliação da 1.ª Autora.
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4. Fundamentação de Direito:
Vejamos o recurso apresentado, apreciando as questões supra enunciadas.
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I) Impugnação da matéria de facto:
Conclui o recorrente AN, na alegação de recurso – conclusões l) a o) - que:
“l) Em face de duas versões antagónicas trazidas ao processo (a 2ª. A. sustenta que a 1ª. A. pretendeu, ao contratar os seguros, fazer uma aplicação financeira de que fosse beneficiária a própria sociedade, enquanto que o ora apelante defende que a contratação dos seguros em causa foi uma forma de distribuir lucros pelos dois únicos sócios da tomadora, com benefícios fiscais para esta de que aqueles aproveitavam, indirectamente), a Mma. Juiz a quo deu acolhimento à versão das AA.;
m) As AA. não arrolaram qualquer testemunha, tendo-se a prova pessoal por elas produzida cingido às declarações de parte da ora 2ª. apelada;
n) Na fundamentação da matéria de facto a Mma. Juiz a quo consignou que “as declarações de parte da 2ª. A. e do 2º. R. foram pouco esclarecedoras (…) não elucidando factos para além dos que provêm dos documentos juntos aos autos”;
o) As declarações de parte prestadas pelo ora apelante – transcritas e balizadas, na parte pertinente, no corpo das presentes alegações – em conjunto com as regras da experiência comum e as da repartição do ónus da prova (que cabia às AA.) impõem que se dê como não provado o facto 5, seja alterada a redacção do facto provado 2 e se dêem como provados os factos não provados i) e j) da, aliás douta, sentença recorrida”.
Com a alegação produzida, o recorrente/apelante pretende colocar em crise a factualidade apurada pelo Tribunal a quo.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Ora, considerando a alegação do recorrente, verifica-se que nela se identificam os factos cujo sentido probatório é pretendido alterar, bem como, é identificada a decisão que, em alternativa, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre tais questões de facto, com especificação dos concretos meios de prova – e, designadamente, indicando, com exatidão, as passagens da gravação em que se funda - que impunham diversa decisão.
Mostrando-se observado o cumprimento dos ónus impugnatórios a que se reporta o artigo 640.º do CPC, cumpre apreciar as questões de facto suscitadas.
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A) Se deve ser dado como não provado o facto 5, se deve ser alterada a redacção do facto provado 2 para: “A sociedade Autora S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA., em Dezembro de 2012, pretendeu contratar um seguro de vida com capitalização, em benefício dos seus gerentes.” e se devem ser dados como provados os factos não provados i) e j)?
Especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315) refere, a este respeito, que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento, de acordo com os temas da prova fixados.
“A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 717).
Ora, conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2018 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1.S1, rel. ROSA TCHING), “[f]actos provados são os factos concretos assim julgados, na sentença final, após exame crítico das provas e não os factos tidos como assentes no despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma  caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso”.
Ainda na mesma linha, cite-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO) onde se escreveu que: “Sendo certo que a instrução tem por objecto os temas de prova enunciados e que no NCPC estes não se confundem apenas com factos podendo ser conclusões jurídicas ou versões contrárias de factos ou conclusões, é seguro para nós e de acordo com a generalidade da doutrina e da jurisprudência, que a enunciação dos temas de prova não constitui despacho que faça caso julgado formal sobre os factos essenciais, instrumentais ou complementares que interessam à decisão de direito segundo as diferentes soluções possíveis e alegados pelas partes de acordo com as regras dos artº 5º, nºs 1 e 2 e 607º, nº 4, NCPC”.
E conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradicção ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Importa considerar que, em termos substanciais, a impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância, procurando-se que a Relação reaprecie e repondere os elementos probatórios produzidos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório, impondo-se se proceda à apreciação não só da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, da sua consistência e coerência, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, mas também da sua valia extrínseca, ou seja, da sua consistência e compatibilidade com os demais elementos.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 127): “Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de actos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões”.
Assim, ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.
Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar, desde logo, o que o recorrente - no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto - indicou nas respectivas alegações e cujo âmbito tem a função de delimitar o objecto do recurso.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
A apreciação das provas resolve-se, assim, na formulação de juízos, que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Nessa actividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 653º, nº 2 do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Mas, não deverá esquecer-se que a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Processo 1426/15.0T8BGC-A.G1, relator ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA).
Neste sentido, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Processo 334/07.3TBASL.E1, relatora MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.
Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
Aplicando estas considerações à impugnação de facto em questão, cumpre apreciar os factos colocados em crise pelo recorrente AN.
Estão em causa, por um lado, os factos provados n.ºs. 2 (de onde consta que “A sociedade Autora S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA., em Dezembro de 2012, pretendeu contratar um seguro de vida com capitalização”) e 5 (de onde consta que “A sociedade 1.ª Autora pretendia com o seguro ter um seguro de capitalização, em que o beneficiário em caso de vida fosse a tomadora do seguro, ou seja, a sociedade 1.ª Autora”) - pretendendo o recorrente ver alterada a redação do primeiro e eliminado dos factos provados, o segundo – e, por outro lado, os factos não provados, constantes das alíneas i)  - com a redação: “A 2.ª Autora e o 2.º Réu, como únicos sócios que eram da 1.ª Autora, optaram pela contratação de quatro Planos de Poupança Reforma, em lugar de procederem, entre eles, à distribuição de uma parte dos lucros gerados pela sociedade” – e j) – com a redação: “Essa opção deveu-se a razões de ordem fiscal, para além de proporcionarem um bom rendimento” – que, o recorrente pretende seja considerado como matéria de facto provada.
Na decisão recorrida, a respeito desta factualidade considerou-se a seguinte motivação:
“A convicção do Tribunal (artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil), espelhada nos factos provados e não provados, foi adquirida com base na apreciação crítica, conjugada e concatenada, do depoimento de parte e declarações de parte da 2.ª Autora, das declarações de parte do 2.º Réu, dos depoimentos das testemunhas e dos documentos juntos aos autos.
De referir que as declarações de parte da 2.ª Autora e do 2.º Réu foram pouco esclarecedoras para a fundamentação da matéria de facto, não elucidando factos para além dos que provêm dos documentos juntos aos autos.
Assim, tanto a 2.ª Autora, como o 2.º Réu não esclareceram quem apresentou as quatro propostas de seguro à 1.ª Ré, sendo que duas das propostas se encontram assinadas pela 2.ª Autora e outras duas pelo 2.º Réu (facto não provado em a)). A testemunha ON, profissional de seguros, mencionado nas declarações de parte da 2.ª Autora e do 2.º Réu, referiu de forma convincente que não teve intervenção na celebração dos produtos com a 1.ª Ré.
(…)
Sobre os factos não provados em i), j) e k), factos alegados pelo 2.º Réu, apenas incidiram as declarações de parte deste, sendo que as suas declarações são diametralmente diversas das declarações de parte da 2.ª Autora e como já foi referido supra, nenhum deles mereceu total credibilidade.
A testemunha ON esclareceu, como já foi dito, que não teve intervenção na celebração dos produtos com a 1.ª Autora e que teve uma reunião com a 2.ª Autora, na qual esta exibiu um papel onde constaria a 1.ª Autora como beneficiária e refere que isso não era normal. Assim, comunicou à 1.ª Ré e essa indicou que os pagamentos seriam realizados à 2.ª Autora e ao 2.º Réu. Explicou ainda que o mail de 18 de Dezembro de 2017, junto aos autos a fls. 198, foi pelo próprio remetido, mas antes de ver as propostas de seguro, ou seja, antes de falar com o Ramo Vida da 1.ª Ré e com base nas conversas tidas com a 2.ª Autora. Referiu ainda que na sequência desse mail, falou então com o Ramo Vida da 1.ª Ré e aí verificou que os recibos estavam emitidos em nome da 2.ª Autora e do 2.º Réu.
O depoimento da testemunha GS nada acrescentou para a prova dos factos em discussão, porquanto a mesma não se lembrava das negociações para a partilha, nomeadamente se foi falada a questão dos seguros de vida.
Os factos provados em 1), 2), 4), 11), 14) e 22), não foram impugnados ou até foram admitidos expressamente.
(…) Das propostas de seguro juntas a fls. 74 a 81 e do seu teor, resulta a intenção da 1.ª Autora quanto ao beneficiário em caso de vida da pessoa segura - factos provados em 5), 6) e 7), bem como os factos provados em 18) e 19) (…)”.
Ora, reapreciada a prova produzida – que se resumiu, para além da documentação junta aos autos, nas declarações e depoimento de parte da 2.ª autora, nas declarações de parte do 2.º réu e na inquirição de duas testemunhas (ON, funcionário da 1.ª ré e GS, ex-mulher do 2.º réu) – verifica-se, efetivamente, que as testemunhas não abordaram a questão atinente à génese das contratações em questão nos autos, o que só foi referenciado, mas em termos contraditórios, pela 2.ª autora e pelo 2.º réu.
Os documentos juntos aos autos permitem inferir que o produto subscrito foi o produto LEVEXPERT PPR – SÉRIE X- T136500, aspeto que não é posto em causa por qualquer das partes, sendo que, também não há divergência sobre as propostas e documentos que subsequentemente foram emitidos.
Destes documentos retira-se, em particular, que:
- Em 28-12-2012 foram subscritas as 4 propostas de “seguro” juntas aos autos (constando em cada uma delas indicado como “Agente n.º …”, o nome de “AN”), onde consta como “Tomador do seguro” a 1.ª autora, como “Pessoa segura” a 2.ª autora (nas propostas n.º … e …) e o 2.º réu (nas propostas n.º … e …) e, como “Beneficiário”, a “Tomadora” (ou seja, a 1.ª autora) e se faz expressa observação no sentido do seguinte: “ATENÇÃO: LEVAR EM CONSIDERAÇÃO OS BENEFICIÁRIOS DESIGNADOS” (cfr. documentos juntos com o requerimento de 08-03-2019);
- Com data de 02-01-2013 são emitidas pela então Império-Bonança as apólices de seguro, dirigidas à 1.ª autora, de onde consta, nas condições particulares, que a “Pessoa Segura” é “AN” (nas apólices … e 1…) e “MN” (nas apólices … e …) e que o “Beneficiário(s) em Caso de Vida” é a “Pessoa Segura” (cfr. documentos n.ºs. 9 a 12, juntos com a petição inicial);
- Com data de 09-01-2013 são emitidas pela então Império-Bonança as apólices de seguro, dirigidas à 1.ª autora, de onde consta, nas condições particulares, que a “Pessoa Segura” é “AN” (nas apólices … e …) e “MN” (nas apólices … e …) e que o “Beneficiário(s) em Caso de Vida” é o “TOMADOR DE SEGURO” (cfr. documentos n.ºs. 13 a 16, juntos com a petição inicial); e
- À data de 28-12-2012 eram gerentes da sociedade autora, a 2.ª autora e o 2.º réu (cfr. documento junto aos autos pela sociedade autora, com o requerimento de 10-12-2019).
Esta sucessão temporal de documentos comprova que foi visada a alteração dos termos da apólice emitida em 02-01-2013, para a conformar com que constava das propostas datadas de 28-12-2012, o que se fez, emitindo as apólices, novamente, em 09-01-2013.
No que respeita à prova pessoal produzida, houve, desde logo, divergência entre as partes declarantes sobre quem é que telefonou para a seguradora quando foi constatado que a apólice dos seguros contratados tinham como beneficiários as pessoas seguras e não a tomadora, bem como é que, em concreto, se processou a alteração do teor das apólices, mas, de todo o modo, perante todos os meios de prova produzidos sobre tal aspeto, é inequívoco que a mesma resultou da intenção, expressa na proposta de cada um dos seguros (subscritas, respetivamente, por ambos os sócios-gerentes, à data, da sociedade autora), no sentido de que ficasse a constar que a beneficiária da aplicação em questão fosse a tomadora do seguro, ou seja, a sociedade autora.
