Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4593/20.8T9LSB.L2-9
Relator: FERNANDA SINTRA AMARAL
Descritores: DIFAMAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Percebe-se que, nos crimes de difamação e de injúria, p. e p. pelos arts. 180º e 181º, do Código Penal, haja uma potencialidade conflituante entre o direito à honra e consideração com outros direitos constitucionalmente consagrados, com particular ênfase para a liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos.
II. Não existe entre os referidos direitos qualquer relação de prevalência, devendo a sua concordância prática ser alcançada através do critério da proporcionalidade que, na análise caso a caso dos bens e valores em conflito, ditará a compressão de um deles.
III. Não se olvide que o direito penal reveste uma natureza fragmentária, de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, não abarcando as meras insignificâncias.
IV. O mero incómodo ou melindre causados pelo uso de certas expressões não bastam, de forma alguma, para merecer tutela penal, não se reconhecendo nelas um significado tal que provoque ofensas à dignidade e ao bom nome, ou que consubstanciem uma qualquer “danosidade social intolerável”.
V. Concluir de outra forma, seria atentar contra um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso – a liberdade de expressão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
I.1 No âmbito dos autos de inquérito n.º 4593/20.8T9LSB do Ministério Público da Comarca de Lisboa e a correrem termos (actos jurisdicionais) no TCIC - Juiz 4, Lisboa - Tribunal Central Instrução Criminal, em que é arguida AA, com os demais sinais nos autos, foi proferido, em 07 de Março de 2024, despacho de não pronúncia, em que se decidiu o seguinte [transcrição da parte decisória]:
“(…)
NÃO PRONUNCIO AA, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180º, nº 1 e 182º, do Código Penal e um crime de injúria, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e 182º, do Código Penal.
(…)”
»
I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o assistente BB, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
Conclusões

A decisão instrutória não pronunciou a arguida AA pelos crimes de injúria e de difamação, de que vem acusada.

Para fundamentar a sua decisão, o Juiz de Instrução Criminal entendeu, em síntese, que:
- É "...difícil de compreender o fundamento da acusação particular, ou seja, em que factos suporta o assistente a sua pretensão criminal...", admitindo, no entanto, que "...por estar a negrito destacado...", seja o facto de a arguida "...ter proferido as expressões descritas no ponto 9 da acusação particular (fls. 102)".
- "...de acordo com a acusação particular, se encontra ostensivamente fora das expressões proferidas pela arguida o que a seguir é deduzido e acrescentado pelo assistente".
- "De acordo com a acusação particular, não são atribuídos ao assistente [quis dizer, por certo, à arguida] quaisquer factos susceptíveis de afectar ou beliscar a honra ou a consideração do assistente";
- "Mesmo em termos de juízos opinativos não se compreende sequer que possam ter qualquer conteúdo ofensivo da honra ou consideração do assistente".
- E que, por isso, "...não são imputados aos arguidos [quis dizer por certo, à arguida] factos que integram qualquer previsão típica quanto aos crimes de difamação e injúria";
[...]
- "...não se vislumbra de que forma é que os elementos as compõem [as incriminações] se encontram preenchidos pela conduta especificamente atribuída à arguida na acusação particular.
[--]
-"Não é possível admitir que se encontra imputada à arguida a prática de juízos atentatórios da sua honra e consideração, por não ter referência senão de um desacordo entre as partes";
- "O descrito como tendo sido afirmado pelo arguido [quis dizer, por certo, à arguida] resulta, assim, da consagração da liberdade de expressão, prevista nos arts. 37° da CRP e 10° da DUDH";
- "Por isso, não se vislumbra a imputação de qualquer conteúdo de ilícito, mesmo não penal, da conduta descrita na acusação particular".

Sucede que o escrito da arguida que deu origem à queixa apresentada pelo assistente, e que consta da acusação particular, não se limita a formular opiniões ou pontos de vista divergentes dos do assistente, não é um mero exemplo de liberdade de expressão da arguida, mas ofende a honra e a consideração devidas ao assistente e preenche os tipos de crime de que que a arguida vem acusada.

A arguida escreveu na parte final do e-mail de ...-...-2020 (como está transcrito no ponto 9 da acusação particular):
"Você revelou-se para mim uma total desilusão, contava com sangue jovem e honesto e vejo uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade".

Nesse trecho do seu e-mail, a arguida afirmou, primeiro, que esperava do assistente sangue jovem e honesto, e, depois, logo a seguir, que o assistente a desiludiu porque é uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo.

É por demais evidente que a afirmação da arguida de que o assistente é uma "pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade" (2a parte da frase) foi feita por contraponto à juventude e à honestidade do assistente que a arguida tinha acabado de afirmar (na 1a parte da mesma frase), que dele esperava.

Sendo a juventude do assistente inequívoca, porque este nasceu em ... de ... de 1994, só a falta de honestidade é suscetível de a ter desiludido.

Se a arguida afirmou que esperava uma coisa do assistente e que se deparou com outra é porque o significante para o que esperava do assistente — o ser honesto —não se verifica.

Aliás, "...pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade" é afirmação normalmente associada a uma pessoa desonesta, porque a ambição e a sede de protecionismo (de quem só participa no que lhe dá visibilidade) são associadas, pelo comum das pessoas, a traços de carácter e comportamentais contrários e incompatíveis com honestidade, como são a falta de decoro, o descomedimento e desregramento, a falta de honradez, a falta de probidade, a falta dignidade, a falta de seriedade e de integridade de carácter.
