Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1128/22.1YRLSB-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACORDÃO ARBITRAL
ANULABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Omite pronúncia acerca de questão essencial, com a consequente anulabilidade da decisão arbitral, o tribunal arbitral que, sem apresentar explicação plausível, não aprecia a questão de inconstitucionalidade de normas em que a requerida estruturara a sua defesa, por entender que não tinha competência para apreciar tal questão.
(art.º 663.º n.º 7 do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1. Em 20.4.2022 “B”, SAD, intentou nesta Relação ação de anulação de decisão arbitral contra R Clube (1.º R.) e Clube B (2.º R.)
A A. alegou que em 28.12.2021 a Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol proferiu acórdão arbitral no processo n.º 71/CA-2020/2021 no qual foram partes os RR., na qualidade de Requerentes, e a A., na qualidade de Requerida. Nesse processo, os ora RR. promoveram a constituição da Comissão de Arbitragem prevista nos arts. 39.º e seguintes do Regulamento do Estatuto, da Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores (“RECITJ”) da FPF edição de 2020/2021 com o intuito de requererem a condenação da A. numa compensação por direitos de formação referentes ao jogador profissional de futebol “E”. Nessa ação o 1.º R. reclamou a condenação da A. no valor de € 3.677,40 acrescida de juros calculados à taxa legal, vencidos desde 11.10.2020 até efetivo e integral pagamento, alegando que o Jogador esteve por si inscrito nas épocas desportivas de 2016/2017 e 2017/2018. E o 2.º R. requereu a condenação da A. no valor de € 1.649,70 acrescida de juros calculados à taxa legal, vencidos desde 11.10.2020 até efetivo e integral pagamento, alegando que o Jogador esteve por si inscrito na época desportiva de 2018/2019. A A. apresentou oportunamente a sua oposição à pretensão dos RR. O acórdão arbitral julgou procedentes os pedidos dos RR., tendo condenado a A. a pagar a quantia total de € 5.220,56 aos RR., acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal contabilizados desde o dia 11/10/2020, sendo € 3.603,85 deste valor para o 1.º R., € 1.616,71 para o 2.º R. e 2% (€ 106,54) destinado ao fundo de promoção do futebol juvenil. Sucede que na sua oposição a ora A. invocou dois argumentos que não foram objeto de apreciação pela Comissão de Arbitragem da FPF. Concretamente, na sua oposição a A. alegou o seguinte: O art.º 34.º da Lei n.º 54/2017, de 14.7, que estabelece a figura da compensação por direitos de formação, é materialmente inconstitucional; subsidiariamente, na eventualidade de se entender que o art.º 34.º da Lei n.º 54/2017, de 14.7 não é inconstitucional, são materialmente inconstitucionais os arts. 39.º, 40.º e 50.º do Regulamento do Estatuto, da Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores invocados pelos R.R. para fundarem a sua pretensão à compensação por direitos de formação. A Comissão de Arbitragem não se pronunciou sobre as inconstitucionalidades alegadas pela A., limitando-se a decidir que não dispunha de competência material para se pronunciar sobre as exceções de inconstitucionalidade invocadas na defesa da A.. Ora, a Comissão de Arbitragem tinha competência para conhecer as inconstitucionalidades alegadas pela A. na sua defesa e devia ter-se pronunciado sobre elas, o que não fez. Assim, o acórdão arbitral deve ser anulado, nos termos do art.º 46.º n.º 3 al. a) v) da LAV.
A A. terminou pedindo que o referido acórdão arbitral fosse totalmente anulado, com as legais consequências.
2. Citadas, as RR. não contestaram.
3. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A questão que se suscita nesta ação é se o acórdão arbitral impugnado enferma do vício suprarreferido (omissão de pronúncia sobre questão que devia ser apreciada), devendo, por conseguinte, ser anulado.
2. O factualismo a levar em consideração é o supra constante no Relatório (I), sem prejuízo das transcrições de peças processuais que adiante se mostrem necessárias.
3. O Direito
O art.º 20.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa garante que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”
Os tribunais são os órgãos da soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo” (n.º 1 do art.º 202.º).
