Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
930/19.6GACSC.L1-5
Relator: RUI COELHO
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
AMEAÇA
ERRO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - Inexiste nulidade por omissão de pronúncia relativamente ao crime de ameaça, porque, não obstante os factos constantes das acusações, não foi o Arguido acusado da prática de qualquer crime de ameaça.
II - Pretende a Recorrente que o Tribunal da Relação de Lisboa se substitua ao Tribunal de primeira instância e formule uma outra fundamentação, ao encontro da sua, para alterar os factos. Não é esse o papel deste Tribunal, cuja intervenção só poderá ser justificada se for possível concluir pelo erro na dita valoração da prova, erro esse que, no caso que nos ocupa, não vislumbra.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal Cascais – J3 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Assim, e pelo exposto, o Tribunal julga a acusação publica parcialmente procedente, improcedente a acusação da assistente e parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e, em consequência, decide:
a) Absolve o arguido da prática do crime de violência doméstica, pelo qual vinha acusado;
b) Absolve o arguido da prática dos três crimes de furto, pelo qual vinha acusado;
c) Absolve o arguido da prática do crime de injúria pelo qual vinha acusado;
d) Condenar o arguido como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no artigo 143, n.º 1 do Código Penal na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros),
e) Condena o arguido como autor material de um crime de dano, p. e p. no artigo 212º, n.º 1 do Código Penal na pena 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de € 6 (seis euros),
f) Em cúmulo vai o arguido condenado na pena única de 230 (duzentos e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros) o que perfaz a multa global de € 1.380 (mil trezentos e oitenta euros).
g) Condenar o demandado a pagar à demandante a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros) a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais e absolve-o do restante pedido.
h) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando em 2 UC a taxa de justiça.
i) Custas cíveis a cargo da demandante e demandado na proporção de 85 % para a primeira e 15 % para o segundo.»
- do recurso -
Inconformada, recorreu a Assistente formulando as seguintes conclusões, após despacho de aperfeiçoamento:
«I – Como consta nos n.ºs 7, 10 e 12, da matéria de facto provada e transcrita em sede de alegações, a recorrente foi, efectivamente, agredida a socos e pontapés, o que a forçou a dirigir-se ao hospital a fim de receber assistência médica, tendo-lhe sido retirado, pelo recorrido, o seu passaporte;
II – Todavia e surpreendentemente, parte do que supra se diz vem contrariado na matéria de facto não-provada, nomeadamente no mesmo ponto 12 acima referido ou seja, o tribunal “a quo” dá o mesmo facto como provado e não-provado;
III – No entender da recorrente, dúvidas não subsistem de que se verifica uma contradição insanável entre aquelas duas posições e que se reflectem na fundamentação, como previsto no art.º 410.º, n.º 2 al. b), do C. P. Penal;
IV – O mesmo se dirá quanto às contradições à matéria de facto dada como provada no ponto 11 de o mesmo facto dado como não-provado no ponto 14, da matéria de facto não-provada e referente à destruição dos telemóveis da recorrente;
V – No acto praticado e acima descrito e reiterado no depoimento da recorrente e da testemunha “de visu” AA, o recorrido manifestou a intenção de destruir os ditos aparelhos, pelo que agiu com dolo directo, p.º e p.º pelo art.º 14.º, do C. Penal;
VI – Por outro lado a recorrente, no seu depoimento, disse, claramente, ter sido agredida na presença dos seus filhos, ainda menores, vindo o agressor, o ora recorrido, munido de uma faca, depoimento que não foi relevado ou considerado pelo tribunal “a quo”;
VII – Tal omissão por parte do tribunal “a quo” demonstra, no entender da recorrente, ter havido erro notório na apreciação da prova, por força do disposto no art.º 410.º, n.º 2 al. c), do C. P. penal;
VIII – Relevamos, a agressão teve lugar na presença dos filhos da recorrente, ainda menores e no domicílio do casal pelo que, ao relevar tal acto, o tribunal “a quo” violou o disposto no art.º 152.º, n.º 2, do C. Penal;
IX – Além disso, o recorrido também dirigia à recorrente os maiores doestos como “maggi”, que no dialecto nativo de ambos significa “puta”, para além de outros como “és uma puta de merda”, uma “prostituta” e na presença da mãe desta;
X – Tais doestos foram mencionados na acusação particular promovida pela recorrente, todavia e sobre os mesmos o tribunal “a quo” não se pronunciou e não se pronunciando sobre matéria que devia apreciar, violou o disposto no art.º 379.º, n.º 1 al. c), do C. P. Penal, o que determina a nulidade da sentença por força do normativo ora citado e que se invoca, com as legais consequências;
XI – Sobra a matéria atrás referida o tribunal “a quo” teria de se pronunciar, porquanto o juiz tem de resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação e não o fazendo, viola o disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil, ex-vi do art.º 4.º, do C. P. Penal;
XII – E de entre os crimes imputados pela recorrente ao recorrido na sua acusação particular, ressalta o crime de ameaça à vida daquela, como consta no depoimento da recorrente e da testemunha AA, sua mãe e devidamente transcrito no texto das alegações, mas que, todavia, o tribunal “a quo” também não apreciou;
XIII – Ora, ao não apreciar o facto supra referido e devidamente relevado em sede de julgamento, o tribunal “ a quo “ violou o disposto no art.º 153.º, do C. Penal e ao não pronunciar-se sobre a dita questão, o tribunal “ a quo “ violou, ainda, o previsto no art.º 379.º, n.º 1 al. c), do C. P. Penal, o que acarreta a nulidade da sentença e que ora se invoca, com as legais consequências;
XIV – Relevamos, por fim, a parcialidade do tribunal “a quo”, em nosso entender, porquanto valorou a versão factual do recorrido em detrimento da versão da recorrente sem do que desta foi reconfirmada por testemunhas, o que não ocorreu com a versão do recorrido, assim violando o art.º 13.º, n.º 1, da CRP, pelo tratamento manifestamente diferenciado entre as duas partes em litígio e em favor do agressor, o ora recorrido.
