Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7178/23.3T8LSB-A.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: CITAÇÃO
REINO UNIDO
CONVENÇÃO DE HAIA
CARTA ROGATÓRIA
TRADUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – O Reino Unido já não é membro da União Europeia, pelo que é inaplicável o Regulamento (UE) 2020/1784 relativo à relativo à citação ou notificação de actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros.
II – Por isso, a citação da ré, sociedade registada e com sede no Reino Unido, deverá ser realizada em conformidade com a Convenção de Haia Relativa à Citação e Notificação no Estrangeiro de Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Cível e Comercial, de 15/11/1965.
III - Nem o direito interno português nem a Convenção obrigam, na citação por via postal de pessoa (singular ou colectiva) estrangeira, a tradução da petição inicial e documentos que a acompanham.
IV – Porém, entendendo o tribunal que no caso concreto é conveniente a citação pro carta rogatória, e sabendo-se que o Reino Unido exige a tradução, deverá o tribunal diligenciar pela sua realização, sendo os respectivos custos suportados adiantadamente pelo IGFEJ, atenta a isenção de custas da apelante na acção popular.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório

Na acção popular instaurada por CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION contra EASYJET AIRLINE COMPANY LIMITED vem pedido:
«A. deve a ré ser condenada a reconhecer que fazer pender a venda de um serviço aos autores populares da aquisição de outro serviço funcionalmente independente por parte destes é uma prática restritiva da concorrência e proibida por lei;
B. deve a ré ser condenada a reconhecer que uma bagagem de mão não registada com dimensões até 55x40x20cm e que cumpram integralmente as regras aplicáveis em segurança, é um item essencial e previsível do preço final do serviço de transporte, enquanto offspring da atividade da ré;
C. deve a ré ser condenada a reconhecer que não pode aplicar um sobrepreço ao preço final do serviço de transporte aéreo quando o consumidor se faz acompanhar de uma bagagem de mão, não registada, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpra integralmente as regras aplicáveis em segurança;
D. deve a ré ser condenada a reconhecer que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, quanto aos autores populares;
E. deve a ré ser condenada a reconhecer que violou qualquer um dos artigos do decreto-lei 57/2008, nomeadamente, os artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1,b,d), 9 (1,a) desse diploma;
F. deve a ré ser condenada a reconhecer que violou os artigos da lei 24/96, nomeadamente, os artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7, (4) e 8 (1, a, c, d) (2), desse diploma;
G. deve a ré ser condenada a reconhecer que violou o artigo 2 (1), da lei 67/2003;
H. deve a ré ser condenada a reconhecer que violou os artigos 11, da lei 19/2012;
I. deve a ré ser condenada a reconhecer que violou o artigo 102, do TFUE;
J. deve a ré ser condenada a reconhecer que o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e tido com os autores populares, é ilícito;
K. deve a ré ser condenada a reconhecer que com a totalidade ou parte desses comportamentos lesaram gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;
L. deve a ré ser condenada a reconhecer que em resultado do comportamento supra descrito no § 3, provocou os danos patrimoniais e não patrimoniais referidos no § 3;
e em consequência, para o caso de qualquer um dos pedidos supra proceder:
M. deve a ré ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
a. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;
b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cadamomento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal,
N. Subsidiariamente ao ponto anterior ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, determinado em € 43,00 (quarenta e três euros) por segmento de voo do transporte aéreo contratado nos termos supra referidos;
b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
O. Deve a ré ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, mas nunca inferior a 50 euros por cada passageiro e segmento de viagem.
b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares
pelos danos morais;
14 No montante global de € 12.070.028.250,00, tendo em conta que entre 01.11.2018 e 16.03.2023, a ré transportou cerca de 274,35 milhões de passageiros, a uma média, de 62,12 milhões por ano, sendo que o dano foi, em média, de € 43 por passageiro.
15 No montante global de € 13.717.500.000, tendo em conta que entre 01.11.2018 e 16.03.2023, a ré transportou cerca de 274,35 milhões de passageiros, a uma média, de 62,12 milhões por ano.
c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
P. Deve a ré ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:
a. nos termos do artigo 9 (2) da lei 23/2018 ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada;
b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares
pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;
c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.