O legislador constituinte impõe a existência do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal de Justiça e tribunais judiciais de primeira e segunda instância, do Supremo Tribunal Administrativo e demais tribunais administrativos e fiscais e do Tribunal de Contas (n.º 1 do art.º 209.º).
Podem ainda existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz” (n.º 2 do art.º 209.º da CRP).
A Lei n.º 63/2011, de 14.12 (Lei da Arbitragem Voluntária – LAV), contém o regime da arbitragem voluntária.
Assim, aí se estipula que “desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros” (n.º 1 do art.º 1.º).
Os trâmites processuais da arbitragem deverão respeitar rigorosamente os princípios da igualdade das partes e do contraditório (art.º 30.º n.º 1).
A decisão arbitral de que não caiba recurso forma caso julgado e tem a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual (art.º 42.º n.º 7).
Ou seja, o tribunal arbitral (voluntário) assenta na autonomia da vontade, na iniciativa das partes, que acordam em submeter a resolução de um litígio a uma estrutura de natureza privada a que a lei reconhece poderes jurisdicionais.
Na síntese formulada por Francisco Cortez (“A arbitragem voluntária em Portugal: dos ricos homens aos tribunais privados”, in O Direito, ano 124.º, 1992, IV, pág. 535), “em suma, a arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado”.
Quanto aos seus efeitos, costuma evidenciar-se que a convenção de arbitragem produz um efeito positivo e um efeito negativo. O efeito positivo consiste em facultar a qualquer das partes a constituição de um tribunal arbitral competente para o julgamento de litígios nela previstos, faculdade essa que constitui um direito potestativo a que corresponde a inerente sujeição da outra parte à atribuição do julgamento do litígio ao tribunal arbitral (cfr. Raul Ventura, “Convenção de arbitragem”, ROA, ano 46, vol. 2, 1986, páginas 301 e 379). O efeito negativo consiste na exclusão dos tribunais do Estado do conhecimento desse litígio (Raul Ventura, estudo citado, páginas 301, 379 e 380). A violação de convenção de arbitragem, com a consequente preterição de tribunal arbitral voluntário, constitui exceção dilatória, que não é de conhecimento oficioso (artigos 577.º alínea a) e 578.º do CPC) e determina a absolvição da instância (art.º 576.º n.º 2 do CPC). Ou seja, recai sobre a parte demandada o ónus de arguir a aludida exceção, para assim acionar a convenção arbitral e conduzir a que o litígio seja julgado perante o tribunal arbitral. Daqui resulta que a convenção arbitral não exclui automaticamente a jurisdição dos tribunais do Estado, podendo dizer-se que a mantêm enquanto o réu não deduzir a exceção da preterição do tribunal arbitral (Lebre de Freitas, “Algumas implicações da natureza da convenção da arbitragem”, in “Estudos sobre direito civil e processo civil”, vol. II, 2.ª edição, 2009, Coimbra Editora, pág. 565).
Na medida em que admite a existência de tribunais arbitrais (citado artigo 209.º, n.º 2 da CRP) “a ordem jurídico-constitucional portuguesa não estabelece um monopólio estadual de administração da justiça” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 311/2008, de 30.5.2008, in D.R., II série, 1.8.2008, pág. 34404).
Nos termos do n.º 4 do art.º 39.º da LAV, “a sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é susceptível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.”
Não tendo as partes estipulado a sua recorribilidade, a impugnação da sentença arbitral perante um tribunal estadual só poderá revestir a forma de pedido de anulação, nos termos do disposto no art.º 46.º da LAV (n.º 1 do art.º 46.º).
Os fundamentos de anulação da sentença arbitral estão taxativamente enunciados no n.º 3 do art.º 46.º da LAV:
3. A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:
a) A parte que faz o pedido demonstrar que:
i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afectada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou
ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou
iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou
iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou
v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou
vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º; ou
vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º ; ou
b) O tribunal verificar que:
i) O objecto do litígio não é susceptível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português;
ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português”.
