Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
998/19.5T8LSB.L1-6
Relator: JORGE ALMEIDA ESTEVES
Descritores: EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES
DEVER DE CONFIDENCIALIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- As empresas de telecomunicações estão sujeitas a deveres de confidencialidade, nos termos do art.º 48º da Lei n.º 5/2004, de 10.02, Lei das Comunicações Eletrónica (em vigor à data dos factos aqui em causa), e art.º 4º/1 da Lei n.º 41/2004, de 18.08, Lei da Proteção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações, não podendo divulgá-los ou permitir que terceiros a eles acedam.
II- Fundando-se a causa de pedir na divulgação por parte do 1º réu, funcionário da 2ª ré, que é uma empresa de telecomunicações, de todo o conteúdo que a autora tinha no seu telemóvel (listagem de chamadas efetuadas, contactos telefónicos, mensagens, dados de tráfego, relativos ao destino, trajeto, hora e duração de chamadas telefónicas efetuadas de e para o mencionado número de telemóvel da autora, e registos de mensagens constantes do telemóvel e à agenda) e não se tendo provado o acesso do 1º réu a esses dados, mas unicamente o mero acesso, num determinado dia, às comunicações efetuadas pela autora, não se provando sequer a respetiva divulgação, a ação de indemnização improcede por nem sequer existir, para os efeitos da responsabilidade civil extracontratual, facto ilícito suscetível de ser danoso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Autora-recorrente: PM,
Réus-recorridos:
a) HC
e
b) VP S.A.
A autora instaurou ação de condenação sob a forma comum de declaração contra os réus, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de 40.000€ (quarenta mil euros), acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a data do facto ilícito.
Para fundamentar o pedido alegou que o 1º réu, que era funcionário da 2ª ré, usando essa sua qualidade, acedeu, a pedido da ex-mulher do companheiro da autora, à listagem de chamadas efetuadas e contactos telefónicos e mensagens da autora, que tinha um contrato com a 2ª ré para a prestação de serviços de telecomunicações. Por via disso a ex-mulher do seu companheiro acedeu a dados pessoais de caráter confidencial e sigiloso, tendo feito uso dessas informações para tornar a vida da autora num inferno, de tal forma que a relação com o seu companheiro acabou pouco tempo depois.
Os réus foram citados e contestaram, aceitando que a autora tinha um contrato de prestação de serviço de telecomunicações com a 2ª ré e que esta e o 1ª réu tinha uma relação contratual de caráter laboral. Impugnaram os demais factos alegados pela autora.
Foi designada uma tentativa de conciliação, que se frustrou, e na qual as partes declararam prescindir “da realização de Audiência Prévia, e consequente fixação do objeto da causa e temas da prova”. Em face dessa declaração foi logo designada data da a audiência final.
Procedeu-se à audiência final.
Foi proferida sentença com o seguinte segmento decisório:
Pelo exposto, julgo a presente acção não provada e totalmente improcedente e, em consequência absolvo os Réus do pedido”.
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Inconformada com o decidido, a autora apelou, tendo apresentado alegações e conclusões nas quais invoca que o tribunal recorrido não atentou na confissão por parte dos réus que o 1º réu acedeu de forma não autorizada a dados pessoais e conteúdos do telemóvel da autora, que resulta dos factos provados que o 1º réu acedeu de forma não autorizada e ilegítima a dados pessoais da autora e que isso lhe causou danos, estando por isso verificados os pressupostos na responsabilidade civil extracontratual. Para além disso, imputa à sentença a nulidade prevista no art.º 615º/1, al. d) do CPC, por não ter apreciado da questão da relação de comissão que existe entre os réus.
A recorrida VP apresentou contra-alegações e conclusões, nas quais pugnou pelo acerto da decisão recorrida e, portanto, pela improcedência do recurso.
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FUNDAMENTAÇÃO
Objeto do Recurso
O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, as questões a apreciar são as de saber se ocorre a invocada nulidade da sentença e se dos factos provados resulta estarem verificados os requisitos da responsabilidade civil de forma a condenar os réus no pagamento da pretendida indemnização.
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Na decisão recorrida deu-se como provada a seguinte factualidade:
1º Em janeiro de 2016 a Requerente, mantinha uma relação amorosa com FF, este divorciado da sua esposa.
2º Ambos perspetivavam uma vida em comum, e pelo facto não faziam secretismo sobre a forte ligação que os unia.