Q. Ser a ré condenada a pagar todos os encargos que os autores intervenientes tiveram ou venham ainda a ter com o processo, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexo e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que entretanto venha obter por via de celebração de um contrato.
R. Porque o artigo 22 (2), da lei 83/95 estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.
S. Requer-se ainda que Vossa Excelência decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 14 infra, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.
T. Requer-se também que Vossa Excelência decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.».
Requereu na petição inicial:
«§8 CITAÇÃO DOS TITULARES DOS INTERESSES EM CAUSA NA PRESENTE ACÇÃO POPULAR
Uma vez que não é possível aos autores individualizar todos os titulares dos interesses em causa, que são todos os cidadãos da União Europeia, consumidores, e que nessa qualidade tenham adquirido em Portugal os serviços de transportes aéreos da Easyjet e que tenham pago um custo adicional pelo transporte da bagagem de mão, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpriam integralmente as regras aplicáveis em segurança, tenham ou não utlizado o dito serviço, requer-se a sua citação nos termos do artigo 15, da lei 83/95 artigo e ora requerida nos termos do artigo 226 (4, a, c), do CPC, feita através de anúncios tornados públicos através de qualquer meio de comunicação social, sem obrigatoriedade de identificação pessoal dos destinatários, que poderão ser referenciados enquanto LESADOS DA EASYJET (sobrepreço da bagagem de mão) - titulares do interesse ao correto e eficiente funcionamento da economia, da confiança no mercado, das relações de consumo e da sociedade em geral, que sejam cidadãos da União Europeia, consumidores, e que nessa qualidade tenham adquirido em Portugal os serviços de transportes aéreos da Easyjet e que tenham pago um custo adicional pelo transporte da bagagem de mão, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpriam integralmente as regras aplicáveis em segurança, tenham ou não utlizado o dito serviço e por referência à ação de que se trate, à identificação de, pelo menos, a autora interveniente
(CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION), e por menção do pedido e da causa de pedir.
Devem ainda os titulares dos interesses em causa serem alertados, na aludida citação, para a possibilidade de poderem intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar, com necessidade de para isso construírem advogado(a), e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pelos autores ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação e por referência ao artigo 15 (1), da lei 83/95.».
*
Em 30/03/2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Proceda-se à citação dos titulares dos interesses em causa, de acordo com o disposto no artigo 15.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, na sua redação atual, fixando-se o prazo de 30 dias para a possibilidade de pronuncia ou intervenção estabelecido neste artigo. A citação será feita por anúncios tornados públicos através de três jornais diários de âmbito nacional, de maior tiragem diária em dois dias sucessivos.
O universo dos citados deverão ser «os cidadãos da União Europeia, consumidores, e que nessa qualidade tenham adquirido em Portugal os serviços de transportes aéreos da companhia de aviação “Easyjet”, que tenham pago um custo adicional pelo transporte da bagagem de mão, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpriam integralmente as regras aplicáveis em segurança, tenham ou não utlizado o dito serviço, e nesse âmbito, se julguem lesados por tal pagamento».
*
Em 12/03/2024 a secção de processos notificou a autora nestes termos:
«Fica V. Exa. notificado, de que junto se remete cópia da carta rogatória para citação, com petição inicial e documentos, a fim de serem traduzidas para inglês, sob pena de ser recusada a citação.».
*
A autora respondeu à notificação nestes termos:
«OPOSIÇÃO À NOTIFICAÇÃO para tradução de documentação para a língua inglesa, emitida por pela secretária sob a referência 433786891.
§1 Dos factos
Os autores populares foram notificados pela Secretaria deste Digníssimo Tribunal com a incumbência de traduzir para o idioma inglês variados documentos pertinentes ao caso em apreço, nomeadamente a petição inicial e documentos anexos, tudo sob o alegado imperativo da efetivação da citação da ré, sob pena de a mesma ser recusada.