Tirando o fundamento de anulação da sentença arbitral previsto na subalínea ii) da alínea a) do n.º 3 do art.º 46.º (o conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português), que pressupõe a avaliação da bondade substantiva da decisão, os restantes fundamentos de anulação da decisão arbitral reconduzem-se a questões de natureza formal, ações ou omissões que afetam seriamente o princípio do processo equitativo, vícios formais da sentença, ou situações que se reconduzem à incompetência do tribunal arbitral, à violação do princípio do dispositivo, ao inválido funcionamento do tribunal arbitral (cfr. Mariana França Gouveia, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, 3.ª edição, Almedina, pp. 302 a 305).
Não é questionado nestes autos que a decisão arbitral sub judice não é suscetível de recurso para o tribunal estadual. Não foi evidenciada a existência de acordo entre as partes que permita ao tribunal estadual exercer fiscalização sobre o mérito da sentença arbitral, sobre o bem fundado do veredito jurisdicional ajuizado pela Comissão de Arbitragem da FPF sobre o litígio apresentado pelas ora RR. acerca de compensações pecuniárias pela formação de um jogador profissional de futebol.
De resto, a Comissão de Arbitragem ora em causa foi constituída ao abrigo do disposto nos artigos 41.º a 43.º do Regulamento do Estatuto, Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores da Federação Portuguesa de Futebol, aprovado pela Direção da FPF em 10.7.2020 ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e 41.º, n.º 2, alíneas a) e c) do Dec.-Lei n.º 248-B/2008, de 31.12, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 93/2014, de 23.6.
Nesse Regulamento está estabelecido que o clube “que haja participado no processo formativo do jogador pode requerer a constituição da Comissão de Arbitragem no caso de o Clube devedor não efetuar o pagamento da compensação, contribuição de solidariedade ou mecanismo de retenção devidos” (art.º 41.º n.º 1 do Regulamento). A Comissão de Arbitragem será constituída por 3 árbitros e decide a título definitivo, sendo a respetiva decisão definitiva no âmbito das instâncias desportivas (art.º 41.º n.º 4 do Regulamento).
Segundo o n.º 4 do art.º 44.º do Regulamento, “[a] Comissão de Arbitragem julga segundo o direito constituído, podendo também decidir com base na equidade em todas as questões omissas”.
Assim, a esta Relação resta exercer a fiscalização taxativamente delimitada no art.º 46.º n.º 3 da LAV.
In casu a A. funda a pretensão anulatória da decisão arbitral na previsão da parte final da subalínea v) da alínea a) do n.º 3 do art.º 46.º: o tribunal arbitral “deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar”.
Vejamos.
Na contestação apresentada no processo de arbitragem a ora A. arguiu a inconstitucionalidade do regime das compensações pecuniárias pela formação de jogador reclamadas pelos aqui RR..
A Lei n.º 54/2017, de 14.7, aprovou o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação.
No art.º 34.º dessa Lei, sob a epígrafe “Compensação por formação”, estipula-se que “[a] celebração, pelo praticante desportivo, do primeiro contrato de trabalho com entidade empregadora distinta da entidade formadora confere a esta o direito de receber uma justa compensação pela formação ministrada, de acordo com o disposto no artigo 19.º”.
Por sua vez o art.º 19.º tem a seguinte redação:
Liberdade de trabalho
1 — São nulas as cláusulas inseridas em contrato de trabalho desportivo visando condicionar ou limitar a liberdade de trabalho do praticante desportivo após o termo do vínculo contratual.
2 — Pode ser estabelecida por convenção coletiva a obrigação de pagamento à anterior entidade empregadora de uma justa compensação a título de promoção ou valorização de um jovem praticante desportivo, por parte da entidade empregadora que com esse praticante venha a celebrar um contrato de trabalho desportivo, após a cessação do anterior.
3 — A convenção coletiva referida no número anterior é aplicável apenas em relação às transferências de praticantes que ocorram entre entidades empregadoras portuguesas com sede em território nacional.