XV – Pela prova produzida em sede de julgamento e carreada para os autos, temos para nós que, à luz da experiência e livre convicção da entidade competente, no caso, o tribunal “ a quo “, a condenação total do agressor e ora recorrido, pelos factos de que vinha acusado, quer pelo MP, quer pela assistente e ora recorrente na sua acusação particular, seria evidente e não tendo sido, com base nos alegados factos, o tribunal “ a quo “ violou o disposto no art.º 127.º, do C. P. Penal;
XVI – E com semelhante comportamento, o tribunal “a quo” violou, ainda, o art.º 6.ºC, do Estatuto dos Magistrados Judiciais e que tem por epígrafe “Dever de Imparcialidade”, com a nova redacção introduzida pela L 67/2019, de 27/Ago.
Pelo exposto deve, o presente recurso, ser julgado procedente, por provado e, em consequência:
I – Julgar procedentes as nulidades invocadas e anulando-se a sentença que ora se recorre por violação da lei;
II – Julgar procedente a violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado;
III – Julgar procedente a violação do dever de imparcialidade;
IV – Ordenar-se a prolação de outra sentença que determine a condenação do recorrido; (…)»
- da resposta do Ministério Público -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«1. Perante a prova produzida e analisada em julgamento, outra decisão não poderia ter tomado o tribunal a quo que não a de absolver o arguido BB pela prática do crime de crime de violência doméstica, e a de condená-lo pela prática dos crimes de ofensa à integridade física e dano, nos exatos termos constantes da sentença recorrida.
2. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, verifica-se que a sua discordância assenta na valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida e das regras do normal acontecer, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
3. No caso em apreço, não existem dúvidas de que a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127.º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, pelo que bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos constantes da matéria de facto provada.
4. Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida.»
- da resposta do Arguido -
Notificado para tanto, respondeu o Arguido concluindo nos seguintes termos, que manteve após o aperfeiçoamento das conclusões por parte da Assistente:
«1- O Recurso da aqui Recorrente incide sobre a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, sendo que a mesma não merece qualquer reparo, tendo de forma e tecnicidade exímia, absolvido o Recorrido de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, da prática de três crimes de furto, p. e p. pelo s artigos 203º, n.º1 e 207º, n.º 1 ambos do Código Penal e um crime de injúrias, p. e p. pelo art.º 181º, n.º 1 do Código Penal.
2- Ora, como questão prévia, importa clarificar este Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que o presente processo determinou várias sessões de Julgamento, todas elas com um intérprete específico (língua bengali), e nas várias sessões de Julgamento, o Digníssimo Tribunal a quo, tanto na pessoa da M.ma Juiz de Direito, como na pessoa do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, presenciaram a postura, a linguagem corporal de cada uma das testemunhas, essencialmente, a postura da Assistente, aqui Recorrente, cujas declarações e a forma como as prestou não manifestavam ser de uma vítima.
3- A bem da verdade, as declarações da Assistente assentaram essencialmente na alegada relação extraconjugal do Recorrido, de forma até a justificar a sua própria relação extraconjugal com ..., bem como, na sua preocupação com o dinheiro com o fim do casamento com o Recorrido.
4- Resulta da Douta Sentença, e que corresponde exactamente ao que sucedeu que “A assistente prestou umas declarações que nos causaram estranheza, porquanto tendo sida dada a possibilidade de relatar de forma espontânea o que não correu bem no seu relacionamento com o arguido, a assistente afirmou que o problema foi o facto de o arguido manter relacionamentos extraconjugais e só depois de ser alertada que esse não era o objecto deste processo é que a assistente começa a relatar as agressões de que afirma ter sido vítima colocando o seu início no dia 17.04.2019, descrevendo depois as que ocorrem posteriormente a essa data e só no final das suas declarações é que refere que foi vítima de agressões físicas logo após o seu casamento e quando ainda viviam no seu país de origem.”
5- Mais resultando, na Douta Sentença que “Das suas declarações foi possível perceber que os factos que a marcaram foram as infidelidades do arguido e o que a preocupa são as questões monetárias. [negrito nosso].”
6- Em momento algum, se descreveram maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. A assistente não demonstrava medo, temor, terror, muito pelo contrário, adoptou em todas as sessões de Julgamento até uma postura de confronto e exaltação, de uma autêntica mulher traída pelo marido, não agredida física ou psicologicamente.
7- E de facto, esta apreciação foi feita pelo Tribunal a quo ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” foi cumprida sem qualquer reparo.
8- Razão pela qual, a douta Sentença assentou na “livre convicção do Tribunal”, na discricionariedade do julgador, enquanto reflexo da experiência pessoal, cultural, vivencial e moral do mesmo e entendimento do caso concreto, capaz de conferir a segurança e certeza jurídicas exigidas para fazer a tão propugnada Justiça.
9- O Tribunal a quo teve, igualmente, em atenção o princípio do in dubio pro reo.
10- Na ausência de outra prova, e apresentando as declarações da assistente e da sua mãe as apontadas fragilidades e contradições, o tribunal ficou na dúvida irresolúvel sobre a ocorrência de tais factos e, na dúvida deu os mesmos como não provados, uma vez que subsistindo a dúvida nessa matéria, sempre tais dúvidas terão que beneficiar o arguido por obediência ao princípio in dubio pro reo como emanação constitucional do princípio da presunção da inocência.
11- Aliás, o aqui Recorrido subscreve na íntegra as Alegações de Recurso do Digníssimo Magistrado do Ministério Público que, igualmente entende que a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo se deve manter intocada.
12- Razão pela qual, urge reiterar que, conforme se afigura claro e manifesto, outro não poderia ter sido o entendimento do douto Tribunal a quo, a não ser aquele que, efectivamente, resulta da Douta Sentença proferida. (…) »
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da inexistência dos invocados vícios de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova e reiterando os termos da resposta apresentada na primeira instância.
