Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10534/18.5T9LSB.L2-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: EMISSÃO DE CHEQUE SEM PROVISÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: PROVIDO E NÃO PROVIDO
Sumário: I - Mostra-se verificado o pressuposto de consumação do crime de emissão de cheque sem provisão, que se traduz na existência de prejuízo patrimonial para o beneficiário (a Autoridade Tributária - IGCP, EPE) do cheque, porquanto ocorreu uma diminuição do património desta entidade pública decorrente da emissão e colocação no comércio jurídico do cheque sem cobertura em causa nos autos.
II – O pedido de indemnização cível em processo-crime funda-se em responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, sendo o facto ilícito a violação da norma incriminatória, sempre protectora de bens jurídicos alheios. Ao emitir o cheque sem provisão, o arguido violou uma norma destinada à protecção dos interesses dos portadores dos cheques, assim praticando um facto ilícito.
III - Face às propostas em causa, aos montantes envolvidos e à vida empresarial do arguido, não se pode concordar que o pagamento de € 725.136,99 represente uma obrigação cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
No Juiz 12 do Juízo Local Criminal de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Parte criminal:
d) Condena-se o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos do artigo 11º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei 454/91, de 19.11, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, na condição (dever previsto no artigo 51º, n.º 1, alínea a), do Código Penal) de entregar, no aludido prazo, à Autoridade Tributária, por conta do prejuízo que aquela acção delituosa gerou, a quantia total de €500.000,00 (quinhentos mil euros).
Parte civil:
e) Julga-se o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, contra o mesmo arguido e contra a sociedade constituída sob a firma “BB”, parcialmente procedente e, em consequência, condena-se estes a pagar, solidariamente, àquele (Estado Português), a título de indemnização civil por danos patrimoniais, a quantia de €725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euro se noventa e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista na portaria a que alude no artigo 559º do Código Civil (Portaria 291/03, de 08.04, que fixa em 4% a taxa dos juros legais e dos estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo), contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido de todo o demais contra si peticionado.
f) Julga-se o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, contra a sociedade constituída sob a firma “CC” totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a mesma do pedido contra si deduzido.
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Inconformado, o arguido AA interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
“ 1.ª Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida e depositada em 07/05/2024, pela qual o recorrente foi condenado pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei 454/91 de 19.11, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19.11, por referência ao artigo 202º, n.º1, alínea a), do Código Penal na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, na condição de entregar no aludido prazo, à Autoridade Tributária, a quantia total de 500.000,00€ e 725.136,99€ ao Estado Português a título de indemnização civil por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, bem como de 4 UC’s de custas criminais do processo e 18,99% de custas cíveis, na proporção do seu decaimento.
2.ª A decisão em causa é, desde logo, manifestamente escassa no que tange à fundamentação.
3.ª Tal dever resulta lapidarmente do regime legal plasmado no n.º 2, do artigo 374º do CP Penal.
4.ª Tal esforço motivante inexiste na douta decisão em recurso, mormente no que tange aos “factos provados”, especificamente no que tange ao facto 7, relativamente ao em que se utiliza uma formulação extremamente vaga e insusceptível de cumprir cabalmente a finalidade legal.
5.ª Efectivamente, a decisão em causa não efectua qualquer esforço minimamente relevante, designadamente no que tange aos alicerces probatórios da assunção da matéria de facto não provada.
6.ª Ora, o mencionado artigo 374/2 do CPP impunha que se examinasse criticamente a prova para que, assim, se tornasse inteligível o processo lógico que determinou a convicção do julgador.
7.ª E, como a prática seguida na decisão recorrida se coloca nos antípodas de tal exigência legal, é manifesta a nulidade da decisão final, nos termos constantes da al. a) do n.º 1 do artigo 379º do CP Penal.
8.ª Por outra banda, salvo o devido respeito, a Decisão recorrida emerge, ainda, acometida por vícios sindicáveis nos termos do artigo 410º do CP Penal – que, como é consabido, plasma a chamada revista alargada.
9.ª Desde logo, de facto, afigura-se incorrer no vício cognoscível nos termos do art.º 410.º, n.º 2, c) do CP Penal, dado o erro notório na apreciação da prova, que existe em diversos segmentos do decidido.
10.ª No que tange à assinatura e entrega do cheque é notória e insuprível a confusão criada.
11.ª Na douta motivação e análise crítica da prova produzida que serviu para fundamentar a convicção do tribunal a quo consta o seguinte: “O relatório do exame pericial efectuado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária que constitui fls. 330 a 332, no qual consta, em sede de conclusão, o seguinte: “A qualidade e quantidades das semelhanças e diferenças registadas no confronto da escrita suspeita da assinatura … com a dos autógrafos de AA, bem como as limitações referidas em Nota, não permitem obter resultados conclusivos.”, sendo que o teor da nota é o seguinte: “O exame pericial foi extremamente limitado pelo traçado ilegível, com poucas letras com formas definidas da assinatura questionada.””
(...)
“- Depoimento da testemunha DD, funcionária nas finanças, a qual, na parte que interessa e que demonstrou ter efectiva memória, relatou que, o cheque foi-lhe entregue, ao final do dia no seu local de trabalho, por uma pessoa cujo género já não se recorda, tendo sido ela quem preencheu por extenso os itens “à ordem” e “a quantia de”.
- Depoimento da testemunha EE, funcionária nas finanças, a qual, na parte que interessa, afirmou que, o cheque em causa foi-lhe entregue por FF, no balcão do Serviço de Finanças 1 de Lisboa, local onde exercia as suas funções, para pagamento de uma venda (licitação) que estava a decorrer no Serviço de Finanças 2 de Lisboa, tendo entregado o cheque à testemunha DD, então ali tesoureira, o qual se recorda que já estava assinado.”
12.ª Sendo notório que a douta sentença incorreu no vício cognoscível nos termos do art.º 410.º, n.º 2, c) do CP Penal, dado o erro notório na apreciação da prova, uma vez que diversos segmentos da sentença apontam exactamente em sentido contrário, relativamente à assinatura e preenchimento do cheque.
13.ª Quanto à matéria que foi dada por assente, e salvo o devido respeito, o Tribunal a quo errou ao dar como provado o facto constante dos pontos 7 e 11 da matéria de facto dada como provada, os quais expressamente se impugnam.
14.ª As concretas provas que impõem tal decisão são as seguintes:
a) Depoimento da testemunha DD, prestado na audiência de julgamento realizada a 03/05/2022, pelas 09 horas e 30 minutos e o seu termo pelas 09 horas e 47 minutos, conforme consta da respectiva acta, o qual se encontra gravado em suporte digital no ficheiro 20220503093035_20215060_2871136.wma.
b) Depoimento da testemunha EE, prestado na audiência de julgamento realizada a 03/06/2022 entre pelas 09 horas e 48 minutos e o seu termo pelas 10 horas, conforme consta da respectiva acta, o qual se encontra gravado em suporte digital no ficheiro 20220503094849_20215060_2871136.wma.
c) Depoimento da testemunha FF, prestado na audiência de julgamento realizada a 11-07-2022, entre as 11 horas e 12 minutos e as 11 horas e 47 minutos, conforme consta da respectiva acta, o qual se encontra gravado em suporte digital no ficheiro 20220711112025_20215060_2871136.wma e 20220711114133_20215060_2871136 .wma.
d) Declarações do AA, prestado na audiência de julgamento realizada a 10-05-2022, entre as 11 horas e 20 minutos e as 11 horas e 49 minutos, conforme consta da respectiva acta, o qual se encontra gravado em suporte digital no ficheiro 20220510112009_20215060_2871136.wma.
e) Realização de exame pericial efetuado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária à letra do arguido e confrontação com o cheque original, conforme consta de despacho proferido em sede de audiência de discussão e julgamento realizada no dia 02 de Junho de 2022, consignado em Ata de respectiva sessão e qual consta do processo eletrónico via Citius sob a referência 416411755.
f) Realização da acareação efetuada entre as testemunhas DD e EE, prestada no dia 02-06-2022, entre as 11 horas e 10 minutos e as 11 horas e 12 minutos, conforme consta da respectiva acta, a qual se encontra gravada em suporte digital no ficheiro 20220602111043_20215060_2871136.wma.
15.ª Da reapreciação dos indicados meios probatórios resulta que mal andou o Tribunal recorrido ao decidir a matéria de facto nos termos expostos na decisão recorrida, havendo violação das regras da experiência e da livre convicção do tribunal.
16.ª Em primeiro lugar, o próprio arguido quando confrontado com a cópia do cheque em sede de audiência e julgamento afirmou desde logo que não se tratava da sua assinatura, nem que o tivesse preenchido.
17.ª Até porque, quando lhe é exibido o cheque, o arguido afirma que o cheque não foi preenchido por ele, resultado das palavras “Santos” e “Ferreira” apesar de parecidas não serem da sua autoria.
18.ª E até porque, resulta da prova valorada pelo Tribunal a quo, que o “numerário”, “à ordem”, “a quantia de” foi preenchido pela Sra Testemunha DD, conforme confessado por esta.
19.ª Perante a insuficiência de prova, o Ministério Público requereu o exame pericial o qual foi deferido quanto à assinatura do recorrente e efetuado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, o do qual se obteve resultado inconclusivo.
20.ª Se dúvidas existiam, a perícia realizada não as esclareceu, muito pelo contrário agravou-as ao assinalar a existência de diferenças na assinatura.
21.ª O Tribunal a quo, pese embora na fundamentação de facto transcrever a conclusão constante do relatório pericial, não explica de que forma o mesmo contribuiu para formar a sua convicção, nem tão pouco explica qual a conjugação de meios de prova que lhe permitiram afastar a dúvida razoável sobre a autoria da assinatura que é reconhecida nos autos, e porque é que veio a desconsiderar a prova pericial realizada, como era sua incumbência - art.º 163.º do CPP
22.ª Face à falta de fundamentação do Tribunal para afastar o valor probatório da perícia realizada, e porque a sua realização adveio de dúvidas quanto à autenticidade da assinatura, o facto de a perícia ser inconclusiva e resultando do relatório que existem diferenças a assinalar na assinatura aposta no cheque, nunca o Tribunal poderia dar como provado que o arguido assinou e emitiu o cheque em discussão nos presentes autos.