3º No dia … de 2014, foi subscrita pela Autora uma “Proposta de Contrato de Prestação de Serviço Móvel e TvNetVoz”, tendo sido activados e prestados por parte da 2ª Ré, no exercício da sua atividade na área das telecomunicações, os 4 (quatro) serviços móveis aí enumerados com o plano de tarifário, tudo nos termos das Condições Particulares e das Condições Gerais constantes do documento nº 4 junto com a douta petição inicial e para as quais se remete para todos os legais efeitos,
4º Em … de 2001, foi celebrado entre o 1º Réu e a 2ª Ré um “Contrato de Trabalho a Termo Certo”, nos moldes do documento nº 1 junto e se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos,
5º Nos termos do qual a 2ª Ré admitiu ao seu serviço o 1º Réu para exercer as funções inerentes à categoria profissional de Assistente do Serviço de Clientes na área de Unidade Empresarial.
6º Aquando da celebração do referido contrato de trabalho, o 1º Réu assumiu perante a 2ª Ré um compromisso de confidencialidade, obrigando-se, como condição essencial do seu emprego, a não divulgar nem a utilizar em proveito próprio ou alheio, quaisquer informações referentes a negócios desta, quer durante o período de serviço quer em qualquer outra altura, salvo autorização nesse sentido (cfr. Cláusula Décima do contrato).
7º De acordo ainda com os procedimentos instituídos pela 2ª Ré, e como sucedeu in casu, aquando da contratação dos seus colaboradores, esta disponibiliza um documento interno contendo regras respeitantes à confidencialidade dos dados pessoais dos clientes e ao sigilo profissional (cfr. documento nº 2), que os mesmos se comprometem a respeitar, dando-lhes conhecimento, igualmente, das Políticas de Privacidade e de Segurança dos Dados Pessoais por si elaboradas e adoptadas,
8ºAssim como desenvolve periodicamente acções de formação junto dos seus colaboradores relacionadas com privacidade e segurança, tendo, no caso em apreço, o 1º Réu frequentado formações dadas pela 2ª Ré … de 2011, em … 2012 e em … de 2015 (cfr. documento nº 3 junto e se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos).
9º No início do ano de 2016, o 1º Réu ainda se encontrava a desempenhar funções na empresa ora 2ª Ré.
10º Nem todos os colaboradores da VP têm acesso a dados pessoais dos clientes e, em relação àqueles que têm, nem todos têm a possibilidade de aceder ao mesmo detalhe de informação, existindo vários perfis de acesso.
11º Na realidade, os acessos são requeridos pela Direcção em que se enquadra o colaborador com o perfil pretendido e necessário, destinando-se estritamente ao desempenho das suas funções laborais, sendo tais acessos aprovados, implementados e monitorizados pela TSO (Technology Security Officer), juntamente com a área de Gestão de Crédito e Risco da 2ª Ré.
12º O 1º Réu jamais teve acesso através das aplicações informáticas da 2ª Ré ao conteúdo do seu telemóvel, nomeadamente ao dos contactos telefónicos e das mensagens escritas (vulgo, SMS) por si trocadas.
13º Na realidade, o acesso às aplicações informáticas da 2ª Ré, que contêm dados pessoais dos clientes, implica a prévia introdução de credenciais (username e password) atribuídas individualmente a cada um dos seus colaboradores para o efeito, como ocorreu em relação ao 1º Réu, sendo todos os acessos devidamente registados através de logs,
14ºOs quais permitem a monitorização da respectiva actividade e rastrear o dia, a hora e quem acede à base de dados, de modo a ser possível à 2ª Ré detectar eventuais acessos injustificados, extravio de dados e/ou outras vulnerabilidades da segurança.
15º Na sequência da recepção por parte do Serviço de Apoio a Clientes da 2ª Ré do e-mail enviado pela Autora, em … de 2016, através do qual esta última reportou uma situação de alegada violação de privacidade por acesso indevido por parte de um funcionário da VP S.A. aos seus dados no que respeita ao número xxxxxxxxx e solicitou o apuramento de responsabilidades para efeitos de apresentação de uma queixa-crime,
16º O referido departamento de Serviço de Apoio a Clientes informou a Autora de que, uma vez analisada a reclamação, seria posteriormente contactada pela VP e transferiu o assunto, dada a sua natureza sensível, para a Direcção de Gestão de Crédito e Risco, responsável pela investigação, dando assim correcto encaminhamento ao assunto, conforme procedimentos instituídos para este tipo de reclamações.