Na realidade, as declarações da 2.ª autora e do 2.º réu foram convergentes e confluíram, uniformemente, numa conclusão: Os então sócios-gerentes da 1.ª autora, ora 2.ª autora e 2.º réu, pretenderam com a contratação, que a sociedade autora efetuasse uma aplicação com capitalização, em modalidade de seguro de vida, em que o beneficiário do seguro de vida fosse a tomadora de seguro, que nas propostas de seguro subscritas era a 1.ª autora, para assim ser obtido o benefício fiscal correspondente à aplicação efetuada (“LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”).
Isso mesmo foi referenciado pela 2.ª autora (minutos 13 e 16 das respetivas declarações). E, também - igualmente, depois de mais de 10 minutos a justificar que não interveio como mediador de seguros, mas assinalando que tinha efetuado o exame correspondente do Instituto de Seguros de Portugal – pelo 2.º réu (minutos 11 a 14, 23 e 25 das respetivas declarações).
As testemunhas ouvidas nada acrescentaram sobre os termos da contratação efetuada, relativamente à qual referiram, com clareza, não ter tido intervenção.
Neste sentido, perante os elementos apurados, cumprirá proceder à eliminação do que consta do facto provado n.º 5 e, bem assim, à alteração, em conformidade, da redação do facto provado n.º 2, que passará a ser a seguinte:
“2. Os então sócios-gerentes da 1.ª autora, ora 2.ª autora e 2.º réu, pretenderam que a sociedade autora efetuasse uma aplicação com capitalização, em modalidade de seguro de vida, em que o beneficiário do seguro de vida fosse a tomadora de seguro, que nas propostas de seguro subscritas era a 1.ª autora, para assim ser obtido o benefício fiscal correspondente à aplicação efetuada (“LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”);”.
Do mesmo modo e na decorrência das modificações a operar, haverá que alterar a redação do facto n.º 6 – que, para além disso, padece de manifesto lapso de redação, aferível da sua redação - , que passará a ser a seguinte:
“6) Para o efeito em 2), foram apresentadas à sociedade autora, pela seguradora 1.ª Ré, quatro propostas de seguro no valor unitário de € 12.500,00, sendo duas em que consta como Pessoa Segura a 2.ª Autora MN e assinadas por esta e outras duas em que consta como Pessoa Segura o 2.º Réu AN e assinadas por este.”
Considerando o referido, mostra-se insubsistente a alteração factual pretendida pelo recorrente AN, no que respeita à matéria de facto constante da alínea i) dos factos não provados, assim como, atenta a conexão com tal matéria, do que consta vertido na alínea j) dos factos não provados, elementos que não resultaram, de facto e em função dos meios de prova produzidos, apurados.
Efetivamente, para além do que resultou apurado em função da alteração acima mencionada, a respeito do facto provado n.º 2 (e da eliminação do facto provado n.º 5), não se mostra que o declarado por AN (referenciando que a finalidade da subscrição era uma alternativa à distribuição de lucros pela sociedade autora) tenha tido comprovação por qualquer outro meio probatório, sendo, só por si, insubsistente, mesmo considerando os demais documentos juntos, para, de modo suficiente, fundar positiva convicção sobre a realidade de uma tal afirmação. O mesmo se diga, por seu turno, relativamente à opção tomada no sentido da subscrição do “produto” que veio a ser subscrito, não se tendo apurado que tenha havido a específica intenção de subscrição de um plano de poupança-reforma, para além do que consta da subscrição do próprio documento das propostas juntas aos autos. Nesse sentido, nenhum relevo tem para a apreciação dos presentes autos, em que a causa de pedir atina na subscrição dos produtos constantes das propostas de 28-12-2012, a demonstração – sobre que incidiu boa parte das declarações das partes depoentes - de anteriores subscrições de produtos que nenhuma relação têm com aquele que está em questão e que foi subscrito, com a menção “LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”.
Em conformidade com o exposto, cumprirá proceder:
- À alteração da redação do facto provado n.º 2, que passa a ser a seguinte: “2. Os então sócios-gerentes da 1.ª autora, ora 2.ª autora e 2.º réu pretenderam que a sociedade autora efetuasse uma aplicação com capitalização, em modalidade de seguro de vida, em que o beneficiário do seguro de vida fosse a tomadora de seguro, que nas propostas de seguro subscritas era a 1.ª autora, para assim ser obtido o benefício fiscal correspondente à aplicação efetuada (“LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”);”;
- À eliminação do facto provado n.º 5;
- À alteração da redação do facto provado n.º 6, que passa a ser a seguinte: “6) Para o efeito em 2), foram apresentadas à sociedade autora, pela seguradora 1.ª Ré, quatro propostas de seguro no valor unitário de € 12.500,00, sendo duas em que consta como Pessoa Segura a 2.ª Autora MN e assinadas por esta e outras duas em que consta como Pessoa Segura o 2.º Réu AN e assinadas por este.”; e
- No mais, julgar improcedente a impugnação pretendida.
*
NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
1) A sociedade 1.ª Ré FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. resultou da fusão por incorporação da sociedade IMPÉRIO BONANÇA com a sociedade FIDELIDADE MUNDIAL.
2) Os então sócios-gerentes da 1.ª autora, ora 2.ª autora e 2.º réu, pretenderam que a sociedade autora efetuasse uma aplicação com capitalização, em modalidade de seguro de vida, em que o beneficiário do seguro de vida fosse a tomadora de seguro, que nas propostas de seguro subscritas era a 1.ª autora, para assim ser obtido o benefício fiscal correspondente à aplicação efetuada (“LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”);
3) O 2.º Réu AN, à data, era sócio gerente da 1.ª Autora.
4) E à data era mediador de seguros, identificado com o n.º de agente 01724326.
5) (Eliminado).
6) Para o efeito em 2), foram apresentadas à sociedade autora, pela seguradora 1.ª Ré, quatro propostas de seguro no valor unitário de € 12.500,00, sendo duas em que consta como Pessoa Segura a 2.ª Autora MN e assinadas por esta e outras duas em que consta como Pessoa Segura o 2.º Réu AN e assinadas por este;
7) Dessas propostas consta como beneficiária, em caso de vida, o tomador do seguro, ou seja, a própria sociedade.
8) A 1.ª Ré emitiu, em 2 de Janeiro de 2013, as seguintes apólices:
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura AN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura AN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é a Pessoa Segura.
9) A 1.ª Ré emitiu, em 9 de Janeiro de 2013, as seguintes apólices:
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura AN e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura NA e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro;
- n.º …/…, em que consta como pessoa segura MN e que o beneficiário em caso de vida é o Tomador de Seguro.
10) Cada uma destas apólices no valor de € 12.500,00, no valor total de € 50.000,00, valor que à data do resgate seria acrescido dos juros respectivos, à taxa de 4% garantidos por ano de vigência do contrato, ou seja, € 500,00 por cada ano de vigência de contrato, por cada apólice.
11) A sociedade Autora cumpriu pontualmente as entregas de capital previstas nas condições de subscrição do seguro.
12) Em data não apurada, o Ilustre Mandatário da sociedade 1.ª Autora remeteu comunicação à 1.ª Ré, com o seguinte teor:
“Assunto: Contratos de seguro Levexpert PPR – Série X, com os números de apólice …/…, emitida em 09/01/2013, …/…, emitida em 09/01/2013, …/…, emitida em 09/01/2018, …/…, emitida em 09/01/2013,
Dirijo-me a V. Exas. na qualidade de mandatário constituído da sociedade tomadora dos seguros com as apólices acima referidas, a sociedade S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares Lda, sociedade (…).
A sociedade acima referida e tomadora dos seguros acima referidos, constituiu os seguros acima referidos, através de uma proposta subscrita pela sociedade e entregue ao mediador de seguros AN, titular do nº de agente …, em 31/12/2012.
Nesta proposta de seguro subscrita pela sociedade, foi indicada como beneficiária em caso de vida do seguro, o tomador, ou seja, a sociedade S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares, Lda,
Por outro lado, a sociedade tomadora, recebeu também as respectivas apólices emitidas por Império Bonança, de onde constava igualmente que, o beneficiário em caso de vida é o tomador do seguro ou seja a sociedade acima referida.
Contudo, chegou ao conhecimento da sociedade tomadora dos seguros acima referidos, que, apesar de inexistir qualquer óbito das pessoas seguras, V. Exªs, se encontram na iminência de proceder ao pagamento do capital não ao tomador do seguro, mas às pessoas singulares seguras.
Tal circunstância, porque não encontra qualquer suporte nos documentos subscritos pela sociedade, nem nas cópias das apólices em poder da sociedade tomadora, carece assim de fundamento.
Pelo que, se intima V. Ex.as a:
I – Não procederem a qualquer pagamento, até que esteja completamente esclarecido o regime aplicável aos seguros acima referidos, em caso de vida das pessoas singulares seguras,
II – Remeterem à sociedade tomadora cópias de todos os elementos documentais referentes aos seguros acima referidos, designadamente proposta de seguro, cópias de apólice e condições particulares.
(…)”.
13) Por carta de 15 de Março de 2018, veio a 1.ª Ré respondeu ao Ilustre Mandatário das Autoras, com o seguinte teor:
“Assunto: Apls …/… e …/… PSª AN
Apls …/… e …/… PSª MN
Exmo Senhor,
Em referência à comunicação recebida a 22 do mês findo, que mereceu a nossa melhor atenção, cumpre-nos esclarecer o seguinte:
Pagamento devido aos beneficiários em caso de vida
Nos termos da lei e das condições gerais dos contratos de seguro celebrados e acima referenciados, procedeu esta seguradora, no termo dos mesmos, ao pagamento das indemnizações devidas aos beneficiários (em caso de vida).
Efetivamente, esta seguradora está impedida de aceitar as alterações às condições contratuais solicitadas em 09.01.2013, no que se refere à substituição dos beneficiários pela própria tomadora de seguro, pelo facto de tal alteração ser contrária à lei, violando, entre outros, o disposto no D.L. 158/2002 de 2 de Julho.
Cópia dos elementos documentais referentes aos seguros referidos
Os documentos solicitados, encontram-se na posse da sua cliente, por, em devido tempo, e de acordo com as condições gerais da apólice terem sido remetidas à tomadora de seguro.
Não obstante tal facto, seguem em anexo as cópias das propostas de seguro; as condições particulares referentes à subscrição das apólices, emitidas em 02/01/2013; e as actas referentes aos pedidos de alteração dos beneficiários, com a ressalva de que as mesmas, apesar de emitidas por esta seguradora, são, efetivamente, inválidas e ineficazes, pelas razões acima referidas.
(…)”.
14) A 1.ª Ré procedeu ao pagamento do valor seguro ao 2.º Réu, em data não concretamente apurada.
15) O 2.º Réu é irmão da 2.ª Autora e foi sócio gerente da sociedade 1.ª Autora até 21 de Setembro de 2017.
16) Nessa data, o 2.º Réu cedeu as quotas de que era titular na sociedade 1.ª Autora às 1.ª, 2.ª e 3.ª Autoras.
17) Dos Considerandos constantes do “CONTRATO-PROMESSA DE DIVISÃO E CESSÕES DE QUOTAS, PERMUTA, DOAÇÃO, COMPRA E VENDA E PARTILHAS”, celebrado entre MN (Primeira Outorgante), AN (Segundo Outorgante), JB (Terceira Outorgante), S.E.E.C. – SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO HOTELEIRA E SIMILARES, LDA. (Quarta Outorgante) e CERRO DA MARINA – EXPLORAÇÕES TURÍSTICAS E HOTELEIRAS, LDA. (Quinta Outorgante), consta:
“(…)
B. A PRIMEIRA e o SEGUNDO OUTORGANTES são os únicos sócios da S.E.E.C. – Sociedade de Exploração Hoteleira e Similares Lda., aqui QUARTA OUTORGANTE, (…).