23.ª O tribunal a quo, ao deferir a realização da perícia à assinatura aposta no cheque, admitiu existirem dúvidas quanto à autoria da mesma.
24.ª Sendo a perícia inconclusiva, as dúvidas que existiam não foram esclarecidas.
25.ª Pelo que, o Tribunal não poderia dar como provado que a assinatura aposta no cheque é do arguido.
26.ª Pretendendo o Tribunal a quo dar como provado esse facto, em face das dúvidas que admitiu existirem, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo, deveria indicar os concretos meios de prova que permitiram afastar a dúvida, isto em abono do disposto no n.º 2, do artigo 163.º do CPP.
27.ª Dos presentes autos resulta que o Tribunal recorrido encontrava-se numa situação de dúvida (expressa pelo mesmo) quanto à autoria da assinatura do cheque, dúvida esta que veio a ser reiterada pelo relatório pericial realizado nos autos, e decidiu contra o arguido, considerando que o mesmo assinou o cheque: por este motivo violou o princípio in dubio pro reo, o que implica a revogação da decisão recorrida, e a prolação de decisão que considere tal facto como não provado.
28.ª No que diz respeito ao acto de entrega do cheque existe prova bastante nos autos que indica que não foi o aqui recorrente por si ou por interposta pessoa a entregar o cheque no serviço de finanças de Lisboa 2.
29.ª Com efeito, primeiramente foi questionado à testemunha DD, (pessoa que recebeu e preencheu o cheque) quem lhe entregou o cheque tendo esta respondido que não se lembrava, nem nome, nem género.
30.ª Sendo completamente contraditório o depoimento da Srª EE quando vem afirmar inicialmente que foi a Sra. DD que recebeu o cheque, terminando o seu depoimento afirmar que afinal foi ela própria que recebeu o cheque entregue pela Senhora FF, já preenchido.
31.ª O depoimento da Sra. EE, além de colidir com o depoimento da Sra. DD, não merece credibilidade, uma vez que no caso vertente é impossível o cheque já vir preenchido no momento da sua entrega, uma vez que a letra que consta tanto no endosso, como no numerário, bem como no extenso, uma vez que foi a Tesoureira que o preencheu, e quando foi confrontada com este facto em sede de acareação decidiu confirmar o que já tinha afirmado.
32.ª Ainda na acareação realizada entre estas duas testemunhas, a Sra. DD, além de ter alterado a versão dos factos afirmando que foi a Srª EE que lhe entregou o cheque, manteve que não conhece a Sra. FF de lado nenhum, mantendo o seu testemunho nomeadamente que foi ela que preencheu o cheque, portanto não poderia, aquele documento, ter sido entregue já preenchido.
33.ª A testemunha FF no seu depoimento admite ter estado no local, juntamente com a Sra. EE, até ao momento em que o Sr. GG chegou e entregou o cheque dentro de um envelope.
34.ª Pelo que assim, do depoimento da Sra. FF, depreende-se que não foi esta a entregar o cheque a mando do arguido, nem foi o arguido a entregar o cheque no serviço de finanças.
35.ª Da conjugação do depoimento das testemunhas DD, EE e FF resulta claro que não foi o arguido quem entregou o cheque.
36.ª Considerando as declarações prestadas pela testemunha DD, quanto ao preenchimento do cheque, aceite pelo Tribunal a quo, na medida em que indeferiu a perícia à letra do preenchimento, é também pacífico que não foi o arguido quem preencheu o cheque.
37.ª Deste modo o cheque não foi preenchido na presença de ninguém, pois quem o entregou não se encontrava presente, uma vez que a Sra. EE limitou-se a entregar o cheque a quem quer que fosse para o preencher, neste caso à Sra. DD, ainda que mais ninguém se encontrasse presente para confirmar o seu endosso, extenso e numerário.
38.ª Até porque, nem poderia ser o recorrente a ordenar a Sra. FF porque no momento da entrega do respectivo cheque o mesmo não se encontrava a exercer a gerência de facto das suas sociedades, conforme resulta das declarações do arguido, do depoimento da Sra. FF, da certidão permanente e dos atestados médicos juntos aos autos com o requerimento de 02/06/2022, com a referência 32751687.
39.ª Era do conhecimento do Mmo Juiz, porque julgou o arguido no âmbito do processo 1180/20.4T9LSB, que o arguido padecia de doença que o tinha impossibilitado de exercer a gerência de facto das sociedades até 2018, sendo este um facto do seu conhecimento, não carecia de prova.
40.ª Tanto assim é que no processo n.º 1180/20.4T9LSB que correu no mesmo juízo, o arguido foi absolvido por não ter ficado demonstrado o exercício da sua gerência de facto da sociedade, devido a problemas de saúde.
41.ª Nos presentes autos o tribunal a quo limitou-se a presumir a existência de uma deliberação datada de 17/07/2017, que serviu de base ao registo em 09 de outubro de 2018 da gerência de direito do arguido.
42.ª Considerando o Tribunal, que a Sra. FF renunciou à gerência em 25/09/2015, e a gerência do arguido apenas foi registada em 09/10/2018, faltou ao Tribunal a quo, explicar quem no hiato de tempo que decorreu entre 25/09/2015 e 09/10/2018 exerceu a gerência de direito e de facto.
43.ª Assim, não poderia o Tribunal a quo dar como provado que o arguido era o único que tinha interesse na entrega do cheque, quando não ficou demonstrado que era o arguido que detinha a gerência de facto da sociedade.
44.ª Até porque, conforme transcrito por nós, a Sra. FF, passou uma procuração e cedeu as quotas da BB ao filho do recorrente e não ao recorrente.
45.ª O arguido nunca chegou a ter conhecimento da entrega do cheque na repartição de Finanças, até porque só mais tarde tomou conhecimento da existência do cheque em causa, através do seu gerente bancário, fruto de se encontrar doente, tal como resulta de documentação junta aos autos por este.
46.ª Portanto, da prova produzida, sem margem para qualquer dúvida, não foi o arguido que assinou e entregou o cheque, nem foi ninguém a mando deste que o entregou.
47.ª O facto de se ter fixado como provado que, na certidão permanente da sociedade consta que, desde o dia 09/10/2018, o exercício do cargo de gerente da sociedade foi exercido pelo arguido, não permite inferir, com a necessária segurança que se exige para a prova de um facto, que o arguido, no hiato de tempo relevante em apreço nos autos entre 25/09/2015 e 12/10/2018 (dia de entrega do cheque), administrou, de facto, a sociedade, tanto mais que, nos termos do artigo 11º do Código de Registo Comercial, o registo definitivo de um facto apenas constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida, ou seja, registo do facto de alguém como gerente da sociedade apenas gera a presunção legal de que essa pessoa exerce tal cargo, e não a presunção de que exerce, efectivamente, as respectivas funções.
48.ª O Ministério Público, a quem compete provar os factos que alega na acusação, não indicou nenhum meio prova que permita concluir que, no supra aludido hiato de tempo relevante, o arguido administrou, de facto, a sociedade.
49.ª Concatenando toda a prova, documental, testemunhal, resulta claro que o arguido não preencheu, não assinou, nem entregou o cheque identificado nos autos.
50.ª O Tribunal ao dar como provados os factos constantes dos pontos 7 e 11 do probatório, violou desta forma o princípio in dubio por reo, uma vez que não conseguiu dissipar as dúvidas decorrentes da produção de prova, nem, salvo o devido respeito, valorou condignamente, a prova produzida, como se viu.
51.ª Razão pela qual deve ser julgado procedente o recurso sobre a matéria de facto, revogando-se e eliminando-se da matéria de facto assente os já indicados pontos 7 e 11.
52.ª O arguido, ora recorrente, foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei 454/91 de 19.11, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19.11, por referência ao artigo 202º, n.º1, alínea a), do Código Penal.
53.ª Como consta na Sentença recorrida, os elementos típicos do crime em questão são:
- A emissão e entrega para pagamento de um cheque de valor superior a € 5.100,00;
- Insuficiência da provisão;
- O prejuízo patrimonial;
- A data de emissão do cheque tem de ser anterior ou correspondente ao dia da sua entrega.
54.ª Resultou da prova produzida que não tendo sido o arguido a preencher o cheque, e não se encontrando presente no dia em que o mesmo foi entregue e ainda desconhecendo o valor que lhe foi aposto, nunca poderá ser imputado ao arguido os factos integrantes, ou melhor, concretizadores do tipo objectivo de ilícito em causa.
55.ª E ainda, que assim não fosse: sendo o crime de emissão de cheque sem provisão é um crime punido apenas a título doloso, e face à matéria que deveria ter sido dado com assente, depreende-se sem sombra de dúvida que nunca foi vontade o recorrente mandar emitir o cheque, nem tão pouco que alguém procedesse à sua entrega, pelo que mesmo que a assinatura fosse sua, que jamais se concede, teria de se provar que a execução criminosa tivesse sido ordenada ou arquitetada pelo mesmo.
56.ª Em particular no que concerne ao nexo de causalidade adequada entre a emissão (assinatura) e a entrega do cheque no mínimo, teriam de ser demonstrados factos que sejam susceptiveis de estabelecer tal relação de causa-efeito, na prática, tornar-se-ia mister a demonstração que a conduta do recorrente visava a obtenção de uma vantagem específica com a emissão e entrega do respectivo cheque sem provisão, tendo essa vantagem ficado por explicitar.
57.ª Essa vantagem não ficou demonstrada em parte alguma.
58.ª Mesmo que se mantenham os factos provados com a redação que lhe foi dada pela 1.ª instância, ainda assim o arguido tem de ser absolvido da prática do crime de emissão de cheque sem provisão pois foi dado como não provado que tenha sido o mesmo a proceder à sua emissão (apenas a sua assinatura, cfr. facto não provado n.º 16.º).
59.ª Para que se possa considerar preenchido o tipo objetivo de ilícito é necessária a prova da emissão do cheque, o que acontecerá com a demonstração do preenchimento de todos os campos pelo arguido, e não apenas a aposição da sua assinatura, ou que a esta tenha sido aposta já após os demais campos estarem preenchidos, o que não acontece no presente caso.