17º Na sequência dessa investigação, e após análise dos logs de acesso aos dados da Autora, foram identificados no sistema informático Siebel registos de consulta das suas comunicações, em … de 2016, por parte do então colaborador da 2ª Autora, ora 1º Réu, sem que houvesse a respectiva e necessária justificação tipificada em sistema para tal.
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Foram considerados não provados os seguintes factos:
1. º Nessa actividade tinha o 1º réu livre acesso a todos os dados informáticos de carácter pessoal e confidencial que a 2º ré continha na sua base de dados em virtude do contrato de serviço para 4 redes de telemóvel, do telemóvel da autora do número xxxxxxxxx.
2. º O 1º réu teve acesso à listagem de chamadas efectuadas e contactos telefónicos e mensagens, isto é, a todo o conteúdo que continha no telemóvel.
3. º Na consulta ilícita, o 1º R acedeu igualmente aos dados de tráfego, relativos ao destino, trajeto, hora e duração de chamadas telefónicas efectuadas de e para o mencionado número de telemóvel da A.
4. º E também aos registos de mensagens constantes do referido telemóvel, quer à agenda do mesmo telemóvel, ficando na posse de todos os dados.
5. º O 1º R divulgou informações e dados reservados da A, que a 2º R não soube proteger, tal como sua função deveria ser primordial.
6.º R utilizou tais ficheiros automatizados e dados individualmente identificáveis e referentes à vida privada da A, imprimiu, exportou tais dados bem sabendo que eram de carácter confidencial e reservado, e divulgou, ou até mais, desconhecendo-se o resto.
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Fundamentação jurídica
Como questão prévia, há que referir que a recorrente não impugnou a matéria de facto. Para o fazer teria de, conforme estabelece o art.º 640º do CPC, especificar (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Ora, a recorrente nada disso fez. Deste modo, a subsunção do direito aos factos, nos termos pretendidos pela recorrente, tem de se basear na factualidade, tal como a mesma resultou do julgamento efetuado na decisão recorrida.
A questão da confissão suscitada pela recorrente, pela qual parece pretender uma alteração da matéria de facto, não tendo sido integrada no âmbito da impugnação da matéria de facto nos termos acima referidos, só poderia ser relevante caso se considerassem admitidos por acordo outros factos, nos termos do art.º 574º/2 do CPC. Neste caso temos que a recorrente, por um lado, nem sequer indica quais os factos, em concreto, relativamente aos quais se verifica a aludida admissão por acordo. E, por outro lado, resulta das contestações que os réus impugnaram o acesso aos dados pessoais da autora nos termos por ela invocados. Deste modo, não se podem ter em consideração quaisquer outros factos, para além daqueles que resultaram provados na sentença.
O tribunal a quo fundamentou, quanto ao direito, a decisão de improcedência da seguinte forma:
Pretende a Autora a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização no valor de € 39.852,02 (trinta e nove mil oitocentos e cinquenta e dois euros e dois cêntimos), a título de danos não patrimoniais e no de € 147,98 (cento e quarenta e sete euros e noventa e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais, com fundamento na sua alegada responsabilidade por violação de confidencialidade dos respectivos dados pessoais por parte do ora 1º Réu.
O direito que o Autor pretende ver reconhecido com a presente acção inscreve-se no domínio da responsabilidade civil aquiliana (artigo 483º do Código Civil).
Prescreve este preceito que: «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Assim, a pretensão do Autor radica em vários pressupostos que condicionam a obrigação de indemnizar imposta ao lesante.
Seguindo-se a sistematização do Prof. Antunes Varela, são necessários os seguintes pressupostos: 1) Facto; 2) Ilícito; 3) Culpa; 4) Dano e 5) Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto ilícito consubstancia-se no acidente enquanto ocorrência resultante da acção humana lesiva de bens jurídicos pessoais e (ou) patrimoniais.
O nexo de imputação subjectiva exprime a ligação psicológica do agente com a produção do acidente e traduz o grau de censurabilidade que a conduta merecer.
O dano representa o desvalor infligido aos bens jurídicos alheios por acção do facto ilícito.
