Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA MARISA ARNÊDO | ||
Descritores: | RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA INADMISSIBILIDADE DO RECURSO DA DECISÃO DE CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO ARTIGO 73º N.º 1 E 2 DO R.G.C.O. | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | I. Com as alterações introduzidas ao C.P.P. pela Lei n.º 48/2007, no que ao paradigma dos recursos respeita, o legislador eivado do objectivo de racionalizar o funcionamento dos tribunais superiores, maxime promovendo uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular, determinou um funcionamento dos tribunais de recurso em trinómio - decisões da competência do relator, em conferência e em audiência - e sem que se verifique uma qualquer relação hierárquica entre estes níveis de decisão (entre si diferenciados e independentes). II. Assim sendo, e no que concerne à possibilidade de reclamação para a conferência das decisões do relator, dir-se-á que, por natureza e definição, assumindo-se tal procedimento como meio de controlo da legalidade da decisão sumária proferida (e não como direito a uma dupla apreciação do recurso), não se bastará com a mera manifestação de discordância do recorrente e/ou com a reiteração dos fundamentos aduzidos no recurso interposto. Ao invés, imporá uma motivação nova, com argumentário concretamente dirigido à decisão sumária prolatada. III. A decisão administrativa em crise – cassação do título de condução a que alude o art.º 148º do Código da Estrada – e que foi impugnada judicialmente na primeira instância, não se mostra inserida num qualquer processo de natureza contra-ordenacional. Na verdade, o legislador tipificou, para o efeito, no art.º 148º do Código da Estrada, um procedimento administrativo autónomo. IV. Como é sabido, está em causa a possibilidade de cassação do título de condução, no arquétipo legal vulgarmente designado de sistema de pontos e cassação do título de condução. V. Nesta senda, adita a evidência de que o instituto da cassação do título de condução não é, de todo em todo, subsumível ao de pena acessória, figurando-se, antes, como mera decorrência/consequência, especial e legalmente prevenida, de condenações, transitadas em julgado, pela prática de contraordenações graves e/ou muito graves, e/ou de crimes no espectro rodoviário. VI. E é no respaldo deste aporte argumentativo e, derradeiramente, perante a inferência de não estar em causa decisão administrativa que tenha tomado conhecimento de ilícito contraordenacional e/ou em que tenha sido aplicada coima ou sanção acessória, que vem sendo entendido na jurisprudência que, nestes casos, não é, nos termos previstos no citado art.º 73º, n.º 1, al. a) a c) do RGCO, legalmente possível o recurso para o Tribunal da Relação. VII. No caso, como resulta da reclamação apresentada, o recorrente, embora conceda que o recurso é inadmissível à luz do art.º 73º, n.º 1 do R.G.C.O., roga, agora, a sua admissibilidade com amparo no disposto no n.º 2 do citado normativo legal. VIII. Porém, no caso, tal como se refere expressamente na decisão sumária reclamada, não se vislumbra da motivação do recurso e/ou das conclusões recursivas, da resposta e/ou do parecer aduzidos que tenha sido invocada, por algum dos sujeitos processuais, a necessidade de aceitação do recurso da sentença proferida em vista da melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. IX. Ante o exposto, outra solução não resta senão a de se concluir que o ora reclamante só a destempo veio alavancar a admissibilidade excepcional/extraordinária do recurso, nos termos do citado n.º 2 do art.º 73.º do R.G.C.O., pelo que o recurso é indelevelmente inadmissível, tal qual decidido. (Sumário da responsabilidade da relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO 1. O Presidente da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária, por decisão proferida em 19 de Janeiro de 2022, determinou, nos termos do artigo 148º, n.º 4, alínea c) do Código da Estrada, a cassação da carta de condução n.º L-…. pertencente ao arguido, AA, com residência na ..., Odivelas. 2. Desta decisão foi interposto recurso de impugnação pelo arguido AA, no qual foram, em síntese, invocadas: - A nulidade da decisão; - A prescrição das contraordenações a que se referem os processos de contraordenação n.º ..., ... e ... - A necessidade da carta de condução na sua vida profissional. 3. Por sentença prolatada em 19 de Fevereiro de 2024, a Sra. Juíza julgou improcedente o recurso interposto e manteve na íntegra a decisão administrativa recorrida. 4. Desta sentença, foi interposto pelo arguido recurso. Extraiu da respectiva motivação as seguintes conclusões: «I. Por Decisão Administrativa datada de 14/02/2022 foi determinada a cassação do título de condução do Arguido-Recorrente no âmbito do procedimento de cassação como o n. º …/2020. II. Por entender ser a mesma ilegal e nula, veio, a 26/09/2022 o Arguido-Recorrente apresentar a sua IMPUGNAÇÃO JUDICIAL junto ao Tribunal a quo, o qual por Sentença proferida a 19/02/2024 manteve na íntegra a decisão administrativa recorrida (“Sentença”). III. Por não se conformar com a Sentença, vem da mesma o ora Recorrente interpor Recurso para V. Exas, por entender esta violar o disposto pelos nos artigos 30.º n.º 1, 32.º e 267.º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e arts. 46.º e 50.º do RGCO, bem assim como por entender estar o processo em causa prescrito. IV. Quanto à primeira questão suscitada pelo Recorrente, o Tribunal a quo entende que as notificações constantes dos autos são válidas, fazendo assim, a nosso entender uma errada a interpretação e aplicação do art.