(…)
E. A QUARTA OUTORGANTE é proprietária dos seguintes imóveis:
(…)
F. A QUARTA OUTORGANTE é titular dos seguintes bens e direitos, para além dos imóveis identificados no Considerando E anterior:
1. Valores em caixa e depositados ou aplicados nos Bancos;
2. Créditos sobre clientes;
3. Títulos obrigacionistas, no valor nominal de € 100.000,00 (cem mil euros), emitidos pela sociedade Rio Forte, S.A., actualmente em estado de insolvência;
4. Bens móveis e equipamento afectos à exploração do Hotel do Cerro e outros activos corpóreos e incorpóreos relevados na escrita contabilística;
5. Veículos automóveis com as matrículas nºs …-…-…, …-…-…, …-…-… e …-…-…, livres de quaisquer ónus ou encargos.
(…)”.
18) No topo superior direito de cada uma das propostas consta “Este seguro será subscrito ao abrigo do artigo 23.º do Código de IRC”.
19) Em cada uma das propostas consta no ponto 4 das “Declarações”, o seguinte:
“4. Subscrição ao abrigo do artigo 23.º do CIRC
- Na qualidade de Tomador de Seguro tomo conhecimento de que nos termos dos artigos 23.º do CIRC e 2.º do CIRS, os benefícios atribuídos no âmbito do contrato são considerados “Direitos Adquiridos e Individualizados” das Pessoas Seguras, e como tal, sujeitos a tributação como rendimentos de trabalho dependente (Cat. A do IRS): declaro ainda que, nos termos das Condições Gerais, existe renúncia expressa à alteração da cláusula beneficiária.
- Na qualidade de Pessoa Segura, declaro consentir na elaboração deste contrato e aceitar expressamente o benefício em vida a meu favor, conferindo-me assim o direito adquirido e individualizado, considerado rendimento de trabalho dependente nos termos do n.º 3 da alínea b) do artigo 2.º do CIRS e, como tal, sujeito a retenção na fonte.”.
20) Dispõe o artigo 12.º das Condições Gerais do contrato de seguro LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500, com a epígrafe “BENEFICIÁRIOS”:
“1. Os Beneficiários do contrato são designados na proposta pelo Tomador do Seguro, que os pode alterar em qualquer momento da vigência do contrato, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2. Quando a subscrição é efetuada por uma pessoa coletiva a favor e em nome dos seus trabalhadores a designação de beneficiários cabe à pessoa segura.
3. A alteração dos Beneficiários só será válida a partir do momento em que o Segurador tenha recebido a correspondente comunicação por escrito ou por outro meio do qual fique registo duradouro, devendo tal alteração constar de Ata Adicional.
4. Não havendo no contrato designação de Beneficiário, será Beneficiário, em caso de vida, a própria Pessoa Segura e, em caso de morte, serão Beneficiários os herdeiros da Pessoa Segura.
5. Sempre que o Tomador do Seguro e a Pessoa Segura sejam pessoas distintas, é necessário o acordo escrito da Pessoa Segura para a transmissão da posição de Beneficiário, seja a que título for.
6. O direito de alterar os Beneficiários cessa no momento em que estes adquiram o direito ao pagamento das importâncias seguras.
7. A cláusula beneficiária será considerada irrevogável sempre que exista aceitação do benefício por parte do Beneficiário e renúncia expressa, por parte do titular do direito a nomear beneficiários, a alterar a designação.
8. A renúncia ao direito de alterar a cláusula beneficiária, bem como a aceitação do Beneficiário, deverão constar de documento escrito cuja validade depende da efetiva comunicação ao Segurador.
9. Sendo a cláusula beneficiária irrevogável, será necessário o acordo prévio do Beneficiário para o Tomador do Seguro ou a Pessoa Segura, esta última quando a subscrição é efetuada por uma pessoa coletiva a favor e em nome dos seus trabalhadores, proceder ao exercício de qualquer direito ou faculdade de modificar as condições contratuais ou de resolver o contrato, sempre que tal modificação tenha incidência sobre os direitos do Beneficiário.
10. O Tomador do Seguro ou a Pessoa Segura, esta última quando a subscrição é efetuada por uma pessoa coletiva a favor e em nome dos seus trabalhadores, pode readquirir o direito pleno ao exercício das garantias contratuais se o Beneficiário Aceitante comunicar por escrito ao Segurador que deixou de ter interesse no benefício.”
21) No termo do prazo dos contratos de seguro, a Ré emitiu a favor da 2.ª Autora MN os recibos para pagamento das quantias de € 14.991,51 e de € 14.991,51, correspondentes à entrega à mesma, do capital investido e juros contratualmente devidos e vencidos, deduzido do valor respeitante à retenção de IRS.
22) De igual modo, a 1.ª Ré procedeu à emissão dos recibos para pagamento a favor do 2.º Réu AN.
23) A 2.ª Autora recusou receber os valores.
24) Consta dos Balancetes Analíticos da sociedade 1.ª Autora, nos anos de 2013 a 2017, o activo financeiro correspondente ao “Seguro Império Bonança / Levexpert PPR – Série X”, no valor de € 50.000,00.
*
NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA NÃO PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
a) Que tenha sido o 2.º réu, como mediador de seguros a apresentar à 1.ª Ré as quatro propostas de seguro.
b) Em 3 de Janeiro de 2013, a sociedade Autora reparou que, ao contrário do que constava da sua proposta contratual e que havia sido aceite pela 1.ª Ré, figurava como beneficiário do seguro em caso de vida, a pessoa segura e não o tomador de seguro.
c) A sociedade Autora, dando-se conta do lapso, contactou de imediato a 1.ª Ré, apontando para a existência do lapso e solicitando que a apólice fosse corrigida de acordo com os termos da proposta apresentada e que haviam sido acordados.
d) E assim sendo, a 1.ª Ré confirmou que se tinha tratado de um lapso.
e) A 1.ª Ré em momento algum podia ignorar a essencialidade para a 1.ª Autora da cláusula que indica como beneficiário, em caso de vida, o tomador de seguro.
f) Em sede de acordo de partilhas e cessão de quotas foi avaliado o valor da sociedade e considerados os valores depositados e aplicados em Bancos, créditos, e demais bens que se encontraram vertidos na contabilidade como activos, para determinação do valor da sociedade e que determinou igualmente o valor da cessão de quotas.
g) Aquando da cessão de quotas, a sociedade foi avaliada com base, entre outros elementos, no valor dos activos presentes e futuros de que era titular como se encontravam reflectidos na contabilidade.
h) O valor de cessão de quotas seria inferior, caso fosse do conhecimento dos cessionários que a sociedade não receberia o valor do prémio, aquando do vencimento da apólice.
i) A 2.ª Autora e o 2.º Réu, como únicos sócios que eram da 1.ª Autora, optaram pela contratação de quatro Planos de Poupança Reforma, em lugar de procederem, entre eles, à distribuição de uma parte dos lucros gerados pela sociedade.
j) Essa opção deveu-se a razões de ordem fiscal, para além de proporcionarem um bom rendimento.
k) Sempre foi entendido entre a 2.ª Autora e o 2.º Réu que o benefício colhido desses PPR seria para distribuir por eles, em partes iguais.
l) Os seguros de vida não foram tidos em conta na avaliação da 1.ª Autora.
*
II) Mérito dos recursos:
*
B) Se é nula, por contrária à lei, a cláusula que designou a autora sociedade, como beneficiária dos capitais seguros, em seguros de capitalização subscritos, em caso de resgate em vida, dos capitais aplicados e respetivos rendimentos, por referência às pessoas seguras A. MN e AN, nos termos do artigo 23.º do IRC, do artigo 1.º, n.º 4, do Decreto-Lei nº 158/2002 de 2 de julho e 280.º, n.º 1, do CC?
A decisão recorrida apreciou a questão da nulidade dos contratos de seguro em questão nos autos, nos seguintes termos:
“(…) 1 – Da alegada nulidade:
A 1.ª Ré invoca, nessa parte, que os contratos de seguro em causa nos autos, nunca poderiam, quer nos termos legais, quer nos contratuais, ter por beneficiário a própria sociedade tomadora do seguro.
Cumpre apreciar.
É verdade que consta de todos os contratos, no seu topo superior direito que o seguro será subscrito ao abrigo do disposto no artigo 23.º do CIRC.
Com a epígrafe “Gastos e perdas”, dispõe o preceito invocado: “1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC. 2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas: a) (…); b) (…); c) (…); d) De natureza administrativa, tais como remunerações, incluindo as atribuídas a título de participação nos lucros, ajudas de custo, material de consumo corrente, transportes e comunicações, rendas, contencioso, seguros, incluindo os de vida, doença ou saúde, e operações do ramo «Vida», contribuições para fundos de poupança-reforma, contribuições para fundos de pensões e para quaisquer regimes complementares da segurança social, bem como gastos com benefícios de cessação de emprego e outros benefícios pós-emprego ou a longo prazo dos empregados; e) (…) f) (…); g) (…); h) (…); i) (…); j) (…); k) (…); l) (…);
m) (…).”
Ora, o preceito de que lança mão a Ré não impede, nem impedia que os contratos tivesse como beneficiária a própria sociedade 1.ª Autora, porquanto a norma apenas prevê que os gastos com todos os seguros (incluindo os de vida, doença ou saúde) são dedutíveis para a determinação do lucro tributável, ou seja, quaisquer gastos com os seguros seriam dedutíveis (independentemente dos beneficiários).
Invoca ainda a 1.ª Ré que dos contratos consta que os benefícios atribuídos são considerados direitos adquiridos e individualizados da pessoa segura e como tal sujeitos, nos termos do artigo 2.º do CIRS.
Assiste razão à 1.ª Ré, porquanto conforme consta do facto provado em 19), os benefícios atribuídos no âmbito dos contratos são considerados “Direitos Adquiridos e Individualizados” e que a pessoa segura aceitou expressamente o benefício em vida em seu favor.
Com a epígrafe “Rendimentos da categoria A”, dispõe o artigo 2.º do CIRS:
“3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente:
a) (…);
b) As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respectivo beneficiário uma vantagem económica, designadamente:
1) (…);
2) (…).
3) As importâncias despendidas, obrigatória ou facultativamente, pela entidade patronal com seguros e operações do ramo «Vida», contribuições para fundos de pensões, fundos de poupança-reforma ou quaisquer regimes complementares de segurança social, desde que constituam direitos adquiridos e individualizados dos respectivos beneficiários, bem como as que, não constituindo direitos adquiridos e individualizados dos respectivos beneficiários, sejam por estes objecto de resgate, adiantamento, remição ou qualquer outra forma de antecipação da correspondente disponibilidade, ou, em qualquer caso, de recebimento em capital, mesmo que estejam reunidos os requisitos exigidos pelos sistemas de segurança social obrigatórios aplicáveis para a passagem à situação de reforma ou esta se tiver verificado;
(…)”.
Ora, tal norma apenas impõe que as importâncias que foram despendidas pela 1.ª Autora com os contratos de seguro em causa nos autos sejam considerados como rendimentos de trabalho dependente das pessoas seguras, ou seja, importâncias sujeitas a tributação na esfera patrimonial das pessoas seguras.
Para além disso, consta do artigo 12.º das Condições Gerais dos contratos em apreço (facto provado em 20)) que quando a subscrição é efectuada por uma pessoa colectiva a favor e em nome dos seus trabalhadores, a designação de beneficiários cabe à pessoa segura. Assim, tendo a 1.ª Autora – sociedade – efectuado a subscrição a favor e em nome dos seus trabalhadores – 2.ª Autora e 2.º Réu –, a estes cabia a designação dos beneficiários.
Deste modo, tendo a 2.ª Autora e o 2.º Réu subscrito (aposição das suas assinaturas) as propostas de seguro como “pessoas seguras” e constando expressamente o beneficiário em caso de vida e em caso de morte (em ambos os casos é a tomadora de seguro, ou seja, a 1.ª Autora), tal não contraria as Condições Gerais. Mais, o facto do n.º 4 do artigo 12.º das Condições Gerais se referir que, caso não haja no contrato designação de beneficiário, este será, em caso de vida, a própria pessoa segura e, em caso de morte, serão os herdeiros da pessoa segura, é porque podem ser outros os beneficiários que não a pessoa segura (em caso de vida) ou os herdeiros da pessoa segura (em caso de morte), nada impedindo que seja o próprio tomador de seguro (…)”.