§2 Dos fundamentos
A notificação acima referida parece emanar de uma equívoca interpretação da Secretaria deste Tribunal, provavelmente decorrente de um lapso. Até porque, a realização da tradução de todos os documentos solicitados não só acarreta um encargo financeiro e temporal despropositado para os autores populares, como também não se afigura necessária para o cumprimento dos requisitos legais de citação da ré.
§3 Do direito
Importa esclarecer que o despacho da Secretaria que culmina no presente requerimento não clarifica nem fundamenta, em termos legais, a razão para tal imposição. Efetivamente, a prerrogativa de exigir a tradução da petição inicial e de outros documentos anexos e uma faculdade concedida aos autores e não uma obrigação.
Sem prejuízo, o réu, uma vez citado, tem o direito de recusar a citação e exigir a tradução. Só aí nasce a obrigação do réu pugnar pela tradução de tais documentos. Se não houver recusa à citação, a mesma será considerada efetuada deixando de recair sobre os autores o ónus da tradução.
Esta interpretação é corroborada tanto pela doutrina jurídica como pela jurisprudência nacional, como se comprova pelos acórdãos proferidos nos processos 1452/12.1T2AVR.C1, 1821-14.2T8CSC-B.L1-6, 1862/2003-6, 0551145 pelos Venerandos Tribunais das Relações de Coimbra, de Lisboa e do Porto, respetivamente.
Ainda, deve ser realçado que, de acordo com o artigo 20 (1), da lei 83/95, não são exigíveis preparos para o exercício do direito de ação popular. Verificando-se a necessidade de tradução da petição inicial e demais documentos, a mesma deverá ser assegurada pelo tribunal ̶ tal como tem vindo a ser o entendimento dos tribunais nacionais.
Sem prejuízo do exposto e em observância ao princípio da cooperação processual, os autores disponibilizam-se a providenciar uma tradução certificada, em língua inglesa, do documento de citação da ré.
§4 Pedido
Termos em que, atento ao supra exposto, requer-se a V. Exa. que seja considerada a nossa oposição ao requisito de tradução integral da documentação para a língua inglesa, e que a citação da ré seja efetuada através de carta registada com Aviso de Receção, de acordo com o artigo 18 do Regulamento (UE) 2020/1784, eliminando-se assim a necessidade de tradução dos documentos anexos, excetuando-se apenas o documento de citação, o qual a representante da classe se disponibiliza a providenciar cópia traduzida e certificada.».
*
Em 18/03/2024 foi proferido o seguinte despacho:
«Salvo o devido respeito não concordamos com o A. e tem inteira razão a secção.
A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao R. de que foi proposta uma ação e para o mesmo se defender. Nessa medida o mesmo não se pode defender de algo cujo conteúdo não percebe. Nem sequer pode perceber que se trata de uma citação judicial se não estiver na sua língua.
Por outro lado ,o cumprimento do regulamento que permite a citação no estrangeiro previsto na convenção de Haia, estatui expressamente que os actos são remetidos na língua oficial de quem se pretende citar, cfr. art. 5º da dita convenção, posto que em Inglaterra tem sido requerida a tradução dos mesmos.
Nessa medida, indefiro a citação por carta registada em língua portuguesa e determino a citação por via da convenção de Haia em língua inglesa (o R. não é cidadão nacional)».
*
Em 19/03/2024 a autora apresentou requerimento nestes termos:
Ǥ1 Dos factos
Os autores populares foram notificados pela Secretaria deste Digníssimo Tribunal com a incumbência de traduzir para o idioma inglês variados documentos pertinentes ao caso em apreço, nomeadamente a petição inicial e documentos anexos, tudo sob o alegado imperativo da efetivação da citação da ré, sob pena de a mesma ser recusada.
Este tribunal veio confirmar tal necessidade. No entanto, optou pela citação no estrangeiro nos termos previstos no artigo 5 da convenção de Haia.