º 176.º do CE, atinente às regras da notificação. V. Porquanto, a segurança jurídica, a democratização processual e a tutela jurisdicional efetiva impõe limites processuais à atuação da autoridade administrativa, nomeadamente no âmbito do processo contraordenacional, desde logo por força do art.º 41.º n.º 2 do RGCO. VI. Assim, existindo nos autos, e resultando da própria Sentença que a autoridade administrativa sabia ou devia saber, que o arguido por facto que não lhe é imputável não foi notificado – uma vez que as cartas registadas enviadas foram devolvidas com a indicação de “desconhecido” (cfr. fls. 12, 17, 27, 47 e 67, relativamente aos processos de contraordenação nº …217, …417, …830 e …850), é inimaginável à luz do princípio do contraditório fazer-se presumir a notificação do arguido pelo simples envio posterior de carta simples. VII. Ora, não tendo o Tribunal a quo nos casos em concreto e face à prova documental junta aos autos declarado a nulidade das notificações por aplicação do art.º 119.º al. c) do CPP, ex vi art.º 41.º n.º1 do RGCO, nos termos do art.º 122.º do CPP, nem sequer entendido pela sua irregularidade nos termos do art.º 123.º do CPP a decisão em causa proferida viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1 da e 267.º, nº 5 da CRP. VIII. Sem conceder, tendo em conta que estamos perante um processo administrativo, autónomo, de cassação da carta de condução, sujeito, inevitavelmente, a prazo prescricional sob pena de violação do consagrado no art.º 30º nº 1 da CRP, a que atender ao disposto no art.º 188.º n.º 1 do CE. IX. Isso porque nunca se poderia contar o prazo previsto art.º 188º, nº 1 do CE a partir da data da prática da contraordenação e dado que o único pressuposto legal para a aplicação do procedimento de cassação é a perda da totalidade de pontos pelo condutor, para efeito da aplicação do prazo a que alude o art.º 188.º n.º1 do CE entendemos que a perda total de pontos tornou-se definitiva a partir da data em que se tornou definitiva a condenação no âmbito do processo de contraordenação nº ..., ou seja, a partir de 05/10/2019. X. Assim, e tendo a prescrição do procedimento, por aplicação do disposto nos art.º 28.º n.º 3 e 27.º-A RGCO, lugar decorridos que sejam 3 anos e 6 meses constatamos que no caso concreto já decorrera 4 anos e mais de 4 meses. XI. Por outras palavras, o procedimento em causa já havia 05/04/2023, mesmo antes ainda da instrução do conflito de competência a 17/05/2023. XII. Portanto, e sendo a prescrição que se invoca de conhecimento oficioso, deverá ser esta declarada nos presentes autos, em cumprimento dos art.º 28.º n.º 3 e 27.ºA RGCO. XIII. Contrariamente ao afirmado na Douta Decisão Administrativa, o Arguido não foi notificado de quaisquer processos de contraordenação instaurados contra este, nos termos dos artigos 172.º, 175.º e 176.º do Código da Estrada. XIV. O Arguido, ora Recorrente, apenas foi notificado do projeto de decisão da cassação do seu título de condução, por quanto, nem sequer recebeu quaisquer notificações referentes às decisões administrativas condenatórias que servem de base à subtração de pontos. XV. Assim, as afirmações constantes da Douta Decisão são manifestamente inverdadeiras, e demonstram que a Entidade Administrativa ou se desobrigou a realizar ato que lhe era imposto ou deixou de analisar com a devida atenção os presentes autos. XVI. Assim, a Entidade administrativa em causa, violou o art.º 181.º do CE e 50.º do RGCOC. DO PEDIDO Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a Sentença recorrida, substituindo-a por outra que reconheça e declare a prescrição do procedimento objeto do presente recurso ou, caso assim não seja entendido por V. Exas, revogue a decisão de cassação proferida pela autoridade administrativa em causa por nula e ilegal.» 5. O recurso foi admitido, por despacho de 6 de Março de 2024. 6. O Ministério Público em primeira instância respondeu ao recurso. Apartou da motivação as seguintes conclusões: «1. Inconformado, veio o arguido interpor recurso da sentença proferida em 19-02- 2024, alegando, em síntese: .i) que, “resultando da própria Sentença que a autoridade administrativa sabia ou devia saber, que o arguido por facto que não lhe é imputável não foi notificado – uma vez que as cartas registadas enviadas foram devolvidas com a indicação de “desconhecido” (…), é inimaginável à luz do princípio do contraditório fazer-se presumir a notificação do arguido pelo simples envio posterior de carta simples”, pugnando por que, “não tendo o Tribunal a quo nos casos em concreto e face à prova documental junta aos autos declarado a nulidade das notificações por aplicação do art.º 119.º al. c) do CPP, ex vi art.º 41.º n.º 1 do RGCO, nos termos do art.º 122.º do CPP, nem sequer entendido pela sua irregularidade nos termos do art.º 123.º do CPP a decisão em causa proferida viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1 da e 267.º, nº 5 da CRP”, respeitantes às garantias de defesa em processo criminal e em processos promovidos pelas autoridades administrativas, e “a Entidade administrativa em causa, violou o art.º 181.º do CE e 50.º do RGCOC”, respeitantes aos direitos de audição e defesa do arguido, designadamente para efeitos das decisões condenatórias de que seja sujeito, no âmbito contra-ordenacional; e .ii) que, “tendo em conta que estamos perante um processo administrativo, autónomo, de cassação da carta de condução, sujeito, inevitavelmente, a prazo prescricional sob pena de violação do consagrado no art.º 30º nº 1 da CRP, a que atender ao disposto no art.º 188.º n.