60.ª Quanto à existência de prejuízo também errou o Tribunal a quo no juízo proferido, primeiro quanto à existência do mesmo, segundo quanto ao quantum no valor de 725.136,99€.
61.ª Primeiro que tudo a AT Tributária, tinha vários caminhos a tomar na situação relatada nos autos as quais se encontram previstas no artigo 825.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 2.º do CPPT, sendo que a decisão de dar sem efeito a venda foi tomada por sua alta recreação, quando poderia ter colocado novamente os imóveis à venda.
62.ª Não pode o recorrente ficar sujeito ao pagamento desta diferença de valor entre as duas propostas, no valor de 725.136,99€ quando a Autoridade Tributária, livremente, poderia ter determinado que a venda ficasse sem efeito e efetuado a venda dos bens através da modalidade mais adequada, não podendo ser admitido o proponente ou preferente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução constituída.
63.ª Assim o arguido não podia ficar sujeito à livre iniciativa da Autoridade Tributária de determinar que a venda ficasse sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior.
64.ª Posto isto, só haveria efectivo prejuízo para a AT caso a venda não fosse de todo concretizada, ou se o imóvel em questão tivesse sido vendido abaixo do seu valor tributário, o que claramente não sucedeu, o que só por si bastava para determinar a improcedência do pedido de indemnização civil, bem como e claro está a absolvição do arguido quanto ao crime que lhe foi imputado.
Assim não se entendendo:
65.ª O crime de emissão de cheque sem provisão, é punido com pena de prisão ou em alternativa, com pena de multa, tendo o Tribunal a quo entendido que apenas uma pena privativa da liberdade realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
66.ª Num primeiro momento, sempre que a norma preveja a punição alternativa, impõe-se ao julgador que proceda à escolha da pena nos termos do art.º 70.º do Código Penal, ou seja, terá que fazer a opção entre a pena privativa de liberdade e a pena não privativa de liberdade.
67.ª No caso vertente o Tribunal não quis sequer apurar o tipo de personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta posterior ao crime e, portanto, não ordenou a realização do relatório social ao recorrente, afim de aferir as suas condições pessoais, pois só assim é possível formular ao arguido uma prognose social favorável ou não.
68.ª No caso, verificam-se razões de prevenção geral, embora não com tanta premência como aconteceu em tempos. Com efeito, são pouco significativos o número de processos por crimes de emissão de cheque sem provisão, verificando-se uma acentuada tendência da sua diminuição, até pela cada vez mais rara utilização deste meio de pagamento. No que respeita às razões de prevenção especial, estas são diminutas em virtude de o arguido apesar de ter antecedentes criminais nunca ter sido condenado por este tipo de crime.
69.ª Assim, ao ter decidido desta forma, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 163.º, 2, 374º, 2 e 379º, 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal, o inciso constitucional contido no art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, os artigos 40.º, n.º 1 e 2, artigo 70.º, do Código Penal e , al. c), do n.º 2 do artigo 410º do C P Penal e o artigo 11.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei 454/91 de 19.11, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19.11, por referência ao artigo 202º, n.º1, alínea a), do Código Penal, pelo que a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido, ora recorrente da prática do crime que lhe vem imputado.”
O Ministério Público apresentou resposta, concluindo do seguinte modo:
“1 – Da análise da Sentença verifica-se que o Mmo. Juiz a quo apreciou de forma correcta e bem fundamentada a prova produzida em Audiência de Julgamento.
2 – Inexiste na Sentença qualquer vício a que alude o art.º 410º nº 2 do Cód. Proc. Penal.
3 – Designadamente inexiste erro notório na apreciação da prova.
4 – Para a prova do facto “assinatura do cheque” não era necessário que o exame pericial fosse conclusivo, existindo outros meios de prova nos autos e vertidos na fundamentação de facto que permitem concluir ao Tribunal que foi o arguido quem assinou o cheque em apreço.
5 – Segundo o princípio da imediação e da livre apreciação da prova o Tribunal a quo aprecia e valora as provas – designadamente a prova por declarações e testemunhal – segundo as regras da experiência e da livre convicção do Julgador (cfr. art.º 127º do Cód. Proc. Penal).
6 – A Sentença encontra-se bem elaborada e fundamentada no que concerne à motivação da matéria de facto, tendo aí o Julgador explanado o porquê da valoração de determinada prova em relação a outra.
7 – Face ao conjunto de TODOS os factos provados na Sentença efectivamente existiu prejuízo para o Estado Português em pelo menos € 725.136,99 (setecentos e vinte cinco mil cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), montante que corresponde – conforme se refere na Sentença recorrida – à diferença de valor que a Autoridade Tributária teria obtido se as vendas iniciais não tivessem ficado sem efeito e àquele que efectivamente veio a obter.
8 – Atendendo ao caso concreto, afigura-se-nos que o tipo de pena (prisão ainda que suspensa na respectiva execução com condição de suspensão) e a medida concreta da mesma em que o arguido foi condenado se mostra adequada quer aos factos provados, quer às necessidades de prevenção geral e especial e à culpa do agente.
9 – Reiteramos aqui, relativamente à pena em concreto aplicada ao arguido, mais uma vez o que consta das alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público nos recursos interpostos: “…deve ser revogada a douta sentença recorrida no sentido ora perfilhado, fixando-se no valor como montante da condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido a quantia a título de indemnização civil por danos patrimoniais em que foi o mesmo condenado, € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos) …”.
10 – A Douta Sentença recorrida não violou qualquer das disposições legais invocadas pelo recorrente.
11 – Antes deve a Sentença proferida pelo Mmo. Juiz a quo ser alterada nos termos que constam das motivações dos recursos interpostos nos autos pelo Ministério Público, o que uma vez mais aqui se reitera.”
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Também o Ministério Público veio recorrer, oferecendo as seguintes conclusões:
Quanto ao pedido cível:
“1 - Por sentença proferida em 7 de Maio de 2024 o Mmo. Juiz proferiu decisão que condenou o arguido / demandado AA e a sociedade constituída sob a firma “BB” a pagar ao Estado Português, a título de indemnização civil por danos patrimoniais a quantia de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista na portaria a que alude no artigo 559º do Código Civil (Portaria 291/03, de 08.04, que fixa em 4% a taxa dos juros legais e dos estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo), contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido de todo o demais contra si peticionado,
2 - e tendo julgado o pedido de indemnização civil igualmente deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, contra a demandada sociedade constituída sob a firma “CC” totalmente improcedente e, em consequência, tendo absolvido a mesma do pedido cível contra esta deduzido.
3 – Ora, a sociedade/demandada “CC” também contribuiu para o prejuízo em apreço, devendo a mesma ser condenada a pagar ao Estado Português a quantia de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos até final.
4 - Mercê da atuação do arguido e das sociedades “CC” e “BB” na referida acusação e no pedido de indemnização civil, o Estado Português (Fazenda Nacional) sofreu danos patrimoniais no valor do Pedido de Indemnização Civil em que o arguido AA foi condenado na Sentença ora em crise.
5 - Discorda-se assim no que concerne à não condenação no pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público contra a sociedade/demandada “CC” por se entender que, nos termos do artigo 11º, n.º 4, do Decreto-Lei 454/91, de 19.11, esta sociedade é também solidariamente responsável pelo pagamento das multas, custas e indemnizações em que o arguido/demandado AA foi condenado na presente sentença.
6 – De facto, por um lado, a conta bancária n.º ... do Banco Millennium BCP era titulada pela sociedade “CC”,
7 – e por outro, foi em sede de execução fiscal na qual é executada esta Sociedade e que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa 2, na qual teve lugar, por meio de leilão eletrónico, a venda dos imóveis ali penhorados com propostas de aquisição apresentadas pela BB”, e aceites, e tendo o cheque sido entregue na Autoridade Tributária - Serviço de Finanças de Lisboa 1, à ordem da Autoridade Tributária - IGCP, EPE, para pagamento de 1/3 dos valores das propostas, sacado da referida conta bancária que não dispunha de fundos disponíveis para o respetivo pagamento.
8 – Em último lugar, acrescente-se que o arguido é o gerente único de ambas as sociedades.
9 - O pedido tem como causa de pedir a prática da ação criminal delituosa que corresponde à emissão do cheque sem provisão, razão pela qual é irrelevante a menção que o cheque foi entregue para pagamento de um imposto, sendo que o pedido de pagamento não é do imposto, mas sim do não pagamento do montante titulado pelo cheque, sacado sobre a conta da titularidade da CC” para o fim provado de apresentação de proposta de aquisição por parte da sociedade “BB”, sendo o arguido/demandado o gerente único de ambas as Sociedades com intervenção nos factos.
10 – É igualmente decorrente da acção das duas Sociedade “CC”, e “BB” que ocorreu um prejuízo correspondente à diferença do valor total das duas propostas apresentadas pela sociedade “BB” comparativamente ao valor total das propostas que vieram a ser aceites, conforme explanado na Sentença.
11 – Deste modo, as sociedades “CC” e “BB” não entregaram ao Estado Português a acima referida quantia (€ 725.136,99) com o consequente prejuízo do Estado, prejuízo este que ficou a dever-se aos provados actos praticados pelo arguido/demandado, devendo considerar-se obrigadas a indemnizar o Estado português, nos termos gerais de direito, pela totalidade dos prejuízos que lhe causaram através da prática da conduta criminalmente ilícita e dolosa (arts. 483.º e 564º do Código Civil).
12 – Pelo que, tendo sido o pedido cível considerado parcialmente procedente por provado, deve também a sociedade “CC” ser condenada a pagar à Fazenda Nacional a quantia de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), bem como juros vencidos e vincendos até final, sendo a mesma solidariamente responsável pelo pagamento das multas, custas e indemnizações abrangidas pela condenação, conforme preceituado no art.º 11.º, n.º 4, do D.L. n.º 454/91, de 28/12.
13 – Ao não condenar igualmente a sociedade “CC” o Mmo. Juiz a quo violou o disposto nos arts. 483º e 564º do Cód. Civil e o art.º 11º nº 4 do D.L. nº 454/91 de 28/12.