A 1.ª ré convoca o artigo 23.º do Código do IRC e, bem assim, o artigo 12.º das condições gerais do contrato, para considerar que nunca, quer nos termos legais, quer nos termos contratuais, os contratos de seguro poderiam ter como beneficiário a própria sociedade, tomadora dos seguros.
Ora, certo é que, as considerações supra transcritas, constantes da decisão recorrida, não nos merecem qualquer reparo, antes adesão, pois, na realidade, nem o artigo 23.º do Código do IRC – preceito de onde resulta que “para a determinação do lucro tributável” da empresa será dedutível, em sede de IRC e em particular, o gasto/perda referente a “operações do ramo «Vida», que é referenciado em cada uma das propostas de seguro subscritas - , nem o artigo 2.º, n.º 3, al. b), 3) do Código do IRS (também aludido nas alegações de recurso da 1.ª ré) - , nem o que consta do artigo 12.º (com a epígrafe “Beneficiários”) das condições gerais dos contratos subscritos – estipulação contratual, sem conteúdo proibitivo ou excludente- determinam alguma prescrição proibitiva, no sentido de que a contratação dos autos não possa ter como beneficiário designado uma pessoa coletiva.
E, nessa medida, não se pode considerar existir alguma invalidade – de origem legal, por postergação dos referidos preceitos legais, ou contratual - pela subscrição dos contratos em questão pela tomadora de seguro.
Diga-se, em particular, que a eventual inobservância das condições de benefício da dedução fiscal a que se reporta o mencionado artigo 23.º do Código do IRC comportará os prejuízos para a sociedade que assim tenha beneficiado, praticando-se uma irregularidade de natureza fiscal, geradora de eventual comportamento contra-ordenacional, mas não, decorre que, da inobservância de tal normativo legal advenha alguma invalidade da contratação efetuada.
Neste ponto, a alegação da 1.ª ré é, sem outras considerações, improcedente.
Prossegue, todavia, a decisão recorrida, referindo o seguinte:
“(…) Invoca ainda a 1.ª Ré que a cláusula beneficiária seria nula por violação do disposto no artigo 1.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 158/2002, de 2 de Julho.
O contrato celebrado entre a 1.ª Autora e o 1.º Réu tem como designação LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500 e resulta da apólice e das suas condições gerais que é um plano de poupança reforma sob a forma de seguro de vida.
Sobe este instrumento jurídico vigora o Decreto-Lei n.º 158/2002, de 2 de Julho, diploma invocado pela 1.ª Ré.
Nos termos do seu artigo 1.º, o plano poupança-reforma (PPR) é um certificado nominativo de um fundo de poupança que pode revestir a forma de fundo de investimento mobiliário, de fundo de pensões ou, equiparadamente, de fundo autónomo de uma modalidade de seguro do ramo “Vida”.
Quando, como é o caso, reveste a forma de contrato de seguro, não é, verdadeiramente um contrato de seguro destinado a acautelar um risco, mas uma forma de investimento de quantias já existentes no património do participante tomador.
Em regra, é nulo o contrato cujo conteúdo seja ilícito, isto é, desconforme com normas imperativas, legais ou outras que a lei reconheça. A ilicitude provém de diversos factores: a ilegalidade, incluindo a fraude à lei, a contrariedade à ordem pública e a ofensa dos bens costumes.
A contrariedade à lei, referida pelo artigo 280.º, n.º 1, consiste na desconformidade, por ilicitude, de um, ou mais do que um, elemento do conteúdo contratual, com uma prescrição de norma legal imperativa ou injuntiva, isto é, norma que não admite ser desaplicada por acordo em sentido diferente.
Para a qualificação de uma lei como imperativa e a cominação com a sanção civil correspondente à sua violação, o sistema jurídico usa variadas técnicas, cuja exposição serve também para a ampliar a exemplificação dos elementos sobre que incide a ilegalidade do conteúdo.
Os preceitos mais completos e até redundantes contêm simultaneamente a proibição e a prescrição expressa da nulidade.
Outros preceitos prescrevem, simplesmente, a nulidade.
Outros preceitos ainda prescrevem, sem mais, a proibição de elementos do conteúdo contratual, da qual se deduz a nulidade.
Outra técnica consiste na qualificação expressa de normas como imperativas, com a prescrição expressa de nulidade ou sem essa prescrição expressa.
Todos os preceitos mencionados exigem interpretação, mas nalguns é menos clara a imperatividade.
Cabe analisar a norma que a 1.ª Ré invoca como fundamento da nulidade do contrato em causa nos autos.
Nos termos da legislação específica deste tipo de contrato (Decreto-Lei n.º 158/2002, de 2 de Julho), resulta do seu artigo 1.º, n.º 4 que “Os certificados nominativos de um fundo de poupança podem ser subscritos por pessoas singulares ou por pessoas colectivas a favor e em nome dos seus trabalhadores”.
Ora, tal norma não contem proibição, nem a prescrição expressa da nulidade.
Mesmo que assim não se entendesse, estamos perante um contrato de seguro “a favor de terceiro a favor de terceiro”, ou seja, um contrato em que temos dois terceiros: o segurado e o beneficiário. Assim o tomador, parte no contrato, celebra um contrato de seguro a favor e em nome de um terceiro, seu trabalhador, concedendo a este o direito de designar o respectivo beneficiário. O trabalhador – pessoa segura – é um terceiro a quem foi concedido um direito de designação beneficiária.
Assim sendo, não se verifica, como alega a 1.ª Ré, a nulidade da cláusula beneficiária por violação nem do artigo 23.º do CIRC, nem do artigo 2.º do CIRS, nem do artigo 1.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 158/2002, de 2 de Julho.”.
Sobre este ponto, a alegação de recurso da 1.ª ré expressa as seguintes considerações:
“Acresce que, o Decreto-Lei nº 158/2002 de 2 de julho, diploma legal que estabelece o regime legal dos PPR e, por isso, vincula todas as partes na presente ação, dispõe no seu artº 1º, nº 4 que “os certificados nominativos de um fundo de poupança podem ser subscritos por pessoas singulares ou por pessoas coletivas a favor e em nome dos seus trabalhadores.”o que manifestamente significa que a Lei limita e exige que tal tipo de produtos financeiros, como também o são os contratos de seguro que nos presentes autos se discutem, não possam em caso algum, ser emitidos (o que nos presente caso significa “subscritos”) por pessoas coletivas, por forma a, e de tal modo que, os benefícios deles decorrentes venham, a final, a reverter a favor delas próprias, pessoas coletivas … … Exigência essa que, no caso dos autos, para além de proibir que a A. sociedade possa ser beneficiária do contrato em caso de morte de qualquer das pessoas seguras (o que se não discute pois é essa mesma a previsão estabelecida nos contratos “sub judice”), de igual modo impõe para o caso de os respetivos resgates ocorrerem em caso de vida de cada uma das pessoas seguras (em razão da ocorrência da maturidade da aplicação),…
Independentemente do que a tal respeito esteja plasmado nos textos contratuais, pelo que nunca a cláusula beneficiária poderia ser estabelecida a favor da A. sociedade, mas sim e somente a favor dos seus trabalhadores (expressão aí usada em sentido amplo, que no caso abrange necessariamente os respetivos gerentes, como o eram a A. MN e o Réu AN).
Por isso, a sobredita cláusula, como tal constante da proposta, sempre e assim será, por manifestamente contrária à lei, necessariamente nula, nulidade essa necessariamente oponível também à ora recorrente, se com ela compactuasse, pois que, nesse conspecto, configurava um negócio contrário à lei, e por isso nulo, nos termos do disposto no artº 280 do Código Civil (…)”.
Também o 2.º réu invocou a ocorrência de uma tal nulidade, dizendo na sua alegação de recurso que:
“(…) É incontroverso que os seguros de vida em causa nestes autos, com a denominação LEVEXPERT PPR Série X – G 136500, são, na verdade, um produto de capitalização, vulgarmente designado Plano Poupança Reforma, a que o Estado entendeu conceder benefícios fiscais.
O regime jurídico dos ditos plano poupança reforma, encontrase, estabelecido, no Dec.-Lei nº. 158/2002, de 2 de Julho.
Por força do preceituado no nº. 4 do art. 1º. daquele diploma legal,
Os certificados nominativos de um fundo de poupança podem ser subscritos por pessoas singulares ou por pessoas colectivas a favor e em nome dos seus trabalhadores. Tanto é dizer que,
As pessoas colectivas só dispõem de capacidade para subscrever os ditos títulos desde que o façam “a favor e em nome dos seus trabalhadores”, estando-lhes vedada a subscrição em nome próprio e para seu benefício.
No caso dos seguros de vida em apreço (que substancialmente, não são verdadeiros seguros de vida, mas uma forma de capitalização semelhante aos planos poupança reforma) era lícito à 1ª. A,, uma pessoa colectiva, tomar o seguro (como lhe seria lícito subscrever os títulos nominativos de um fundo de poupança), conquanto o fizesse a favor e em nome dos seus trabalhadores (em sentido amplo, abrangendo também os seus gerentes).
A impossibilidade legal de as pessoas colectivas subscreverem os ditos títulos em seu nome e a seu favor não tem apenas que ver com o benefício fiscal de o capital assim aplicado ser abatido na determinação do lucro tributável, ao abrigo do disposto na alínea d) do nº. 1 do art. 23º. Do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, mas também com a falta de capacidade para o fazer nessas circunstâncias. Ou, por outras palavras,
Ainda que a 1ª. A. não pretendesse abater os € 50.000,00 que despendeu na contratação dos seguros em apreço ao lucro tributável do exercício findo em 31 de Dezembro de 2012, não poderia proceder a uma tal aplicação dos seus capitais, por lho impedir o citado art. 1º., nº. 4, do Dec.-Lei nº. 158/2002.
Ao contrário do entendimento expresso pela Mma. Juiz a quo na, aliás douta, sentença recorrida, tal conduta da 1ª. A. seria contrária à lei.
O argumento brandido pela Mma. Juiz a quo, segundo o qual os beneficiários dos seguros de vida em causa (a 2ª. A. e o 2º. R.) teriam designado a 1ª. A. como beneficiária desses seguros é, salvo o devido respeito, especioso, pois não passaria de um expediente para contornar a ilegalidade original: a pessoa colectiva não poderia, por força da lei, subscrever um PPR a seu favor, mas nada impediria que esse resultado – proibido pela lei – fosse alcançado mediante a designação da sociedade como beneficiária pelos trabalhadores em nome de quem os títulos tivessem sido subscritos.
Ao contrário do que entendeu a Mma. Juiz a quo, o citado nº. 4 do art. 1º. do Dec.-Lei nº. 158/2002 é imperativo quando estabelece que os PPR apenas podem ser subscritos por pessoas colectivas se o forem a favor e em nome dos seus trabalhadores, excluindo a possibilidade de subscrição em nome e benefício próprios. Pois,
A não ser assim, isto é, a admitir-se a possibilidade de os PPR serem subscritos por pessoas colectivas a favor delas próprias, a lei não conteria a restrição nela especificada.
Sendo o objecto dos contratos de seguro em causa nestes autos, com o conteúdo pretendido pelas AA., a que a Mma. Juiz a quo deu acolhimento na, aliás douta, sentença recorrida, contrário à lei, é-lhes aplicável o disposto no nº. 1 do art. 280º. do Código Civil, que o sanciona com nulidade. (…)”.
A 1.ª autora contrapôs, em contra-alegações, nomeadamente, que:
“´(…) o facto de o beneficiário no presente contrato ser a própria sociedade não determina a respectiva nulidade do contrato de seguro.
O contrato de seguro em causa sendo um PPR, este seguro, nos termos do regime fiscal em vigor, concede benefícios fiscais, em sede de IRS e IRC, traduzidos na tributação reduzida sobre rendimentos e na dedução à coleta (nos limites e com as regras em cada momento em vigor).