º 1 do CE”, “[i]sso porque nunca se poderia contar o prazo previsto art.º 188º, nº 1 do CE a partir da data da prática da contraordenação e dado que o único pressuposto legal para a aplicação do procedimento de cassação é a perda da totalidade de pontos pelo condutor, para efeito da aplicação do prazo a que alude o art.º 188.º n.º 1 do CE entendemos que a perda total de pontos tornou-se definitiva a partir da data em que se tornou definitiva a condenação no âmbito do processo de contraordenação nº ..., ou seja, a partir de 05/10/2019”, termos em que, “tendo a prescrição do procedimento, por aplicação do disposto nos art.º 28.º n.º 3 e 27.º-A RGCO, lugar decorridos que sejam 3 anos e 6 meses”, “o procedimento em causa já havia 05/04/2023”. 2. Com o devido respeito, a douta Sentença recorrida fez, no entendimento do Ministério Público, uma correcta avaliação e decisão da matéria de facto, à qual aplicou o adequado Direito. 3. Da alegada violação do direito de audição e das garantias de defesa do arguido por nulidade ou irregularidade nas notificações, sendo por demais evidente o esforço, inconseguido, do Recorrente em fazer aplicar ao caso concreto o disposto nos artigos 119.º, 122.º e 123.º do Código de Processo Penal, por via do disposto no artigo 41.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, é consabido e bem o sabe o Recorrente, e tanto sabe que lhe faz apelo, que ao caso concreto se aplica a norma especial, com todas as suas prescrições, prevista no artigo 176.º do Código da Estrada, quanto às regras aplicáveis relativamente às notificações efectuadas no âmbito do respectivo procedimento, por se tratarem de contra-ordenações de natureza estradal, por observância do princípio lex specialis derogat legi generali (vide, v.g., o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-07-2018 (Fátima Furtado)). 4. Verifica-se, pois, talqualmente posto na motivação da decisão sub judice, e facilmente se o faz, que, em todos os processos de contra-ordenação em referência (os com os n.º 996338217, n.º 994572417, n.º ..., n.º 991943830, n.º ..., n.º 991612850 e n.º ...), a autoridade administrativa tentou efectuar a notificação do arguido para pagamento voluntário da coima e apresentação de defesa, o que fez nos termos do artigo 176.º, n.º 5 do Código da Estrada, através de carta registada com aviso de recepção, expedida para o seu domicílio, a qual foi devolvida com a indicação de “desconhecido”, e, uma vez isso, deu cumprimento ao disposto no n.º 6 do mesmo artigo, re-enviando a notificação para o domicílio do arguido através de carta simples, pelo que a notificação se considerou efectuada, em cada um dos casos, decorrido o prazo prescrito pela al. b) do n.º 9 sempre do mesmo artigo e diploma legal. 5. O mesmo procedimento foi adoptado pela autoridade administrativa no que diz respeito à notificação das decisões nos processos contra-ordenacionais supra referidos, sendo que as notificações por carta registada resultaram todas infrutíferas, tendo sido concretizadas através de expedição de carta simples. 6. Como tal, considerando-se, como se deve, que ao caso concreto se aplica a norma especial, com todas as suas prescrições, prevista no artigo 176.º do Código da Estrada, quanto às regras aplicáveis relativamente às notificações efectuadas no âmbito do respectivo procedimento, por se tratarem de contra-ordenações de natureza estradal, por observância do princípio lex specialis derogat legi generali, impõe-se reconhecer que nenhuma nulidade ou irregularidade nos procedimentos de notificação, e, assim, nenhuma violação do direito de audição e das garantias de defesa do arguido, logo, nenhuma violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 1 e 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa ou dos artigos 181.º do Código da Estrada ou 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, se logra identificar. 7. E, da alegada prescrição do procedimento de cassação, por aplicação do disposto nos artigos 188.º, n.º 1 do Código da Estrada e 28.º, n.º 3 (e 27.º-A) do Regime Geral das Contra-Ordenações, em causa está a cassação do título de condução como medida administrativa, consequência do estabelecimento de um sistema de pontos, da subtracção de pontos ao condutor pela prática de contra-ordenações estradais e quando se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor, prevista pelo artigo 148.º do Código da Estrada, que é coisa diversa do procedimento por contra-ordenação rodoviária ou de qualquer coima ou sanção acessória. 8. Assim que, na jurisprudência, “[a] perda de pontos não é uma coima, nem uma sanção acessória, não lhe sendo aplicável os artigos 188.º e 189.º do Código da Estrada” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-10-2021 (Jorge Gonçalves)). 9. Pelo mesmo, também o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-03- 2021 (Berguete Coelho): “A cassação da carta nos termos do art.º 148º, nºs 2 e 4, al. c) do Código da Estrada (cassação da carta por virtude de condenações em pena acessória de proibição de conduzir) não se trata de um procedimento por contraordenação rodoviária, nem mesmo de uma sanção acessória, pelo que não se mostra aplicável o prazo de prescrição de dois anos previsto no art.º 188º, nº 1, do mesmo Código.”. 10. E, portanto, impõe-se que se considere que não ocorreu prescrição do procedimento ou da medida administrativa da cassação do título de condução. Termos em que pugna o Ministério Público por que seja negado provimento ao recurso, e integralmente mantida a decisão recorrida» 7. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, remetendo para as razões aduzidas na resposta apresentada na primeira instância. 8. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P., veio o arguido/recorrente invocar, ainda, que: «1.º Em síntese, em sua resposta ao recurso interposto pelo Arguido, vem o Ministério Público junto da 1ª Instância, concluir que: I. “Nenhuma nulidade ou irregularidade nos procedimentos de notificação, e, assim, nenhuma violação do direito de audição e das garantias de defesa do arguido, logo, nenhuma violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 1 e 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa ou dos artigos 181.º do Código da Estrada ou 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações” uma vez que na sua acessão “ao caso concreto se aplica a norma especial, com todas as suas prescrições, prevista no artigo 176.º do Código da Estrada, quanto às regras aplicáveis relativamente às notificações efectuadas no âmbito do respectivo procedimento, por se tratarem de contra-ordenações de natureza estradal, por observância do princípio lex specialis derogat legi generali“ II. “não ocorreu prescrição do procedimento ou da medida administrativa da cassação do título de condução”, por se entender que se trata de uma medida administrativa pelo que não se mostra aplicável o prazo de prescrição disposto nos artigos 188.º, n.º 1 do Código da Estrada e 28.º, n.º 3 (e 27.º-A) do Regime Geral das Contra-Ordenações. Face à primeira conclusão apresentada pelo MP junto da 1ª Instância cumpre esclarecer que o Recorrente não coloca em causa, em sede de Recurso, que a Recorrida – ANSR – Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – tenha procedido em conformidade com o disposto no art.º 176.º do Código da Estrada. O que o Recorrente conclui é que a simples observância de tal disposição legal, não é, nem pode ser, suficiente para que se considere que as notificações dos autos em causa sejam consideradas válidas e consequentemente suscetíveis de produzir os efeitos próprios de tais notificações. A notificação tem como objetivo primordial dar a conhecer determinado facto ou ato ao interessado, sendo certo que o simples cumprimento dos formalismos legais impostos não necessariamente consubstancia ter existido um conhecimento efetivo do facto ou ato por parte do notificado. Certo é que as regras da notificação não são imperativas, desde logo, porque como bem sabemos, admitem prova em contrário. Bem assim como, e naturalmente se entende, as regras da notificação não se sobrepõem aos princípios constitucionalmente consagrados no nosso ordenamento jurídico, que compõem as mais básicas e basilares regras do Estado de Direito. Esta constatação é reiteradamente referenciada pela jurisprudência, mais concretamente pelo Tribunal Constitucional, que à luz do princípio constitucional da proibição da indefesa, entende que “a questão da suficiência das citações ou notificações postais não se esgota na existência e acessibilidade a um domicílio pelos serviços, tornando-se indispensável que as formalidades da notificação postal ofereçam garantias mínimas e razoáveis de segurança e de fiabilidade (…)” Lembrando que a Recorrida é uma entidade administrativa pública e como tal sobre ela impele um dever de cuidado/dever acrescido, na medida em que, ao atuar, tem de ter em consideração os interesses legalmente protegidos dos particulares com quem interage, e a quem se dirige. Neste sentido, o Tribunal Constitucional vai mais longe, entendendo que no que toca à Administração Pública o dever de notificar tem conteúdo obrigatório. É então claro que as notificações as quais o Ministério Público teve o cuidado de identificar de forma tão discriminada não são válidas, e não porque houve incumprimento do preceituado no art.º 176.º do Código da Estrada, mas sim porque, não obstante o cumprimento, houve violação dos princípios da segurança jurídica, da democratização processual e da tutela jurisdicional efetiva. Conforme é alegado em sede de Recurso, a Recorrida sabia – ou devia saber – que o Recorrente, por facto que não lhe é imputável, não chegaria a ter conhecimento do facto ou ato que lhe era por Direito de conhecer. Face à segunda conclusão apresentada, ao contrário do que induz a resposta do Ministério Público junto da 1ª Instância ao Recurso em causa, o Recorrente não discorda da interpretação de que estamos perante um procedimento/processo de natureza administrativa. O que distingue a posição do Recorrente da adotada pela Digma Procuradora da República é a aplicabilidade do art.º 188.º do Código da Estrada. No nosso entendimento, independentemente da sua natureza o procedimento/processo de cassação da carta de condução, tem de estar sujeito a um prazo prescricional. Como tal, Inexistindo resposta por parte do legislador nos termos do art.º 148.º do Código da Estrada sobre qual é o prazo concretamente aplicável, é entendimento do Recorrente que dever-se-á que atender ao disposto no art.º 188.º do mesmo diploma legal, com as devidas e esperadas adaptações. E sendo o Ministério Público o defensor da legalidade democrática, cremos que não seja do seu entendimento conceber a existência de um processo/procedimento imprescritíveis, sob pena de violação do consagrado no art.º 30º nº 1 da Constituição da República Portuguesa. Contudo, em resposta ao Recurso interposto, não obstante a insistência em demonstrar que na sua perceção não seja de se aplicar o previsto no art.