14 – O Ministério Público declara que mantém interesse no recurso oportunamente interposto nos autos em 30/08/2022 (cfr. ref. Citius 33444970) da Sentença final proferida em 14/07/2022 (ref. Citius 417623554), pugnando pela procedência desse recurso no que à parte criminal diz respeito, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.”
Quanto à parte criminal (recurso de 30.08.2022):
a) Por sentença proferida em 14/07/2022, o Mmº Juiz “a quo” condenou o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos do artigo 11º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei 454/91, de 19.11, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, na condição (dever previsto no artigo 51º, n.º 1, alínea a), do Código Penal) de entregar, no aludido prazo, à Autoridade Tributária, por conta do prejuízo que aquela acção delituosa gerou, a quantia total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros),
(…)
d) Não concorda o Ministério Público do doutamente decidido:
1- Respeitante ao montante fixado como condição de suspensão da execução da pena conta do prejuízo que a ação delituosa gerou, da quantia total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), por entender que, face aos factos provados, tal montante deverá ser equivalente ao montante do prejuízo em que o arguido foi condenado no Pedido de Indemnização Civil, € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos).
(…)
e) Resulta do texto da fundamentação da sentença na parte atinente à suspensão da execução da pena de prisão, que a mesma fica sujeita à condição (dever) do arguido entregar à Autoridade Tributária, por conta do prejuízo em apreço, a quantia de € 500.000,00, no prazo de 5 anos, contados da data do trânsito em julgado da presente sentença, nos termos permitidos pelo artigo 51º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, quantia que se afigurou ao Mmº Juiz “a quo”, face à ordem de grandeza dos valores em apreço na factualidade fixada como provada, não representar para o mesmo uma obrigação cujo cumprimento não lhe seja razoável de exigir (artigo 51º, n.º 2, do Código Penal).
f) Ora, atenta a situação sócio-económica do arguido subjacente à fundamentação da sentença nesta parte, aferida pelo facto de o mesmo ser gerente das sociedades em questão, pela relevância negocial subjacente à emissão do cheque e respetivo montante e pelo prejuízo causado, impunha-se fixar como montante da condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido a quantia a título de indemnização civil por danos patrimoniais em que foi o mesmo condenado, € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), e não o fixado montante de € 500.000,00 (quinhentos mil euros),
g) ficando sem se saber, porque o Mmº Juiz “a quo” não o diz, os motivos da fixação da diferença em causa para o montante do prejuízo, já que, como consta da fundamentação nesta parte, o montante da condição de suspensão da execução da pena de prisão foi fixado por conta do prejuízo em apreço, montante esse que, frisa-se, foi de € 725.136,99 e, não, de € 500.000,00.
h) Se se entender que não resultaram apurados factos comprovativos da situação económica do arguido para o efeito aqui pretendido - a fixação do montante a entregar pelo arguido à Autoridade Tributária como condição de suspensão da execução da pena de prisão correspondente ao montante do prejuízo causado -, tal configurará a nulidade prevista no art.379º, nº 1, al. c), do C.P.P., porque, a ser assim, o Tribunal deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.
(…)”
Não foram oferecidas respostas aos recursos do Ministério Público.
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Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da improcedência do recurso do arguido e no provimento dos recursos do Ministério Público.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – A) Factos Provados
1º) A conta bancária n.º ..., do Banco Millennium BC, é titulada pela sociedade constituída sob a firma “CC”.
2º) Em sede de execução fiscal, na qual é executada a sociedade constituída sob a firma “CC”, e que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa 2, teve lugar, por meio de leilão electrónico:
- A venda de um determinado imóvel ali penhorado, cuja venda assumiu o n.º 3247.2018.04, tendo a sociedade constituída sob a firma “BB” apresentado uma proposta de aquisição no valor de € 5.750.000,00;
- A venda de um outro imóvel ali penhorado, cuja venda assumiu o n.º 3247.2018.07, tendo a sociedade constituída sob a firma “BB” apresentado uma proposta de aquisição no valor de € 5.700.000,99.
3º) As propostas referidas em 2), por terem sido as propostas apresentadas com valor mais elevado, foram ambas aceites.
4º) No dia 12.10.2018, para pagamento de 1/3 dos valores das propostas referidas em 2), foi entregue, na Autoridade Tributária - Serviço de Finanças de Lisboa 1, sito na ..., em Lisboa, à ordem da Autoridade Tributária - IGCP, EPE, o cheque n.º ..., no valor de € 3.816.667,00, sacado da conta bancária identificada em 1).
5º) No dia 12.10.2018, o arguido era gerente único da sociedade identificada em 1).
6º) No dia 12.10.2018, o arguido era gerente único da sociedade constituída sob a firma “BB”
7º) O cheque referido em 4) foi assinado pelo arguido e entregue por este, através de FF.
8º) No dia 12.10.2018, a conta bancária identificada em 1) não dispunha de fundos disponíveis para pagar o cheque referido em 4).
9º) O cheque referido em 4) foi apresentado a pagamento no dia 17.10.2018, no balcão do Banco Espírito Santo, em Lisboa, tendo sido devolvido pelos serviços de compensação do Banco de Portugal, no dia 18.10.2018, sem ser pago, com fundamento em falta/insuficiência de provisão na conta do sacador, encontrando-se a menção a esta situação no verso do cheque.
10º) Em decorrência do não pagamento referido em 4), foi proferido despacho a determinar sem efeito as duas vendas referidas em 2), ao proponente sociedade constituída sob a firma “BB”, tendo sido aceites as propostas de valor imediatamente inferior, apresentadas pelo “Banco Comercial Português, S.A.”, respectivamente, nos valores de € 5.658.319,00 e € 5.066.454,00, cuja adjudicação dos imóveis veio a ter lugar.
11º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido:
- Ao emitir o cheque acima referido, sabia que a quantia existente no banco sacado era insuficiente para o seu pagamento e que ao agir deste modo, causava um prejuízo patrimonial à Autoridade Tributária;
- Agiu de forma livre e consciente;
- Sabia que a sua conduta era proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
12º) No certificado do registo criminal do arguido, consta que este foi condenado:


12-A): O arguido:
- Vive, a espaços, na habitação da sua companheira, com a mesma;
- Actualmente, não dispõe de qualquer fonte de rendimento própria, sendo seu sustento assegurado por amigos;
- Não é titular de qualquer bem de valor relevante;
- Tem três filhos (42, 49 e 51 anos de idade);
- Tem como habilitações literárias, o 6º ano de escolaridade;
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II – B) Factos não Provados
13º) O cheque referido em 3) foi emitido e entregue para pagamento de € 3.816.667,00, relativos a uma dívida de imposto da responsabilidade da sociedade constituída sob a firma “BB”.
14º) O cheque referido em 4) foi entregue pelo próprio arguido.
15º) O cheque referido em 4) foi assinado pelo arguido no dia 12.10.2018.
16º) O cheque referido em 4) foi preenchido, com excepção da assinatura, pelo arguido, e no dia 12.10.2018.
17º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido causou à Autoridade Tributária, um prejuízo patrimonial pelo menos equivalente ao valor nominal do cheque referido em 4), por ter deixado de receber o valor do imposto referido em 13).
18º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido sabia que causava um prejuízo patrimonial à Autoridade Tributária, de valor pelo menos igual ao do saque.
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III – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art.º 410º do Cód. Proc. Penal.
O recurso do arguido tem os seguintes fundamentos: (i) nulidade da sentença por falta de fundamentação – artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP; (ii) erro notório na apreciação da prova – 410.º, n.º 2, al. c), do CPP; (iii) impugnação ampla da matéria de facto; (iv) absolvição do crime em que foi condenado; (v) medida da pena.
Recursos do MP: parte cível: (i) deve também a sociedade “CC” ser condenada a pagar à Fazenda Nacional a quantia de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), bem como juros vencidos e vincendos até final, sendo a mesma solidariamente responsável pelo pagamento das multas, custas e indemnizações abrangidas pela condenação, conforme preceituado no art.º 11.º, n.º 4, do D.L. n.º 454/91, de 28/12; parte criminal: (i) não concorda o Ministério Público do doutamente decidido respeitante ao montante fixado como condição de suspensão da execução da pena conta do prejuízo que a ação delituosa gerou, da quantia total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), por entender que, face aos factos provados, tal montante deverá ser equivalente ao montante do prejuízo em que o arguido foi condenado no Pedido de Indemnização Civil, € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos); (ii) nulidade prevista no art.379º, nº1, al.c), do C.P.P., porque, a ser assim, o Tribunal deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.