Após aperfeiçoamento das conclusões, manteve os termos do parecer.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à acusação particular e ao crime de ameaça;
- contradição insanável entre factos provados e não provados;
- contradição insanável entre factos e fundamentação;
- erro notório na apreciação da prova;
- violação, pelo Tribunal do Dever de Imparcialidade previsto no art.º 6.ºC, do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
«1. O arguido e a assistente CC casaram em ... no ....
2. Desse relacionamento amoroso nasceram os filhos DD, nascida em ... de ... de 2011, EE, nascido em ... de ... de 2013 e FF, nascida em ... de ... de 2017.
3. O casal, e a mãe da assistente, mudaram-se do ... para Portugal em Outubro de 2014, passando a residir na ..., em ....
4. Pouco tempo depois, o arguido regressou ao ... onde trabalhava, e passou a deslocar-se a Portugal uma ou duas vezes por ano, permanecendo de cada vez entre um mês a um mês e meio.
5. Em data não concretamente apurada do ano de 2019, mas anterior a ........2019, a assistente tomou conhecimento da existência de uma relação extraconjugal do arguido e a partir de então intensificaram-se as discussões entre o casal.
6. No dia ........2019, no interior da residência, arguido e ofendida mantiveram mais uma discussão.
7. Após a discussão, o arguido retirou à assistente os passaportes dos filhos, dos quais se apoderou.
8. No dia 29 de Julho de 2019, no interior da residência, após o arguido ter confrontado a assistente com o facto desta ter enviado uma mensagem a uma amiga do arguido perguntado se ela era uma prostituta, a assistente cuspiu-lhe para a cara.
9. Para impedir que esta não voltasse a cuspir-lhe, o arguido tapou com a mão a boca da assistente, e esta, de imediato, desferiu-lhe uma bofetada na cara.
10. Seguidamente o arguido desferiu uma bofetada na cara da assistente, após o que desferiu socos e pontapés pelo resto do corpo, provocando-lhe dores.
11. Após, o arguido pegou nos dois telemóveis da assistente, de marca Iphone e arremessou-os contra o solo, destruindo-os.
12. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a assistente sofreu dores, hematomas no corpo e equimoses na região deltoideia esquerda, e teve necessidade de receber assistência médica no Hospital de ..., onde deu entrada pelas 19h02 do dia 30 de Julho de 2019, lesões que lhe demandaram 20 (vinte) dias de doença, com 5 (cinco) dias de incapacidade para o trabalho profissional.
13. A separação do casal acabou por concretizar-se em Março de 2020.
14. O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo da ofendida, sua esposa e mãe dos seus filhos menores, bem sabendo que com tal conduta lhe causava dores e lesões no seu corpo, o que quis
15. Ao agir do modo supra descrito, o arguido pretendeu e sabia que danificava e destruía os dois aparelhos de telemóvel de marca Iphone propriedade da assistente, bem como que os mesmos não lhe pertenciam, que agia conta a vontade e sem consentimento da sua legítima proprietária e que lhe causava prejuízo patrimonial, tudo o que quis, conhecia e logrou.
16. O arguido agiu sempre consciente, voluntária, livre e deliberadamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
17. Os dois Iphone valiam, pelo menos, € 1.200.
18. O arguido é tido por aqueles que com ele privam como uma pessoa boa, gentil e amigo dos seus amigos.
19. O arguido não tem antecedentes criminais.»
Consta igualmente da sentença, a seguinte matéria de facto não provada:
«1. Logo ao fim de dois anos de casamento, quando ainda residiam no ..., com frequência pelo menos mensal, durante discussões na residência, o arguido desferiu chapadas no rosto da assistente, bem como lhe puxou os cabelos e apertou-lhe o pescoço, estrangulando-a e desferiu-lhe socos por todo o corpo.
2. Em data não concretamente apurada mas situada cerca de Setembro ou Outubro de 2018, já em Portugal, no interior da residência, durante uma discussão, o arguido desferiu várias chapadas na face da assistente.
3. Nessas discussões ocorridas nos meses seguintes e até Março de 2020, com frequência pelo menos semanal, o arguido desferiu vários socos nos braços e pontapés nas pernas da assistente, puxou-lhe os cabelos e disse-lhe: “puta, sai de casa, esta é a tua última noite, amanhã não acordas, mato-te”, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física.
4. No dia 11 de Junho de 2019, durante uma discussão na via pública junto à residência, o arguido agarrou na assistente por um braço e forçou-a a entrar no interior do veículo automóvel, pela força, contra a vontade da mesma e enquanto se debatia.
5. Então o arguido fechou a porta do veículo com força, entalando o braço da assistente e provocando-lhe dores e pisando-a para que não conseguisse fugir.
6. Entretanto a assistente logrou soltar-se do arguido e refugiou-se no interior da residência, ao que o arguido seguiu no seu encalço.
7. Já no interior da residência, o arguido dirigiu-se à assistente e desferiu-lhe várias chapadas pelo corpo e pela cara, muniu-se de uma faca de cozinha e apontando-a à assistente, disse-lhe: “se alguém abrir a boca, está aqui a faca”, tendo retirado os passaportes à assistente e à sua sogra, dos quais se apoderou.
8. Nesse entretanto, o arguido apoderou-se da chave da residência da assistente, impedindo-a assim de abandonar a residência.
9. Na posse da chave da assistente e ciente que que a mesma dispunha ainda de uma outra chave, o arguido apontou aquela chave à assistente e disse-lhe, em tom sério: “Tu vais entregar a outra chave senão eu vou tirar os teus olhos com esta chave”, “haverá um dia em que te vou matar e vou preso”, ao que a assistente se recusou a dar-lhe a chave.