Uma vez que, não é proibido que seja celebrado um contrato de seguro que que se preveja a capitalização nos termos previstos nos contratos cujas apólices foram juntas aos autos.
Quanto muito podemos concluir que o contrato em causa não se enquadra na previsão legal do PPR, como previsto no D.L. 158/2002, e eventualmente por essa razão não lhe serem aplicáveis os benefícios fiscais que deveriam ser aplicáveis apenas aos PPR, nos termos da legislação em vigor.
Ou seja, quanto muito é defensável que o presente contrato não seja elegível para efeitos de Benefícios Fiscais,
Uma vez que inexiste qualquer disposição legal imperativa que determine a ilegalidade de um contrato de seguro nos termos que foram contratados.
Da mesma forma que um contrato usurário é nulo por ilegal por cobrar juros superiores aos que são legalmente admissíveis.
Já o contrato de mútuo bonificado, não será nulo por eventualmente se concluir que os pressupostos legais de bonificação não se encontram preenchidos.
Ou seja, nesse caso o que estaria em causa seria a indevida bonificação e a indevida isenção de tributação, em nada se prejudicando a validade do contrato, e o princípio da autonomia privada
Da mesma forma o presente contrato, ao não integrar o conceito típico de um PPR, tal determinará necessariamente efeitos fiscais, mas nenhum efeito quanto à legalidade do presente contrato (…).”.
Para a caraterização da relação jurídica celebrada entre a sociedade autora, as pessoas seguras e a seguradora, importa atentar, desde logo, no que resulta das estipulações contratuais correspondentes.
Resulta dos factos apurados que, os então sócios-gerentes da 1.ª autora, ora 2.ª autora e 2.º réu, pretenderam que a sociedade autora efetuasse uma aplicação com capitalização, em modalidade de seguro de vida, em que o beneficiário do seguro de vida fosse a tomadora de seguro, que nas propostas de seguro subscritas era a 1.ª autora, para assim ser obtido o benefício fiscal correspondente à aplicação efetuada (“LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”) e, para tal efeito, foram apresentadas à sociedade autora, pela seguradora 1.ª Ré, quatro propostas de seguro no valor unitário de € 12.500,00, sendo duas em que consta como Pessoa Segura a 2.ª Autora MN e assinadas por esta e outras duas em que consta como Pessoa Segura o 2.º Réu AN e assinadas por este.
Dessas propostas consta como beneficiária, em caso de vida, o tomador do seguro, ou seja, a própria sociedade.
Decorre das condições gerais do “produto” (expressão utilizada nas condições particulares das apólices em questão) “LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500” que o mesmo traduz um “contrato de seguro PPR” (expressão que consta, aliás no n.º 2 do artigo 13.º de tais condições), ou seja, a subscrição de um plano de poupança-reforma, de um fundo de poupança, na modalidade de seguro do ramo “Vida”.
Na realidade, não se trata de um puro seguro de vida, mas sim de um contrato de seguro que tem características de aforro.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-06-2019 (Pº 1472/17.0T8GRD.C1, rel. LUÍS CRAVO): “O contrato de seguro pode assumir, particularmente nos dias de hoje, uma multiplicidade de especialidades, de entre elas também uma componente de aforro, sem por isso perder essa mesma qualidade ou natureza”.
Concorrem no mesmo sentido, quer as menções constantes das condições particulares (“Produto Levexprert PPR – Série X”, “Natureza Seguro Novo”, sendo que as “Garantias” descritas correspondem ao seguinte: “Em caso de vida da Pessoa Segura no termo do contrato, o pagamento do Capital Garantido no termo do Contrato. Em caso de morte da Pessoa Segura, ou do seu cônjuge quando o PPR seja um bem comum por força do regime de bens do casal, na vigência do contrato, o reembolso de respectivamente a totalidade ou 50% do Capital Garantido na data de participação da morte (…)”), quer o que resulta das propostas subscritas (onde desde logo, consta a menção “LEVEXPERT PPR-SÉRIE X PROPOSTA DE SEGURO SEGMENTO EMPRESAS”).
Tal implica que, aos contratos de seguro em questão sejam, pois, aplicáveis, para além das disposições legais e contratuais inerentes à subscrição de qualquer seguro, também, o regime jurídico do D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho (que aprovou o novo regime jurídico dos planos de poupança-reforma, dos planos de poupança-educação e dos planos de poupança- reforma/educação, revogando o D.L. n.º 205/89, de 27 de junho), alterado pelo D.L. n.º 125/2009, de 22 de maio, pela Lei n.º 57/2012, de 9 de novembro e pela Lei n.º 44/2013, de 3 de julho.
De facto, conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-09-2014 (Pº 7728/10.5TCLRS.L1-7, rel. ROSA MARIA M. C. RIBEIRO COELHO): “O plano poupança-reforma (PPR), quando reveste a forma de contrato de seguro, não é, verdadeiramente, um contrato de seguro destinado a acautelar um risco, mas uma forma de investimento de quantias já existentes no património do participante tomador, a recuperar ainda em vida deste ou por sua morte, nos termos definidos pelo Dec. Lei nº 158/2002, de 2 de Julho”.
Ou seja: “Os PPR são produtos ou aplicações financeiras, impropriamente também chamados seguros financeiros, e têm como único objetivo a rentabilização a médio e longo prazo do aforro: através deles, na generalidade dos casos, o aforrador/investidor recebe o capital por si investido e ainda o rendimento entretanto gerado, desde que se verifiquem determinadas situações e se preencham as condições para esse efeito legalmente tipificadas. Os PPR pressupõem a entrega de uma quantia em dinheiro e o seu reembolso futuro nos momentos determinados na lei, isto é, mencionados no art. 4º do Decreto-Lei nº 158/2002, de 2 de Julho, como a reforma ou a situação de invalidez do beneficiário ou o completar a idade de 60 anos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02-02-2021, Pº 810/19.2T8LRA.C1, rel. FREITAS NETO).
Conforme refere, com referência ao regime do D.L. n.º 158/2002, “o que é exclusivamente próprio dos PPR é apenas a possibilidade de reembolso em caso de reforma por velhice do participante, ou a partir dos seus 60 anos de idade, consistindo a particularidade dos PPE na possibilidade de reembolso para fazer face a certas despesas de educação (…).
Os seguros de vida em caso de vida obrigam o segurador ao pagamento de um capital no final do contrato se a pessoa segura se encontrar viva nessa data. De entre os vários produtos existentes, o Plano Poupança Reforma (PPR) é o mais popular e aquele que apresenta mais benefícios fiscais” (assim, José de Campos Amorim; Benefícios fiscais em matéria de protecção social, Comunicação apresentada no "I Congresso Internacional de Ciências Jurídico-Empresariais, 2009". ISBN 978-972-8793-39, Instituto Politécnico de Leiria – Escola Superior de Tecnologia e Gestão, 2012, pp. 210 e 217, disponível em: https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/776/1/artigo6.pdf).
No preâmbulo do mencionado D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho refere-se, nomeadamente, que:
“A criação dos planos de poupança-reforma (PPR) - instituídos pelo Decreto-Lei n.º 205/89, de 27 de Junho, posteriormente desenvolvido pelo Decreto-Lei n.º 145/90, de 7 de Maio - permitiu orientar um volume significativo de capitais para a poupança de médio e longo prazos destinada a satisfazer as necessidades financeiras inerentes à situação de reforma e, bem assim, para o desenvolvimento do mercado de capitais.
O sucesso daquele produto de poupança assenta nas condições equilibradas do seu regime, ou seja, na associação que se estabelece entre a atribuição de benefícios fiscais e as especiais restrições ao reembolso dos montantes investidos.
Os PPR beneficiam de um regime fiscal que, por um lado, facilita a capitalização na fase de poupança e, por outro, não a penaliza na fase do reembolso. Não se consagra uma verdadeira isenção fiscal para os rendimentos gerados, mas antes um diferimento da sua tributação. Quer isto significar que, dentro de limites determinados, as contribuições para os fundos de poupança são dedutíveis à colecta do IRS, sendo que os reembolsos, embora sujeitos a imposto, beneficiam de condições mais favoráveis, designadamente as decorrentes do regime previsto para as pensões, prevendo-se uma regra especial de exclusão de tributação para atenuar o efeito da progressividade em caso de reembolso, parcial ou total, e estabelecendo-se também, no âmbito das transmissões por morte, um regime fiscal mais favorável.
Como contrapartida das vantagens fiscais, consagraram-se condições específicas de reembolso que impedem pedidos de devolução dos montantes resultantes das entregas efectuadas que não se baseiem nos fundamentos especiais legalmente previstos, propiciando-se assim a poupança de médio e longo prazos (…)”.
E estabelece o artigo 1.º do D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho que:
“1 - Para efeitos do presente diploma consideram-se «planos de poupança» os planos poupança-reforma (PPR), os planos poupança-educação (PPE) e os planos poupança-reforma/educação (PPR/E).
2 - Os PPR, PPE e PPR/E são constituídos, respectivamente, por certificados nominativos de um fundo de poupança-reforma (FPR), de um fundo de poupança-educação (FPE) ou de um fundo de poupança-reforma/educação (FPR/E).
3 - Os fundos de poupança referidos no número anterior terão a forma de fundo de investimento mobiliário, de fundo de pensões ou, equiparadamente, de fundo autónomo de uma modalidade de seguro do ramo «Vida», devendo a respectiva denominação incluir a sigla PPR, PPE ou PPR/E, consoante os casos.
4 - Os certificados nominativos de um fundo de poupança podem ser subscritos por pessoas singulares ou por pessoas colectivas a favor e em nome dos seus trabalhadores.
5 - Os certificados nominativos de um fundo de poupança podem representar diversas unidades de participação do fundo de poupança, inteiras ou fraccionadas, as quais podem ser ou não desmaterializadas.
6 - Aos fundos de poupança constituídos sob a forma de fundo autónomo de uma modalidade de seguro do ramo «Vida» aplicam-se, para além dos requisitos estabelecidos no presente diploma, as seguintes condições cumulativas:
a) As respectivas provisões técnicas devem ser representadas ou caucionadas, com observância do disposto na portaria mencionada no n.º 4 do artigo 3.º; e
b) A concessão de empréstimos ou adiantamentos sobre a respectiva apólice não é admitida.”.
O n.º 4 do artigo 1.º tem redação semelhante à que já constava no n.º 2 do artigo 1.º do D.L. n.º 205/89, de 27 de junho, sendo que, no preâmbulo deste diploma se referia que: “Dado o importante papel que se reconhece aos «planos poupança-reforma» (PPR) como fomentadores da poupança e como esquemas complementares de reforma com vista a uma maior justiça social, para além da necessidade de se evitarem situações de dupla tributação para os participantes, ficam isentos do IRC os rendimentos dos fundos de poupança-reforma (FPR). De igual modo, são considerados como custos ou perdas de exercício, nos termos do regime previsto no n.º 2 do artigo 38.º do Código do IRC, os gastos suportados pelas pessoas colectivas com a subscrição de certificados FPR em nome e a favor dos seus empregados.”.
Na decisão recorrida considerou-se, como se viu, que o artigo 1.º, n.º 4, do D.L. n.º 158/2002, não contém proibição, nem a prescrição expressa de nulidade (no que respeita à designação de uma pessoa coletiva como beneficiária dos seguros).
No âmbito do contrato de seguro, em geral, parece-nos que é líquido que assim seja: “O segurado pode (…) designar uma entidade (pessoa coletiva) como beneficiária do seguro de vida. Assim, pode designar uma sociedade, uma associação, uma sociedade anónima ou uma fiduciária” (neste sentido, vd. Leonor Padilha de Melo; A Designação do Beneficiário nos Seguros do Ramo Vida; Faculdade de Direito, Escola do Porto, Universidade Católica Portuguesa, Outubro de 2016, p. 29, disponível em linha em: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/21544/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Leonor%20Padilha%20de%20Melo%20-%20A%20Designa%C3%A7%C3%A3o%20do%20Benefici%C3%A1rio%20nos%20Seguros%20do%20Ramo%20Vida.pdf).