Dita o retro referido artigo 5, o seguinte:
A Autoridade central do Estado requerido procederá ou mandará proceder à citação do destinatário ou à notificação do acto:
a) Quer segundo a forma prescrita pela legislação do Estado requerido para as citações ou notificações internas dirigidas às pessoas que se encontram no seu território;
b) Quer segundo a forma própria pedida pelo requerente, a menos que a mesma seja incompatível com a lei do Estado requerido.
Salvo o caso previsto na alínea 1.ª, letra b), o acto poderá sempre ser entregue ao destinatário que voluntariamente o aceitar.
Se o acto dever ser objecto de citação ou de notificação conforme o disposto na alínea 1.ª a Autoridade central poderá exigir que o acto seja redigido ou traduzido na língua ou numa das línguas oficiais do seu país.
A parte do pedido feito de acordo com a fórmula anexa à presente Convenção, contendo os elementos essenciais do acto, será entregue ao destinatário
Ora, não vemos de que forma tal normativo se oponha a citação da ré nos termos do regulamento (CE) 2020/1874, em que a carta de citação por carta registada com aviso de receção é válida e apenas essa deve ser traduzida para a língua do destinatário.
Isto porque, tal citação deve ser acompanhada pelo formulário L do supra aludido regulamento, onde consta a informação ao destinatário sobre o direito de recusar a receção do ato.
§2 Do direito
A ré deve ser citada nos termos do regulamento (CE) 2020/1874, tal como tem acontecido em todas as ações promovidas pela aqui representante da classe, em que as rés estão localizadas em Estados Membros da União Europeia, como é aqui o caso nos autos.
Isto porque, a ré, uma vez citado, tem o direito de recusar a citação e exigir a tradução – até porque disso é informada (aí sim em língua do Estado Membro da ré) nos termos do formulário L do regulamento (CE) 2020/1874. Só aí nasce a obrigação do réu pugnar pela tradução de tais documentos. Se não houver recusa
à citação, a mesma será considerada efetuada deixando de recair sobre os autores o ónus da tradução – neste caso, como se verá infra, sobre o tribunal.
Esta interpretação é corroborada tanto pela doutrina jurídica como pela jurisprudência nacional, como se comprova pelos acórdãos proferidos nos processos 1452/12.1T2AVR.C1, 1821-14.2T8CSC-B.L1-6, 1862/2003-6, 0551145 pelos Venerandos Tribunais das Relações de Coimbra, de Lisboa e do Porto, respetivamente.
§3 Responsabilidade pela tradução
É certo que os autores podem recorrer da douta decisão deste tribunal vertida no despacho sob resposta. No entanto, não o vão fazer, pois se o tribunal entende que é importante, desde já, essa tradução, então pois, nada terão os autores a opor.
No entanto, deve ser realçado que, de acordo com o artigo 20 (1), da lei 83/95, não são exigíveis preparos para o exercício do direito de ação popular.
Verificando-se a necessidade de tradução da petição inicial e demais documentos, a mesma deverá ser assegurada pelo tribunal ̶ tal como tem vindo a ser o entendimento dos tribunais nacionais.
Isto porque, atenta a natureza de ação popular, assiste à representante da classe o direito de não suportar os custos com a citação dos titulares dos interesses em causa (assim como custos, por exemplo, de periciais ou traduções de documentos) [cf. artigo 4 (1, b), do decreto lei 34/2008].
Neste sentido, por exemplo, o Despacho do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, de 12 de dezembro de 2022, … v. Apple (processo 866/22.3T8CBR) e o Despacho do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, de 7 de julho de 2022, Ius Omnibus v. Meliá, (processo 6/21.6YQSTR), que se poderão juntar caso o douto tribunal assim o entenda.
§4 Pedido
Termos ex vi supra, requer-se a V. Exa. que seja a citação da ré seja efetuada através de carta registada com Aviso de Receção, em língua inglesa (da ré), acompanhado do formulário L (disponível em língua inglesa e que a secretária pode preencher online), de acordo com o artigo 18 do Regulamento (UE) 2020/1784, eliminando-se assim a necessidade de tradução dos documentos anexos, excetuando-se apenas o documento de citação, o qual a representante da classe se disponibiliza a providenciar cópia traduzida e certificada.