4 — O valor da compensação referida no n.º 2 não poderá, em caso algum, afetar de forma desproporcionada, na prática, a liberdade de contratar do praticante.
5 — A validade e a eficácia do novo contrato não estão dependentes do pagamento da compensação devida nos termos do n.º 2.
6 — A compensação a que se refere o n.º 2 pode ser satisfeita pelo praticante desportivo.
7 — Não é devida a compensação referida no n.º 2 quando o contrato de trabalho desportivo seja resolvido com justa causa pelo praticante ou quando este seja despedido sem justa causa.
8 — Nas modalidades em que, por inexistência de interlocutor sindical, não seja possível celebrar convenção coletiva, a compensação a que se refere o n.º 2 pode ser estabelecida por regulamento federativo”.
Na contestação a ora A. defendeu que um tal regime ignorava completamente o art.º 58.º da CRP, que consagra o Direito ao Trabalho. A imposição a uma eventual nova entidade empregadora do ónus de pagamento de uma compensação pecuniária constituiria um obstáculo inadmissível e desprovido de fundamento a que um jogador celebrasse um contrato de trabalho, sem que com isso se salvaguardasse qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido, nos termos da ponderação prevista no n.º 2 do art.º 18.º da CRP.
A aí requerida solicitou então que o tribunal arbitral procedesse à “fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade” da norma do citado art.º 34.º, “nos termos do art. 280º/n.º 2/ d) CRP e art. 70º/n.º 1/b) da LTC (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro”.
Subsidiariamente, mas ao fim e ao cabo suscitando a mesma questão, na oposição à ação arbitral a requerida arguiu a inconstitucionalidade dos artigos 39.º, 40.º e 50.º do Regulamento do Estatuto, da Categoria da Inscrição e Transferência dos Jogadores da FPF, para a época 2020/2021 (RECITJ), que admitiu serem meras normas secundárias, de regulação do regime das compensações por direitos de formação, face ao art.º 34.º da Lei n.º 54/2017. Na sua oposição a requerida defendeu que as compensações fixadas por essas normas para os direitos de formação atingem valores que violam o princípio constitucional da proporcionalidade.
Ora, o que disse a Comissão de Arbitragem da FPF, face a esta questão da inconstitucionalidade do regime que prevê o pagamento obrigatório de compensações por formação aos clubes alegadamente formadores?
No acórdão arbitral exarou-se o seguinte:
Acontece que a Requerida excepcionou, em entre outras, a inconstitucionalidade de norma vertida no regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, por um lado, e por outro de normas regulamentares vertidas no RECITJ.
Antecipadamente tenhamos presentes que a Comissão de Arbitragem tem a sua competência definida no RECITJ, sendo constituída a requerimento do clube que haja participado no processo formativo do jogador no caso de o Clube devedor não efectuar o pagamento da compensação, contribuição de solidariedade ou mecanismo de retenção devidas, sendo constituída por 3 árbitros, e decide a título definitivo, sendo a respectiva decisão definitiva no âmbito das instâncias desportivas.
Da conjugação do disposto no n.º 1 e 4 do art.º 41.º e do art.º 42.º do RECITJ resulta que “A Comissão é competente para conhecer e decidir sobre todos os litígios, com exclusão daqueles em que todos os clubes ou sociedades desportivas intervenientes são associados da Liga Portuguesa de Futebol Profissional” (n.º 1) e que “Os litígios entre Clubes, no que respeita à compensação de formação, não têm qualquer reflexo na actividade desportiva ou profissional do jogador.” (n.º2), encontram-se balizadas as suas competências.
