Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16182/20.2T8SNT-A.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
ENTREGA DE COISA CERTA
IMÓVEL ARRENDADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
PRESSUPOSTOS
LEIS COVID 19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.–O acto de execução da entrega do local arrendado, nomeadamente no âmbito de um processo executivo de entrega de coisa imóvel arrendada, só fica suspenso no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório instituído pela Lei nº 1-A/2020, de 19.03, alterada pela Lei nº 13-B/2021, de 5.04, quando, por força da decisão final a proferir no referido procedimento, o arrendatário possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.

2.–Situação essa que tem de ser alegada e provada pelo arrendatário, e apreciada pelo tribunal, por forma a fundamentar a mencionada suspensão, que não é automática.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


Em 21.11.2020, A e B intentaram ação executiva comum para entrega de coisa certa contra C, invocando:

1º–Por sentença condenatória já transitada em julgado, proferida no âmbito do processo nº …/20.5T8AMD, que correu termos no Juízo Local Cível da Amadora, Juiz 1, foi julgada procedente, por parcialmente provada, a ação interposta pelos agora exequentes e, em consequência, foi decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a aqui executada, tendo a mesma sido condenada a entregar aos exequentes o locado devoluto de pessoas e bens.
2º–Sucede que, não obstante ter a sentença já transitada em julgado, o certo é que a executada não cumpriu o aí decidido.
3º–Os aqui exequentes tentaram obter por via extrajudicial a execução da sentença. No entanto, até a data de hoje, a aqui executada não procedeu à entrega do locado.
4º–A sentença condenatória é título executivo nos termos dos artigos 703º, nº1, al. a) e 704º, ambos do C.P.C.
5º–O presente despejo é motivado pela falta de pagamento de rendas o qual já se verificava desde julho de 2018, pelo que não é abrangida pelo deferimento dos despejos decorrente da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março com as alterações introduzidas pela Lei nº 58-A/2020 de 30 de setembro.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se a V. Exa. a execução da referida sentença, para que através dela, possam os exequentes tomar posse do locado de propriedade destes, livre de pessoas e coisas”.

A Sra. AE remeteu o processo ao juiz requerendo, nos termos da al. d) do nº 1 do art. 723º do CPC, informação sobre se podia ou não efetuar a entrega do imóvel objeto da execução, para agir em conformidade, tendo sido proferido, em 10.1.2021, o seguinte despacho:Atendendo à informação prestada pelo Agente de Execução, permite concluir pela verificação da hipótese da norma inserta no artigo 861º, nº 3, 757º, nº 4 a 6 do CPC. Assim, defere-se a requisição do auxílio da força pública para o ato, devendo ser considerado, se necessário, o disposto no artigo 861º, 6 do CPC”.

Em 11.1.2021, a Sr. AE lavrou a seguinte “descrição”:No dia 8 de janeiro de 2021, pelas 11.00horas, desloquei-me à Av. …, n.º ..., Cave esquerda, na A_____, para levar a efeito a entrega naquele imóvel aos exequentes, tal como requerido nos autos. Sucede, que embora aparentemente se encontrassem pessoas no local, certo é que ninguém atendeu, não tendo sido possível contactar com a executada ou algum familiar ou pessoa próxima. Pelo exposto, dei por concluída a diligência, havendo necessidade de se proceder a arrombamento de portas. Esta necessidade existe também, para alterar as fechaduras”.

A AE designou o dia 5.2.2021 para levar a efeito a entrega do imóvel com auxílio da PSP.

Em 4.2.2021, a AE notificou os exequentes de queem consequência da entrada em vigor da Lei n.º 4-B, de 1 de fevereiro a qual, entre outras diligências, suspende as entregas no âmbito dos despejos, não irei levar a efeito a diligência que se encontrava designada para o dia 5 de fevereiro, pelas 10.00h”.

Em 6.7.2021, a AE remeteu os autos ao juiz, com a seguinte informação:Pese embora tenha sido agendado pela signatária o dia 13 de julho de 2021, para a realização do despejo, surge a dúvida quanto à legalidade da sua efetivação (dia 13-07-2021). Pelo que ao abrigo no disposto no artigo 723 nº 1 al) d, vem questionar se pode ou não realizar a diligência pretendida”.