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IV – Fundamentação
Vejamos a convicção do tribunal a quo:
A convicção do tribunal resultou dos seguintes meios de prova:
 Números 1) a 11): Conjugação dos seguintes meios de prova:
- Informação bancária que constitui fls. 16 a 23, demonstrativa de toda a factualidade descrita no facto provado n.º 1), e da qual resulta, ainda, e nomeadamente, que após ser sido praticado o último movimento no dia imediatamente anterior à data de apresentação do cheque a pagamento, o saldo era de € 1.885,85;
- Informação disponibilizada pela Autoridade Tributária que constitui fls. 2, demonstrativa do local onde o cheque foi apresentado a pagamento (referido no facto provado n.º 4));
- Informação disponibilizada pela Autoridade Tributária que constitui fls. 4 e 5, demonstrativa que o cheque foi apresentado para depósito do preço de venda (Nota: cf. teor “DEP.P. VEND” e “Depósito relativo à venda número 3247.2018.7” e “Depósito relativo à venda número 3247.2018.4”), sendo responsável pelo pagamento a sociedade constituída sob a firma “BB”;
- Cheque em apreço que consta agrafado a fls. 6, demonstrativo de toda a factualidade concernente ao mesmo;
- Certidão permanente da sociedade constituída sob a firma “BB”, cujos exemplares constituem fls. 9 a 14 e 275 a 280, demonstrativa de toda a factualidade descrita no facto provado n.º 6), resultando da mesma certidão que FF exerceu o cargo de gerente único da sociedade em causa até ao dia 25.09.2015, data em que apresentou renúncia, facto que apenas no dia 02.08.2016 foi registado na Conservatória do Registo Comercial, bem como foi titular de uma quota da mencionada sociedade até ao dia 25.07.2017, que foi adquirida pela sociedade constituída sob a firma CC”, resultando, também, da mesma certidão, que o arguido assumiu o cargo de gerente único da sociedade no dia 17.07.2017, facto que apenas no dia 09.10.2018 foi registado naquela conservatória, ou seja, tão-somente 3 dias antes da data da apresentação do cheque;
- Informação disponibilizada pela Autoridade Tributária que constitui fls. 261, demonstrativa de toda a factualidade descrita nos factos provados números 2), 3) e 10);
- O relatório do exame pericial efectuado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária que constitui fls. 330 a 332, no qual consta, em sede de conclusão, o seguinte: “A qualidade e quantidades das semelhanças e diferenças registadas no confronto da escrita suspeita da assinatura … com a dos autógrafos de AA, bem como as limitações referidas em Nota, não permitem obter resultados conclusivos.”, sendo que o teor da nota é o seguinte: “O exame pericial foi extremamente limitado pelo traçado ilegível, com poucas letras com formas definidas da assinatura questionada.”;
- Declarações do arguido, o qual apenas admitiu como verdadeira a factualidade atinente aos cargos nas duas sociedades em apreço ao tempo em causa, tendo dito que nada sabe sobre a situação de compra dos imóveis em causa por parte da sociedade constituída sob a firma “BB”, nem sobre o cheque em apreciação, que disse não ter sido preenchido por si, ignorando quem o preencheu, dado que não reconhece a caligrafia aposta no mesmo, não sabendo sequer se a assinatura que se encontra no aludido cheque é a sua, apesar de a achar parecida, sendo que, confrontado com a questão, se não foi ele, quem teve acesso ao cheque, disse que, pelo facto de ter estado doente, o que não sabe se sucedia no dia 12.10.2018, deixou uns cheques assinados para uma emergência, aos quais apenas tinha acesso o seu secretário, de nome GG, entretanto falecido.
- Depoimento da testemunha DD, funcionária nas finanças, a qual, na parte que interessa e que demonstrou ter efectiva memória, relatou que, o cheque foi-lhe entregue, ao final do dia no seu local de trabalho, por uma pessoa cujo género já não se recorda, tendo sido ela quem preencheu por extenso os itens “à ordem” e “a quantia de”;
- Depoimento da testemunha EE, funcionária nas finanças, a qual, na parte que interessa, afirmou que, o cheque em causa foi-lhe entregue por FF, no balcão do Serviço de Finanças 1 de Lisboa, local onde exercia as suas funções, para pagamento de uma venda (licitação) que estava a decorrer no Serviço de Finanças 2 de Lisboa, tendo entregado o cheque à testemunha DD, então ali tesoureira, o qual se recorda que já estava assinado;
- Depoimento da testemunha FF, a qual, na parte que interessa, disse que o cheque não foi entregue por si, mas por GG, sendo que a sua razão da ciência advém do facto de, naquele dia, quando estava num café, acompanhado da testemunha EE e do sobrinho da mesma (disse chamar-se HH), chegou GG, entretanto falecido, com um envelope, para entregar um cheque nas finanças, sendo que confrontada com a situação da testemunha EE ter afirmado que foi ela quem entregou o cheque e qual o interesse desta testemunha em fazer tal afirmação, disse não saber, tendo dito que já sabia que a referida testemunha tinha feito tal afirmação. No que respeita à sua ligação com a sociedade BB, disse que, no ano de 2017, emitiu uma procuração irrevogável a favor deles (estava a referir-se ao arguido e ao filho do mesmo) que lhes permitiria transmitir as quotas de que era titular na dita sociedade, a favor dos mesmos;
- Relativamente à demais factualidade não abrangida pelos meios de prova supra aduzidos, como seja o facto de o cheque ter sido entregue a mando do arguido e toda a descrita no facto provado n.º 11), o tribunal socorreu-se das regras de experiência comum, por não ser crível, de todo, face à remanescente factualidade fixada como provada, equacionar qualquer outra hipótese. Com efeito, apreciando, ademais, criticamente os meios de prova ante explanados, cumpre explicitar que o tribunal não valorou as declarações da testemunha FF, na parte em que disse que não foi ela quem entregou o cheque, pela simples razão de que, a testemunha EE, que nenhuma relação se demonstrou ter com o arguido ou com as duas sociedades em causa, ao contrário da testemunha FF (esta testemunha foi a anterior gerente única da sociedade constituída sob a firma “BB”, foi titular de uma quota desta sociedade até ao dia 25.07.2017, a qual foi adquirida pela sociedade constituída sob a firma “CC”), afirmou, perentoriamente, que o cheque foi entregue por FF, não vislumbrando o tribunal qualquer explicação plausível para que esta testemunha tenha faltado à verdade, ao ter feito tal afirmação, ao contrário da testemunha FF, devido ao que supra se mencionou entre parêntesis. Cumpre, igualmente, elucidar que o tribunal não valorou as declarações do arguido, na parte em que, em suma, disse nada saber sobre a situação de compra dos imóveis em causa por parte da sociedade constituída sob a firma “BB”, nem sobre o cheque em apreciação, uma vez que, sendo incontroverso que a pessoa que entregou o cheque foi FF (Nota: mesmo que se tivesse apurado que foi outra pessoa, nomeadamente, GG, a conclusão seria a mesma), não é minimamente crível que tal pessoa, ao entregar o cheque, não tenha agido a mando do arguido, uma vez que, se assim não se considerasse, ficaria por encontrar a razão lógica para tal pessoa ter procedido à entrega do cheque por sua iniciativa ou mando a terceiro que não o arguido (é caso para perguntar, qual seria o interesse de tal pessoa de entregar o cheque por iniciativa própria ou a mando de terceiro que não o arguido, quando é certo que, ao tempo da prática dos factos ora em apreço, o arguido era o gerente único das duas sociedades relacionadas com o negócio subjacente - sociedade executada na execução fiscal e sociedade proponente), sendo notório para o tribunal, quer porque o saldo da conta bancária sacada no dia 12.10.2018 era de € 1.885,85, quer porque o saldo bancário da dita conta não regista movimentação de ordem de grandeza compagináveis com o pagamento do valor em apreço, que a entrega do cheque se tratou de uma manobra dilatória, em sede da execução fiscal, com vista a retardar a venda dos imóveis penhorados propriedade da sociedade constituída sob a firma “CC”, tanto mais que, é notório que o cheque não foi pago porque a sociedade não dispunha de liquidez para o efeito, pois que se assim não tivesse sucedido, a sociedade teria regularizado o seu pagamento, após o recebimento da missiva que constitui fls. 24/25 - regularização da situação, nos termos e prazo previstos no artigo 1º-A do Decreto-Lei 454/91, de 19.11 - (situação que, efectivamente, teve lugar, contrariamente ao aduzido pela defesa do arguido em sede de alegações finais), o que não veio a suceder, conforme resulta de forma cristalinamente evidente do facto de as vendas terem sido ambas declaradas sem efeito.
 Número 12): Certificado do registo criminal do arguido que constitui fls. 219 a 221.
 Número 12-A): Declarações do arguido que, nesta parte, o tribunal considerou suficientemente credíveis.
2.1.1.3.2) Factos não provados:
 Números 13) e 14): Por se ter feito prova dissemelhante, conforme resulta, respectivamente, dos factos provados números 4) e 5).
 Números 15), 16) e 18): Ausência de prova concludente a este respeito, por não ter resultado dos meios de prova supra aduzidos, bem como do depoimento da testemunha II, que nada de relevante disse, que esta factualidade corresponda à verdade.
 Número 17): Por se ter feito prova dissemelhante, conforme resulta da conjugação dos factos provados números 2) a 4), 9) e 10).
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Recurso do arguido AA
(da nulidade da sentença por falta de fundamentação – artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP)
Basicamente sustenta o recorrente que a sentença não se mostra fundamentada porque se considerou provado o facto 7.
O art.º 374.º, n.º 2, do CPP, dispõe que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a convicção da decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Ora, na sentença recorrida, após a fundamentação de facto, com (i) a enumeração da matéria de facto provada, (ii) a indicação dos factos não provados e (iii) a fundamentação da convicção quanto à decisão de facto; segue-se a fundamentação de direito, com (iv) a subsunção dos factos ao direito, e (v) a determinação da medida concreta das penas.
O exame crítico deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizado na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada – Ac. da Relação de Lisboa, de 18.01.2011, processo n.º 1670/07.4TAFUN-A.L1-5.
Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – Ac. Relação do Porto, de 15.07.2009, processo n.º 1090/04.2JAPRT.P1.
Apreciando, diga-se que o tribunal a quo fundamentou suficientemente porque deu como provado o facto 7 (o cheque referido em 4) foi assinado pelo arguido e entregue por este, através de FF). E fá-lo especificamente na parte em que refere:
“ (…) o tribunal não valorou as declarações da testemunha FF, na parte em que disse que não foi ela quem entregou o cheque, pela simples razão de que, a testemunha EE, que nenhuma relação se demonstrou ter com o arguido ou com as duas sociedades em causa, ao contrário da testemunha FF (esta testemunha foi a anterior gerente única da sociedade constituída sob a firma “BB”, foi titular de uma quota desta sociedade até ao dia 25.07.2017, a qual foi adquirida pela sociedade constituída sob a firma “CC”), afirmou, perentoriamente, que o cheque foi entregue por FF, não vislumbrando o tribunal qualquer explicação plausível para que esta testemunha tenha faltado à verdade, ao ter feito tal afirmação, ao contrário da testemunha FF, devido ao que supra se mencionou entre parêntesis. Cumpre, igualmente, elucidar que o tribunal não valorou as declarações do arguido, na parte em que, em suma, disse nada saber sobre a situação de compra dos imóveis em causa por parte da sociedade constituída sob a firma “BB”, nem sobre o cheque em apreciação, uma vez que, sendo incontroverso que a pessoa que entregou o cheque foi FF (Nota: mesmo que se tivesse apurado que foi outra pessoa, nomeadamente, GG, a conclusão seria a mesma), não é minimamente crível que tal pessoa, ao entregar o cheque, não tenha agido a mando do arguido, uma vez que, se assim não se considerasse, ficaria por encontrar a razão lógica para tal pessoa ter procedido à entrega do cheque por sua iniciativa ou mando a terceiro que não o arguido (é caso para perguntar, qual seria o interesse de tal pessoa de entregar o cheque por iniciativa própria ou a mando de terceiro que não o arguido, quando é certo que, ao tempo da prática dos factos ora em apreço, o arguido era o gerente único das duas sociedades relacionadas com o negócio subjacente - sociedade executada na execução fiscal e sociedade proponente), sendo notório para o tribunal, quer porque o saldo da conta bancária sacada no dia 12.10.2018 era de € 1.885,85, quer porque o saldo bancário da dita conta não regista movimentação de ordem de grandeza compagináveis com o pagamento do valor em apreço, que a entrega do cheque se tratou de uma manobra dilatória, em sede da execução fiscal, com vista a retardar a venda dos imóveis penhorados propriedade da sociedade constituída sob a firma “CC”, tanto mais que, é notório que o cheque não foi pago porque a sociedade não dispunha de liquidez para o efeito, pois que se assim não tivesse sucedido, a sociedade teria regularizado o seu pagamento, após o recebimento da missiva que constitui fls. 24/25 - regularização da situação, nos termos e prazo previstos no artigo 1º-A do Decreto-Lei 454/91, de 19.11 - (situação que, efectivamente, teve lugar, contrariamente ao aduzido pela defesa do arguido em sede de alegações finais), o que não veio a suceder, conforme resulta de forma cristalinamente evidente do facto de as vendas terem sido ambas declaradas sem efeito.