10. Após, o arguido partiu o cartão de residência da assistente e abandonou a residência em seguida.
11. Todo o episódio ocorrido no dia 11 de Junho de 2019 ocorreu na presença dos três filhos menores, que também assistiram a tudo da janela da residência.
12. No dia 29 de Julho de 2019 o arguido desferiu várias chapadas nos ouvidos, pescoço e braços da assistente, bem como chapadas pelo resto do corpo.
13. Que os factos ocorridos no dia 31.07.2019 ocorreram no interior do quarto dos filhos, na presença da menor FF, e que sem que nada o fizesse prever, o arguido, munido de um chinelo, desferiu várias pancadas com o mesmo nos braços da vítima, ao mesmo tempo que lhe disse: “tu ontem foste à polícia, o que é que foste fazer, a partir de hoje não podes sair de casa, sai daqui, senão vou-te bater a ti também, vou pegar nas tuas roupas para te prender os braços e depois vou-te pendurar”.
14. Que o arguido partiu os dois telemóveis da ofendida no dia 31 de Julho de 2019.
15. No dia 14 de Outubro de 2019, ao regressarem à residência em comum, vindos do Tribunal de Família e Menores, o arguido desferiu várias pancadas no rosto e corpo da assistente, bem como socos e chapadas, ao mesmo tempo que lhe disse: “agora estou-te a bater, o que é que vais fazer, vai dizer à GNR que eu te bati para ver o que eles podem fazer!”.
16. No dia 30 de Setembro de 2019, no ..., enquanto faziam compras, e enquanto o arguido falava com os seus pais ao telemóvel, o mesmo afirmou em tom perfeitamente audível para a assistente e referindo-se à mesma: “sempre que ela olha para mim apetece-me tirar-lhe os olhos”, provocando receio na mesma.
17. No dia 26 de Outubro de 2019, enquanto o arguido falava com os seus pais ao telemóvel, na presença da assistente, disse que se conseguisse levar a assistente e os filhos de volta para o ..., então iria matar a assistente, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física e disse ainda que iria matar a mãe da assistente.
18. Ao agir do modo supra descrito, o arguido pretendeu e sabia que maltratava física, verbal e psicologicamente a assistente CC, sua esposa e mãe dos seus filhos menores, no interior da residência e na presença dos menores, atingindo-a na sua saúde e bem estar físico e psíquico, amedrontando-a e perturbando-a no seu descanso e sentimento de segurança, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física, e ainda ofendendo-a na sua honra e consideração pessoal, atingindo-a na sua dignidade humana, tudo o que quis, conhecia e logrou.
19. Que o arguido além de ameaçar a assistente de morte, dizia-lhe “vou tirar os teus olhos com esta chave” e “apetece-me tirar-lhe os olhos”
20. O arguido disse várias vezes à assistente que a iria matar e que iria matar a mãe dela.
21. Que ao longo de 14 anos, o arguido dirigiu-se à assistente com as seguintes expressões: Tu és uma puta, sua puta de merda, não vales nada, andas com todos os homens que vês à frente, és uma mãe de merda, não sabes fazer nada, a tua mãe é uma vaca, andas a pôr-me os cornos, vaca e maluca.
22. Que em data não apurada, mas entre o dia 22 e o dia 30.07.2019, a assistente depositou na sua conta à ordem o valor de € 2000, conta essa que era co-titulada pelo arguido, mas era utilizada em exclusivo pela assistente.
23. Que as quantias depositadas nessa conta eram provenientes da venda de bens próprios da Assistente (jóias, peças de arte que colecionava ou de apoio financeiro que recebia de familiares).
24. Apesar de a assistente ser a titular dos valores depositados na referida conta, tinha apenas acesso a um cartão multibanco, estando proibida de se deslocar a uma sucursal sem estar acompanhada pelo arguido.
25. Que no dia 01.08.2019, o arguido subtraiu da carteira da Assistente a quantia de € 360 e apropriou-se do seu cartão multibanco.
26. Nesse mesmo dia o arguido realizo um levantamento de 2.000 euros da referida conta, valor que sabia não lhe pertencer.
27. No dia 20.01.2020, perto das 10.30 h, o arguido deslocou-se a casa da Assistente, dirigiu-se à divisão onde esta guardava as peças de arte, que posteriormente vendia, e apropriou-se de 20 peças de arte, em cerâmica, cristal e madeira, no valor aproximado de € 3.000.
28. No dia 24.02.2020, pelas 1.30 h, o arguido regressou a casa da assistente, dirigiu-se ao mesmo quarto e apropriou-se de 5 peças de arte, no valor de € 750.
29. Entre o dia 02.08.2019 e 25.09.2019, o arguido dirigia-se à assistente como “maggi”, que na sua língua materna significa puta e dizia, tu és uma puta, sua puta de merda, andas com vários homens, não vales nada, és uma péssima mãe.
30. Nesse período o arguido dirigiu-se à assistente nesses termos, mais de 20 vezes, sendo que em muitas dessas vezes fazia-o em voz alta e de forma agressiva.
31. O arguido sabia que as referidas expressões atingiam o bom nome da assistente e que lhe causavam vergonha, mas não se inibiu de o fazer com o propósito de a ofender no seu nome e na sua honra.
32. Actuou o arguido com intenção de se apropriar dos bens da assistente, sem ter intenção de os devolver.
33. O facto de o arguido ter praticado os factos na presença dos filhos menores do casal, causou medo na ofendida, por se sentir incapaz de os proteger.
34. Em consequência de toda a conduta do arguido, a ofendida sentiu-se deprimida, ansiosa, sofreu e sofre angústia e temor pela sua integridade física e vida, bem como se sentiu aniquilada no seu desenvolvimento pessoal e relações sociais.
35. Acresce que o arguido ocupa uma posição social influente no país de origem, nomeadamente junto de altas figuras políticas e diplomáticas, facto que repercute em temor pela vida, impedindo a assistente de alguma vez regressar ao seu país de origem, na medida que, tratando-se o ... de um país altamente corruptível, e face à influência que o arguido ali exerce, facilmente sairia impune de qualquer crime.»