Em 8.7.2021, foi proferido o seguinte despacho:Conforme é consabido, a situação epidemiológica provocada pelo coronavírus conduziu à implementação de medidas excecionais e temporárias com vista a salvaguardar a saúde pública, o funcionamento da economia e o acesso a bens essenciais por todos os cidadãos. No âmbito do processo executivo, o legislador vem sendo coerente desde a aprovação da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, e subsequentes alterações quanto à proteção do devedor, especialmente nas situações em que esteja em causa a sua habitação própria e permanente e subsistência. Assim, ficam suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família-, não distinguindo o legislador se se trata de morada de família dos executados ou de terceiros - nº 7, al. b) 6ºE - lei 13-B/2021. Defere-se a requisição do auxílio da força pública para o ato, devendo ser considerado, se necessário, o disposto no artigo 861º, 6 do CPC. Assim, deve o Sr. AE confirmar se o imóvel consiste na casa de morada de família, sendo que na positiva, fica suspensa a diligência[1].

Não se conformando com o teor da decisão, apelaram os exequentes, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
ANos presentes autos de execução para entrega de imóvel, inquirida pela Sr.ª Agente de Execução sobre se poderia proceder ao despejo do imóvel arrendado, cumprindo a douta sentença proferida na ação principal, decidiu a Sr.ª Juiz que, sendo o imóvel a ser despejado casa de morada de família, ficava suspensa a diligência de entrega.

BOra é certo que o artigo 6.º-E do da Lei nº 1-A/2020, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 13-B/2021, de 05.04, dispõe no seu nº 7:
7-Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
a)-…
b)-Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c)-Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;

CPorém, dispõe o nº 8 do mesmo artigo:
Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.

DAnalisando esta disposição legal retiramos daqui o seguinte:
a)-O executado pode requerer a suspensão do despejo em sede de processo executivo.
b)-Para tanto tem de alegar e provar que a entrega judicial do imóvel seja suscetível de causar prejuízo à subsistência do executado.
c)-Desde que essa suspensão não causa prejuízo grave à subsistência do exequente ou lhe cause dano irreparável.

E–Isto é, a suspensão do despejo só pode se decretada: -a pedido do executado e -se se verificarem as condições referidas nestas alíneas b) e c), condições essas que têm de ser invocadas pelo executado; 3º-e só pode ser decretada depois de ouvido o exequente; -Desde que essa suspensão não causa prejuízo grave à subsistência do exequente ou lhe cause dano irreparável.

F–Ora a suspensão do despejo foi decretada sem que o executado a requeresse e sem que fosse ouvido o exequente.

G–Por outro lado, trata-se aqui da falta de pagamento de rendas, sendo certo que esse não pagamento de rendas vem ocorrendo desde 2018, dois anos antes de surgir a pandemia do covid-19.

H–Não conhece o exequente quaisquer bens à executada suscetíveis de penhora, pelo que esta está a causar, e continuará a causar aos exequentes um prejuízo irreparável.

I–Acresce que os exequentes vivem das suas parcas reformas, que, no conjunto, não ultrapassam 1.000,00 euros, sendo a renda do imóvel um complemento das suas reformas imprescindível para a sua subsistência, pois são idosos e doentes.

J–A suspensão da entrega do imóvel, a manter-se, seria, neste caso, um verdadeiro abuso do direito na medida em que violaria o fim social e económico do direito à suspensão do despejo que é o de proteger as pessoas que, em virtude da pandemia, deixaram de pagar as rendas, o que não sucede no presente caso porquanto o não pagamento das rendas vem ocorrendo desde 2018.

K–E violaria, pela mesma razão, o espírito da lei, e “as circunstâncias em que a lei foi elaborada”, nos termos do artigo 9º do Código Civil, que foi o de suspender os despejos de casas de morada de família arrendadas, cujos inquilinos, em virtude de desemprego ou qualquer outra diminuição de rendimentos decorrente da pandemia de covid-19 e não para proteger incumprimentos muito anteriores a esta situação, como é o caso.