Do que trata o presente fundamento do recurso não é de falta de fundamentação, mas de discordância do recorrente quanto aos meios de prova valorizados pelo tribunal a quo.
A questão do recorrente é apenas de discordância quanto à fixação da matéria de facto.
Decai este fundamento do recurso.
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(do erro notório na apreciação da prova – 410.º, n.º 2, al. c), do CPP)
Aqui diz o recorrente que há erro notório na apreciação da prova porque “no que tange à assinatura e entrega do cheque é notória e insuprível a confusão criada”
Ora, um erro notório é o erro que se vê logo - Conselheiro Sérgio Poças, Revista Julgar n.º 10, de 2010, pg. 29.
O erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art.º 410º do Cód. Proc. Penal, é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.
A existir erro notório, ele teria de ser evidente, detectável espontaneamente no texto da decisão, e resultar deste, ou do encontro deste com as regras da experiência comum. Pois o erro notório traduz-se em considerar provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).
Ora, ao contrário do que sustenta o recorrente, o texto da decisão recorrida, examinado na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam num raciocínio lógico e coerente.
É de novo o facto provado 7 que está em causa (a assinatura e entrega do cheque).
Como dissemos supra, resulta da motivação do tribunal a quo os fundamentos porque se considerou demonstrado o facto 7.
E não se vislumbra qualquer confusão. O tribunal recorrido explica porque afasta o relatório pericial (“a qualidade e quantidades das semelhanças e diferenças registadas no confronto da escrita suspeita da assinatura … com a dos autógrafos de AA, bem como as limitações referidas em Nota, não permitem obter resultados conclusivos.”, sendo que o teor da nota é o seguinte: “O exame pericial foi extremamente limitado pelo traçado ilegível, com poucas letras com formas definidas da assinatura questionada”) e porque credibiliza dos depoimentos das funcionárias da Finanças DD e EE em detrimento do que disse FF.
Ao invés do que pretende o recorrente, o erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão do julgador em relação à matéria de facto e aquela que teria sido a do recorrente. Limitando-se o recorrente a manifestar a sua discordância entre aquilo que foi dado como provado pelo Tribunal, e aquilo que ele, recorrente, teria dado como não provado, não pode sequer enquadrar-se a questão na alínea c) do nº 2 do cit. art.º 410º.
O que sabemos é que se o recorrente fosse o julgador teria fixado os factos de modo distinto.
E assim se conclui que a sentença recorrida manifestamente não enferma do vício invocado e analisado.
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(da impugnação ampla da matéria de facto)
O recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes factos:
7º) O cheque referido em 4) foi assinado pelo arguido e entregue por este, através de FF.
11º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido:
- Ao emitir o cheque acima referido, sabia que a quantia existente no banco sacado era insuficiente para o seu pagamento e que ao agir deste modo, causava um prejuízo patrimonial à Autoridade Tributária;
- Agiu de forma livre e consciente;
- Sabia que a sua conduta era proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Como é nosso dever, foi ouvida toda a prova gravada.
DD, Tesoureira da Repartição de Finanças Lisboa 1, em depoimento da sessão de julgamento de 03/05/2022, disse que: se lembra do cheque face ao elevado montante e que a instituição de crédito sacada era dos Açores; o cheque foi devolvido por falta de provisão; não sabe nem faz ideia quem entregou o cheque; recebeu o cheque ao balcão, apenas assinado, e a própria testemunha preencheu o endosso, o numerário e o extenso; preencheu o cheque com o valor do somatório das guias; não sabe quem lhe deu o cheque, se foi homem ou mulher.
EE (também conhecida por EEE), na mesma sessão de julgamento, também funcionária dauela Repartição de Finanças, disse: a entrega do cheque foi em 2018; recebeu o cheque de FF ao balcão e entregou à Tesoureira (DD); já conhecia FF há algum tempo por ser amiga de uma das suas irmãs; não se recorda se o cheque ia preenchido, mas garantidamente vinha assinado; lembra-se porque o cheque era avultado e o associou a FF; se o cheque não viesse preenchido, tinha que dar a alguém que o preenchesse; a FF terá preenchido o cheque, não se lembra, só se lembra que pelo menos estava assinado; apesar de trabalhar com a Tesoureira entre 1994 a 2019, não identifica caligrafia dela no preenchimento do cheque, não reconhece a caligrafia da Tesoureira.
O arguido AA, na sessão de julgamento de 10.05.2022, declarou: a assinatura parece a sua; nunca na vida passou um cheque sem provisão; não preencheu o cheque; tinha cheque pré assinados, não preenchidos, para emergências, que GG (seu colaborador e já falecido) tinha acesso; o cheque veio devolvido, o que soube pelo gerente bancário da sua conta, cerca de três meses depois; não foi às Finanças entregar o cheque; não faz ideia o que GG ganharia com a entrega do cheque sem provisão.
Na sessão de julgamento de julgamento de 02.06.2022, procedeu-se a uma acareação entre as testemunhas DD e EE: alterou o que inicialmente disse, não porque se tenha recordado, mas porque lhe foi dito já depois de depor em julgamento por EE, referindo agora que não recebeu o cheque ao balcão, mas que lhe foi posteriormente entregue por EE; esta testemunha (EE) manteve tudo o que disse na sessão anterior do julgamento.
Finalmente, a testemunha FF, na sessão de 11.07.2022, disse: ligada à imobiliária, trabalhava no mesmo espaço do arguido; foi gerente e tinha era dona da sociedade BB com o filho do arguido, que tem o mesmo nome do pai; em 2017 passou a quota dessa sociedade não sabe foi para o pai ou para o filho; no dia da entrega do cheque, estava com o sobrinho de EE (que conhece como EEE), de nome HH, filho de um irmã daquela, e deu uma boleia a GG, que disse que tinha que ir às Finanças entregar um cheque; deixou GG nas Finanças; não entrou nas Finanças, apenas GG.
Da circunstância da prova pericial ter sido inconclusiva não se pode retirar qualquer ilação probatória. A explicação é clara: A qualidade e quantidades das semelhanças e diferenças registadas no confronto da escrita suspeita da assinatura … com a dos autógrafos de AA, bem como as limitações referidas em Nota, não permitem obter resultados conclusivos.”; sendo que o teor da nota é o seguinte: “O exame pericial foi extremamente limitado pelo traçado ilegível, com poucas letras com formas definidas da assinatura questionada”.
O arguido admite que tinha cheques pré assinados, não preenchidos, para emergências, bem como reconhece que a assinatura é semelhante à sua.
Quanto à pessoa que foi entregar o cheque à Repartição de Finanças, temos desde logo o depoimento de FF, que diz ter ficado à porta da Repartição, por ter dado boleia a GG (colaborador do arguido), que queria entregar o cheque.
GG que já faleceu.
Depois, há que considerar o depoimento de EE (ou EEE), que disse claramente que quem entregou o cheque na Repartição de Finanças foi FF, pessoa que conhecia bem, por ser amiga de uma sua irmã. Amizade, de resto, confirmada pela própria FF, que inclusive acrescentou que estava na companhia de HH (filho dessa irmã de EEE) quando GG pediu boleia para as Finanças. EE que revelou credibilidade e foi coerente no seu depoimento. Do exposto decorre, com segurança, que foi mesmo FF quem entregou o cheque nas Finanças.
Quanto a ter sido a mando do arguido, as regras de experiência comum não deixam alternativa. A única pessoa beneficiada com a entrega deste cheque por FF (mesmo que fosse por GG) foi o arguido. Para tal basta atender aos factos provados 2º), 3º), 5º) e 6º), que o arguido não impugnou:
2º) Em sede de execução fiscal, na qual é executada a sociedade constituída sob a firma “CC”, e que correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa 2, teve lugar, por meio de leilão electrónico:
- A venda de um determinado imóvel ali penhorado, cuja venda assumiu o n.º 3247.2018.04, tendo a sociedade constituída sob a firma “BB” apresentado uma proposta de aquisição no valor de € 5.750.000,00;
- A venda de um outro imóvel ali penhorado, cuja venda assumiu o n.º 3247.2018.07, tendo a sociedade constituída sob a firma “BB” apresentado uma proposta de aquisição no valor de € 5.700.000,99.
3º) As propostas referidas em 2), por terem sido as propostas apresentadas com valor mais elevado, foram ambas aceites.
5º) No dia 12.10.2018, o arguido era gerente único da sociedade identificada em 1).
6º) No dia 12.10.2018, o arguido era gerente único da sociedade constituída sob a firma “BB”
Daqui resulta que só o arguido tinha interesse em evitar as vendas dos imóveis da CC, bem como só ele podia emitir cheques em nome e no interesse da BB.
Acresce dizer que a própria FF tem ligações à BB, pois foi anterior gerente única e sócia desta sociedade.