Caso Vossa Excelência entenda, ainda assim, que é necessário a tradução de todos os documentos anexos, incluindo a petição inicial, então que ordene a secretária a providência tal tradução, com os custos a serem suportados pelo valor destinado à procuradoria e adiantado pelo Instituto de Gestão Financeira e
Equipamento da Justiça (IGFEJ).».
*
Em 09/04/2024 o tribunal proferiu o seguinte despacho:
«Na senda dos requerimentos anteriores, vem agora a Autora requerer que seja a “citação da ré efetuada através de carta registada com Aviso de Receção, em língua inglesa (da ré), acompanhado do formulário L (disponível em língua inglesa e que a secretária pode preencher online), de acordo com o artigo 18 do Regulamento (UE) 2020/1784, eliminando-se assim a necessidade de tradução dos documentos anexos, excetuando-se apenas o documento de citação, o qual a representante da classe se disponibiliza a providenciar cópia traduzida e certificada”.
Ademais, requer ainda que, caso se decida pela tradução da petição inicial e todos os documentos em língua inglesa, seja a secretaria a providenciar essa tradução.
Vejamos.
Quanto ao primeiro ponto: em 18.03.2024 foi proferida decisão quanto à questão, decorrendo do seu conteúdo que a ordem de tradução abrange petição inicial e documentos (de forma a que o destinatário compreenda o que lhe é dirigido e por concordar com a notificação anterior da secretaria), pelo que o poder jurisdicional está esgotado, nada mais se impondo determinar.
Aquilatemos agora do segundo ponto requerido, subsidiariamente.
A Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, que consagra o direito de ação popular, não estatui qualquer regulação específica quanto ao modo de realizar a citação, pelo que sempre se terão que aplicar, subsidiariamente, as regras da lei processual civil (artigo 12.º do referido diploma legal) e, no caso, atendendo a que o requerido não assume a qualidade de estado parte da União Europeia, à Convenção de Haia Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro de Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial.
Ora, o processo civil é um processo de partes, no qual o princípio do dispositivo encontra supremo alicerce, cabendo-lhes a iniciativa e instrução dos autos a que dão origem.
A acrescer, estatui o artigo 134.º n.º 1 a contrario do Código de Processo Civil – cuja interpretação aqui se deve realizar a contrario – que deve ser a parte que apresenta um documento em língua estrangeira que deve apresentar a sua tradução. De igual modo, a parte que requer a notificação/citação de estrangeiro deve responsabilizar-se pela compreensão daquele das peças que apresenta e diligenciar pela respetiva tradução.
Em face ao exposto, e à luz dos princípios e preceitos legais citados, cabe ao requerente da citação providenciar pela tradução dos seus elementos integrantes, nomeadamente carta rogatória para citação, petição inicial e documentos.
Notifique – com a expressa advertência de que os autos ficam a aguardar o seu impulso processual, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Civil.».
*
Inconformada, apelou a autora, terminando a alegação com estas conclusões:
«1. Os autores interpõem recurso de apelação nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,h) e 647 (1), todos do CPC, por terem legitimidade para tal e estarem em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC), por não se conformarem com a decisão proferida em 09.04.2024, e ora recorrida e com a mesma discordarem.
2. Com este recurso, vai também impugnada a decisão proferida pelo tribunal a quo em 18.03.2024.
3. Os apelantes apresentam recurso com o objetivo de reformar decisões que, no seu entendimento, constituem erro na aplicação e interpretação de normas legais, bem como a omissão de outras relevantes para uma adequada resolução do litígio.
4. As decisões em apreço referem-se à obrigatoriedade de tradução para a língua inglesa de documentos processuais e à atribuição da responsabilidade e custos dessa tradução ao representante da classe na ação popular.
5. Mesmo sob qualquer uma das regulações ou convenções relativas ao ato de citação, como o regulamento (CE) 1348/2000 ou a Convenção de Haia de 1965, a exigência de tradução surge apenas se houver recusa explícita da ré em aceitar a citação sem tradução, conforme suportado pela doutrina e jurisprudência nacional.