Contudo, como decorre das precedentes considerações, o seguro de vida em questão, em que é tomadora a sociedade autora dos presentes autos, não tem autonomia da operação de aforro em que o mesmo se insere, mas sim, intrínseca conexão, sendo, aliás, a operação de aforro que delimita os termos em que o seguro de vida poderá operar.
Tal conexão tem, desde logo, um benefício evidente que a subscrição de um mero seguro de vida não comportaria: Por um lado, é aplicado um capital que comporta uma remuneração e, por outro lado, a operação de contratação do seguro de vida, através de PPR, comporta um benefício fiscal para a pessoa singular (cfr. artigo 21.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais) ou coletiva que o subscreva (sendo que, neste último caso, tal deriva do disposto no artigo 23.º do Código do IRC ou, em termos mais limitados, na alínea a) do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRC, por apenas poderem ser deduzidas até ao limite de 15% das despesas com pessoal, as realizações de utilidade social da pessoa coletiva, designadamente com despesas com o pessoal – sobre o ponto vd., IRC – Preenchimento da Declaração Modelo 22 do IRC 2022, edição da Ordem dos Contabilistas Certificados; pp. 167-168).
“Os PPR beneficiam de um regime fiscal que, por um lado, facilita a capitalização na fase de poupança e, por outro, não a penaliza na fase do reembolso. Não se consagra uma verdadeira isenção fiscal para os rendimentos gerados, mas antes um diferimento da sua tributação. Quer isto significar que, dentro de limites determinados, as contribuições para os fundos de poupança são dedutíveis à colecta do IRS, sendo que os reembolsos, embora sujeitos a imposto, beneficiam de condições mais favoráveis, designadamente as decorrentes do regime previsto para as pensões, prevendo-se uma regra especial de exclusão de tributação para atenuar o efeito da progressividade em caso de reembolso, parcial ou total, e estabelecendo-se também, no âmbito das transmissões por morte, um regime fiscal mais favorável.
Assim, aos PPR é atribuído um regime de opção contrariamente ao que sucede com as contribuições para a segurança social.
Contudo, a vantagem fiscal referida poderá esvanecer-se caso o sujeito passivo pretenda o reembolso dos certificados, salvo em caso de morte do subscritor ou quando tenham ocorrido, pelo menos, cinco anos a contar da respectiva entrega e ocorra qualquer uma das situações definidas na lei. Fora estas situações, as importâncias deduzidas anteriormente serão majoradas em 10 por centro, por cada ano ou fracção decorrido desde aquele em que foi exercido o direito à dedução e acrescidas à colecta de IRS” (assim, Filipe João Saraiva Fernandes; A Decisão Fiscal Planificadora: uma abordagem à sua dimensão teórica e prática; Universidade do Minho – Escola de Direito, 2012, pp. 125-126).
Mas, considerando a finalidade de promoção da subscrição de PPR, PPE e PPR/E, expressa no preâmbulo do D.L. n.º 158/2002, consistente na orientação de “um volume significativo de capitais para a poupança de médio e longo prazos destinada a satisfazer as necessidades financeiras inerentes à situação de reforma e, bem assim, para o desenvolvimento do mercado de capitais”, verifica-se que as finalidades de subscrição de tais planos não podem ser desligadas da finalidade a que respeitam, que, no caso dos PPR’s, é a de promoção das condições financeiras em situação de reforma.
Ora, apenas poderão reformar-se pessoas singulares e, não, como é óbvio, pessoas coletivas.
Ora, o que interessa fundamentalmente é saber se a norma em apreço poderá ou não ser afastada pela vontade dos sujeitos, nomeadamente no que concerne ao princípio da liberdade contratual que o artigo 405.º do Código Civil consagra.
Tem interesse, para a apreciação desta questão, a delimitação entre normas injuntivas e dispositivas.
Normas injuntivas “são as que se aplicam haja ou não declaração de vontade dos sujeitos nesse sentido”, enquanto que, normas dispositivas serão aquelas que “só se aplicam se as partes suscitam ou não afastam a sua aplicação” (assim, Oliveira Ascensão; O Direito - Introdução e Teoria Geral, 4.ª ed., Editorial Verbo, 1987, p. 478).
Conforme salienta o mesmo Autor (ob. cit., p. 481): “Se se praticar um acto jurídico que atinja disposição injuntiva, verifica-se normalmente a consequência própria, ou seja, a ineficácia.
Mas, podemos ir mais longe, e esclarecer que os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter injuntivo são nulos, salvo nos casos em que outro efeito resulte da lei. A consequência da violação de disposição injuntiva é a nulidade e não a anulabilidade, e só assim não acontecerá quando a lei consagrar outra solução (…)”.
Ora, a previsão normativa, constante do n.º 4 do artigo 1.º do D.L. n.º 158/2002, tem inequívoco conteúdo injuntivo: É possível a subscrição de certificados nominativos de um fundo de poupança, por pessoas singulares ou por pessoas coletivas, mas, neste último caso, apenas “a favor e em nome dos seus trabalhadores”.
Na realidade, uma vez que é condição para a concessão do benefício fiscal que, no caso da subscrição de um PPR (ainda que, na modalidade de seguro de vida) por pessoas coletivas, se opere a favor e em nome dos trabalhadores da pessoa coletiva, não nos parece que seja legalmente admissível ou conforme à lei, a subscrição de um seguro de vida, por intermédio de um PPR e beneficiando da dedução fiscal inerente, fora da condição legal prevista na norma.
O que tanto mais se compreende, se atentarmos nas “apertadas” regras em que é admitido o reembolso das aplicações em PPR sem perda do respetivo benefício fiscal, casos a que se reporta o n.º 1 do artigo 4.º do D.L. n.º 158/2002:
a) reforma por velhice do participante;
b) desemprego de longa duração do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar;
c) incapacidade permanente para o trabalho do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar, qualquer que seja a sua causa;
d) doença grave do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar;
e) a partir dos 60 anos de idade do participante;
f) frequência ou ingresso do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar em curso do ensino profissional ou do ensino superior, quando geradoras de despesas no ano respectivo.
Tais casos respeitam, todos eles, a vicissitudes relacionadas com a vida de pessoas singulares, precisamente aquelas em benefício de quem pode ser subscrito um PPR (ainda que, no caso de pessoas coletivas, as mesmas possam subscrever tais produtos, desde que o façam a favor e em nome dos seus trabalhadores).
Ou seja: No caso de a pessoa coletiva subscrever um certificado de adesão a um PPR, na modalidade de seguro do ramo Vida, a subscrição apenas poderá operar “a favor e em nome dos seus trabalhadores”.
De facto, não faria sentido que a subscrição pudesse, legalmente, operar “em favor” ou em benefício da pessoa coletiva, figurando esta como beneficiário do PPR, dado que, a finalidade da subscrição do produto em questão (que, repita-se, não constitui um seguro de vida autónomo e independente) é, precisamente, a de reforçar as condições financeiras para a reforma dos trabalhadores da pessoa coletiva que os subscreva e, não, viabilizar que a pessoa coletiva tenha um benefício – que não o fiscal – resultante da subscrição que realize.
Com efeito, “a criação dos PPR, assim como o benefício fiscal que lhes está associado, tiveram em vista a satisfação das necessidades financeiras dos seus titulares, em situação de reforma, podendo considerar-se integrados na política de protecção à terceira idade, embora dirigidos a destinatários que ainda não atingiram aquela faixa etária” (cfr. reclamação R-3863/08 (A2) dirigida ao Provedor de Justiça, consultada em: https://www.provedor-jus.pt/documentos/Parecer090220091.pdf).
Ora, nesse sentido, a norma do n.º 4 do artigo 1.º do D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho é injuntiva dos termos de subscrição de PPR, ainda que na modalidade de seguro do Ramo Vida, quando a subscrição do respetivo certificado tenha lugar por pessoa coletiva, determinando ou instando a que a mesma se opere “a favor e em nome dos seus trabalhadores” e, ao invés, inviabilizando ou vedando legalmente, a subscrição de tais produtos, quando a subscrição não tenha lugar a favor e em nome dos trabalhadores da pessoa coletiva.
Sucede que, no caso dos autos, dos seguros subscritos pela sociedade autora, por intermédio dos seus então gerentes, verifica-se que deles resulta que os mesmos se encontram subscritos tendo como beneficiário, em caso de vida da pessoa segura, a pessoa coletiva que os subscreveu (o beneficiário é o tomador do seguro), o que, nos parece, claramente, em desconformidade com a finalidade legal de esse seguro – quando inserido ou respeitando à subscrição de um PPR – ser objeto da subscrição de um PPR, “a favor e em nome” dos trabalhadores da pessoa coletiva.
Ora, dispõe o artigo 280.º, n.º 1, do CC que “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”.
“Há contrariedade à lei não só quando o objeto do negócio viola diretamente uma disposição legal, como também quando o objeto, sem ofender frontalmente a lei, tenta contornar uma proibição por esta imposta, chegando por outros meios ao resultado proibido. Numa palavra, há contrariedade à lei tanto nos negócios contra legem, como nos negócios concluídos em fraude à lei. Nestes, as partes celebram um negócio diverso daquele previsto na norma proibitiva que, todavia, conduziria exatamente ao mesmo resultado do negócio proibido. Apesar de a letra da lei não ser violada e, portanto, o negócio aparentemente ser válido, uma análise do elemento teleológico daquela demonstra uma ofensa clara do seu escopo. Isto acontece sempre que a norma proibitiva, no fundo, não veda apenas a ação por si tipificada, mas qualquer ação tendente à produção do resultado ilícito” (assim, Elsa Vaz de Sequeira, em anotação ao artigo 280.º do CC, no Comentário ao Código Civil- Parte Geral; Universidade Católica Editora; 2014, p. 693).
De facto, conforme também salienta Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, 2.ª ed., Almedina, 2000, p. 489), “[a] ilicitude pode emergir do resultado ou dos meios, isto é: o negócio ilícito pode alcançar algo que o Direito proíba ou, simplemente, pode prosseguir uma finalidade em si admissível, mas por meios que o Direito vede”.
Neste sentido, divergimos claramente do entendimento acolhido na decisão recorrida. Consideramos que é contrária à lei a subscrição de um PPR – na modalidade de seguro de vida - por uma pessoa coletiva, que não o seja de e em benefício dos seus trabalhadores (mesmo entendendo alargadamente este conceito, por forma a nele incluir o sócio-gerente/trabalhador, o que, se nos afigura discutível – Vd. sobre a distinção entre sócio-gerente, trabalhador e sócio-gerente/trabalhador, em particular, o Acórdão do STJ de 19-05-1998, Pº 98S364, rel. JOSÉ MESQUITA).
E, tal conclusão não se altera mesmo considerando o argumento, constante da decisão recorrida, de que se está perante um contrato de seguro “a favor de terceiro a favor de terceiro”: É que o contrato de seguro é, por definição, um contrato a favor e em nome de um terceiro. Mas, no caso, como decorre do exposto, esse contrato de seguro não tem autonomia contratual, porque se conexa com a subscrição de um plano de poupança e é este que, nesse caso, ou seja, no caso de subscrição de PPR, deve ser subscrito a favor e em nome do trabalhador da pessoa coletiva, pelo que, a designação beneficiária deverá conformar-se com o prescrito no D.L. n.º 158/2002, o que, no caso, não sucedeu.
Assim, por desrespeito do disposto no artigo 1.º, n.º 4, do D.L. n.º 158/2002, de 2 de julho, mostra-se ser nula, por contrária à lei, a estipulação contratual atinente à designação da sociedade autora como beneficiária do PPR, na modalidade de seguro de vida.
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C) Se foi simulado, sendo nulo, o negócio dos autos, nos termos do disposto no artigo 240.º do CC?