10°
A forma sub-reptícia, o subterfúgio, com que a arguida, na parte final do seu e-mail de ...-...-2020, fez o contraponto entre, por um lado, o sangue honesto que esperava do assistente e, por outro lado, a ambição e a sede de protagonismo, não retira às palavras da arguida a carga de ilicitude penalmente relevante, antes reforça a intenção de a arguida chamar não honesto desonesto ao assistente, e implica dolo pois só usa de subterfúgios quem quer formular um juízo de desvalor que sabe ter, ou poder ter, um conteúdo ofensivo de outrem.
11°
O juízo de desonestidade é um dos juízos mais ofensivos da autoestima pessoal e social das pessoas, e põe em causa o carácter do ofendido.
12°
A contraposição entre a esperada honestidade e a proclamada ambição e sede de protagonismo do assistente não pode deixar de ter relevância penal e de preencher os tipos de crime de injúria e difamação de que a arguida vem acusada.
13°
Enquanto a ordem jurídica portuguesa prever os crimes de difamação e de injúrias, como prevê nos artigos 180°, 191° e 182° do Código Penal, os cidadãos não podem ver a expectativa de tutela da ofensa da sua honra e consideração ser postergada em nome de interpretações tão restritas das excepções à liberdade de expressão, fora do âmbito da liberdade de expressão jornalística e de informação, que não salvaguardam aquilo que, no concernente ao património imaterial de uma pessoa, da sua dignidade e valores éticos essenciais, está defendido pelo sistema jurídico.
14°
Tanto mais que a honra é uma das vertentes da dignidade da pessoa humana consagrada no artigo 1° da Constituição da República Portuguesa como um dos pilares do Estado de Direito democrático.
15°
A acusação particular refere expressamente — além do mais que refere —, que a arguida rotulou o assistente — embora de forma sub-reptícia — como não sendo honesto, e que, ao fazer, sobre o assistente, as afirmações constantes da parte final do referido e-mail de ... de ... de 2020, agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta é proibida e punida em termos penais.
16°
A acusação particular foi elaborada com base em indícios dos quais resulta a possibilidade razoável de à arguida vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena prevista nas disposições penais incriminatórias (cfr. artigos 283°, n.° 2, e 285°, n.° 2, ambos do CPP), tanto assim foi, que o Ministério Público acompanhou integralmente a acusação.
17°
E há indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida das penas prevista nos artigos 180°, 181° e 182° do Código Penal.
18°
Impunha-se, por isso, que a arguida tivesse sido pronunciada pelos crimes de que vem acusada (cfr. artigo 308°, n.° 1, do CPP).
19°
Ao não pronunciar a arguida pelos crimes de injúria e difamação, o juiz a quo não administrou a justiça de acordo com a lei e o Direito e a decisão instrutória recorrida violou os artigos 9°, n.° 1, e 308°, n.° 1, ambos do Código de Processo Penal.
Nestes termos, e nos melhores de Direito e de Justiça, e sempre com o Douto Suprimento de V. Exas., deverá conceder-se integral provimento ao recurso, e, consequentemente, ser revogada a decisão instrutória de não pronúncia, por violação dos artigos 9°, n.° 1, e 308°, n.° 1, ambos do Código de Processo Penal, e essa decisão ser substituía por outra que pronuncie a arguida pelos crimes de injúria e de difamação de que vem acusada, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
(…)”
»
O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 30 de Abril de 2024, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
»
I.3 Respostas ao recurso
Efectuadas as legais notificações, vieram o Ministério Público junto da 1ª Instância e a arguida responder ao recurso interposto pelo assistente, pugnando ambos pela sua improcedência apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
Da resposta do Ministério Público:

(…)
Ao abrigo do disposto no art. 413° do C.P.Penal, o Ministério Público vem usar do direito de resposta ao recurso interposto pelo assistente BB.
Inconformado com a decisão instrutória proferida nos autos que não pronuncia a arguida AA pela prática dos crimes de difamação e de injúria, p. e p. respectivamente pelos art. 180° n°1 e 182° e 181° n°1 e 182° do C.Penal, o assistente BB vem dela interpor o recurso a que ora se responde, alegando, em suma, que as expressões utilizadas pela arguida no email a que se faz menção na acusação particular encerram um conteúdo atentatório da honra e consideração pessoal do assistente, não se limitando a formular opiniões ou pontos de vista divergentes deste, não configurando um mero exemplo de liberdade de expressão da arguida, como entendeu a decisão recorrida.
Acrescenta, ainda, o recorrente que as afirmações escritas e divulgadas no email «Você revelou-se para mim uma total desilusão, contava com sangue jovem e honesto e vejo uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade» são normalmente associadas a uma pessoa desonesta, porque a ambição e a sede de protagonismo (de quem só participa no que lhe dá visibilidade) são associadas, pelo comum das pessoas, a traços de carácter e comportamentais contrários e incompatíveis com honestidade, como são a falta de decoro, o descomedimento e desregramento, a falta de honradez, a falta de probidade, a falta de dignidade, a falta de seriedade e de integridade de carácter.
Conclui, assim, o assistente, ora recorrente, que a forma sub-reptícia, o subterfúgio com que a arguida, na parte final do seu email de ...-...-2020, fez o contraponto entre, por um lado, o sangue honesto que esperava do assistente e, por outro lado, a ambição e a sede de protagonismo, não retira às palavras da arguida a carga de ilicitude penalmente relevante, antes reforça a intenção de a arguida chamar não honesto/desonesto ao assistente, e implica dolo, pois só usa de subterfúgios quem quer formular um juízo de desvalor que sabe ter, ou pode ter, um conteúdo ofensivo de outrem.