6. A jurisprudência, incluindo decisões de Tribunais das Relações de Coimbra, Lisboa, e Porto indicada em §3 supra, para onde se remente por questões de proficiência, clarifica que a tradução inicial da petição inicial e dos documentos juntos não é obrigatória, podendo a ré, se necessário, recusar a citação e solicitar a tradução de tais documentos.
7. Tal entendimento é apoiado pelos artigos 133 (1), 219, e 239 (1) do Código de Processo Civil (CPC), conjugado com a Convenção de Haia relativamente ao ato de citação.
8. Ou seja, é possível citar a ré em língua portuguesa, sem necessidade de tradução inicial para a língua inglesa (do país onde a ré tem a sua sede).
9. No tocante à responsabilidade pelos custos de tradução em ações populares, argumenta-se que estes não devem ser impostos à representante da classe, desde logo por aplicação do artigo 20 (1) da lei 83/95 (não obstante a norma revogatória que decorre do artigo 25 do decreto lei 34/2008) e, especificamente, do artigo 4 (1, b) do retro referido decreto lei 34/2008.
10. A jurisprudência estabelecida nos tribunais de primeira instância, nas várias ações populares cuja tradução de documentos foi necessária, e as disposições legais apontam para a responsabilidade do tribunal ordenar a execução das traduções, com os custos de tal serviço a ser suportado pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, reforçando a isenção de custas processuais, incluindo traduções (que são preparos da ação popular), ao representante da classe em ações populares.
11. Assim, solicita-se a este Venerando Tribunal que, considerando as disposições dos artigos 133 (1), 219, e 239 (1) do CPC, conjugadas com a Convenção de Haia, e o artigo 4 (1, b) do regulamento das custas
processuais, revogue as decisões impugnadas e acolha favoravelmente o presente recurso, corrigindo a aplicação do direito e garantindo a justa resolução da lide.
§5 Pedido
Termos ex vi supra em que deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta decisão do tribunal a quo, quando à obrigação da citação ser acompanhada pela petição inicial e respetivos documentos traduzidos para a língua inglesa, e substituída por outra que considere que a ré deve ser citada com a petição inicial e respetivos documentos em língua portuguesa [cf. artigos 133 (1), 219 e 239 (1) do CPC, conjugados com a Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia], sem necessidade da sua tradução para a língua do país onde a ré esta sediada.
Subsidiariamente, para o caso do pedido supra não proceder, deve ser revogada a douta decisão do tribunal a quo quanto à obrigação da tradução da petição inicial e respetivos documentos recair sobre os autores populares, nomeadamente que são estes que devem suportar os seus custos, e substituída por outra que determine que a tradução deverá ser ordenada pelo tribunal, com os custos a serem suportados pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, como tem vindo a ser a praxis nas ações populares, porquanto os autores populares são isentos de preparos nos termos do artigo 20 (1), da lei 83/95 e do artigo 4 (1, b) do regulamento das custas processuais.».
*
O Ministério Público (citado em 29/05/2023) foi notificado (em 17/04/2024) e não ofereceu alegação.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- se para a citação da ré por via postal não é necessário tradução da petição inicial e documentos
- quem deve suportar os custos com a tradução
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III – Fundamentação
A ré é uma sociedade registada no Reino Unido, com o número …, e número fiscal e contribuinte inglês GB …., com sede no Hangar …, London Luton Airport, Luton, Bedfordshire, ..., United Kingdom.
O art. 239º do CPC (Código de Processo Civil), aplicável às pessoas colectivas (cfr art. 246º) estatui:
«1 - Quando o réu resida no estrangeiro, observa-se o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais.
2 - Na falta de tratado ou convenção, a citação é feita por via postal, em carta registada com aviso de receção, aplicando-se as determinações do regulamento local dos serviços postais.
3 - Se não for possível ou se frustrar a citação por via postal, procede-se à citação por intermédio do consulado português mais próximo, se o réu for português; sendo estrangeiro, ou não sendo viável o recurso ao consulado, realiza-se a citação por carta rogatória, ouvido o autor.