Considerando a resposta à questão precedente, mostra-se prejudicada a apreciação da questão atinente à simulação do negócio dos autos, que pressuporia, para o seu conhecimento, a improcedência da nulidade já declarada.
De todo o modo, ainda que assim não sucedesse, sempre mereceria adesão a conclusão constante da fundamentação de Direito da decisão recorrida.
Conforme refere Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, 2.ª ed., Almedina, 2000, p. 631), “O artigo 240.º põe, claros, três requisitos para a simulação:
- um acordo entre o declarante e o declaratário;
- no sentido duma divergência entre a declaração e a vontade das partes;
- com o intuito de enganar terceiros.
Estes elementos devem ser invocados e provados por quem pretenda prevalecer-se da simulação ou de aspectos do seu regime”.
Ora, certo é que, na situação em apreço, inexistem factos apurados dos quais se retire a existência de uma divergência entre a vontade real e a declarada pelos contraentes, no intuito de enganar ou iludir terceiros, nem de um pacto simulatório, nos termos a que isso exige o artigo 240.º do CC, pelo que, sempre soçobraria a invocação correspondente.
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D) Se o negócio deve ser reduzido e convolado, nos termos do artigo 292.º do CC, com entrega do capital investido e respetivo rendimento a cada uma das pessoas seguras?
Considera a 1.ª ré, nas alegações de recurso que apresentou que, em face da nulidade resultante da contrariedade da estipulação contratual de benefício do PPR em favor da sociedade autora “nos termos do disposto nos artºs. 292 e 293 do Código Civil, que expressamente preveem e permitem a redução e convolação do negócio nulo, e em respeito pelas supra referidas normas legais, e contratuais, no momento da maturidade dos sobreditos contratos de seguro, e estando vivas as pessoas seguras, a Ré Fidelidade ora recorrente, uma vez que lhe estava legalmente vedada a entrega do “capital investido” (e respetivo rendimento), à Autora sociedade, propôs-se entregá-lo a cada uma das pessoas seguras, designadas pela dita A. sociedade, tendo procedido à retenção na fonte, do correspondente imposto por cada uma delas, única maneira que cumprir, com respeito pelo enquadramento legal aplicável, e como modo de evitar a prática de ato ferido de ilegalidade, os contratos de seguro que nos autos se discutem, dos quais a A. sociedade era a tomadora e de uns era pessoa segura a A. MN e do outro, AN” (cfr. conclusão 11.ª).
Concluiu o 2.º réu, sobre este ponto, em particular que:
w) Não se encontrando provada (facto não provado e)) a essencialidade da cláusula nula para a formação da vontade de contratar da 1ª. A. – que era expressa e determinada pelos seus gerentes, ora apelante e ora 2ª. apelada –, a nulidade da cláusula em que é designada a 1ª. A. como beneficiária dos seguros de vida não determina a invalidade do contrato, por força do disposto no art. 292º. do Código Civil;
x) Quando os seguros foram contratados, era indiferente para a 2ª. A. que fosse ela ou a 1ª. A. a beneficiária, uma vez que era dona de metade do capital da S.E:E:C., Lda. e beneficiária de metade do investimento feito nos seguros de vida;
y) Nos contratos assinados pela 2ª. A. (também) em representação da 1ª. A. constavam as declarações  transcritas na conclusão f) supra, integrando a presente acção um clamoroso caso de abuso do direito, na modalidade venire contra factum proprium;
z) Devendo os contratos ser pontualmente cumpridos (C.Civil, art. 406º., nº. 1), a 1ª. Ré agiu correctamente quando ofereceu o pagamento do capital dos seguros a quem deles teria de ser beneficiário por força da lei;” (cfr. conclusões w) a z) das alegações de recurso).
Vejamos:
O artigo 292.º do CC estabelece a regra da redução do negócio jurídico, nos termos da qual: “A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada”.
Conforme salienta Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil; Vol. II, 2.ª ed., Lex, 1996, pp. 409-410), “(…) o artº 292.º do C. Civ. resolve a questão da divisibilidade do negócio jurídico no sentido de, em princípio, o vício relativo a um dos seus elementos não afectar os demais. Este regime aplica-se tanto no caso de o valor negativo do negócio ser a nulidade como a anulabilidade.
O princípio favorável à redução estabelecido no artº 292.º não tem aplicação, quando, como diz a parte final do preceito, «se mostre que este (o negócio) não teria sido concluído sem a parte viciada».
Em que termos se deve entender esta restrição?
(…) Primariamente, importa dizer que releva, neste domínio, a vontade hipotética ou conjectural das pates, atendendo-se, portanto, não ao que elas quiseram efectivamente (vontade real) no momento da celebração do negócio, nem ao que elas querem actualmente (vontade real actual), mas sim ao que elas teriam querido se se tivessem apercebido de que o ato era inválido e não poderia subsistir na sua integralidade.
O apuramento dessa vontade tem de fazer-se casuisticamente, levando em conta as particularidades do caso concreto, não sendo aqui se aplicar os critérios próprios da interpretação do negócio”.
A vontade hipotética das partes pode ser conforme à redução (se as partes quereriam que o negócio fosse amputado do elemento inválido) ou desconforme à redução (se as partes não quereriam o negócio sem o elemento viciado).
E, no caso de haver dúvidas sobre qual o conteúdo da vontade hipotética das partes?
“Funciona nestes casos o critério adoptado pelo Direito Positivo. Deste modo, uma vez que, segundo o artº 292.º do C. Civ., a redução só não tem lugar quando se prove uma vontade hipotética ou conjectural que a ela se oponha; na dúvida sobre o seu conteúdo, o negócio reduz-se” (assim, Carvalho Fernandes; Teoria Geral do Direito Civil; Vol. II, 2.ª ed., Lex, 1996, p. 410).
A redução opera devendo prevalecer “a economia do negócio, tal como as partes o quiseram, pelo que os efeitos produzidos pelo que do negócio restar são ainda efeitos negociais, cobertos pela autonomia da vontade” (cfr. Carvalho Fernandes; Teoria Geral do Direito Civil; Vol. II, 2.ª ed., Lex, 1996, p. 411).
Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, 2.ª ed., Almedina, 2000, pp. 662-663) sublinha que, para além de dois requisitos necessários para a ocorrência da redução do negócio – a existência de uma nulidade ou anulação meramente parcial e a inexistência de vontade contrária à conclusão do negócio sem a parte inválida – e “embora o artigo 292.º não o diga, temos de acrescentar três requisitos:
- o respeito pela boa fé;
- o respeito pelas regras formais;
- o respeito por outras normas imperativas”.
Refere o mencionado Autor (ob. cit., pp. 663-664) que, o respeito pela boa fé implica que “não há redução quando ela atente contra a confiança legítima das partes ou contra a materialidade subjacente”. O respeito pelas regras formais concretiza-se no facto de que “não pode, pela redução, chegar-se a um tipo negocial com exigências de forma não satisfeitas no negócio a reduzir”. E o respeito por outras normas imperativas, exemplifica com a situação – decidida pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 28-03-2000, rel. ANTÓNIO GERALDES – em que a redução conduziria à divisão de um terreno sem as necessárias licenças.
Revertendo estas considerações e aplicando-as ao caso dos autos, verifica-se não poderá proceder a pretensão de declaração de nulidade – integral – dos contratos celebrados.
Na realidade, desde logo, não se logrou apurar a essencialidade para a 1.ª autora da cláusula de beneficiário, relativamente aos contratos em questão, em caso de vida, ser o tomador de seguro (cfr. alínea e) dos factos não provados), que obste à redução do negócio jurídico.
A pretensão principal deduzida pelas autoras - de cumprimento contratual, visando a condenação da 1.ª ré a pagar à 1.ª autora o valor de € 60.000,00 - deverá, em conformidade, ser julgada improcedente, o mesmo sucedendo com a primeira pretensão subsidiária deduzida, consistente na declaração de nulidade do negócio com a consequência de restituição das verbas prestadas entre as partes, no âmbito dos contratos celebrados.
Inexiste, na verdade, como se viu, obstáculo à operatividade da redução, sendo certo que, nenhuma outra factualidade contende com o respeito pela boa fé, por regras formais ou por quaisquer normas imperativas e, nessa medida, não poderão operar, as consequências previstas no artigo 289.º, n.º 1, do CC, nos termos em que o pretendiam as autoras.
De acordo com o exposto, entende-se ser de reduzir a estipulação negocial inválida, no que respeita à indicação do beneficiário dos seguros de vida contratados no âmbito do PPR, caso em que operando o disposto no n.º 4 do artigo 12.º das condições gerais dos contratos em questão, será entendido como beneficiário, em caso de vida, a própria Pessoa Segura, assim improcedendo a pretensão principal e a primeira pretensão subsidiária formuladas pelas autoras na petição inicial, delas se absolvendo os réus, ora recorrentes, em conformidade.
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E) Se relativamente aos contratos assinados pela 2.ª autora em representação da 1.ª autora a presente acção constitui abuso de direito, na modalidade “venire contra factum proprium”?
Alegou, ainda, o 2.º réu, nas suas alegações de recurso, que não é admissível a 1.ª autora vir invocar uma pretensão contrária a uma cláusula que subscreveu e a uma declaração que prestou, num manifesto abuso de direito, conduta proibida pelo artigo 334.º do CC.
A apreciação desta questão pressuporia a validade do direito invocado, com base na estipulação contratual que atribuiu benefício à sociedade autora, validade que, como se viu, não ocorre, não assistindo às autoras o direito de que se arrogaram titulares.
Em conformidade com o exposto, mostra-se prejudicada a apreciação da questão em apreço.
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F) Se constitui abuso de direito a invocação de nulidade pela 1.ª ré?
A 1.ª autora, em contra-alegações, veio invocar que constitui abuso de direito a invocação de nulidade pela 1.ª ré.
Preliminarmente importa apreciar, antes de mais, se é admissível a invocação de tal questão nesta sede de recurso.
É que, conforme resulta da conjugação do disposto no artigo 663.º, n.º 2, do CPC, com o previsto no artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, no presente recurso, este Tribunal conhece de todas as questões suscitadas, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Por outro lado, atenta a sua função no âmbito do conhecimento dos recursos e sob pena de conhecer, em primeira linha, de questões antes não suscitadas no Tribunal de 1.ª instância, ao Tribunal de recurso apenas cumpre conhecer das questões suscitadas e daquelas que, não o tendo sido, sejam de conhecimento oficioso.
O Tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas (cfr., entre outros, o acórdão do STJ de 14-05-93, in CJSTJ, 93, II, p. 62 e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-11-95, in CJ, 95, V, p. 98).
Assim, ressalvada a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso (cfr. Ac. STJ de 23-03-96, in CJ, 96, II, p. 86), encontra-se excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso.
“A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa, pelo que o tribunal ad quem não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-2012, Processo 169487/08.3YIPRT-A.C1, relator HENRIQUE ANTUNES).
É que, de facto, “os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-04-2019, Processo 10776/15.5T8PRT.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES).
Contudo, a questão em apreço, atinente à invocação de abuso de direito da 1.ª ré na invocação de nulidade da estipulação contratual, constitui matéria de que o Tribunal deve oficiosamente conhecer, o que tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência.
“O abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objecto de apreciação e decisão, ainda que não invocado” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2012, Processo 116/07.2TBMCN.P1.S1, rel. FERNANDES DO VALE).
Em semelhante sentido, entre outros, vd. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-04-2002 (Processo 02B749, rel. ARAÚJO DE BARROS) e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2018 (Processo 2069/14.1T8PRT.P1.S1, rel. ROSA RIBEIRO COELHO).