L–A douta decisão recorrida violou o artigo 6.º-E do da Lei nº 1-A/2020, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 13-B/2021 e o artigo 9º do Código Civil, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra em que se ordene que deverá efetuar-se a diligência de entrega do imóvel.

Não se mostram juntas contra-alegações.

QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), a única questão a decidir é se o tribunal devia/podia ter suspendido a entrega da fração.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante é a constante do relatório supra.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A presente execução é de entrega de coisa certa (de imóvel), tendo como título a sentença proferida em 9.10.2020, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível da Amadora - Juiz 1, no P. /20.5T8AMD, que decretou a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a exequente e a executada, por falta de pagamento de rendas (parte da de julho de 2018 e das subsequentes), e a entrega do locado aos exequentes, livre de pessoas e bens.
Nos termos do art. 862º do CPC, à entrega de coisa imóvel arrendada aplicam-se as regras gerais da execução para entrega de coisa certa, previstas nos arts. 859º a 861º do CPC, com as alterações constantes dos arts. 863º a 866º do mesmo diploma legal, nomeadamente, a possibilidade de suspensão da execução nos termos do art. 863º, e de deferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação nos termos dos arts. 864º e 865º.
Por força da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 no país e no mundo, foram aprovadas medidas excecionais e temporárias de resposta à referida situação, pela Lei nº 1-A/2020, de 19.03.

Assim, dispunha o art. 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, no que ora importa, que:1- Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, …, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID -19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública. 2- O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional. … 10- São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria”.

Este artigo veio a ser alterado pela Lei nº 4-A/2020, de 6.04, passando a ter a seguinte redação, no que ora interessa: 1- Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, … , ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS–CoV-2 e da doença COVID -19, a decretar nos termos do número seguinte. … 6- Ficam também suspensos: … b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial. … 11- Durante a situação excecional referida no nº 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.

A Lei 4-A/2020 veio a ser alterada pela Lei nº 16/2020, de 29.05, que revogou o art. 7º da Lei nº 1-A/2020 (art. 8º), aditando-lhe, porém, o art. 6º-A, com a epígrafeRegime processual transitório e excecional”, em cujo nº 6 se estipula que ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:  “ b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa; …”, e no nº 7 que “Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes”.

A Lei nº 1-A/2020, de 19.03, veio a ser, novamente, alterada pela Lei nº 4-B/2021, de 1.02, que revogou o art. 6º-A aditado pela Lei nº 16/2020, de 29.05 (art. 3º), e aditou o art. 6º-B, com a epígrafe “Prazos e diligências”, cujo nº 6, al. b) determina a suspensão de quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, com exceção dos pagamentos que devam ser feitos ao exequente através do produto da venda dos bens penhorados (i), e dos atos que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial (ii), e em cujo nº 11 se estipula que “São igualmente suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais atos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.

Por último, a Lei nº 1-A/2020, de 19.03, veio a ser, novamente, alterada pela Lei nº 13-B/2021, de 5.04, que revogou o art. 6º-B aditado pela Lei nº 4-B/2021, de 1.02 (art. 6º), e  lhe aditou o art. 6º-E, que regula um “Regime processual excecional e transitório” a vigorar no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, em cujo nº 7 se estipula que ficam suspensos no decurso do referido período “b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”, e no nº 8 que “Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária”.

Por força da legislação referida, andou bem o tribunal recorrido ao determinar a suspensão da execução, a confirmar-se ser o imóvel a entregar casa de morada de família?
Entendem os apelantes que não, porquanto, por força das disposições conjugadas dos nºs 7, als. b) e c) e 8º, do referido art. 6º-E da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, a suspensão do despejo só pode ser decretada havendo pedido do executado nesse sentido e mediante a invocação de se verificarem as condições referidas nas mencionadas als. b) e c) (o que no caso não ocorreu), depois de ouvido o exequente (o que também não ocorreu), e se não causar dano irreparável a este (o que também não acontece).
Alegam, ainda, os apelantes que, que estando em causa uma falta de pagamento de rendas desde 2018, não conhecendo os exequentes à executada quaisquer bens suscetíveis de penhora, vivendo das suas parcas reformas e sendo idosos e doentes, a executada está a causar aos exequentes prejuízo irreparável, pelo que a suspensão da entrega do imóvel, a manter-se, consubstanciaria um verdadeiro abuso de direito. 
Salvo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que lhes assiste razão.