(…).».
O Reino Unido já não é membro da União Europeia, pelo que é inaplicável o Regulamento (UE) 2020/1784 relativo à relativo à citação ou notificação de actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros (citação ou notificação de actos).
Por isso, a citação da ré deverá ser realizada em conformidade com a Convenção de Haia Relativa à Citação e Notificação no Estrangeiro de Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Cível e Comercial, de 15/11/1965, à qual o Estado Português está vinculado, pois a aprovou para ratificação pelo DL 210/71 de 18/05.
Prevê esta Convenção, designadamente:
Art. 5º
«A Autoridade central do Estado requerido procederá ou mandará proceder à citação do destinatário ou à notificação do acto:
a) Quer segundo a forma prescrita pela legislação do Estado requerido para as citações ou notificações internas dirigidas às pessoas que se encontram no seu território;
b) Quer segundo a forma própria pedida pelo requerente, a menos que a mesma seja incompatível com a lei do Estado requerido.
(…)
Se o acto dever ser objecto de citação ou de notificação conforme o disposto na alínea 1ª a Autoridade central poderá exigir que o acto seja redigido ou traduzido na língua ou numa das línguas oficiais do seu país.
(…)».
Art. 10º
«Se o Estado destinatário nada declarar, a presente Convenção não obsta:
a) À faculdade de remeter directamente, por via postal, actos judiciais às pessoas que se encontrem no estrangeiro;
(…)».
Art. 20º
«A presente Convenção não obstará a que os Estados contratantes convenham ou venham em derrogar:
(…)
b) O artigo 5º, alínea 3ª (…) no que respeita ao uso das línguas;
(…)».
O Reino Unido não se opõe a que seja utilizada a via postal.
Nem o direito interno português nem a Convenção obrigam, na citação por via postal de pessoa (singular ou colectiva) estrangeira, a tradução da petição inicial e documentos que a acompanham (neste sentido, Ac da RL de 15/03/2001 de 15/03/2002 -P. 1947/01-8, Ac da RL de 27/03/2003 – P. 1862/2003-6 e Ac da RP 06/06/2006, P. 0622691, in www.dgsi.pt).
No entanto, como se esclarece no citado Ac da RL de 15/03/2001, a citação por via postal sem tradução oferece menores garantias de conhecimento efectivo, pelo que cabe à autoridade judiciária do Estado requerente a escolha do modo de transmissão, podendo optar pela modalidade de citação por intermédio da Autoridade Central do Estado requerido, designadamente quando o autor da acção não pretende traduzir os documentos; nesse caso, poderá a Autoridade Central do Estado requerido exigir que o acto seja redigido ou traduzido na língua ou numa das línguas oficiais do seu país.
No caso concreto, acompanhamos o entendimento da 1ª instância quanto a ser conveniente a citação por carta rogatória. Assim, estando esclarecido no despacho proferido em 18/03/2024 que o Reino Unido tem exigido tradução para a língua inglesa, deverá 1 ª instância diligenciar pela sua realização, cujos custos serão suportados adiantadamente pelo IGFEJ, atenta a isenção de custas da apelante (cfr 3º nº 1, 4º nº 1 al. b), 16º nº 1 al. a)- i), 19º nº 1 e 20º nº 2 e 24º do Regulamento das Custas Processuais).
*
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação, decretando-se:
a) a citação da ré será realizada por carta rogatória nos termos da Convenção de Haia Relativa à Citação e Notificação no Estrangeiro de Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Cível e Comercial, de 15/11/1965,
b) o tribunal da 1ª instância diligenciará pela tradução para a língua inglesa da petição inicial e documentos que estão redigidos em língua portuguesa,
c) os custos da tradução serão suportados adiantadamente pelo IGFEJ, atenta a isenção de custas da apelante, sem prejuízo do nº 6 do art. 4º do RCP.
Sem custas.

Lisboa, 11 de Julho de 2024
Anabela Calafate
Vera Antunes
Adeodato Brotas