º 188º do Código da Estrada e a constatação de que o Recorrente incorre em erro ao importar ao caso o prazo prescricional que invoca, pela Digna Procuradora da República não é dada qualquer alternativa de aplicabilidade ao caso concreto. Portanto, salvo o devido respeito, que é muito, a simples invocação de que não ocorreu prescrição não é suficiente para responder às motivações e conclusões apresentadas pelo Recorrente. Por todo o exposto, se conclui que o Ministério Público, salvo o devido respeito, que é muito, não fez a correta interpretação do Recurso apresentado, ao qual deve ser dado provimento, com as devidas consequências legais» 9. Realizado o exame preliminar, foi proferida, em 8 de Julho de 2024, pela ora relatora, decisão sumária a rejeitar o recurso por inadmissibilidade, nos termos conjugados dos art.º 414º, n.º 2, 420º, n.º 1, al. b) e 417º, n.º 6, al. b) do C.P.P. 10. O recorrente, inconformado, ao abrigo do disposto no art.º 417º, n.º 8 do C.P.P., apresentou a presente reclamação para a conferência. Invoca, para tanto, e em síntese, que: «1.º Ao contrário do entendimento explanado na decisão sumária, entendemos que no caso em concreto o Recurso não se enquadra em nenhuma das alíneas do n.º 1 do art.º 73.º do RGCO. 2.º Estipula o n.º 2 do art.º 73.º do RGCO que “Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.” 3.º Ora, um olhar atento à motivação e conclusões de Recurso é o suficiente para se constatar que há uma necessidade de aceitação do mesmo tendo em vista a melhoria da aplicação do direito, pelo que se aplica ao caso a exceção prevista no n.º 2 do art.º 73.º do RGCO. Vejamos, 4.º Conforme resulta claro na conclusão III do Recurso interposto que o Recorrente entende que a Decisão proferida em primeira instância “viol(a) o disposto pelos nos artigos 30.º n.º 1, 32.º e 267.º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e arts. 46.º e 50.º do RGCO, bem assim como por entender estar o processo em causa prescrito.” 5.º A verificação das violações invocadas pelo Recorrente consubstancia nulidades insanáveis, por um lado; e importam a extinção do procedimento, por outro. 6.º Não se vislumbrando da Sentença proferida em primeira instância apreciação quanto as invocadas violações, entendemos que, no caso em apreço, estarmos perante um flagrante erro na aplicação do direito, o que, por sua vez, legitima o Recurso em causa. A mais, 7.º Cumpre referir que tanto as nulidades invocadas como a prescrição são matérias passíveis de conhecimento oficioso, que podem ter lugar a todo o tempo, e, como tais, poderiam (e deveriam) ser reconhecidas pelo Tribunal ad quem. Por outro lado, 8.º A questão da prescrição do procedimento de cassação da carta de condução, salvo o devido respeito, é controvertida na jurisprudência pátria. E, considerada a sua aplicação prática e relevância quotidiana, é questão que importa maior e melhor esclarecimento por esse d. Colegiado. 9.º Assim sendo, a questão jurídica objeto de apreço no presente recurso, por si só, legitima a admissibilidade do mesmo. Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se a apreciação da presente reclamação em conferência, para que, após a mesma, venha proferido acórdão que revogue a decisão de cassação proferida pela autoridade administrativa em causa por nula e ilegal» 11. Cumprido o contraditório, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta sustenta a improcedência da reclamação, nos seguintes termos: «1. O recorrente reclama para a conferência da Decisão Sumária, de 08/07/2024, deste Tribunal e Secção, que rejeitou o recurso por ele interposto da sentença da 1.ª instância que recaiu sobre o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa que determinou a cassação da sua carta de condução. 2. Tal rejeição teve lugar com fundamento na inadmissibilidade legal do recurso da sentença da 1.ª instância por não se mostrar contemplado no art.º 73.º, n.ºs 1 e 2, do RGCO. 3. O recorrente, embora reconhecendo que o recurso não se mostra admissível no âmbito do n.º 1, do citado artigo e diploma legal, pretende ser admissível a coberto do disposto no n.º 2, deste artigo e diploma legal. 4. Para tal argumenta que se colocam questões atinentes à aplicação do direito, como sejam a prescrição do procedimento de cassação da carta de condução, uma vez que a 1.ª instância incorreu em erro nessa aplicação e tal constitui questão controvertida na jurisprudência. 5. Entendemos não lhe assistir razão. 6. O art.º 73.º, n.º 2, do RGCO permite a interposição de recurso da sentença para a Relação, para além dos casos enunciados no n.º 1, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.” 7. No entanto, a “A admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC depende de requerimento prévio em que sejam alegados factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a aplicação do direito ou promover a uniformidade da jurisprudência.”, conforme acórdão do TRG de 18/06/2024, P. 6308/23.0T9BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt. 8. Ou seja, o requerimento prévio deve anteceder o requerimento de interposição do recurso e constituir motivo para fundamentar a admissibilidade do recurso. 9. Com efeito, “exige o n.º 2 do artigo 74.º do citado diploma, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 73.º, o requerimento deve seguir junto ao recurso, antecedendo-o, o que bem se compreende, pois constitui também um requisito de ordem processual em ordem à admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC.” – citado acórdão do TRG de 18/06/2024. 10. Ainda se lê, no citado acórdão do TRG, que “Como já há muito se escreveu: «O requerimento a pedir à Relação que receba o recurso em processo de contra-ordenação “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência” tem de acompanhar o recurso, antecedendo-o, sem o que o juiz terá de proferir despacho de não admissão.»(Acórdão da Relação do Porto de 14/01/1998, Processo n.