Como consequência directa das palavras escritas e enviadas pela arguida, o assistente, ora recorrente, refere ter-se sentido ofendido na sua honra pessoal, porquanto a conduta daquela pôs em causa o seu carácter, por ter formulado sobre o mesmo juízos de desonestidade, que constituem dos mais ofensivos da auto-estima pessoal e social de qualquer pessoa; pelo que se impunha a prolação de despacho de pronúncia contra a arguida pelos crimes de injúria e difamação constantes da acusação particular por si deduzida.
Entendemos, contudo, não assistir razão ao recorrente. Senão vejamos:
A questão em análise e que resulta das alegações de recurso do assistente, consiste, pois, em saber se a acusação particular por si deduzida nos autos contém factos integradores dos crimes de difamação e de injúria por si imputados à arguida.
Ora, estipula o art. 180° n°1 do C. Penal que, «Quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias».
Por sua vez, o art. 181° n°1 do C.Penal dispõe que: «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias».
Conforme estabelece o art. 182° do C.Penal : «À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão».
Os crimes de difamação e de injúria consistem na atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, por conseguinte, que sejam ofensivos da reputação do visado (LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 1986, vol.II, pág. 196).
Os bens jurídicos tutelados por estes tipos legais de crimes são a honra e consideração.
A honra deverá ser vista como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana, com tutela no art. 1° da Constituição da República Portuguesa, numa dimensão existencial do homem enquanto ser social, enquanto pessoa empenhada na realização dos seus planos de vida e ideais de excelência.
De acordo com BELEZA DOS SANTOS entende-se, por honra, aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale; refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral, e por consideração, aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público; refere-se ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de não o julgar um valor negativo (Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria, Revista de legislação e jurisprudência, ano 92, n°3152, pág. 167-168).
A honra tem sido entendida numa dupla conceção: uma conceção subjectiva ou interna da honra, que se traduz no sentimento de estima por si próprio ou, ao menos, de não desestima, o sentimento de dignidade própria, o conceito que cada um faz das suas próprias qualidades morais e uma conceção objectiva ou externa, que se reflecte no apreço e respeito ou, ao menos, na não desconsideração de que somos objecto; a reputação e boa fama, isto é, a consideração que merecemos, graças ao património moral que, com esforço próprio, fomos construindo, impondo-se à consideração dos outros (Acordão do S.T.J. de 30-4-2008, proferido no âmbito do Proc. n° 07P4817, disponível em www.dgsi.pt).
Honra traduzir-se-à, então, na perceção interior do eu e, simultaneamente, na projecção social de uma individualidade, de um património de consideração, encarado seja do ponto de vista da honradez, do desempenho profissional, da competência, da generosidade, da ambiência familiar. Mesmo aqueles que, por vicissitudes várias, vão perdendo ou reuniram um menor pecúlio de consideração pelos outros através de todos os aspectos em que se materializa a personalidade, são detentores de um reconhecido direito de personalidade, cujo desrespeito há de aferir-se por referência à dignidade humana cujos valores marginais são comummente aceites no meio social e cultural envolvente.
Todavia, como escrevia BELEZA DOS SANTOS, no já citado artigo, não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem, aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.
Com efeito, um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sociomoral da pessoa, da sua honra e consideração. Tem-se entendido, pois, que o conceito de honra para efeitos do preenchimento do tipo objetivo, não protege sentimentos exagerados de amor próprio, nem o exclusivo valor que a opinião pública consagra a uma determinada pessoa e que pode não corresponder à sua real valia (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2008, proferido no âmbito do Processo n.° 07P4817, disponível em www.dgsi.pt). Assim, dir-se-á que não estão abrangidas pelo escopo de proteção da norma em apreço as ditas suscetibilidades pessoais, visando, tão só, garantir-se a dignidade individual da pessoa, com expressão na honra e consideração que lhe são devidas, atendendo sempre a um critério objetivo, tomando como paradigma o sentir geral da comunidade (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/11/2008, proferido no âmbito do Processo n.° 35/17.4PIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Nas palavras de TAIPA DE CARVALHO, é a consciência ético-social da comunidade histórica que há de legitimar a decisão legislativa de incriminar uma conduta (in Condicionalidade sócio-cultural do Direito Penal, Coimbra, pág. 90).
Uma vez que este bem jurídico — a honra - estará, frequentemente, em conflito com outro direito fundamental como o da liberdade de expressão e informação, há que fazer intervir os critérios da proporcionalidade, da necessidade e adequação na ponderação destes interesses, devendo procurar-se obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua otimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.
Acompanhando já o antigo e importante Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23 de abril de 1989, dir-se-á que "Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros (...). Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte das que estabelecem a (…)
Nesta conformidade, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo assistente e confirmada a douta decisão instrutória recorrida.
Porém, Vas Exas., como melhor entendimento da Lei, farão a costumada
(…).”
Da resposta da arguida:

(…)
CONCLUSÕES
A - O Recorrente, no recurso apresentado, defende que há indícios suficientes da prática dos crimes de injúria e difamação pela Arguida, pelo facto de a mesma ter produzido palavras e juízos atentatórios da honra e consideração do Assistente.
B - A frase que entende como atentatória do seu carácter, honra e consideração, consta de um email, datado de ...-...-2020, dirigido ao Assistente com conhecimento da senhora CC: " Você revelou-se para mim uma total desilusão, contava com sangue jovem e honesto e vejo uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade".
C - Considera o Assistente que a Arguida, de modo sub-reptício, o rotulou como não honesto e, por essa razão, o M° Juiz a quo, teria de pronunciar a Arguida pelos crimes de injúria e difamação.