Acompanhando o vertido no Ac. TAD n.º 4/2006, “esta” Comissão de Arbitragem” mais não é do que a designação dada naquele Regulamento Federativo a um colégio arbitral constituído pelas partes para dirimir um litígio resultante da discussão entre clubes sobre o direito a compensação financeira por formação, pelo que a designada “Comissão de Arbitragem” não é um órgão da Federação Portuguesa de Futebol e as suas decisões não se incluem, portanto, no âmbito do exercício dos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina das Federações Desportivas. Importará, reflexivamente, ter em atenção com as necessárias adaptações, não deixa de ser pertinente o argumentário expendido pela FPF, nos autos que determinaram a prolação do Ac. TC n.º 539/2012, publicado no D.R. n.º 239/2012, Série II de 2012.12.11, a saber “O Regulamento para a Inscrição e Transferência dos Praticantes Amadores, na sua formulação actual, é matéria de exclusivo âmbito desportivo, estando vinculada ao normativo legal regulador da actividade desportiva e do respectivo sistema. Os sujeitos objecto da regulamentação federativa em apreço não são profissionais nem está em causa o seu direito ao trabalho, uma vez que a sua relação com a entidade promotora desportiva (clube ou SAD) é exclusivamente desportiva, sem qualquer outro vínculo, especialmente laboral; O pagamento de taxa determinável é, ao contrário do que pretende o requerente, a garantia de que o efectivo direito do atleta à sua integral formação não é afectado por tal pagamento; O universo desportivo, para além da federação desportiva respectiva, é formado por entidades de direito privado que desenvolvem a sua actividade no âmbito do livre associativismo e do mercado aberto. Tal significa que os clubes e SAD’s que oferecem formação aos seus jovens atletas suportam eles próprios – em exclusivo – os custos dessa formação. O mecanismo de compensação, ao exigir a intervenção reguladora da federação, dotada de utilidade pública desportiva e, portanto, dos necessários poderes de natureza pública, permite levantar limites que possam “em qualquer caso, afectar de forma desproporcionada, na prática, a liberdade de contratar do praticante”; A Federação Portuguesa de Futebol impede, assim, que os clubes possam por sua livre iniciativa, estabelecer as formas e valores referentes à formação dos jovens atletas, o que provocaria, necessariamente, uma grave limitação redutora ao direito de livre desenvolvimento dos jovens atletas em Portugal. Verifica-se, assim, a total insubsistência da tese de que o citado regulamento federativo, na redacção em causa e na parte da questão, está ferido de inconstitucionalidade orgânica, não podendo defender-se a reserva da competência da Assembleia da República para a fixação de regulamentação de natureza exclusivamente desportiva, sem qualquer incidência noutras esferas jurídicas, nomeadamente na esfera laboral; A prolação do Regulamento desportivo aqui em causa emergiu de um poder regulador diverso daquele que o requerente invoca; Tal poder regulamentar fora claramente delineado pela Portaria de 12 de junho de 1986 do Ministro da Educação e Cultura, publicada no Diário da República, 2ª Série, n.º 140, de 12.06.1986, a qual dispunha que “ é da competência das federações desportivas nacionais regular as transferências dos praticantes amadores das respetivas modalidades” (…)”. O actual RCITJ, evidencia de forma, nessa parte ressalve, cristalina a norma habilitante, para a sua aprovação. Sem prejuízo, e não obstante a pertinente alegação e formulação expendida pela Requerida, pelo que, a Comissão de Arbitragem da FPF não dispõe de competência material para se pronunciar sobre as invocadas exceções de inconstitucionalidade, o que se declara, sem prejuízo da Requerida, poder, querendo, lançar mão dos meios impugnatórios previstos em particular no CPTA”.
Da transcrição supra efetuada se constata que a Comissão de Arbitragem não ignorou a questão de inconstitucionalidade suscitada pela então requerida. Mas, a par de uma análise do direito ordinário/secundário de que decorre que a Comissão de Arbitragem entende que os direitos dos jovens desportistas estão salvaguardados à luz do regime da compensação dos clubes pela formação – assim se afastando aparentemente as críticas de inconstitucional desproporcionalidade suscitadas pela requerida -, a Comissão de Arbitragem acabou por se considerar materialmente incompetente “para se pronunciar sobre as invocadas exceções de inconstitucionalidade”.
Isto é, a Comissão de Arbitragem não se pronunciou em concreto acerca da questão que lhe fora posta pela requerida, a da inconstitucionalidade material das normas em que as requerentes se apoiavam para sustentar a sua pretensão pecuniária, normas essas que por sua vez a Comissão Arbitral aplicou, com base nelas condenando a requerida/apelante conforme supratranscrito.
