Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1963/18.5T8BRR-A.L1-4
Relator: FRANCISCA MENDES
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
ADVOGADO
DEVER DE URBANIDADE
MULTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA PARCIALMENTE A SENTENÇA
Sumário: A violação do dever de urbanidade durante sessão de julgamento poderá ser sancionada com multa que deverá ser fixada de acordo com a gravidade do acto. 
(Elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I- Relatório

Na presente acção declarativa, sob a forma comum, que AAA move contra “BBB” e “CCC.”, foi, em 03.11.2020, após várias sessões de julgamento, proferida pela Exmª Juiz a quo o seguinte despacho:
« Quando das instâncias por parte do Ilustre Mandatário do Autor e após o Tribunal ter referido que a questão colocada ultrapassa as instâncias previstas nos termos legais, e por diversas vezes e em várias sessões tal como decorre das várias atas, o Tribunal instou o Ilustre Mandatário do A., este continuou a falar por cima do Tribunal, mais referindo que era a terceira vez que o Tribunal o interrompia, em tom que o Tribunal entende desadequado tendo em consideração o dever de urbanidade dos vários intervenientes processuais (do Tribunal para os mandatários e dos mandatários para o Tribunal).
Como decorre das várias sessões de audiência final, esta não foi a primeira vez que o Ilustre Mandatário do Autor se dirigiu ao Tribunal de forma hostil.
Na pretérita sessão, e já esgotadas todas as possibilidades de discussão da causa com elevação e urbanidade, o Tribunal proferiu despacho nos termos do qual qualquer violação do dever de urbanidade seria sancionado nos termos do disposto no art.º 150º do C.P.P. e 27.º , n.º 2 do R.C.P.
E por se considerar que, nas circunstâncias referidas na 1ª parte do referido despacho, o Ilustre Mandatário do Autor violou o dever de urbanidade relativamente a este Tribunal, o Tribunal decide aplicar ao Autor a multa processual que se fixa em 30 U.C.[1]»
Na mesma data foi ainda proferido o seguinte despacho :
«  Por manifesto lapso, no despacho antecedente ficou a constar que seria a parte, neste caso o Autor, condenado em multa pela violação do dever de urbanidade, nos termos que melhor constam na presente ata.
No entanto o Tribunal pretendia referir-se ao Ilustre Mandatário do Autor e não à parte, falando o art. 150.º do Código de Processo Civil do “infrator”.
Assim ao abrigo do disposto no artigo 614º do C.P.C. e no segmento final do despacho que antecede, onde se lê “Autor” deverá ler-se “Ilustre Mandatário do Autor”.
Rectifique em local próprio.» 
O ilustre mandatário do A. recorreu da referida decisão e formulou as seguintes conclusões :
I. A decisão proferida pelo Tribunal a quo é uma decisão injusta e contrária à ordem jurídica vigente.
II. O que o Tribunal a quo descreve como uma violação do dever de urbanidade não ultrapassou os limites de uma troca de argumentos num tom mais crispado, sem que tenham sido proferidas quaisquer palavras ou gestos de ofensa ou desconsideração.
III. Em nenhum momento foram adoptadas condutas que pudessem ter ofendido ou melindrado qualquer um dos intervenientes, não sendo de registar mais do que uma defesa assertiva, investida de intensidade e convicção, por parte do Tribunal a quo e dos mandatários das partes do que era a sua perspectiva sobre determinada matéria.
IV. Este é um processo com uma importância significativa para a vida do Autor, o que só vem acrescer à complexidade de uma matéria de facto extensa, inúmeras testemunhas e resmas de documentos, tornando mais difícil a gestão do processo pelo Tribunal a quo e pelos advogados.
V. O ponto de discórdia entre o Tribunal a quo e o ora Recorrente colocou-se sobre a interpretação a dar à segunda parte do disposto no n.º 2 do art. 516.º do CPC, sendo certo que desde o início do julgamento se assinalaram divergências sobre este assunto.
VI. O mandatário do Autor tinha a palavra para esclarecimentos com uma testemunha da Ré BBB e, por duas ocasiões com maior veemência, o Tribunal a quo interrompeu-o para ou reformular a questão ou declarar que a mesma ultrapassava os esclarecimentos.
VII. Nessas ocasiões, o Recorrente tentou explicar os motivos porque entendia que as perguntas colocadas cabiam no âmbito do disposto na segunda parte do n.º 2 do art. 516.º do CPC e em todos esses momentos o Tribunal a quo não aceitou os argumentos apresentados, recusando-se ao mesmo tempo a fundamentar a sua posição quanto aos esclarecimentos concretamente pedidos.
VIII. Foi então à terceira vez que isso sucedeu de forma mais flagrante que o mandatário do Autor, ora Recorrente, se dirigiu ao Tribunal a quo dizendo que estava a ser interrompido e que era a terceira vez que isso acontecia.
IX. Em alguns casos o Tribunal a quo “traduziu” para outras palavras o que o Recorrente estava a perguntar, prejudicando-lhe a estratégia de inquirição.
X. O Tribunal a quo não conseguiu transmitir uma ideia de coerência acerca da sua interpretação da segunda parte do n. º 2 do art. 516.º do CPC, o que poderia ter contribuído para a pacificação processual, quer relativamente ao conteúdo da interpretação jurídica do Tribunal a quo mas também em termos de procedimento, com decisões contraditórias, de avanço e recuo, que igualmente não beneficiaram o andamento sereno do processo.