FUNDAMENTAÇÃO
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à acusação particular e ao crime de ameaça
Suscitou a Recorrente a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto a factos que corresponderiam à prática de um crime de ameaça, factos esses trazidos à discussão pela acusação particular.
Sem dúvida que a acusação pública não autonomiza qualquer crime de ameaça, pois acusa o Arguido pela prática um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 14.º, 26.º, 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2, alínea a), do Código Penal e com as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima de proibição de uso e porte de arma, bem como de obrigação de frequência de programas específicos de violência doméstica, nos termos dos n.ºs 4 e 5, do mesmo preceito; e um crime de dano, p. e p. pelos artigos 14.º, 26.º e 212.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Por seu turno, a acusação particular adere à acusação do Ministério Público e conclui com a imputação ao Arguido de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos Art.ᵒˢ 14.º, 26.º, 152.º, n.º1, al.s a) e c), e n.º2, al. a), de um crime de dano, p. e p. pelos Art.ᵒˢ 14.º, 26.º, e 212.º, n.º1, três crimes de furto, p. e p. pelos Art.ᵒˢ 14.º, 26.º, 203.º, n.º1, e 207.º, n.º1, al. a), e ainda um crime de injúria, p. e p. pelos Art.ᵒˢ 14.º, 26.º, e 181.º, n.º1, todos do Código Penal.
O despacho de recebimento das acusações assumiu a seguinte formulação «Recebo as acusações insertas nos autos, deduzidas pelo Ministério Público (fls. 623 e ss.) e pela assistente (fls. 695 e ss.), contra o arguido BB, pelos factos nela descritos e qualificação jurídica, os quais dou aqui como reproduzidos.»
Não obstante os factos constantes das acusações, não foi o Arguido acusado da prática de qualquer crime de ameaça. Por isso, inexiste a apontada nulidade por omissão de pronúncia.
- contradição insanável entre factos provados e não provados
Entende a Recorrente existir uma contradição insanável entre os factos provados e não provados, pois factos foram dados como provados e não provados. Da sua motivação retira-se que vislumbra a contradição entre o facto provado n.º 10 e o facto não provado n.º 12.
Olhando de novo para estes, resultou provado que [No dia 29 de Julho de 2019] 10. Seguidamente o arguido desferiu uma bofetada na cara da assistente, após o que desferiu socos e pontapés pelo resto do corpo, provocando-lhe dores.
Por outro lado, restou como não provado que 12. No dia 29 de Julho de 2019 o arguido desferiu várias chapadas nos ouvidos, pescoço e braços da assistente, bem como chapadas pelo resto do corpo.
Salta à evidência de quem lê que não existe qualquer contradição. Provaram-se agressões, mas não todas as descritas na acusação. Como tal, apenas uma parte ficou provada, caindo o restante para os factos não provados.
É, por isso, manifesta a improcedência do recurso nesta parte.
- contradição insanável entre factos e fundamentação
Navegando ainda nas águas dos vícios da decisão de facto, suscita a Recorrente a contradição entre os factos e a fundamentação. Estamos ainda na chamada impugnação em sentido estrito que inclui a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.
Este vício, sendo de conhecimento oficioso, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do Tribunal de recurso à sua verificação na sentença e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art.º 426.º, n.º 1 do C. Processo Penal).
Quando analisada a motivação, compreende-se, porém, que a discordância da Recorrente assenta mais na divergência quanto à fundamentação do que quanto à inconsistência desta com a resposta à matéria de facto assumida pelo Tribunal na sua sentença.
Com efeito, nesta, fundamentou o Tribunal a sua decisão de facto nos seguintes termos:
«A convicção do Tribunal relativamente aos factos provados fundou-se na análise crítica e conjugada da prova conjugada com as regras de experiência comum.
Assim, os factos provados sob os números 1 a 7, 10 e 13 resultaram das declarações do arguido, as quais foram, nessa parte confirmadas pela assistente, que especificou a periodicidade e os períodos que o arguido vinha a Portugal, tendo o arguido explicado que ficou com os passaportes dos filhos com receio que a mulher os levasse para algum lugar sem o seu conhecimento e consentimento.
No que concerne aos factos assentes sob os n.ºs 8 a 11 o tribunal teve em atenção as declarações do arguido, conjugadas com as declarações da assistente, as lesões que esta apresentava, as regras de experiência comum e o princípio do in dubio pro reo.
Em audiência debateram-se duas versões a do arguido que só admitiu ter desferido uma bofetada na ofendida e partidos os telemóveis e a da assistente, em parte confirmada pelo depoimento da sua mãe. Como à frente melhor se explicará, as declarações da assistente e da sua mãe não mereceram credibilidade, pelo que o tribunal só atendeu às suas declarações quando confirmadas por outro meio de prova, o que é o caso atendendo à documentação clínica e exame médico junto aos autos.
Assim, o arguido afirmou que a assistente sabedora que ele tinha uma relação extraconjugal, enviou um sms a uma amiga do arguido perguntando-lhe se ela era prostituta, confrontou a assistente com tal facto e iniciaram uma discussão no decurso da qual a assistente cuspiu-lhe para a cara; para evitar que ela voltasse a cuspir-lhe, colocou-lhe a mão na boca e aí a assistente desferiu-lhe uma estalada na cara e ele respondeu com um estalo e partiu os telemóveis da ofendida.
Por seu turno, a ofendida afirmou que discutiram por causa dos filhos, e o arguido deu-lhe socos e pontapés por todo o corpo.
As declarações do arguido, no que concerne às agressões, não são compatíveis com os elementos clínicos junto aos autos e as fotos de fls. 90, fotos tiradas pela testemunha GG, militar da GNR no dia seguinte aos factos quando a ofendida se dirigiu ao Hospital e apresentou queixa, tal como a testemunha afirmou, num depoimento claro e isento. As lesões apresentadas pela ofendida no braço, são compatíveis com a versão da ofendida.