º 9710984, disponível em www.dgsi.pt/jtrp]. 11. Sucede que o recorrente só agora, em sede de reclamação para a conferência, vem lançar mão da faculdade permitida pelo n.º 2 do art.º 73.º, do RGCO, quando o deveria ter feito aquando da interposição do recurso. 12. Ademais, a Mma Juiz Desembargadora, na Decisão Sumária, verificou a existência desta possibilidade, concluindo que “não se vislumbra da motivação do recurso e/ou das conclusões recursivas, da resposta e/ou do parecer aduzidos que tenha sido invocada, por algum dos sujeitos processuais, a necessidade de aceitação do recurso da sentença proferida em vista da melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.” Mostra-se, pois, extemporâneo o requerido, pelo que não se coloca a questão da admissibilidade do recurso com o pretendido fundamento. Afigura-se-nos, por isso, não ter acolhimento a presente pretensão» 12. Colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. A decisão sumária sob reclamação (excluindo o relatório) é do seguinte teor: «1. Da questão prévia da inadmissibilidade legal do recurso No caso, como já se deixou enunciado no relatório (ponto 9.), suscita-se uma questão prévia, em concreto, a da inadmissibilidade legal do recurso interposto pelo arguido.1 Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do RGCO à luz da CRP e da CEDH, edição 2011, pág. 298, «(…) no direito das contra-ordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista». Ou seja, «Contrariamente ao que é regra geral no processo penal (artigo 399.º CPP), sendo aí permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, no âmbito do RGC - aqui aplicável por força do disposto no já citado artigo 186.º CE - o regime regra é o da irrecorribilidade das decisões, sendo excecionais as normas habilitadoras de recurso das decisões, não comportando estas analogia (artigo 11.º Código Civil). Nos termos do que dispõe o artigo 186.º CE, «as decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas admitem recurso nos termos da lei geral aplicável às contraordenações»2 No mesmo sentido, concluiu-se na Decisão Sumária do Tribunal da Relação do Porto, de 29 de Junho de 2023, processo n.º 188/21.7T9FLG.P1, in www.dgsi.pt, que: «Estamos, pois, perante norma de natureza especial em relação ao regime estabelecido nos arts. 399º e 400º do Cód. de Processo Penal – e que assenta na intenção do legislador de, em processo de natureza contraordenacional, limitar o recurso para o Tribunal da Relação –, não se mostrando por isso aqui configurada qualquer situação de lacuna processual legal, pois que aquela primeira norma afasta a aplicabilidade desta segunda. Notar-se-á que a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art.º 20º/1 da Constituição da República Portuguesa (onde se dispõe que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos»), não implica a generalização do duplo grau de jurisdição. Tal princípio constitucional apenas garante imperativamente um grau de jurisdição, o que, no regime do processo contraordenacional está, desde logo, assegurado pela possibilidade de impugnação judicial das decisões da autoridade administrativa perante o juiz da comarca em cuja área territorial tiver sido praticada a infracção» Vale, pois, por dizer que, para o que ora releva, só é admissível recurso nos exactos termos previstos no art.º 73º do RGCO. Assim sendo e prosseguindo: Dispõe o citado art.º 73º do RGCO que: «1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 49,40; b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias; c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público; d) A impugnação judicial for rejeitada; e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal. 2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. 3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites» Volvendo ao caso, é desde logo manifesto que a decisão administrativa em crise – cassação do título de condução a que alude o art.º 148º do Código da Estrada – e que foi impugnada judicialmente na primeira instância, não se mostra inserida num qualquer processo de natureza contra-ordenacional. Na verdade, o legislador tipificou, para o efeito, no art.º 148º do Código da Estrada, um procedimento administrativo autónomo3. Como é sabido, está em causa a possibilidade de cassação do título de condução, no arquétipo legal vulgarmente designado de sistema de pontos e cassação do título de condução. «Tal sistema, conhecido e praticado em diversas latitudes do nosso entorno cultural, assenta na conceção de que a licença de conduzir é um direito que, mediante certas condições, se atribui aos cidadãos interessados em conduzir veículos na via pública, condicionado a certas circunstâncias ligadas ao comportamento rodoviário, estabelecendo-se quais é que poderão determinar a perda de pontos e, por consequência, a (eventual) perda da licença de conduzir (a sua cassação), sendo a cassação da carta de condução uma decisão administrativa autónoma, decorrente da perda dos pontos de que os condutores partem quando obtêm a licença de condução»4 Nesta senda, adita a evidência de que o instituto da cassação do título de condução não é, de todo em todo, subsumível ao de pena acessória5 figurando-se, antes, como mera decorrência/consequência, especial e legalmente prevenida, de condenações, transitadas em julgado, pela prática de contraordenações graves e/ou muito graves, e/ou de crimes no espectro rodoviário. «A cassação tem por base um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir, mas tal juízo está associado à condenação por ilícitos contraordenacionais ou criminais relativos à condução, determinantes da aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir ou de pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. É em função dessa relação com a condenação por infração rodoviária, de natureza contraordenacional ou criminal, que o legislador estabeleceu que a decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações, ou seja, como um recurso de “impugnação judicial”, como tal definido por lei – artigo 59.