A análise da evolução legislativa e uma interpretação conjugada do art. 6ºE, nºs 7, als. b) e c), e 8, da Lei nº 1-A/2020, de 19.03, levam-nos a perfilhar a interpretação que sobre os mesmos faz J. H. Delgado de Carvalho, em O Regime Processual Transitório e Excecional estabelecido pela L 13-B/2021, de 5/4 (Incidências na Ação Executiva), a págs. 7/8 e 13/14, a saber, “… Numa situação de pandemia, como aquela que é causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, que o país atravessa, facilmente se compreende o propósito do legislador de evitar que as famílias fiquem sem habitação (própria ou arrendada), não apenas devido às disfunções que essa situação provoca no seio familiar, como, sobretudo, para evitar o inusitado crescimento de pessoas em situação de sem-abrigo, face à previsível falta de resposta das entidades assistenciais, dado que as pessoas ficam mais vulneráveis e expostas aos perigos de contágio e disseminação do vírus. … Com esse objetivo, manteve-se suspensa a entrega judicial de imóvel destinado a casa de morada de família do executado e do insolvente, que já se encontrava prevista no art. 6.º-B, n.º 11, 1.ª parte, L 1-A/2020, na redação da L 4-B/2021, de 1/2 (cf. art. 6.º-E, n.º 7, al. b), L 1-A/2020, com as alterações introduzidas pela L 13-B/2021, de 5/4).No domínio do processo de execução, aquela medida destina-se à proteção do executado no confronto com os credores (exequente ou reclamantes), vale dizer, quando o beneficiário da entrega forçada da casa de morada de família seja um daqueles credores: seja na qualidade de adquirente desse imóvel na execução para pagamento de quantia certa, ou seja como titular de um direito à entrega da casa de morada de família na execução para entrega de coisa certa, desde que não se verifique a fattispecie da alínea subsequente que prevê um regime especial para a entrega de coisa imóvel arrendada (ou seja, da al. c) do n.º 7 do art. 6.º-E L 1-A/2020, na redação dada pela L 13-B/2021) [2]. O caso específico das ações e procedimentos referidos na alínea c) do n.º 7 do art. 6.º-E L 1-A/2020 3.1. Âmbito de aplicação: a alínea c) do n.º 7 do art. 6.º-E regula especificamente o ato de entrega judicial de imóvel arrendado que for casa de morada de família, vale dizer, o mencionado normativo protege o arrendatário habitacional, seja qual for a natureza do processo ou procedimento em que aquele ato de entrega possa ocorrer. A entrega judicial de imóvel arrendado para habitação obedece a uma ponderação casuística, e não apenas abstrata (cf. a al. c) do n.º 7 do art. 6.º-E que não impõe, em regra, a suspensão do ato de entrega do locado), que ocorre incidentalmente no processo ou procedimento. O executado e o insolvente não têm de suscitar o incidente para suspensão da entrega; já o arrendatário habitacional tem de se opor ao despejo. Por conseguinte, quanto ao ato de entrega de coisa imóvel, importa distinguir: - nas execuções, se o imóvel pertencer ao executado e for a casa de morada de família deste, é um ato que não se pratica em qualquer caso, durante o período de vigência do RPTE (regra da suspensão) – cf. al. b) do n.º 7 do art. 6.º-E; … - nos demais processos (de execução para entrega de imóvel arrendado para fins habitacionais) e procedimentos indicados na alínea c) do n.º 7 (p. ex., entrega de imóvel arrendado para habitação no domínio do Procedimento Especial de Despejo), o ato de entrega, em regra, pratica-se (regra da não suspensão), exceto se for demonstrada, incidentalmente, a situação de fragilidade do arrendatário ou ex-arrendatário.” (sublinhados nossos).