Assim, tendo em atenção as declarações da assistente que são compatíveis com as lesões que apresentava, lesões essas clinicamente comprovadas, o tribunal deu como provado que, para além da chapada que o arguido confessou, o arguido também desferiu socos e pontapés.
Já quanto aos motivos da discussão, forma como se iniciaram as agressões e telemóveis partidos nesta data, teve-se em atenção o princípio do in dubio pro reo e deu-se como assente a versão do arguido.
O facto assente sob o n.º 12 teve-se em atenção a documentação clínica de fls. 30, 56, 74 e 108, e o exame médico-legal junto aos autos a fls. 73.
Do comportamento objectivo do arguido, apurado nos termos supra, conjugado com as regras de experiência comum, inferiram-se os elementos subjectivos dados como assentes.
Mais, teve-se em atenção o depoimento de ..., sub gerente da loja do arguido e assistente, que disse ter acompanhado a ofendida ao Hospital e à GNR para servir de tradutor, tendo presenciado as marcas que a ofendida apresentava.
Teve-se ainda em atenção o depoimento das testemunhas de defesa HH, que conhece o arguido há mais de 20 anos e que depôs quanto à sua personalidade.
No que concerne ao valor dos Iphones, pese embora a testemunha não tenha referido o seu valor de aquisição e não se tivesse apurado qual o modelo em causa, tendo em atenção o valor de mercado dos Iphones, mesmo em segunda mão e para modelos já antigos, que se podem consultar em sites seguros, afigura-se-nos que o valor peticionado está dentro dos valores normalmente peticionados para esta marca de telemóvel, pelo que o tribunal deu tal valor assente de acordo com as regras de experiência comum.
Mais teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos.
*
No que concerne à matéria não provada, o tribunal teve em atenção o princípio do in dubio pro reo.
Como já se referiu, em audiência debateram-se duas versões a do arguido, que negou os factos, e a da ofendida parcialmente corroborada pelo depoimento da sua mãe.
O arguido explicou que as discussões entre o casal ficaram a dever-se a ciúmes da assistente e negou todos os factos não provados.
A assistente prestou umas declarações que nos causaram estranheza, porquanto tendo sida dada a possibilidade de relatar de forma espontânea o que não correu bem no seu relacionamento com o arguido, a assistente afirmou que o problema foi o facto de o arguido manter relacionamentos extraconjugais e só depois de ser alertada que esse não era o objecto deste processo é que a assistente começa a relatar as agressões de que afirma ter sido vítima colocando o seu início no dia 17.04.2019, descrevendo depois as que ocorrem posteriormente a essa data e só no final das suas declarações é que refere que foi vítima de agressões físicas logo após o seu casamento e quando ainda viviam no seu país de origem.
Por outro lado, quando descreve o episódio da faca, que afirmar ter ocorrido no dia 10.06.2019 e não ........2019 como consta da acusação, não descreve os factos mais gravosos, aqueles que uma pessoa normal não podia esquecer, como seja o facto de o arguido lhe ter apontado a faca e de dizer “se alguém abrir a boca, está aqui a faca” e que após lhe ter retido a chave o arguido a ameaça de morte “haverá um dia em que te vou matar e vou preso”.
Aliás, a ofendida foi clara ao afirmar que o arguido foi buscar a faca e colocou-a em cima do armário e não fez mais nada com a faca nem disse mais nada. Só mais tarde, a instâncias do seu I. Mandatário e quando este a questionou se o arguido não disse que a matava é que afirmou que sim.
A ofendida relata o episódio em que o arguido fala da GNR e do episódio ocorrido no ... em que o arguido fala ao telefone com o pai, mas não confirma as expressões constantes da acusação e nada refere quanto ao facto constante da acusação, facto à partida mais gravoso, em que o arguido ao telefone com os pais, e na sua presença, afirma que se conseguir levá-la para o ..., a matava. É certo que a instâncias do seu mandatário, refere uma expressão idêntica, mas em circunstâncias diferentes.
No que concerne, às injúrias só confirmou que o arguido a apelidava de prostituta.
Das suas declarações foi possível perceber que os factos que a marcaram foram as infidelidades do arguido e o que a preocupa são as questões monetárias.
Assim, e quanto às obras de arte alegadamente furtadas pelo arguido acabou por perceber-se que se tratavam de “souvenires”, de peças que vendia no estabelecimento comercial de ambos e que a ofendida geria, referindo apenas uma torre Effeil, nada mais tendo referido sobre tais factos, nem sobre a demais matéria cível.
Acresce que a postura que a ofendida assumiu não foi aquele típica de uma vítima de violência doméstica, que evita discussões e conflitos com o agressor, antes pelo contrário referiu que confrontou o arguido com o facto de ele ter efectuado uma chamada para outra mulher e no episódio da faca, referiu que ligou 15 ou 20 vezes para o arguido para saber onde é que ele estava.
A assistente referiu que só da vez que foi ao hospital é que ficou marcada, facto que se estranha já que relatou ter sido agredida com chapadas e murros, agressões que habitualmente deixam marcas.
Por outro lado, a assistente prestou as suas declarações sempre no mesmo tom de voz, de forma autónoma, não deixando transparecer qualquer emoção, e sem qualquer expressão facial reveladora de tristeza, de emoção, de estar a relembrar factos traumáticos.
É certo que o facto de a assistente ser de uma cultura diferente poderá, em parte, explicar esse distanciamento dos factos, mas as apontadas incongruências e deficiências abalam irremediavelmente a credibilidade da versão da assistente, rejeitada que se mostra pela defesa.
Importa ter presente que a assistente assume paralelamente a qualidade de demandante civil, o que acentua fortemente o papel de parte interessada no desfecho da causa e nos impõe cautelas acrescidas na sindicância da consistência e fiabilidade da sua versão.