º, n.º 1 do RGCO -, em processo contraordenacional»6 «O que no processo administrativo autónomo se visa é apenas produzir uma ordem de cassação da carta de condução, após verificação da ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao titular da carta de condução – cf. art.º 148º, nº 10, do CE. Ou seja, decisão que é proferida após e apenas por causa da verificação da soma negativa dos pontos correspondente ao somatório das contraordenações ou crimes praticados, entretanto objeto de decisões já transitadas em julgado. Soma essa que está pré-anunciada, de um modo perfeitamente previsível, transparente, tanto quanto pedagógico, para o respetivo titular da licença, que não pode ignorar ou deixar de saber que a cassação da carta é um resultado meramente reflexo do trânsito em julgado daquelas decisões condenatórias e não da ordem administrativa de cassação, que apenas executa a consequência jurídica daquelas adveniente. E tanto assim é que a efetivação da cassação ocorre com a sua notificação ao titular da carta (“A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação” - art.º 148º, nº 12, do CE) e desse modo também lhe comunicando algo que já deveria saber, por força das anteriores condenações e da perda total de pontos que as mesmas representavam, isto é, que deixou de ter as condições de aptidão que estiveram na base da concessão do título de condução, e assim se verificando a caducidade do título de condução que inicialmente lhe tinha sido atribuído – art.º 130º, nº 1, al. d), do CE. Assim, é bom de ver que a cassação da carta a que se refere o art.º 148º do CE não é uma sanção contraordenacional, porquanto não traduz em si a aplicação de qualquer coima – art.º 1º do RGCO -, nem é uma sanção acessória da coima»7. E é no respaldo deste aporte argumentativo e, derradeiramente, perante a inferência de não estar em causa decisão administrativa que tenha tomado conhecimento de ilícito contraordenacional e/ou em que tenha sido aplicada coima ou sanção acessória, que vem sendo entendido na jurisprudência que, nestes casos, não é, nos termos previstos no citado art.º 73º, n.º 1, al. a) a c) do RGCO, legalmente possível o recurso para o Tribunal da Relação8. Ora, restando-nos indagar da admissibilidade do recurso ao abrigo das alíneas d) e e) do n.º 1 e n.º 2 do citado art.º 73º, impõe-se, outrossim, concluir que falecem os respectivos pressupostos. Na verdade, é inequívoco que, concomitantemente, não está em causa situação subsumível à rejeição da impugnação judicial nem à decisão através de despacho e apesar da oposição do recorrente, já que, no caso, a impugnação apresentada foi apreciada e decidida pelo Tribunal a quo, e embora com dispensa de audiência, foi sem oposição do arguido. Por último, não se vislumbra da motivação do recurso e/ou das conclusões recursivas, da resposta e/ou do parecer aduzidos que tenha sido invocada, por algum dos sujeitos processuais, a necessidade de aceitação do recurso da sentença proferida em vista da melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. Em síntese apertada, dir-se-á, pois, que, não se mostrando reunidos os pressupostos a que alude o art.º 73º do RGOC, a sentença revidenda, que conheceu da impugnação judicial da decisão administrativa que determinou a cassação da carta de condução de que era titular o ora recorrente, não admite recurso para o Tribunal da Relação. Termos em que se conclui pela inadmissibilidade legal do recurso apresentado. III – DISPOSITIVO Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: a) Rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA; b) Condenar o recorrente no pagamento de 3 UC de taxa de justiça. Notifique» II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Com as alterações introduzidas ao C.P.P. pela Lei n.º 48/2007, no que ao paradigma dos recursos respeita, o legislador eivado do objectivo de racionalizar o funcionamento dos tribunais superiores, maxime promovendo uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular, determinou um funcionamento dos tribunais de recurso em trinómio - decisões da competência do relator, em conferência e em audiência9 - e sem que se verifique uma qualquer relação hierárquica entre estes níveis de decisão (entre si diferenciados e independentes). Assim sendo, e no que concerne à possibilidade de reclamação para a conferência das decisões do relator10, dir-se-á que, por natureza e definição, assumindo-se tal procedimento como meio de controlo da legalidade da decisão sumária proferida (e não como direito a uma dupla apreciação do recurso11), não se bastará com a mera manifestação de discordância do recorrente e/ou com a reiteração dos fundamentos aduzidos no recurso interposto. Ao invés, imporá uma motivação nova, com argumentário concretamente dirigido à decisão sumária prolatada. «Pela própria natureza e definição, a figura jurídica de reclamação prevista no n.º 8 do art.º 417 do CPP, como em qualquer ramo do direito, constitui uma prerrogativa legal, procedimental de controlo, de impugnação de algum dos actos decisórios enunciados nos nºs 6 e 7 do citado art.