D - A Arguida defende que a afirmação produzida deve ser entendida como a utilização de expressões incluídas num contexto de discussão, desentendimento, ou de desagrado por uma determinada situação,
E - A decisão do Tribunal a quo não merece qualquer crítica, já que entendeu, e bem, o M.° Juiz recorrido, e em suma, que:
a) "(...) Embora seja difícil compreender o fundamento da acusação particular, ou seja, em que factos suporta o assistente a sua pretensão criminal, por estar a negrito e destacado, é de admitir que a conduta atribuída à arguida seja, especificamente, a de ter proferido as expressões descritas no ponto 9 da acusação particular (fls 102)";
b) " Note-se que de acordo com a acusação particular se encontra ostensivamente fora das expressões proferidas pela arguida o que a seguir é deduzido e acrescentado pelo Assistente" (referindo-se às expressões utilizadas pelo Recorrente em resposta ao email da Arguida);
c) " (...) não são atribuídos (...) quaisquer factos susceptíveis de afectar ou beliscar a honra ou consideração do assistente."
d) "Mesmo em termos de juízos opinativos não se compreende sequer que possam ter qualquer conteúdo ofensivo da honra ou consideração do assistente" (sic);
e) Não são imputados factos que integrem qualquer previsão típica quanto aos crimes de injúria e difamação;
j) " Entende este Tribunal que não são imputados aos arguidos factos que integrem qualquer previsão típica quanto aos crimes de difamação e injúria".
g) (...) não se vislumbra de que forma é que os elementos que os compõem" (referindo-se aos crimes de injúria e difamação) "se encontram preenchidos pela conduta especificamente atribuída à arguida na acusação particular".
h) "Não é possível admitir que se encontra imputada à arguida a pratica de juízos atentatórios da sua honra ou consideração, por não ter referencia senão a um desacordo entre as partes".
i) O descrito como tendo sido afirmado pela arguida resulta, assim, claramente da consagração da liberdade de expressão, prevista nos artigos 37.° da CRP e 10° da DUDH" (sic).
j) "A formulação de opiniões ou pontos de vista é insuficiente para a condenação de alguém, conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2011 (processo n.° 1272/04.7TBBCL.G1.S1".
F - A acusação particular foi deduzida pelo Assistente quanto aos crimes de injúria e difamação e, em ambos os crimes, o bem jurídico protegido é a honra, sendo que a essência do crime de difamação, designadamente por contraposição ao crime de injúria, consiste no facto de a imputação dos factos ser levada ao conhecimento de terceiros.
G - As expressões proferidas pela Arguida, em si mesmas, tal como entendeu o M.° Juiz recorrido, não encerram qualquer desvalor para o Assistente e não são, por isso, aptas a integrar a tipicidade penal dos crimes pelos quais o Assistente a acusou.
H - O Assistente, partindo do concreto escrito da Arguida, e acima citado, permite-se efectuar deduções - aliás bem patentes na utilização, abundante ao longo do seu articulado, que faz da expressão "forma sub-reptícia", de modo a lograr enquadrar as palavras da Arguida na tipicidade penal dos crimes de injúria e difamação, a título de exemplo, a redacção constante de fls. 3 das alegações de recurso: i) no parágrafo terceiro "feita por contraponto", ii) no parágrafo quinto" Se a arguida afirma (...) é porque (...), iii) no parágrafo sexto: "só pode significar que";
I - O e-mail foi redigido no seguinte contexto: Arguida e Assistente faziam parte da Direcção da Comissão de ... (juntamente com a referida CC), o assunto constante dos autos passou-se no âmbito de uma diferença de entendimento quanto ao modo de actuação no âmbito daquela Comissão e resultante de diferentes entendimentos acerca de como resolver um problema de ... dos moradores do Bairro.
J - A mensagem de correio electrónico foi redigida em tom educado, cordial, correcto e urbano, tendo sido escrita pela Arguida ao Assistente, na qualidade, respectivamente de Presidente da Direcção e segundo Secretário da Direcção da ... Bairro da Calçada dos Mestres.
K - A Arguida limita-se, nesse escrito, a manifestar a sua discordância do entendimento do Assistente, das suas sugestões e diligências, relativamente a um assunto da referida ..., e desse e-mail não resulta qualquer expressão susceptível de ofender a honra ou consideração daquele.
L - "A honra (e por aproximação, o bom nome) está ligada à imagem que cada um tem de si próprio, construída interiormente mas também a partir de reflexões exteriores, repercutindo-se no apego a valores de probidade e honestidade; a reputação (e também a boa fama) representa a visão exterior sobre a dignidade de cada um, ao apreço social, o bom nome de que cada um goza no círculo das suas relações." - in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2000 in BMJ 493 — 156, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/03/2006.
M - Honra é a dignidade subjectiva da pessoa, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa possui, dizendo respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu, e a consideração corresponderá ao merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, à reputação, à boa fé, à estima, à dignidade objectiva, ou seja, à forma como a sociedade vê cada cidadão — no fundo, a opinião pública. (cfr. Código Penal anotado, Simas Santos e Leal-Henriques, vol. II, pág. 317 e Ac. TRL de 6-2-96, CJ tomo I, pág. 156)
N - Nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal e haverá que distinguir entre situações que têm de ser interpretadas como uma ofensa à honra de terceiros e, por isso, merecedoras de tutela penal, e outras em que tal não sucede.
O - O caso sub judice, não pode ter outro sentido que não a de manifestação de desagrado, não tendo sido atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade humana, e, por isso, traduz-se numa das situações não merecedoras de tutela penal.