Tudo visto, fundamentalmente, discorda o recorrente da apreciação que o tribunal a quo fez das suas declarações e dos depoimentos produzidos em audiência.
A questão do recorrente é unicamente de discordância quanto à convicção do Tribunal. Como é evidente, quer no corpo, quer nas conclusões das motivações, o arguido limita-se a um exercício de comentário do acórdão, fazendo prevalecer a sua convicção. O que é manifestamente insuficiente face à livre apreciação do julgador.
Sobre esta questão (livre apreciação do julgador), o Supremo Tribunal de Justiça, na Acórdão de 18 de Janeiro de 2001, processo nº 3 105/2000-5 secção, sumários de Acórdãos do STJ, Boletim nº 47, considerou: (...) II — O princípio contido no art.127°, do CPP, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, já de carácter eminentemente subjectiva e que resulta da livre convicção do julgador. III — É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão. IV — Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente. (…)
O recorrente compreendeu a motivação probatória do tribunal, só não a aceita. Limita-se a se colocar no lugar do julgador – que não é – e da sua livre apreciação.
Resulta claro que a discordância do recorrente de pouco vale, porque se impõe o estatuído no artº 127º, do CPP (a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador). É uma apreciação subjectiva da prova, que resulta da imediação e da oralidade, que só seria afastada se o recorrente demonstrasse que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência. O que não é o caso. Só sabemos que o recorrente, se fosse o julgador, teria fixado os factos de modo diferente, não credibilizando o depoimento dos ofendidos.
O tribunal a quo fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no art.º 127º, do CPP. De acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, é razoável e acertado o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto. As provas existem para a decisão tomada e não se vislumbra qualquer violação de normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica). O tribunal “a quo” apreciou criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto. O recorrente não concorda. Porém, a fundamentação da convicção do Tribunal, em conjugação com a matéria de facto fixada, não revela que seja errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum. Podemos, pois, concluir, que o tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou as razões da sua convicção, de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçou uma convicção sobre a verdade dos factos. Acresce que, para além, na dúvida razoável, tal juízo há-de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
Acresce dizer que o tribunal a quo não violou a presunção da inocência do arguido recorrente. Dando como assente apenas o que fundada e justificadamente ficou provado, o tribunal a quo mais não fez do que garantir a presunção de inocência do recorrente. Só se considerou provado o que resultou certo e seguro. O raciocínio do tribunal a quo foi lógico e coerente. Deste modo conseguiu certeza e segurança na decisão de facto.
Nada mais há a dizer sobre esta matéria porque, como refere esta Relação, no acórdão de 01.02.2011, processo n.º 153/08.0PEALM.L1-5, www.dgsi.pt, “ o princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica, traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, mas não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais, pois em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, deve o aplicador do direito recorrer às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui”. Trata-se, assim, de uma questão relativa à matéria de facto, porém, como vimos, no caso concreto não se vislumbra dúvida na apreciação dos meios de prova e consequente factualidade apurada.
A circunstância de haver versões opostas não significa que o tribunal, sem mais, decida pro reo, pois o aqui se exige é uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166.
Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio – Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265, citado no Ac. do TRC de 09.03.2016, processo n.º 436/14.0GBFND. De cujo aresto, se retira ainda o seguinte: “Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, como salienta Carrington da Costa, Psicologia do Testemunho, in Scientia Juridica, p.337, advertindo para que «todo aquele que tem a árdua função de julgar, fuja à natural tendência para considerar a concordância dos testemunhos como prova da sua veracidade», devendo antes ter-se sempre bem presente as palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se”.
O que resulta do texto da decisão recorrida é uma decisão bem fundamentada, em que se explica porque se opta por determinados meios de prova (testemunhal e documental), não se vislumbrando qualquer dúvida razoável na apreciação do julgador.
Andou bem o tribunal o quo na decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se inalterada a factualidade apurada.
Decai este segmento do recurso.
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(da absolvição do crime em que foi condenado)
Este fundamento do recurso mostra-se prejudicado por se manter inalterada a factualidade apurada.
Vejamos os seguintes factos provados:
4º) No dia 12.10.2018, para pagamento de 1/3 dos valores das propostas referidas em 2), foi entregue, na Autoridade Tributária - Serviço de Finanças de Lisboa1, sito na ..., em Lisboa, à ordem da Autoridade
Tributária - IGCP, EPE, o cheque n.º ..., no valor de € 3.816.667,00, sacado da conta bancária identificada em 1).
7º) O cheque referido em 4) foi assinado pelo arguido e entregue por este, através de FF.
8º) No dia 12.10.2018, a conta bancária identificada em 1) não dispunha de fundos disponíveis para pagar o cheque referido em 4).
9º) O cheque referido em 4) foi apresentado a pagamento no dia 17.10.2018, no balcão do Banco Espírito Santo, em Lisboa, tendo sido devolvido pelos serviços de compensação do Banco de Portugal, no dia 18.10.2018, sem ser pago, com fundamento em falta/insuficiência de provisão na conta do sacador, encontrando-se a menção a esta situação no verso do cheque.
10º) Em decorrência do não pagamento referido em 4), foi proferido despacho a determinar sem efeito as duas vendas referidas em 2), ao proponente sociedade constituída sob a firma “BB”, tendo sido aceites as propostas de valor imediatamente inferior, apresentadas pelo “Banco Comercial Português, S.A.”, respectivamente, nos valores de € 5.658.319,00 e € 5.066.454,00, cuja adjudicação dos imóveis veio a ter lugar.
11º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido:
- Ao emitir o cheque acima referido, sabia que a quantia existente no banco sacado era insuficiente para o seu pagamento e que ao agir deste modo, causava um prejuízo patrimonial à Autoridade Tributária;
- Agiu de forma livre e consciente;
- Sabia que a sua conduta era proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Do exposto são óbvios todos os elementos para a condenação do arguido pelo crime de cheque sem provisão.
Improcede este fundamento do recurso.
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(da medida da pena)
Não é certo dizer que o tribunal a quo não curou de ordenar a realização de um relatório social ao arguido, para apurar as suas condições pessoais, sociais e económicas. Fê-lo, só que tal não foi possível, como informa a DGRSP em 26.04.2024: “Em resposta à solicitação de V. Ex.ª, informa-se que não foi possível proceder à elaboração do relatório social, porquanto o arguido AA não compareceu na entrevista para que foi convocado através de convocatória remetida por via postal para a morada dos autos. Revelaram-se também infrutíferas as tentativas em convocá-lo telefonicamente pois o número de telefone de que dispomos não se encontrava ativo.”
Acresce dizer que, em julgamento, o tribunal obteve elementos da situação pessoal, social e económica do arguido, nomeadamente: Vive, a espaços, na habitação da sua companheira, com a mesma; Actualmente, não dispõe de qualquer fonte de rendimento própria, sendo seu sustento assegurado por amigos; não é titular de qualquer bem de valor relevante; tem três filhos (42, 49 e 51 anos de idade); tem como habilitações literárias, o 6º ano de escolaridade.
Vejamos a convicção do tribunal a quo quanto à medida da pena:
“Apurado é que o arguido praticou um crime de emissão de cheque sem provisão, nos moldes supra explanados.
O crime de emissão de cheque sem provisão, na variante praticada pelo arguido, é punido com pena de prisão a graduar entre 1 mês e 5 anos ou, em alternativa, com pena de multa a graduar entre 10 e 600 dias (artigos 41º, n.º 1, 47º, n.º 1, ambos do Código Penal e 11º, n.º 1, alínea a), parte final, do Decreto-Lei 454/91, de 28.12).
Dispõe o artigo 70º do Código Penal:
“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
No caso em apreço, se é certo que, ao tempo da prática dos factos ao arguido apenas era conhecida uma condenação pela prática dos três primeiros crimes elencados no facto provado correspondente e que estes crimes são todos de natureza diversa do crime ora em apreço, igualmente é certo que, o valor do cheque em causa ultrapassa em cerca de 760 vezes o valor previsto para um cheque de valor elevado, pelo que, sendo este o valor que determina a tipicidade do crime, e não o valor do real prejuízo que adveio no não cumprimento da relação subjacente, e sendo o grau de ilicitude do facto elevadíssimo, e não tendo ocorrido qualquer reparação do prejuízo em causa e sendo as necessidades de prevenção geral deste ilícito elevadíssimas, uma vez que se trata de um crime muito frequente, entende-se que apenas uma pena privativa da liberdade realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
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2.2.3) Determinação da medida da pena:
Na determinação da pena aplicável, deve-se recorrer aos critérios fornecidos pelos artigos 40º e 71º, ambos do Código Penal.
O primeiro normativo determina, nos seus números 1 e 2:
“1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração na sociedade.
2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da pena.”.
O segundo artigo estabelece:
“1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Expostos os critérios para determinação da medida da pena cumpre cotejá-los com a factualidade provada.
Quanto ao grau de ilicitude do facto e suas consequências, é o mesmo de sobremaneira elevado, pois, se bem que se esteja perante interesses jurídicos indisponíveis, dado que no crime de cheque sem provisão, para além da tutela do interesse patrimonial do portador, o interesse protegido principalmente é o da circulação do título como meio de pagamento, a verdade é que os factos provados atestam que além do desvalor da acção (lesão dos enunciados interesses) se une o desvalor do resultado.
O dolo, porque directo (artigo 14º, n.º 1, do Código Penal), é de intensidade elevada.
Não se vislumbra qualquer circunstância que milite a favor do arguido:
Contra, as condenações criminais descritas no facto provado correspondente.
As exigências de prevenção geral deste tipo de crime são elevadíssimas, face à proliferação de múltiplos casos de emissão de cheques sem provisão, situação que facilmente qualquer cidadão constata, bastando, para tanto, quando vai às compras reparar nos avisos que as lojas colocam nas imediações dos seus locais de pagamento (não se aceitam cheques como forma de pagamento ou similares), pelo que existe a necessidade de um urgente reforço da consciência jurídica comunitária face à violação deste ilícito penal.
Quanto às exigências de prevenção especial, não estão demonstradas quaisquer circunstâncias que façam temer pela repetição de actos semelhantes.