º 417º, posta à disposição do destinatário da decisão que por ela se considere prejudicado, com vista à sua revogação, modificação ou substituição com base em violação da lei. A reclamação para a conferência não constitui instrumento de manifestação da mera discordância do recorrente em relação à decisão reclamada. Ou até de mera renovação dos fundamentos do recurso. Exige uma motivação, autónoma, de rebatimento jurídico das razões ou dos fundamentos da decisão de que se reclama, no sentido de demonstrar a sua ilegalidade. Obrigando assim o reclamante a demonstrar a ilegalidade que aponta à decisão reclamada, no caso, a decisão sumária do relator»12 2. No caso, como resulta da reclamação apresentada, o recorrente, embora conceda que o recurso é inadmissível à luz do art.º 73º, n.º 1 do R.G.C.O., roga, agora, a sua admissibilidade com amparo no disposto no n.º 2 do citado normativo legal. Cumpre, pois, aquilatar, singelamente, da invocada admissibilidade do recurso ao abrigo do disposto no art.º 73º, n.º 2 do R.G.C.O. Atentemos. Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de Junho de 2024, processo n.º 6308/23.0T9BRG.G1, in www.dgsi.pt.13 «(…) poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. (…) As conclusões da motivação é que definem, de forma definitiva, o objecto do recurso a conhecer pelo tribunal ad quem, como é jurisprudência pacífica. Significa isto que a questão nova suscitada pelo arguido (…) – a admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do citado artigo 73.º do RGCOC –, não pode ser conhecida por este Tribunal da Relação na medida em que a aceitação do recurso com vista com vista à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência não foi invocada como fundamento para a admissibilidade do recurso, sendo certo, ainda, que inexiste o requerimento prévio a que alude o n.º 2 do artigo 74.º do RGCOC. (…) a lei especifica qual é o momento processual idóneo para lançar mão da faculdade ínsita no n.º 2 do artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações. Conforme exige o n.º 2 do artigo 74.º do citado diploma, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 73.º, o requerimento deve seguir junto ao recurso, antecedendo-o, o que bem se compreende, pois, constitui também um requisito de ordem processual em ordem à admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC. (…) O requerimento a pedir à Relação que receba o recurso em processo de contra-ordenação “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência” tem de acompanhar o recurso, antecedendo-o, sem o que o juiz terá de proferir despacho de não admissão» Porém, no caso, tal como se refere expressamente na decisão sumária reclamada, «(…) não se vislumbra da motivação do recurso e/ou das conclusões recursivas, da resposta e/ou do parecer aduzidos que tenha sido invocada, por algum dos sujeitos processuais, a necessidade de aceitação do recurso da sentença proferida em vista da melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência» Ante o exposto, na adesão ao citado argumentário, outra solução não resta senão a de se concluir que o ora reclamante só a destempo veio alavancar a admissibilidade excepcional/extraordinária do recurso, nos termos do citado n.º 2 do art.º 73.º do R.G.C.O., pelo que o recurso é indelevelmente inadmissível, tal qual decidido. Impõe-se, pois, a improcedência da reclamação. III - DISPOSITIVO Nestes termos e com tais fundamentos expostos, decide-se: a) Negar provimento à reclamação; b) Condenar o reclamante AA, no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC, nos termos da tabela III anexa ao R.C.P. Lisboa, 10 de Outubro de 2024 Ana Marisa Arnêdo Maria de Fátima R. Marques Bessa Isabel Maria Trocado Monteiro _______________________________________________________ 1. A tal não obstando a circunstância de o Tribunal a quo ter admitido o recurso, como decorre, inequivocamente, do prevenido no art.º 414º, n.º 3 do C.P.P. 2. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7/11/2023, processo n.º 124/22.3T8SSB.E1, in www.dgsi.pt. 3. Cujo início, aliás, pressupõe o trânsito em julgado das decisões precedentes, das quais resulta a perda objectiva de pontos na carta de condução. 4. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7/11/2023, processo n.º 124/22.3T8SSB.E1, in www.dgsi.pt. 5. «Sendo ademais óbvio não constituir uma sanção acessória, por como tal não estar prevista em lei anterior, nomeadamente nas normas sancionatórias dos comportamentos que dão origem à perda de pontos. Nem poderia logicamente haver uma «sanção acessória» sem que houvesse uma principal de que aquela dependesse! Mas qual seria ela?», Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7/11/2023, processo n.º 124/22.3T8SSB.E1, in www.dgsi.pt. 6. Decisão Sumária do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/2/2024, processo n.º 746/22.2T9PTL.G1, in www.dgsi.pt. 7. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/05/2023, processo n.º 1159/22.1T9VCD.P1, in www.dgsi.pt. 8. Para além dos já citados, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28/04/2021, processo n.º 194/20.9T9ALB.P1, in www.dgsi.pt. 9. Respectivamente, artigos 417º, n.º 6 (com referência ao art.º 420º), 419º e 423º todos do C.P.P. 10. Ao abrigo do art.º 417º, n.º 3 do C.P.P. 11. Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/6/2023, proc. n.º 669/06.2PBGMR-A.G1, in www.dgsi.pt. «A Reclamação para a Conferência de Decisão Sumária proferida, não constitui uma forma de conferir o direito a uma dupla apreciação, em sede de recurso» 12. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/1/2020, processo n.º 685/13.8PBVIS.C1, in www.dgsi.pt. 13. Indicado, previamente, pela Ex.ma Sra. Procuradora-Geral Adjunta na resposta à reclamação. |