P - A simples afirmação escrita " contava com sangue jovem e honesto" significa tão só isso mesmo, sem subterfúgios, e dela não se pode inferir, como faz o Assistente, que a Arguida o chamou de "desonesto", do mesmo modo que não se pode inferir que o tenha
chamado de "velho".
Q - Nem se entende como pode o Assistente sentir-se tão ofendido e afectado quando ele próprio escreveu à Arguida - no mesmo contexto de "discussão" do tema de actuação da ... relativamente à questão da ... -: " Como vê, é muito simples ! Basta querer e ser honesta nas suas intenções", email também ele enviado com conhecimento à Sra. CC enquanto membro da Direcção da mencionada ... (sic, cfr. documento n.° 4 junto ao requerimento de abertura de instrução, fls.).
R - Tal não pode senão revelar que as expressões dirigidas pela Arguida ao Assistente não têm a gravidade que o mesmo pretende imputar-lhes.
S - Ao contrário do Assistente, a Arguida não faz juízos nem vê subterfúgios, entendendo esta situação como um esgrimir de argumentos entre duas pessoas que estão em desacordo, e compreendendo que é normal que entre os membros de uma comunidade, possa existir um certo grau de conflitualidade em situações de discórdia.
T - Como tem sido entendido pela Jurisprudência (veja-se, por todos o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19/01/2005, n.° de Processo 0416203, Relator Desembargador Dr. Manuel Braz in www.dgsi.pt.) " é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. (...) E o direito (...) só pode intervir quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função";
U - No âmbito dessa conflitualidade, vem-se entendendo que, para que um facto ou um juízo possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devidas a qualquer pessoa, deve constituir comportamento objetiva e eticamente reprovável de forma que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando, assim, a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23-03-2015, Processo n.° 32/17.0TRLSB.S1, Relatora Desembargadora Ana Teixeira in www.dgsi.pt .
V - Mais se acrescenta, cfr. defende o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/01/2012, processo n° 1341/09.7TABCL.G1 que "O conceito de ofensa não pode ser um conceito puramente subjectivo, isto é, não basta que alguém se considere difamado ou injuriado para que a ofensa exista. Determinar se uma expressão é ou não injuriosa e / ou difamatória é uma questão que tem que ser aferida em função do contexto em que foi proferida bem como do meio social a que pertencem ofendido e arguido, a relação existente entre estes, os valores do meio social em que ambos se inserem".
W - No caso em apreço não resulta da leitura do email enviado pela Arguida ao Assistente, qualquer expressão susceptível de ofender a honra ou consideração daquele, não integrando a prática de qualquer crime.
X - O descrito como tendo sido afirmado pela Arguida, resulta da consagração da liberdade de expressão, direito reconhecido na Constituição da República Portuguesa e em instrumentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
Y - A formulação de opiniões ou pontos de vista é insuficiente para a condenação de alguém, assumindo esta liberdade um papel fundamental em qualquer sistema constitucional e democrático.
Z - O tema da liberdade de expressão tem um conceito amplo, englobando não só o direito à liberdade de informação e de imprensa, mas também o direito à opinião (ou liberdade de expressão stricto sensu), a liberdade de criação artística ou científica, a linguagem simbólica, liberdade de expressão comercial, profissional, liberdade de imprensa, liberdade de criação dos meios de comunicação, ou a chamada liberdade de antena.
AA - Ao contrário do referido pelo Assistente, não é verdade que a jurisprudência não se tenha debruçado sobre a liberdade de expressão fora do âmbito da opinião jornalística, em particular no âmbito do direito à opinião, a saber e título de exemplo: (1) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12-06-02, Recurso 332 /02, de que foi relator o Desembargador Dr. Manuel Braz; (2) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19-06-2006, Processo 660/2006 — 1' Secção, Relator Desembargador Dr. Miguez Garcia; (3) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10-12-2007, processo n.° 2281/06-1, em que é Relator o Desembargador Dr. Fernando Monterroso; (4) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-01-2015, processo n.° 168/12.TRPRT.S1 - 5' Secção, Relator Conselheiro Dr. Manuel Braz
BB - É abundante a jurisprudência nacional que, na ponderação dos dois direitos constitucionais em conflito — o direito à honra e o direito à liberdade de expressão -, salienta a necessidade de uma ofensa grave, desproporcionada e ilegítima à honra por forma a justificar o sacrifício do direito à liberdade de expressão.
CC - Também a jurisprudência europeia, nomeadamente a do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), tem consolidado decisões de onde resultou que a liberdade de opinião, diz respeito ao direito de expressar e receber livremente os pensamentos, opiniões, ideias ou juízos de valor e constitui-se como condição prévia das outras liberdades garantidas no artigo 10.° da convenção: Marônek v. Slovakia 19 April 2001, Castells v. Spain, 23 April 1992.
DD - Também Francisco Teixeira da Mota, defendendo a inexistência de limites para a liberdade de expressão, escreve que "a possibilidade de nos exprimirmos sem sermos perseguidos pelas nossas opiniões (...) é um bem pessoal inigualável e essencial em termos do desenvolvimento da nossa sociedade"
EE - Da leitura do email enviado pela Arguida ao Assistente não resulta que se encontrem imputadas à Arguida a prática de juízos atentatórios da sua honra ou consideração, e não pode ser pelo facto de o Assistente procurar encontrar gravidade ou subterfúgios inexistentes no escrito pela Arguida, que um facto lícito pode transformar-se em ilícito.
FF - As expressões redigidas pela Arguida foram produzidas num contexto de desacordo quanto à actuação e entendimento do Assistente, relativamente a um assunto da mencionada ..., e resultam do exercício da sua liberdade de expressão.