Pelo exposto, entende-se adequada a satisfazer as necessidades de punição, uma pena de 2 anos e 2 meses de prisão.”
A medida da pena, segundo os seus fins, tem como limiar mínimo a expectativa comunitária na validade (e reforço) das normas penais violadas. É a protecção dos bens jurídicos, a prevenção geral positiva. No lado oposto, como limite máximo, a culpa do arguido, assenta num juízo de censura sobre a conduta do arguido reflectida no facto criminoso praticado. E, finalmente, o pendor da pena, mais acima ou mais abaixo, está na denominada prevenção especial, na reintegração do agente (que não tem tanto a ver com as suas relações sociais, se tem família ou amigos, mas sobretudo se é expectável que seja um cidadão fiel ao direito). Se são mínimas as exigências de prevenção especial, a medida da pena baixa; e sobe quando são maiores tais exigências.
O montante do cheque sem provisão de € 3.816.667,00 eleva desde logo as exigências da prevenção geral, centrada nas expectativas da comunidade na validade e reforço das normas violadas. As circunstâncias do caso concreto trazem para acima da média as especiais cautelas com a representação comunitária da protecção e reforço da norma violada.
O juízo de censura (a culpa) devido à actuação dolosa (dolo directo) do arguido é igualmente relevante. O juízo de censura do arguido não pode deixar de ser considerado acentuado.
E, quanto à prevenção especial, estão também presentes especiais exigências. Só para satisfazer os seus interesses, o arguido não deixou de emitir um cheque sem provisão de valor, como se refere na sentença recorrida, de 760 vezes o previsto para um cheque de valor elevado.
A conduta do arguido prevê a punição, em alternativa, em prisão ou em multa. O critério de escolha é-nos dado pelo art.º 70.º do Código Penal.
Face ao exposto, e tendo desde logo em consideração as finalidades preventivas, afigura-se-nos não ser suficiente a aplicação de uma pena de multa, porquanto a mesma não realiza os limiares mínimos de prevenção geral da defesa da ordem jurídica, posta em causa pelo comportamento desviante do arguido (cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 02.07.2008, processo nº 2793/2008-3, dgsi.pt). Como também é evidente que as ponderadas exigências quanto à culpa afastam a pena de multa.
O arguido foi, e bem, condenado em pena de prisão, embora suspensa na sua execução.
Ora, afastada a pena de multa pelos motivos expostos, resta declarar, sem mais, a total improcedência do recurso do arguido AA.
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Recursos do Ministério Público
Parte cível:
(deve também a sociedade “CC” ser condenada a pagar à Fazenda Nacional a quantia de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), bem como juros vencidos e vincendos até final, sendo a mesma solidariamente responsável pelo pagamento das multas, custas e indemnizações abrangidas pela condenação, conforme preceituado no art.º 11.º, n.º 4, do D.L. n.º 454/91, de 28/12)
Mostra-se verificado o pressuposto de consumação do crime de emissão de cheque sem provisão, que se traduz na existência de prejuízo patrimonial para o beneficiário (a Autoridade Tributária - IGCP, EPE) do cheque, porquanto ocorreu uma diminuição do património desta entidade pública decorrente da emissão e colocação no comércio jurídico do cheque sem cobertura em causa nos autos. Na verdade, está provado que a beneficiária ficou desembolsada do montante correspondente ao valor inscrito no cheque que lhe foi entregue, em sede de execução fiscal, para aquisição de imóveis pertencentes à sociedade constituída sob a firma “CC”.
Tendo então como assente que o demandando praticou o crime de emissão de cheque sem provisão referido na acusação, resta então aferir se os elementos da responsabilidade civil por factos ilícitos se mostram verificados (…) - a ilicitude: que consistiu no facto de o demandando ter entregue ao demandante o cheque em causa nos autos, sem que o mesmo tivesse sido pago por falta de provisão, tendo ainda em conta que o demandando conhecia esse facto e actuou do modo como o fez.
Vejamos se há acto ilícito.
O cheque traduz um mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada – art.º 1 LUCh.
O cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem a pagar à vista a soma nele inscrita – cfr. Ferrer Correia/António Caeiro, Revista de Direito e Economia, ano IV, nº 2 Julho/Dezembro de 1978 – 457.
O facto do agente é ilícito quando viola um direito de outrem (os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas ou direitos reais, os direitos da personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual) e viola a lei que protege interesses alheios (infracção de leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respectivos titulares um direito subjectivo a essa tutela, e de leis que, tendo também ou até principalmente em vista a protecção de interesse colectivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes, de indivíduos ou grupo de pessoas).
A norma do artigo 11º, nº 1, al. a), do D.L. nº 454/91 de 28/12, protege os interesses do portador do cheque.
Como se refere no acórdão deste Relação de Lisboa – processo nº 7153/2006-5, de 19.12.2006, dgsi.pt – “constitui prejuízo a frustração do direito do portador do cheque de receber, na data da sua apresentação a pagamento, a quantia a que tem direito em razão de uma obrigação subjacente ao cheque, de que é credor e para cujo pagamento o cheque serviu.
Prejuízo que, como referimos supra, está consumado no caso sub judice.
Ao preencher todos os elementos do tipo do crime de emissão de cheque sem provisão, como bem descreve a primeira instância, dúvidas não existem de que o demandado violou uma norma legal que protege interesses alheios, e assim praticou um facto ilícito.
De resto, o pedido de indemnização cível em processo-crime funda-se em responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, sendo o facto ilícito a violação da norma incriminatória, sempre protectora de bens jurídicos alheios. Ao emitir o cheque sem provisão, o arguido violou uma norma destinada à protecção dos interesses dos portadores dos cheques, assim praticando um facto ilícito.
Prosseguindo.
A conduta do arguido beneficiou a sociedade CC”. Porque os seus imóveis não foram de imediato vendidos no processo de execução. Como bem refere o tribunal a quo: “a entrega do cheque se tratou de uma manobra dilatória, em sede da execução fiscal, com vista a retardar a venda dos imóveis penhorados propriedade da sociedade constituída sob a firma “CC”.
E à data da emissão do cheque, dia 12.10.2018, o arguido era gerente único da identificada sociedade. Acresce dizer que o cheque n.º ... foi sacado da conta bancária n.º ..., do Banco Millennium BCP, titulada pela sociedade constituída sob a firma “CC”.
Do exposto decorre que o arguido cometeu o ilícito criminal em nome e nos interesses da “CC”.
Pelo que tem razão o MP, também a sociedade “CC” tem que ser condenada a pagar à Fazenda Nacional a quantia de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos), bem como juros vencidos e vincendos até final, sendo a mesma solidariamente responsável pelo pagamento das multas, custas e indemnizações abrangidas pela condenação, conforme preceituado no art.º 11.º, n.º 4, do D.L. n.º 454/91, de 28/12.
Montante que resulta da diferença entre a quantia titulada no cheque e as propostas aceites de valor imediatamente inferior, apresentadas pelo “Banco Comercial Português, S.A.”, respectivamente, nos valores de € 5.658.319,00 e € 5.066.454,00, cuja adjudicação dos imóveis veio a ter lugar.
Procede este fundamento do recurso.
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Parte criminal:
(não concorda o Ministério Público do doutamente decidido respeitante ao montante fixado como condição de suspensão da execução da pena conta do prejuízo que a ação delituosa gerou, da quantia total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), por entender que, face aos factos provados, tal montante deverá ser equivalente ao montante do prejuízo em que o arguido foi condenado no Pedido de Indemnização Civil, € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos)
O arguido AA foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, na condição (dever previsto no artigo 51º, n.º 1, alínea a), do Código Penal) de entregar, no aludido prazo, à Autoridade Tributária, por conta do prejuízo que aquela acção delituosa gerou, a quantia total de € 500.000,00 (quinhentos mil euros).
Sustenta o recorrente MP que a condição deve ser o pagamento do montante do prejuízo causado pela conduta criminosa do arguido, isto é € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euros e noventa e nove cêntimos) e não apenas € 500.000.
E com razão.
Não se vislumbra qualquer fundamento para a decisão do tribunal a quo.
A condição da suspensão da execução deve ser no montante do prejuízo causado pelo arguido.
O arguido sempre foi empresário, emitiu este cheque de valor elevadíssimo no âmbito de aquisições nos montantes de € 5.750.000,00 e de € 5.700.000,99, pelo que carece de fundamento dizer que a condição de suspensão não pode ser equivalente à do prejuízo.
Face às propostas em causa, aos montantes envolvidos e à vida empresarial do arguido, não se pode concordar que o pagamento de € 725.136,99 represente uma obrigação cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir.
Nesta medida, também procede o recurso criminal do Ministério Público, mostrando-se prejudicada, com esta decisão, a invocada nulidade do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
1 - Negar provimento ao recurso do arguido AA, declarando-o totalmente improcedente.
2 – Julgar totalmente procedente os recursos cível e criminal interposto pelo Ministério Público e, em sequência:
A- Julga-se o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, contra a sociedade comercial com a firma “CC”, parcialmente procedente e, em consequência, condena-se esta a pagar, solidariamente com o arguido AA e a sociedade comercial com a firma “BB”, àquele (Estado Português), a título de indemnização civil por danos patrimoniais, a quantia de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euro se noventa e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista na portaria a que alude no artigo 559º do Código Civil (Portaria 291/03, de 08.04, que fixa em 4% a taxa dos juros legais e dos estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo), contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e demandantes cíveis de todo o demais contra si peticionado.
B) Condena-se o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos do artigo 11º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei 454/91, de 19.11, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, na condição de entregar, no aludido prazo, à Autoridade Tributária, o prejuízo que aquela acção delituosa gerou, a quantia total de € 725.136,99 (setecentos e vinte e cinco mil e cento e trinta e seis euro se noventa e nove cêntimos).
Custas pelo recorrente AA, por ter decaído o seu recurso, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UCs.
Custas do pedido cível, no valor fixado pelo tribunal a quo (em 18,99%) em pagamento solidário entre o arguido/demandado AA e as demandadas “CC” e “BB”

Lisboa, 22 de Outubro de 2024
Paulo Barreto
Ana Cristina Cardoso
Ana Lúcia Gordinho