Ora, não vislumbramos na decisão impugnada qualquer fundamentação relevante que sustente a invocada incompetência material da Comissão Arbitral da FPF para apreciar a questão concreta de inconstitucionalidade de normas que a requerida lhe apresentou. Se a Comissão Arbitral, tribunal (arbitral) que é, tem competência para julgar a pretensão das requerentes na condenação da requerida no pagamento das mencionadas compensações por formação dada pelas requerentes a um determinado jogador de futebol, nessa competência cabe necessariamente a análise da suscitada desconformidade entre as normas de direito ordinário aplicáveis ao caso e a Constituição da República Portuguesa. Note-se que na decisão ora impugnada a Comissão Arbitral não identifica a entidade jurisdicional que, afinal, analisaria essa questão, assim destacada da restante apreciação do litígio. Essa entidade não seria o Tribunal Constitucional, pois este, conforme decorre do acórdão n.º 159/2022 do Tribunal Constitucional, citado pela apelante, já num outro litígio ponderou e decidiu que a Comissão de Arbitragem da FPF, ao declarar-se incompetente para apreciar questões de inconstitucionalidade de normas que perante ela haviam sido suscitadas, arredara um dos pressupostos necessários para que o Tribunal Constitucional fosse chamado a intervir nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei do Tribunal Constitucional: recurso de decisão de tribunal que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. No mais, o próprio Tribunal Constitucional deixou no ar a questão de se saber se “a análise que conduziu a comissão arbitral a essa conclusão dever ou não ser entendida como uma pronúncia para efeitos das normas relativas à sua impugnabilidade perante tribunais estaduais (e independentemente, bem assim, de essa análise exprimir ou não a leitura mais adequada dos preceitos de direito ordinário que delimitam aquela competência)…”.
É verdade que, no sentido de que no art.º 46.º da LAV não se integra a impugnabilidade de decisão de incompetência por parte do tribunal arbitral, se pronunciaram Mariana França Gouveia e Armindo Ribeiro Mendes (este citado por Mariana França Gouveia, que discorda do entendimento contrário defendido por António Sampaio Caramelo) – cfr. Mariana França Gouveia, ob. cit., pp. 188, 189, 193 e 194.
Porém, a situação apreciada por esses autores reporta-se a declaração de incompetência por parte do tribunal arbitral para apreciar o litígio. Ora, a essa decisão a parte poderá reagir mediante o recurso à jurisdição estadual, que julgará o pleito.
Porém, in casu, está-se perante a recusa de apreciação de um segmento da fundamentação da defesa – sem que se descortine alternativa jurisdicional para suprir tal anunciada incompetência.
Na realidade na sua sentença a Comissão Arbitral não consegue explicar por que razão não tem competência para apreciar a questão de inconstitucionalidade que lhe foi apresentada. Questão essa que, como se disse, é um elemento essencial da defesa apresentada pela requerida, de tal modo que a sua procedência poderia fundar o insucesso da ação arbitral.
Ora, não se descortinando a razão da incompetência alegada para não se apreciar a aludida questão, resta-nos que a questão ficou por analisar sem que se descortine razão para essa omissão.
O que tudo se traduz na omissão de pronúncia a que se refere a parte final da subalínea v) da alínea a) do n.º 3 do art.º 46.º da LAV.
Pelas razões exaradas, a omissão de pronúncia sobre a questão de inconstitucionalidade afeta a totalidade da decisão (cfr. n.º 7 do art.º 46.º da LAV).
Do exposto emerge a procedência da presente ação.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a ação procedente e consequentemente anula-se a decisão arbitral impugnada.
As custas da ação, na modalidade de custas de parte, são a cargo das RR., que nela decaíram (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e e 533.º do CPC).
Valor da ação: € 5 327,10 (cinco mil trezentos e vinte e sete euros e dez cêntimos).

Lisboa, 23.6.2022
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Paulo Fernandes da Silva