No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-02-2019 (Processo 248015/09.2YIPRT.G1, rel. PURIFICAÇÃO CARVALHO) entendeu-se, porém, que:
“A apreciação e decisão quanto à existência de abuso do direito não depende de expressa invocação pelas partes, por se tratar de questão de direito (art. 664.º, 1.ª parte do CPC) e de matéria de interesse e ordem pública, sendo, pois, permitido o seu conhecimento oficioso. Todavia, a pronúncia oficiosa sobre tal matéria pressupõe que ao tribunal se deparem factos que manifestamente apontem para a verificação de um ilegítimo exercício do direito acionado, ou seja, não tendo a questão do abuso do direito sido suscitada pelas partes, apenas se imporá ponderar quando a matéria de facto revele a necessidade de convocar os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social, em ordem a determinar se o titular do direito o vem exercer, excedendo manifestamente tais limites, em clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.
Ainda sobre a temática, Maria Luíza do Valle Rocha (“O conhecimento oficioso do abuso do direito”, in Revista de Direito Civil, ano II, 2017, n.º 1, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, CIDP, Almedina, p. 216) conclui que: “Sob o abuso do direito (qualificação jurídica) incide o princípio da não adstrição do Tribunal e, portanto, pode ser conhecido de ofício. (…) Para que o tribunal possa conhecer oficiosamente o abuso do direito deve respeitar não só o pedido, mas também a causa de pedir – não sendo lícito ao tribunal conhecer de causa de pedir diversa – e o princípio do contraditório – sob pena de proferir uma decisão-surpresa, cuja consequência é a sua nulidade. (…) No âmbito jurisprudencial há um consenso sobre a possibilidade do conhecimento oficioso no abuso de direito, com fulcro nos precedentes”.
Vejamos, pois, se ocorreu o exercício abusivo de direito pela 1.ª ré na invocação da nulidade da estipulação contratual.
Dispõe o artigo 334º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Comentando o referido preceito legal refere Almeida Costa (Direito das Obrigações; 5ª Ed., 1991, p. 65) o seguinte: “Como se verifica, o nosso legislador aceitou a concepção objectiva do abuso de direito. Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário. Exige-se, todavia, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. A lei refere-se ao exercício de direitos - o caso paradigmático de actuação do instituto. A sua letra, portanto, não abrange imediatamente quaisquer hipóteses de inércia ou omissão de exercício que possam também considerar-se abusivas. Mas parece que isso não deve constituir obstáculo insuperável, contanto que se encontrem soluções do segundo tipo clamorosamente ofensivas da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito (...)”.
Menezes Cordeiro (Da Boa-Fé no Direito Civil, 1997, pp. 717-718) sustenta que o artigo 334º do CC é o resultado codificado de uma série de regulações típicas de comportamentos abusivos, apreciados pela doutrina germânica.
Abordando de forma detalhada e completa o instituto do abuso de direito o mesmo Autor (no Tratado de Direito Civil Português; Vol. I, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 199 a 213) enuncia seis tipos característicos em que se pode manifestar o «abuso de direito», a saber:
- A “exceptio doli” (que permitia no Direito Romano deter uma posição jurídica do adversário, num caso, invocando o defendente a prática, pelo autor, de dolo no momento da formação da situação jurídica levada a juízo e, noutro, contrapondo o defendente o incurso do autor em dolo no próprio momento da discussão da causa);
- O “venire contra factum proprium” (ablação do brocardo latino “venire contra factum proprium nulli concidetur”, significando, que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio acto, expressando a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios);
- As “inalegabilidades formais” (consistente na alegação, em contradição com a boa fé, de nulidade derivada da inobservância da forma prescrita por lei para certos negócios);--
- A “supressio” (posição jurídica que não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais o pode ser, pois, tal exercício atenta contra a boa fé) e a “surrectio” (caso em que uma pessoa vê surgir na sua esfera jurídica, por força da boa fé, uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria);
- O “tu quoque” (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partida do violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes); e
- O “desequilíbrio no exercício” (ou seja, aquelas situações em que ocorre desequilíbrio no exercício de várias posições jurídicas, nos diversos casos em que tal desequilíbrio se pode manifestar: exercício danoso inútil; dolo agit qui petita quod statim redditurus est; e a desproporcionalidade).
O abuso do direito pressupõe a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto onde ele deve ser exercido (cfr. Castanheira Neves, Questão de Facto, Questão de Direito, I-513 e sgs.; Cunha de Sá, Abuso do Direito, Lisboa, 1973-451 e sgs.; A. Varela, Abuso do Direito, Rio de Janeiro, 1982 e Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., anot. ao art. 334 CC; e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., p. 6).
O abuso do direito exige a alegação e prova de circunstâncias excepcionais relativas ao seu exercício, cujo ónus cabe ao demandado (arts. 334.º e 342.º CC).
O abuso de direito tem todas as consequências de um acto ilegítimo: Pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade nos termos gerais do art. 294.º do C.C., à legitimidade de oposição, ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (cfr. Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, p. 25).
Antunes Varela sublinha que a condenação por abuso de direito “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado de aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, de direitos de certo tipo”, acrescentando que, a solução do art. 334º do Código Civil só aponta para os casos de contradição manifesta (in R.L.J., Ano 128º, pág. 241).
Por seu turno, Castanheira Neves configura o abuso de direito como um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados (cfr. Questão-de-facto, questão-de-direito, ou, o problema metodológico da juridicidade: ensaio de uma reposição crítica; Coimbra, Almedina, 1967, p. 526, nota 46).
Segundo Coutinho de Abreu, “há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem” (Do Abuso de Direito, Almedina, Coimbra, 1999, p. 43).
Para Baptista Machado, o juiz tem de decidir primeiro a questão de saber se o direito invocado existe ou não e só no caso de concluir pela sua existência (não o caso inverso) lhe é lícito apreciar o exercício abusivo do mesmo direito (in Parecer publicado na C. J., Ano IX, Tomo 2, p. 17).
No caso, a imputação pela 1.ª autora, de abuso de direito da 1.ª ré, assenta na invocação de que a 1.ª ré emitiu apólices declarando que o beneficiário dos seguros era a sociedade autora, que anteriormente à contratação dos seguros dos autos, havia contratado e pago à sociedade autora os valores de seguros análogos, sem qualquer obstáculo ou ressalva, que aceitou ao longo dos anos as entradas de capital apresentadas pela sociedade e nunca durante o cumprimento do contrato de seguro avisou a sociedade autora de um vício no contrato.
Ora, não se afigura demonstrada factualidade que inculque no sentido de que a conduta da 1.ª ré, na invocação da nulidade por si invocada, envolva abuso de direito.
De facto, se é certo que a 1.ª ré emitiu em 02-01-2013 e, depois, em 09-01-2013, condições particulares distintas, mencionado nas primeiras, como beneficiário as pessoas seguras que subscreveram as propostas e, nas segundas, a tomadora do seguro – sociedade autora – como beneficiária das contratações efetuadas, certo é que, não se pode inferir de tal emissão algum abuso, desconhecendo-se os termos que determinaram uma tal alteração.
Do mesmo modo, da circunstância de a 1.ª ré ter pago, anteriormente, valores de seguros análogos sem ressalva ou obstáculo, não se infere algum abuso de direito relativamente à invocação de nulidade efetuada pela 1.ª ré, pois, como se viu, estão em causa, nos presentes autos, produtos específicos – PPR, na modalidade de seguro do ramo Vida – e, não, a mera subscrição de um seguro de vida.
Também do recebimento das entradas de capital, ao longo dos anos, não advém alguma circunstância que determine a paralisação do exercício do direito à invocação da nulidade da estipulação beneficiária por parte da 1.ª ré, sendo que, tal recebimento se insere, aliás, no normal desenvolvimento da execução contratual correspondente, não existindo alguma tutela de confiança frustrada nesse período, por banda da sociedade autora que, apenas em sede de pedido de reembolso do PPR, se viu confrontada com a invocação de não pagamento por parte da 1.ª ré.
A 1.ª ré, ao invocar a nulidade da estipulação beneficiária, não atuou, pois, em abuso de direito, exercendo antes o respetivo direito dentro dos limites admissíveis e em conformidade com a boa fé que lhe era exigível.
Não se mostra, pois, violado o disposto no artigo 334.º do CC, perante o decidido pelo Tribunal recorrido.
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G) Se procede a pretensão subsidiária de condenação do 2.º réu no pagamento do valor de € 30.000,00?
Considerando o decaímento das demais pretensões deduzidas pelas autoras, cumpre apreciar se procede a segunda pretensão subsidiária de condenação do 2.º réu no pagamento do valor de € 30.000,00.
A pretensão em questão, deduzida pelas autoras na petição inicial é do seguinte teor:
“Subsidiariamente, caso o 2º Réu, haja praticado qualquer acto, na qualidade de gerente da 1ª A., no sentido de alteração aos termos contratuais dos seguros acima referidos, ou de alguma forma ter tido conhecimento de qualquer alteração ao teor das apólices, e não tendo dado conhecimento às cessionárias da consequente diminuição dos ativos da Sociedade, deve o 2º Réu ressarcir as mesmas no valor de €30.000,00 (Trinta mil Euros) que recebeu da 1ª Ré que e omitiu nas negociações de cessão de quotas, porquanto diminuiu o valor dos activos da sociedade sem dar conhecimento aos cessionários” (sendo que, a pretensão expressa na 2.ª parte do pedido formulado em 3.º lugar – relativamente a que fosse “a 1ª Ré condenada a pagar à 2ª Autora o valor referente ao capital e juros relativas às apólices em que esta é pessoa segura” – tal pretensão foi já considerada inepta e absolvida a 1.ª ré, em conformidade, de acordo com o despacho proferido em sede de audiência prévia).
Sobre a pretensão em questão, as autoras alegaram a factualidade constante dos artigos 54.º a 75.º da petição inicial.
Ora, não resulta dos factos apurados alguma conduta censurável ao 2.º réu, que lhe possa determinar alguma responsabilidade pela alteração dos termos contratuais referentes às apólices de seguro em questão, nem algum facto no sentido de ter omitido às cessionárias das quotas transmitidas – conforme referido no facto provado n.º 16) – algum facto referente às subscrições de PPR, na modalidade de seguro de vida, em questão, que pudesse determinar a procedência da pretensão de pagamento às autoras da quantia de € 30.000,00.
O 2.º réu deverá, pois, em conformidade ser absolvido do pedido em questão, improcedendo, na íntegra, a pretensão deduzida pelas autoras.
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As apelações procederão, devendo ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que, julgando improcedente a ação, absolva os réus dos pedidos – principal e subsidiários - formulados.
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De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, procedendo as apelações – não relevando, para este efeito, a improcedência de parte da impugnação da matéria de facto suscitada - , a responsabilidade tributária incidirá, in totum, sobre as apeladas, que decaíram integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível em:
1) Determinar a alteração da redação do facto provado n.º 2, que passa a ser a seguinte: “2. Os então sócios-gerentes da 1.ª autora, ora 2.ª autora e 2.º réu pretenderam que a sociedade autora efetuasse uma aplicação com capitalização, em modalidade de seguro de vida, em que o beneficiário do seguro de vida fosse a tomadora de seguro, que nas propostas de seguro subscritas era a 1.ª autora, para assim ser obtido o benefício fiscal correspondente à aplicação efetuada (“LEVEXPERT PPR – SÉRIE X – G136500”);”;
2) Determinar a eliminação do facto provado n.º 5;
3) Determinar a alteração da redação do facto provado n.º 6, que passa a ser a seguinte: “6) Para o efeito em 2), foram apresentadas à sociedade autora, pela seguradora 1.ª Ré, quatro propostas de seguro no valor unitário de € 12.500,00, sendo duas em que consta como Pessoa Segura a 2.ª Autora MN e assinadas por esta e outras duas em que consta como Pessoa Segura o 2.º Réu AN e assinadas por este.”;
4) No mais, julgar improcedente a impugnação de facto pretendida.
5) Julgar, quanto ao mérito dos recursos, procedentes as apelações, determinando-se a revogação da decisão recorrida e sua substituição pela presente, julgando improcedente a ação e, em consequência, absolvendo os réus dos pedidos – principal e subsidiários - formulados.
Custas pelas apeladas.
Notifique e registe.
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Lisboa, 14 de julho de 2022.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento
Maria José Mouro Marques da Silva