GG - Essa liberdade abrange, com limites, expressões que criticam, chocam, exagerem a realidade, limites que no caso concreto não foram ultrapassados.
HH - Os factos que estão descritos, quer na acusação particular, quer no recurso ora apresentado, não integram a prática de qualquer crime
II - No contexto das trocas de e-mails, a conduta da Arguida não integra a prática de qualquer crime e representa o exercício do seu direito de expressão, de opinião e de crítica, não tendo sido extravasados os seus limites e o núcleo essencial do direito à honra do Assistente, não foi violado.
Termos porque deverá ser negado provimento ao recurso do Assistente, mantendo-se a decisão recorrida, porque formal e substancialmente correcta, nos termos acima expostos, tudo com as legais consequências, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!
(…)”
»
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, alegando o seguinte [transcrição]:
“ (…)
1. O Recurso
O presente recurso foi interposto pelo assistente da decisão instrutória, de 07/03/2024, proferida pelo Tribunal Central de Instrução Criminal - Juiz 4, de não pronúncia da arguida pela prática dos crimes de difamação e injúria que lhe imputara na acusação particular, com fundamento em que as expressões imputadas [“Você revelou-se para mim uma total desilusão, contava com sangue jovem e honesto e vejo uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade.”] não constituem juízos atentatórios da honra ou consideração do assistente, por não terem referência senão a um desacordo entre as partes, antes correspondendo ao exercício do direito de liberdade de expressão.
A recorrente entende precisamente o oposto e fundamenta o recurso no conteúdo atentatório da sua honra e consideração consubstanciado nas expressões utilizadas pela arguida que não se justificam pelo exercício do direito de liberdade de expressão.
2. Posição do Ministério Público na 1.ª Instância
O Ministério Público, na 1.ª Instância, respondeu ao recurso e defendeu a confirmação da decisão recorrida, por não considerar que as expressões escritas e divulgadas no e-mail em causa pela arguida visassem apelidar o assistente de pessoa desonesta, e sim que via nele “uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade”, o que não encerra conteúdo depreciativo do caráter do assistente, nem ofende a sua honra e consideração, constituindo meras opiniões emitidas no exercício do direito fundamental de manifestar opinião.
3. Acompanhamos integralmente a resposta da nossa Colega na 1.ª instância, à qual nada de novo, ou útil, temos a aditar, pelo que somos de parecer que o recurso não merece provimento.
(…)”
»
I.5. Resposta
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
Foi apresentada resposta ao sobredito parecer, desde logo pela arguida, que concordou com o teor do mesmo.
#
Igualmente foi apresentada resposta pelo assistente que, em síntese, renovou todas as considerações já tecidas na sua peça recursiva.
»
I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
»
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do Tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3, relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).
»
II.2- Apreciação do recurso
Face às conclusões extraídas pelo assistente recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão decidenda a apreciar é a seguinte:
- se a arguida deveria ter sido pronunciada pela prática dos crimes de difamação e injúria que lhe imputa a acusação particular, com fundamento em que as expressões imputadas constituem juízos atentatórios da honra e consideração do assistente, que não se justificam pelo exercício do direito de liberdade de expressão.
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:
“ (…)
O assistente DD deduziu acusação particular contra AA, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180º, nº 1 e 182º, do Código Penal e um crime de injúria, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e 182º, do Código Penal.
O Ministério Público aderiu à acusação particular, embora em instrução tenha entendido que a mesma é manifestamente improcedente.
A arguida, inconformada, requereu a abertura de instrução por entender que a conduta em causa nos autos não integra a prática das incriminações ali referidas.
Declarada aberta a instrução foi realizado o debate instrutório.
O tribunal é competente.
Inexistem excepções ou questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art° 286, n°1 do Código de Processo Penal).
Não se apresenta como um novo inquérito, mas consubstancia, tão-só, um momento processual de comprovação da decisão de acusar ou não (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1996, pgs. 454).
A acusação é deduzida se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente (art° 283, n°1 do Código de Processo Penal).
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de ... (art° 283, n°2 do citado diploma).
Posto isto, e realizadas as diligências instrutórias pertinentes, o juiz procede à análise crítica da prova produzida, a fim de comprovar judicialmente a decisão do Ministério Público.
*
De acordo com o teor dos documentos indicados na acusação particular e versão da assistente nesse sentido, todos os factos descritos naquele texto estão indiciados.
No entanto, conforme já foi decidido anteriormente nos autos “a arguida requereu a abertura da instrução, alegando, em síntese, que os factos descritos na acusação particular não integram a prática dos referidos crimes.
Embora seja difícil de compreender o fundamento da acusação particular, ou seja, em que factos suporta o assistente a sua pretensão criminal, por estar a negrito destacado, é de admitir que a conduta atribuída ao arguido seja, especificamente, a de ter proferidos as expressões descritas no ponto 9 da acusação particular (fls. 102).
Note-se que, de acordo com a acusação particular, se encontra ostensivamente fora das expressões proferidas pela arguida o que a seguir é deduzido e acrescentado pelo assistente.
De acordo com a acusação particular, não são atribuídos ao assistente quaisquer factos susceptíveis de afectar ou beliscar a honra ou a consideração do assistente.
Mesmo em termos de juízos opinativos não se compreende sequer que possam ter qualquer conteúdo ofensivo da honra ou consideração do assistente.
Nessa sequência, entende este Tribunal que não são imputados aos arguidos factos que integrem qualquer previsão típica quanto aos crimes de difamação e injúria.
Comete o crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração (art° 180, n°1 do Código Penal).