Como resulta de forma expressa da lei (quer da atual redação, quer das anteriores), o ato de execução da entrega do local arrendado, nomeadamente no âmbito de um processo executivo de entrega de coisa imóvel arrendada só fica suspenso no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório, quando, por força da decisão final a proferir no referido procedimento, o arrendatário possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Situação essa que tem de ser alegada e provada pelo arrendatário, e apreciada pelo tribunal, por forma a fundamentar a mencionada suspensão.

Ou seja, a suspensão em causa não opera ope legis, não é automática [3], mas decretada pelo tribunal, caso a caso, se verificados os pressupostos constantes da lei.

Neste sentido se pronuncia Higina Castelo, em O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, na RMP Número Especial COVID-19: 2020, págs. 336/337, entendendo que a questão terá de ser apreciada em incidente próprio: “… Após o fragmento relativo ao período de aplicação, a norma estabelece que são suspensos determinados processos – processos declarativos (ações) de despejo, procedimentos especiais de despejo, e processos executivos (execuções) para entrega de coisa imóvel arrendada – quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa. Da gramática da disposição, resulta que a suspensão do processo não é automática (…), antes carecendo da prévia apreciação de um requisito complexo: que «o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa». O tribunal terá de aferir os pressupostos de facto integradores daquele requisito complexo e composto por conceitos indeterminados: a decisão judicial final a proferir tem de ser suscetível de colocar o arrendatário em situação de fragilidade, por qualquer razão social imperiosa,nomeadamente por falta de habitação própria. O tribunal carecerá, assim, de saber qual a situação financeira e patrimonial do arrendatário. Tendo em consideração o princípio dispositivo, densificado nos artigos 3º e 5º do CPC em título de disposições e princípios fundamentais, o tribunal só deverá apreciar a questão da suspensão se a mesma for suscitada pela parte que nela tem interesse, com indicação dos factos que a fundamentam, e dando oportunidade à parte contrária de exercer o contraditório. Trata-se de um incidente enxertado na marcha do processo a que se aplicarão os artigos 292º a 295º do CPC”.

Neste sentido se pronunciaram, também, os Acs. da RP de 9.12.2020, P. 1570/19.5YLPRT.P1 (Mendes Coelho), da RL de 25.2.2021, P. 3463/19.7T8VFX.L1-2 (Pedro Martins), e de 18.11.2021, P. 2555/19.7T8SXL.L1-2 (Paulo Fernandes da Silva), todos em www.dgsi.pt.
Não tendo sido feito qualquer requerimento pela executada no sentido de ser suspensa a entrega da fração, por aplicação do Regime Processual Excecional e Transitório implementado pela Lei nº 13-B/2021, de 5.04, não tinha o tribunal recorrido de determinar a suspensão da execução confirmando-se ser o imóvel a entregar casa de morada de família.
Assiste, pois, razão aos apelantes, merecendo provimento a apelação, pelo que se deve revogar o despacho recorrido nesta parte, prosseguindo seus termos as diligências para a entrega da fração.
As custas da apelação, na modalidade de custas de parte, são a cargo da apelada, porquanto, não obstante não tenha contra-alegado, a decisão do presente recurso reflete-se negativamente na esfera jurídica daquela - art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se, em consequência, o despacho recorrido na parte em que determinou a suspensão da execução confirmando-se ser o imóvel a entregar casa de morada de família.
Custas pela apelada.



Lisboa, 2022.01.11


                         
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa




[1]Este despacho foi notificado à executada no dia 9.7.2021 – refª. 19169954.
[2]Por exemplo, se a execução se basear numa sentença judicial que condene o possuidor ou detentor a restituir ao proprietário o imóvel possuído ou detido, sendo este imóvel a casa de morada de família do obrigado à restituição”.  
[3]Neste sentido se pronuncia Luís Menezes Leitão, Os prazos em tempos de pandemia COVID-19, in Estado de Emergência – COVID-19 Implicações na Justiça, CEJ, 2.ª ed., pág. 71, consultável em (http:// www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19.pdf), que escreve “Destes processos apenas um deles é urgente, o procedimento especial de despejo, mas a lei estabelece um regime geral de suspensão, que tem a particularidade de depender da situação especial de fragilidade do arrendatário. Parece, assim, que o processo pode continuar quando essa situação de fragilidade não exista, mas a lei não esclarece em que termos”.