A única testemunha com conhecimento dos factos é AA, mãe da assistente.
Esta testemunha prestou um depoimento que por ter entrado, em alguns aspectos, em contradição com o da filha e por ter se mostrado parcial não mereceu credibilidade.
A testemunha afirmou que sempre viveu com a filha, que dois anos após a filha se ter casado o arguido começou a ter relacionamentos extraconjugais e a bater na filha com a mão aberta e com a mão fechada, factos que ocorriam duas vezes por semana e às vezes uma vez por mês.
Estranha-se ter presenciado tais factos e não ter tido qualquer intervenção, nem ter chamado a atenção do arguido após os factos. E mais se estranha não ter referido que de tais agressões tivesse resultado alguma lesão para a filha, como é normal nas agressões a murro.
Afirmou que em Portugal o arguido batia na filha de dois em dois dias, tentando passar a ideia de agressões constantes, nada referindo quanto ao facto de o arguido passar a maior parte do ano no ....
No que concerne ao episódio ocorrido no dia 10.06.2019 (episódio constante da acusação como tendo ocorrido no dia 11), existem contradições entre o seu depoimento e as declarações prestadas pela filha. Assim, afirmou que viu da janela o arguido tentar meter a filha dentro do carro, que o arguido atirou uma garrafa de água de plástico na direcção da filha atingindo-a na barriga, enquanto que a filha afirmou que o arguido com a garrafa de água bateu-lhe no peito, o que é bem diferente.
Continuou afirmando que quando a filha se dirigiu para casa o arguido puxou-lhe os cabelos, facto que a assistente não referiu ter ocorrido nesse momento e nada referindo quanto aos socos que a ofendida disse ter levado nas costas. Só mais tarde a instâncias do I. mandatário é que referiu que o arguido desferiu murros e chapadas. Ora, sendo a agressão a murro mais gravosa do que um puxão de cabelos, não se compreende que se tenha esquecido de a mencionar inicialmente.
Depois afirmou que o arguido pegou numa faca e levou-a para o quarto e colocou-a em cima do armário, tendo explicado que viu tudo porque a porta do quarto estava entreaberta.
No final, a instâncias do tribunal questionada se teve alguma intervenção uma vez que viu o arguido e a filha a discutirem e que o arguido tinha levado uma faca para o quarto, afirmou que se dirigiu ao quarto e tirou a faca; facto que a filha não referiu, sendo certo que seria normal a filha ter dito que o arguido não fez mais nada com a faca porque a mãe entrou no quarto e levou-a.
Também causa alguma estranheza que estando o arguido num modo agressivo a discutir e a bater na ofendida, como afirmou a testemunha, que este tenha permitido, sem qualquer reacção, que a sogra entrasse no quarto e levasse a faca.
As incongruências e contradições apontadas e a forma como depôs sem olhar para os interlocutores, com excepção do I. Mandatário da filha e sem deixar transparecer qualquer emoção durante o seu depoimento aparentando estar a relatar uma “história”, levaram a que o tribunal ficasse na dúvida sobre a credibilidade do seu depoimento.
A testemunha II nada sabia sobre os factos e a testemunha HH só depôs sobre as condições de vida do arguido.
Na ausência de outra prova, e apresentando as declarações da assistente e da sua mãe as apontadas fragilidades e contradições, o tribunal ficou na dúvida irresolúvel sobre a ocorrência de tais factos e, na dúvida deu os mesmos como não provados, uma vez que subsistindo a dúvida nessa matéria, sempre tais dúvidas terão que beneficiar o arguido por obediência ao princípio in dubio pro reo como emanação constitucional do princípio da presunção da inocência. »
Lida a fundamentação, nada contém que diferente entendimento quanto aos factos provados e não provados. Também não se vislumbra uma omissão quanto a qualquer ponto da resposta. Nenhuma contradição é passível de ser apontada, pelo que naufraga a pretensão recursiva, no que ao vício de contradição entre os factos e a fundamentação respeita.
- erro notório na apreciação da prova
Entramos agora na segunda modalidade da impugnação de facto, ou impugnação em sentido lato. Esta impõe, conforme resulta da análise do normativo correspondente, que o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como que indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, bem como aquelas que devem ser renovadas.
A Recorrente assenta a sua posição nas declarações da Assistente no depoimento da testemunha, sua mãe. Porém, o Tribunal desvalorizou aqueles relatos e justificou-o, revelando os motivos da sua convicção.
A convicção sobre a matéria de facto dada como provada terá que resultar da prova produzida em audiência, livremente apreciada de acordo com os critérios estabelecidos pelo art.º 127.º; ou seja, tal livre apreciação apenas é limitada nos casos em que a lei dispuser diferentemente.
Este princípio basilar não pode ser confundido com a permissão para o livre arbítrio ou para uma valoração puramente subjectiva. Importa o mesmo a sujeição a critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, concreta e transmissível. O decisor tem que explicar as razões da sua decisão, e estas têm que ser sindicáveis pelo destinatário e, nesta sede, pelo Tribunal de recurso.
Não olvidemos, porém, o factor humano envolvido na função jurisdicional, que incute em cada decisão uma vertente subjectiva inerente ao decisor (singular ou colectivo) pois cada qual contribui com o seu saber e experiência para o resultado que produz. Por essa razão, alude o referido art.º 127.º à «livre convicção».
Deste modo, a livre valoração da prova não é uma actividade exclusivamente subjectiva assente numa inexplicável certeza no julgador causada por sentimentos ou impressões sem consistência. Não pode ser insusceptível de explicação de acordo com critérios racionais, lógicos e críticos, decorrentes quer da experiência comum quer, do saber científico das ciências exactas e das ciências sociais, seja ainda da experiência profissional e pessoal do julgador. Impõe-se que seja demonstrável e explicável na respectiva fundamentação.