E comete o crime de injúria quem, dirigindo-se ao próprio, lhe imputar factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou lhe dirigir palavras, ofensivas da sua honra ou consideração (art° 181, n°1 do Código Penal).
Assim definidas as incriminações, e independentemente das fórmulas utilizadas, não se vislumbra de que forma é que os elementos que as compõem se encontram preenchidos pela conduta especificamente atribuída à arguida na acusação particular.
Sobretudo por quem, nos termos da própria acusação particular, pretendia impor o seu ponto de vista e limitar a liberdade de expressão dos demais.
Terá sido a referência à não integração futura das listas, mas isso, tal como todas as demais palavras proferidas pela arguida, nos termos da acusação particular deduzida, não possuem, em qualquer contexto, aptidão para gerar uma reacção criminal.
Não é possível admitir que se encontram imputada à arguida a prática de juízos atentatórios da sua honra ou consideração, por não ter referência senão a um desacordo entre as partes.
O descrito como tendo sido afirmado pelo arguido resulta, assim, da consagração da liberdade de expressão, prevista nos arts. 37.° da CRP e 10.° da DUDH.
Por isso, não se vislumbra a imputação de qualquer conteúdo de ilícito, mesmo não penal, da conduta descrita na acusação particular.
A formulação de opiniões ou pontos de vista é insuficiente para a condenação de alguém, conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2011 (processo n.º 1272/04.7T88CL.G1.S1) “A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa. As excepções [a tal liberdade] devem ser interpretadas de modo restrito. Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade....”, posição que segue de perto o critério da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, aliás, é mencionada no desenvolvimento daquele aresto, por exemplo, a Sentença do Caso Campos Dâmaso c. Portugal, que consta, em português, na base jurisprudencial online daquele Tribunal (HUDOC)”.--
V.
Pelo exposto,
NÃO PRONUNCIO AA, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180º, nº 1 e 182º, do Código Penal e um crime de injúria, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e 82 º, do Código Penal.
Custas pelo assistente, que se fixam em 3 UC (art. 515.º, n.º1, f), do Código de Processo Penal).
Notifique. --
(…)”
»
II.4- Apreciemos, então, a questão a decidir.
Como vimos, veio o recorrente invocar a pronúncia da arguida pela prática dos crimes de difamação e injúria que lhe imputa a acusação particular, com fundamento em que as expressões pela mesma usadas [“Você revelou-se para mim uma total desilusão, contava com sangue jovem e honesto e vejo uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade.”] constituem juízos atentatórios da honra e consideração do assistente, que não se justificam pelo exercício do direito de liberdade de expressão.
Argumenta o recorrente que aquelas são normalmente associadas a uma pessoa desonesta, porque a ambição e a sede de protagonismo (de quem só participa no que lhe dá visibilidade) são associadas, pelo comum das pessoas, a traços de carácter e comportamentais contrários e incompatíveis com honestidade, como são a falta de decoro, o descomedimento e desregramento, a falta de honradez, a falta de probidade, a falta de dignidade, a falta de seriedade e de integridade de carácter.
Mais aduz o recorrente que a forma sub-reptícia com que a arguida fez o contraponto entre, por um lado, o sangue honesto que esperava do assistente e, por outro lado, a ambição e a sede de protagonismo, não retira às palavras da arguida a carga de ilicitude penalmente relevante, antes reforça a intenção de esta chamar não honesto/desonesto ao assistente, e implica dolo, pois só usa de subterfúgios quem quer formular um juízo de desvalor que sabe ter, ou pode ter, um conteúdo ofensivo de outrem.
Acrescentando ter-se sentido ofendido na sua honra pessoal, porquanto a conduta da arguida pôs em causa o seu carácter, por ter formulado sobre o mesmo juízos de desonestidade, que constituem dos mais ofensivos da auto-estima pessoal e social de qualquer pessoa.
Vejamos se assiste razão ao assistente.
Aqui chegados, cumpre, então, analisar da natureza das expressões concretamente usadas pela arguida, relativamente ao assistente.
A questão jurídica-penal nuclear que subjaz ao presente recurso impõe a análise, ainda que breve, do recorte típico do ilícitos penais àquela imputados, em sede de acusação particular.
Preceitua o nº 1 do art. 180º do Código Penal, sob a epígrafe “Difamação” que: «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias».
Por sua vez, preceitua o nº 1 do art. 181º do Código Penal, sob a epígrafe “Injúria”, que: «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.»
E dispõe o art. 182º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Equiparação” que: « À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.»
É, portanto, a protecção dos direitos relativos à integridade moral das pessoas, como a honra e a reputação, que as normas dos arts. 180º e 181º do CP visam acautelar.
No conceito de honra inclui-se quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, consubstanciando-se na pretensão, constitucionalmente protegida, de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.
O preenchimento da tipicidade objectiva de tais ilícitos está, pois, intrinsecamente ligada à definição do bem jurídico protegido pela respectiva incriminação, que define o conteúdo e a amplitude da tutela penal e tem como referência a Constituição, que consagra, como direito fundamental [Parte I, Título II, Capítulo I – Direitos, liberdades e garantias pessoais], no artigo 25º, nº 1, o direito à integridade moral, e no artigo 26º, o direito ao bom nome e reputação [direito de personalidade que integra uma dimensão eminentemente individual (o bom nome) e outra social (reputação)], tidos como emanação da dignidade da pessoa humana [artigo 1.º da Lei Fundamental].
Na definição de Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, edição de Novembro de 2015, pág. 723] “O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, numa dupla conceção fáctico-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa, aussere Ehre), mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (a honra interna, innere Ehre)”.