XI. O Recorrente não praticou nenhum acto que possa ser considerado uma violação do dever de urbanidade, tendo apenas reagido de forma mais intensa ao que considerou ser um atentado à defesa dos interesses do Autor, o seu constituinte, sem visar nem o Tribunal a quo nem nenhum interveniente e apenas insistindo na legitimidade dos esclarecimentos que pretendia colocar.
XII. O n.º 2 do art. 150.º do CPC prevê que “não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”, admitindo que a procura da composição justa para o seu constituinte possa levar o advogado a adoptar um tom, precisamente, mais hostil.
XIII. Para além de não existirem factos que pudessem constituir violação do dever de urbanidade, o Recorrente entende que também carece a multa aplicada de base legal.
XIV. Invoca o Tribunal a quo o disposto no art. 27.º, n.º 2, do RCP mas a multa em que o Recorrente foi condenado é superior ao limite ali estabelecido.
XV. Ademais, esse limite de 10 UC aplicar-se-ia a casos excepcionalmente graves, por comparação com o disposto no n.º 1 deste art. 27.º do RCP, do qual resulta implícito um nível de gravidade inferior, sendo certo que, no caso concreto, o Tribunal a quo não fez qualquer avaliação a este respeito, não constando do despacho qualquer menção à gravidade da conduta do Recorrente que pudesse ser subsumida à previsão do disposto no n.º 2.
XVI. A verdade é que o Tribunal a quo não fundamentou de nenhuma forma por que motivo entendeu que o comportamento do Recorrente foi de excepcional gravidade, assim incumprido o disposto nos arts. 154.º do CPC e 205.º da Constituição da República Portuguesa, onde se prevê o dever de fundamentação das decisões judiciais.
XVII. A multa em que o Recorrente foi condenado está, em qualquer caso, acima dos limites, seja do n.º 1 ou do n.º 2 do art. 27.º do RCP, não havendo, portanto, nenhuma base legal para a sua aplicação.
XVIII. Deve, pois, revogar-se o despacho na parte que condenou o ora Recorrente em multa, por razões não só de mera legalidade mas também da mais elementar JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II- Importa solucionar no âmbito do presente recurso:
- Se o ilustre mandatário do A. violou o dever de urbanidade;
- Se a multa aplicada é adequada à gravidade do acto (caso se conclua pela violação do indicado dever).
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III- Apreciação
Estatui o art. 9º, nº1, do CPC : « Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade.»
De acordo com o disposto no art. 150º, nº1, do CPC,  a manutenção da ordem nos actos processuais compete ao magistrado que a eles presida, o qual toma as providências necessárias contra quem perturbar a sua realização. A condenação em multa está prevista como uma das medidas a adoptar pelo magistrado que preside ao acto.
O magistrado deverá consignar em acta, de forma especificada, os actos que determinam a providência ( art. 150º, nº3, do CPC).
Vejamos o caso concreto.
Na acta foi consignado que o ilustre mandatário do A. continuou “a falar por cima do Tribunal”.
Foi ainda consignado que o ora recorrente dirigiu-se ao Tribunal de forma hostil
A decisão do Tribunal a quo foi, desta forma, fundamentada.
Da audição da sessão em causa não resultam perceptíveis, devido à sobreposição de vozes, os elementos caracterizadores da mencionada “hostilidade”.
Resulta, no entanto, assente que o ora recorrente continuou a falar “ por cima do Tribunal”.
Tal conduta configura uma violação do dever de urbanidade e não é indispensável à defesa da causa ( vide art. 150º, nº2, do CPC).
Já em anteriores sessões foram efectuadas advertências às partes com vista à reposição da ordem nos actos processuais, pelo que é adequada à gravidade da infracção a aplicação de uma multa.
Entendeu o Tribunal a quo que a violação do dever de urbanidade deverá ser sancionada nos termos do disposto 27º , n.º 2 do R.C.P.
A quantia máxima prevista neste preceito legal pode ascender a 10 UC.
Com efeito, estatui o nº2 do art. 27º do RCP : « Nos casos excepcionalmente graves, salvo se for outra a disposição legal, a multa ou penalidade pode ascender a uma quantia máxina de 10 UC.»
Consideramos a conduta em causa grave, mas, sem os demais elementos caracterizadores, não resultam elementos suficientes que nos permitam concluir pela natureza excepcionalmente grave de tal conduta.
Enquadramos, por isso, os factos em apreço no preceituado no nº1 do art. 27º do RCP, devendo a multa ser fixada numa quantia entre 0,5 e 5UC.
Atendendo ao caso concreto e às anteriores advertências, é adequada ao caso subjudice uma multa que se fixa em 3 UC.
Procede, assim, parcialmente, a apelação.
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IV- Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar em parte a decisão recorrida que passará a ter a seguinte redacção : o Tribunal decide aplicar ao ilustre mandatário do Autor a multa processual que se fixa em 3 ( três) UC.
Custas pelo recorrente na proporção do seu decaimento.
Registe e notifique.

Lisboa, 28 de Abril de 2021
Francisca Mendes
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos

[1] Conforme decorre da audição da sessão em causa, contendo a acta lapsos na transcrição do despacho.