Finalmente, o nexo de causalidade revela-se no juízo de imputação objectiva do dano ao facto que o produz.
Quanto à responsabilidade da segunda ré, como entidade patronal do 1º réu, estamos, assim, no domínio da chamada responsabilidade civil por facto de outrem (extracontratual ou delitual), baseada no risco, em conformidade com o disposto nos artigos 165º, 998º, nº 1 e 500º, todos do Código Civil.
Dispõe o artigo 500º do Código Civil, sob a epígrafe “Responsabilidade do comitente”:
“1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.
2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.
3. O comitente que satisfizer a indemnização tem direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no nº 2 do artigo 497º.”
Ao determinar, no seu nº 1, que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação de indemnizar, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, o aludido artigo 500º do Código Civil institui uma situação de responsabilidade objectiva do comitente.
Assim, caberia à Autora alegar e provar, nos presentes autos, a existência dos pressupostos de que depende a aplicação da norma constante do artigo 483º do Código Civil, a saber, - a ilicitude, a culpa, o dano sofrido e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano -, que são de verificação conjunta.
Assim, a questão fulcral de todo este processo é precisamente a determinação do facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 342º do Código Civil: «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado».
O ónus da prova traduz-se num verdadeiro ónus da produção da prova, para a parte a quem compete o dever de fornecer a prova do facto visado, sob pena de sofrer as consequências da sua falta (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., pág. 450, nota 1).
Contudo, a Autora, não cumpriu com o ónus probatório que lhe competia, nos termos do preceito do Código Civil citado.
O significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4 Edição, pág. 306).
Não tendo logrado fazer essa prova, de que dependia a condenação dos réus, não logrando demonstrar a verificação dos factos constitutivos do direito indemnizatório invocado, a sua pretensão terá de improceder”.
Desta fundamentação resulta desde logo improcedente a questão da nulidade da sentença por não ter apreciado da eventual existência da relação comitente-comissário entre os réus. Como se constata, a decisão recorrida apreciou expressamente de tal questão, citando, inclusive, o art.º 500º do CCivil. Consideramos que o recurso, nessa parte, se deveu a algum lapso, pois é manifesta a inexistência da invocada nulidade. Em todo o caso, a questão da existência da relação comitente – comissário entre os réus só teria de ser, em rigor, apreciada caso se provasse a prática de factos ilícitos e danosos por parte do 1º réu, pois a consequência de tal relação seria estender à 2ª ré a imputação dos danos ilicitamente causados pelo 1º réu. Por isso só haveria nulidade caso se provasse existir em relação ao 1º réu a invocada responsabilidade civil extracontratual e o tribunal a quo não tivesse apreciado a responsabilidade da 2ª ré no quadro das relações comitente – comissário.
Vejamos agora se, em face do que se provou, há fundamento para lançar mão do instituto da responsabilidade civil a fim de fundamentar a obrigação de indemnização nos termos pretendidos pela autora.
Na sentença recorrida e em especial quanto aos factos que sustentam a causa de pedir, provou-se que: em 12 de fevereiro de 2016, o 1º Réu, então colaborador da 2ª Autora e sem que houvesse a respetiva e necessária justificação tipificada em sistema para tal, consultou, em 12 de Fevereiro de 2016, as comunicações efetuadas pela autora.
E não se provou o seguinte:
1.º Nessa actividade tinha o 1º réu livre acesso a todos os dados informáticos de carácter pessoal e confidencial que a 2º ré continha na sua base de dados em virtude do contrato de serviço para 4 redes de telemóvel, do telemóvel da autora do número xxxxxxxxx.
2.º O 1º réu teve acesso à listagem de chamadas efectuadas e contactos telefónicos e mensagens, isto é, a todo o conteúdo que continha no telemóvel.
3.º Na consulta ilícita, o 1º R acedeu igualmente aos dados de tráfego, relativos ao destino, trajeto, hora e duração de chamadas telefónicas efectuadas de e para o mencionado número de telemóvel da A.
4.º E também aos registos de mensagens constantes do referido telemóvel, quer à agenda do mesmo telemóvel, ficando na posse de todos os dados.
5.º O 1º R divulgou informações e dados reservados da A, que a 2º R não soube proteger, tal como sua função deveria ser primordial.