Ora «O dever [de fundamentação das sentenças] resultante da Constituição e da lei (CPC) tem por objetivo a explicitação por parte do julgador acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma a que os destinatários possam entender as razões da decisão proferida e, caso o entendam, poderem sindicá-la e reagir contra a mesma.» [ECLI:PT:STJ:2021:434.17.1T8PNF.P1.S1.39].
Ao Tribunal são apresentados diversos meios de prova que, pela sua natureza, serão apreciados de formas distintas. Poderemos estabelecer a divisão, desde logo, entre a prova pré-constituída, recolhida no processo em momento anterior ao julgamento, e aquela cuja produção ocorreu em sede de audiência.
Na primeira encontramos a chamada prova científica, produzida a partir de vestígios recolhidos e que traduz, sobre os mesmos, uma resposta à luz dos critérios científicos vigentes. Temos também a prova documental, cuja valoração pode estar, ou não, condicionada de acordo com a natureza do documento, seja ele em suporte escrito, áudio, vídeo, físico ou virtual (digital). E ainda poderemos aqui enquadrar a prova decorrente dos objectos apreendidos e juntos ao processo, estejam eles examinados ou não.
Na prova produzida em audiência encontramos a mais volúvel das provas pelo pendor de subjectividade que a sua ponderação acarreta: a prova testemunhal, à qual se junta a apreciação das declarações dos sujeitos processuais, Arguidos, Assistentes e Demandantes.
Neste domínio, o primeiro e mais significativo vector da decisão é o da credibilidade a testemunha ou declarante. Aqui importa referir o papel essencial da imediação, pois a forma como se sucedem questões e respostas, os tempos e a forma destas, as reacções do depoente ou declarante, a sua consistência, as explicações que emergem para discrepâncias, omissões ou certezas, imprimem no decisor uma convicção que nem sempre é racionalmente explicável.
Ultrapassado esse patamar, há que valorar o resultado da produção desse meio de prova, então, explicando qual a análise que sobre os depoimentos ou declarações foi efectuada através de deduções, inferências, aplicação das regras da lógica ou da experiência comum, de conhecimentos científicos, das ciências exactas ou sociais, e quais os resultados que essa análise produziu.
Aqui chegados, ponderemos então o âmbito da apreciação que cabe ao Tribunal de recurso sobre a prova. Citando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2020, relatado pelo Juiz Conselheiro Raul Borges [ECLI:PT:STJ:2020:142.15.8PKSNT.L1.S1.B7], e a síntese do seu sumário, « XIII – A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tem um âmbito restrito, pois nesta forma de impugnação, as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410.º têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
XIV – O erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
XV – Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
XVI – Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, que o recorrente pode considerar não correcta, dela divergir, afrontá-la, só que a manifestação desta divergência, este confronto não é passível de enquadramento em estratégia recursiva atendível (não cabe no plano da impugnação da matéria de facto possível nos quadros restritos consentidos pelo artigo 410.º, n.º 2, como extravasa os limites da mais ampla, mas nem por isso de contornos ilimitados, impugnação nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP).
XVII – Enquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.
XVIII – Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialéctico das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos.
XIX – A primeira relaciona-se com a actividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto.
XX – O erro vício será algo detectável, necessariamente a juzante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em registo de oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização.
XXI – Será, se assim quisermos apelidar, no processo cognoscitivo/decisório da matéria de facto, um “produto de terceira geração”, sendo o primeiro passo a aquisição processual com a produção das provas em julgamento; em segundo lugar, a avaliação crítica do acervo probatório adquirido; por último, a formulação do juízo integrativo ou não.
XXII – Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova”.»
Já o vimos acima: o Tribunal revelou de forma clara e coerente os fundamentos da sua decisão.
Desta forma, o que pretende, então, a Recorrente? Pretende que o Tribunal da Relação de Lisboa se substitua ao Tribunal de primeira instância e formule uma outra fundamentação, ao encontro da sua, para alterar os factos.
Não é esse o papel deste Tribunal, cuja intervenção só poderá ser justificada se for possível concluir pelo erro na dita valoração da prova. Erro esse que, no caso que nos ocupa, não vislumbra.
Está devidamente fundamentada a razão pela qual não foi a versão dos factos apresentada pela Assistente ou pela testemunha valorada de forma a criar a convicção sobre a verificação de tais factos. De acordo com as regras da experiência comum, e tendo presentes as justificações enunciadas quanto à qualidade dos depoimentos/declarações, não é criticável a decisão do Tribunal a quo. Perante a divergência com a versão do Arguido, também ela não aceite como plenamente válida, quedou-se o Tribunal na dúvida que não logrou superar, à míngua de outros meios de prova que permitissem esclarecer a dinâmica das acções. Por isso, atento o princípio do in dubio pro reo, quedaram tais factos como não provados.
Não sendo passível de censura, mantém-se inalterada a decisão recorrida.
- violação, pelo Tribunal do Dever de Imparcialidade previsto no art.º 6.ºC, do Estatuto dos Magistrados Judiciais
Para que não se ouse afirmar que incorrerá a presente decisão em omissão de pronúncia quanto a esta conclusão da Recorrente, sempre se afirmará a manifesta improcedência do invocado, como é da mais elementar interpretação de Direito.
A sentença recorrida é do Tribunal. O Tribunal não está vinculado ao Estatuto dos Magistrados Judiciais no que aos deveres destes respeita. Como o próprio nome do diploma indica, são os Juízes quem se encontram vinculados ao dito Estatuto e a violação dos deveres impostos poderá importar responsabilidade disciplinar.
O Tribunal nunca poderia violar tal dever, sendo a manifesta incapacidade da Recorrente em distinguir entre o Magistrado titular e o respectivo órgão de soberania a fonte da confusão gerada por esta conclusão desprovida de fundamento legal.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso, mantendo-se inalterada a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 4 UC a respectiva taxa de justiça.

Lisboa, 22.Outubro.2024
Rui Coelho
Manuel José Ramos da Fonseca
Alexandra Veiga