Na lição de Beleza dos Santos [in “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, n.º 3152, p.167-168], a honra consubstancia-se “naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e a consideração é “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo”.
Com relevância ao nível do preenchimento dos tipos de ilícito em apreciação, por decorrência da natureza de última ratio do direito penal e dos princípios da intervenção mínima, subsidiariedade e proporcionalidade que o conformam [artigo 18º nº 2 da Constituição], há que afastar da tutela penal os casos em que funcione a denominada cláusula geral de adequação social [como se refere no Ac. da Relação de Évora, de 22.02.2022,proc. 364/20.0 T9ENT.E1, publ. in www.dgsi.pt «Nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo nem todos os factos cuja imputação cause melindre ou desconforto ou corresponda a uma desconsideração pessoal, embaraço ou humilhação merecem tutela penal, havendo que distinguir indelicadeza, grosseria e falta de educação de verdadeiros ataques à honra, merecedores de tutela penal»]. A tutela penal opera para proteger “a dignidade e o bom nome do visado e não a sua especial susceptibilidade e melindre” [neste sentido, V. Ac. do TRE de 23.01.2018, proc. 80/17.7 GGBJA.E1, publ. in www.dgsi.pt].
Portanto, o direito penal reveste uma natureza fragmentária, de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, não abarcando as meras insignificâncias.
Como ensina Costa Andrade, a conduta típica configura sempre “a concretização de uma expressão paradigmática de danosidade social intolerável” e, como tal, digna de tutela penal e carecida de tutela penal.
Percebe-se, pois, que haja uma potencialidade conflituante do direito à honra e consideração com outros direitos constitucionalmente consagrados, com particular ênfase para a liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos [“todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, se se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações” - artigo 37º da Constituição].
Acompanhamos o entendimento expresso por Gomes Canotilho e Vital Moreira de que não existe entre os referidos direitos qualquer relação de prevalência, devendo a sua concordância prática ser alcançada através do critério da proporcionalidade que, na análise caso a caso dos bens e valores em conflito, ditará a compressão de um deles [“No contexto constitucional português, os direitos em colisão devem considerar-se como princípios susceptíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se quaisquer ideias de supra ou infra valoração abstrata” (cfr CRP Anotada, Vol. I, 4ª ed.-2007 p. 466)].
Só por mero acrescento, e para melhor entendimento, note-se que é neste quadro legal que o Supremo Tribunal de Justiça, acolhendo o entendimento de Costa Andrade sobre a atipicidade do direito de crítica objectiva [in, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal (Coimbra Editora – 1996), pg. 232 e ss], que aqui igualmente acompanhamos, vem sustentando «deverem-se considerar atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc, (…), quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou desportista, etc, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.» Sustenta-se ainda no citado acórdão, citando o mesmo Autor, que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, apenas sendo de excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas ou juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e ainda nas situações que os juízos negativos sobre o visado não têm qualquer conexão com a matéria em discussão “Uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.”
Veja-se, ainda, nesta matéria, o disposto no art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), sob a epígrafe “Liberdade de expressão”, a qual vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infraconstitucional mas superior ao direito ordinário:
«1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a ... nacional, a integridade territorial ou a ... pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.»
De harmonia com a referida Convenção, a liberdade de expressão só pode, pois, ser sujeita a restrições nos termos excepcionais previstos no seu art.º 10.º, n.º 2, pelo que as “formalidades, condições, restrições e sanções” à liberdade de expressão, devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente.
De tal forma que a jurisprudência do TEDH, a observar pelo Estado Português no cumprimento do art.º 10.° da CEDH, tem entendido que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um, sendo válida não só para as informações ou ideias acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem, já que assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há “sociedade democrática”.
*
Transpondo estes ensinamentos para a situação in casu, entende este Tribunal ad quem que as expressões usadas pela arguida, no email enviado ao recorrente, a saber: “Você revelou-se para mim uma total desilusão, contava com sangue jovem e honesto e vejo uma pessoa ambiciosa e sedenta de protagonismo que só participa no que lhe dá visibilidade”, não consubstanciam uma crítica caluniosa ou um juízo exclusivamente motivado pelo propósito de rebaixar e humilhar o recorrente, mas tão só expor, nos limites permitidos pelo princípio constitucional da liberdade de expressão, o seu sentimento de desilusão em relação à actuação deste, ali descrita, o que mais não é do que uma mera exposição do seu ponto de vista, da sua opinião.
Até se compreende que o uso de tais expressões, pela arguida, possa ter causado alguma susceptibilidade ou melindre ao recorrente (toda a pessoa tem o seu “amor-próprio”), mas tal não basta, de forma alguma, para merecer tutela penal, não se reconhecendo nelas um significado tal que provoque ofensas à dignidade e ao bom nome do recorrente, ou que consubstanciem uma qualquer “danosidade social intolerável”.
Concluir de outra forma, do modo pretendido pelo recorrente, seria atentar contra um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso, de que temos vindo a falar – a liberdade de expressão.
Face ao exposto, não se podem ter por preenchidos os elementos objectivos típicos dos crimes imputados ao arguido recorrente, e, na decorrência, necessariamente, também os elementos subjectivos do tipo.
Improcede, pois, o recurso.
»
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente BB, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique nos termos legais.
»
Lisboa, 11 de Julho de 2024
(O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelas Exmas. Juízes Desembargadoras Adjuntas – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
As Juízes Desembargadores,
Fernanda Sintra Amaral
Renata Whytton da Terra
Maria Ângela Reguengo da Luz
_______________________________________________________

1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.