6.º R utilizou tais ficheiros automatizados e dados individualmente identificáveis e referentes à vida privada da A, imprimiu, exportou tais dados bem sabendo que eram de carácter confidencial e reservado, e divulgou, ou até mais, desconhecendo-se o resto”.
A decisão recorrida, apesar de não ter referido expressamente, na fundamentação de direito, os factos, nem os provados, nem os não provados, para, desse modo, operar a subsunção do direito aos factos, considerou que não estavam presentes os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Entende a recorrente que há factualidade provada de onde resulta a obrigação de indemnizar. Temos de referir que, efetivamente, se provou que o 1º réu consultou, em … de 2016, as comunicações efetuadas pela autora, sem que houvesse a respetiva e necessária justificação tipificada em sistema para tal.
Vejamos se deste facto resulta a obrigação de indemnização pretendida pela recorrente.
As empresas de telecomunicações estão sujeitas a deveres de confidencialidade, nos termos do art.º 48º da Lei n.º 5/2004, de 10.02 “Lei das Comunicações Eletrónicas” (em vigor à data dos factos aqui em causa) e art.º 4º/1 da Lei n.º 41/2004, de 18.08 “Lei da Proteção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações”. Tais empresas, ou os seus funcionários, não podem, em princípio, fazer um tratamento dos dados pessoais não consentido pelo titular. Mas é óbvio que têm acesso a esses dados. O que estão impedidas de fazer é divulgá-los ou permitir que terceiros a eles acedam. É o que resulta do art.º 2º/1, al. g), da referida Lei nº 41/2004, que define a “violação de dados pessoais” como sendo “uma violação da segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação ou o acesso não autorizado a dados pessoais transmitidos, armazenados ou de outro modo tratados no contexto da prestação de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público”.
Tendo-se apenas provado que o 1ª réu, que é funcionário da 2ª ré, acedeu, num determinado dia, às comunicações efetuadas pela autora, sem que houvesse a respetiva e necessária justificação tipificada em sistema para tal, não configura, per se, um facto ilícito, uma vez que tal informação estava ao seu dispor no âmbito das suas funções e, acima de tudo, porque não se provou que ele tivesse divulgado junto de terceiros as informações que obteve daquele modo. Esta divulgação é que, na realidade, constituiria um facto ilícito e que, ademais, teria a suscetibilidade de ser danoso. E tal ilicitude não ficaria excluída ainda que houvesse justificação para a consulta registada no sistema.
A questão da suscetibilidade de ocorrer um dano é, no caso, relevante. Podendo afirmar-se que a conduta do 1º réu, ao aceder às comunicações efetuadas pela autora da forma como o fez, se reveste de alguma ilicitude, em todo o caso a plena ilicitude, para os efeitos indemnizatórios pretendidos, só ocorreria com a divulgação daqueles dados. Caso se provasse essa divulgação, caberia ainda à recorrente provar que ocorreram os danos e que existia um nexo de causalidade entre a divulgação e os danos. Como se constata, a recorrente não logrou sequer provar a divulgação da informação que foi consultada pelo 1º réu nem, portanto, os danos que invocou e que decorriam de tal divulgação.
Assim, o mero acesso por parte do 1º réu às comunicações efetuadas pela autora, sem mais, não configura facto ilícito para os efeitos da responsabilidade civil extracontratual[1].
Acresce que a causa de pedir radicava na divulgação por parte do 1º réu de todo o conteúdo que a autora tinha no seu telemóvel, nomeadamente no seguinte:
- listagem de chamadas efetuadas e contactos telefónicos e mensagens,
- dados de tráfego, relativos ao destino, trajeto, hora e duração de chamadas telefónicas efetuadas de e para o mencionado número de telemóvel da autora, e
- registos de mensagens constantes do telemóvel e à agenda do mesmo.
Em face dos factos provados e não provados, temos que não se provou, de todo, nem sequer o acesso do 1º réu a esses dados e, como tal, também não se provou a respetiva divulgação.
Deste modo, concluímos, como na sentença, no sentido de não se provarem os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, improcedendo assim o recurso.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente (art.º 527º/1 e 2 do CPC).

TRL, 11mai2023
Jorge Almeida Esteves
Teresa Soares
Octávia Viegas
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[1] Pode constituir facto ilícito noutro âmbito, nomeadamente no âmbito laboral, por se tratar de uma violação das regras internas a que o 1º réu estava adstrito como trabalhador da 2ª ré.